Til 21 J osé PARA de A lencar LER TIL Um olhar específico Toda obra literária permite mais de uma leitura e mais de uma análise. Til, romance brasileiro de José de Alencar, pode ser lido, por exemplo, apenas como obra típica de nosso Romantismo — com predominância de espaço rural e personagens que se aproximam da fauna e da flora brasileiras, como Jão Fera, Brás e a própria protagonista do romance, Berta, aquela que será chamada de Til e que dá o nome ao romance. Mas acreditamos que talvez seja mais fértil ler a obra a partir de outra perspectiva — que não exclui a anterior, mas que a contém em si. Trata-se de verificar como José de Alencar tenta construir uma narrativa de vingança, no modelo, por exemplo, de O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, no espaço brasileiro, especificamente o paulista, das plantações de café — por meio da apresentação de conflitos violentos que havia na sociedade patriarcal e escravista que dava sustentação ao Brasil. Colocando a história em ordem: o véu da santidade que recobre a violência Com o prejuízo de perder o efeito do suspense, que perpassa toda a obra, relataremos a seguir a história de Til ordenando os acontecimentos cronologicamente, para encaminhar, desde o princípio, um ponto de vista analítico-interpretativo. Para isso, é preciso que fique pressuposto desde já que a leitura integral do romance é indispensável para a sua compreensão: este texto é apenas um roteiro de leitura. Digamos tudo, desde o princípio: o conflito a partir do qual se constitui o romance é a disputa pelo amor de Besita. Dois homens a desejam: Ribeiro, depois chamado de Barroso, que se casará com ela e logo depois a deixará sozinha, o que dará a chance ao segundo dos pretendentes, Luís Galvão, de estuprá-la e consequentemente engravidá-la; ao retornar, o marido assassinará a esposa. Luís Galvão, que acaba por desgraçar a vida da jovem Besita por capricho, é jovem fazendeiro paulista, que experimenta todos os excessos da juventude abastada: leva vida boêmia e irresponsável, mete-se em brigas que culminaram em mortes que Galvão nunca paga — exatamente por pertencer à classe dominante brasileira — e conta com o apoio e a proteção de Jão Bugre, seu capanga, que depois será chamado de Jão Fera, um agregado da fazenda de seu pai, ali aceito depois de surgir misteriosamente, ainda criança, montado em um cavalo, vindo não se sabe de onde. Já podemos observar o chão histórico e social em que se passa a narrativa de Til: é o interior paulista, extremamente violento, em que o poder dos fazendeiros de café se faz lei, sobrepujando-se ao próprio Estado, que protege apenas os mais abastados. Abaixo dos fazendeiros, seus protegidos e protetores: Jão Bugre é parceiro e capanga do jovem Luís Galvão; ambos cresceram juntos, e a força física do Bugre protege Galvão dos inimigos que este angaria gratuitamente, dada a sua inconsequência juvenil. O que se observa na relação dessas duas personagens é a lógica do favor, que impera no Brasil do século XIX: abaixo dos senhores de terra e de escravos, estão homens supostamente livres, mas dependentes dos favores dos senhores para sobreviver — já que praticamente toda a ocupação econômica rentável do Brasil está destinada à colheita do café, trabalho executado pelos escravos, que sequer são considerados cidadãos, mas são tratados como bens, propriedades de seus senhores. Aos homens pobres, brancos ou mestiços, restam ocupações secundárias, sempre dadas a eles pelos senhores, a quem ficam devendo favores e fidelidade, sempre sob a ameaça de “voltar para a rua”. É importante perceber que a relação entre o jovem Luís Galvão e o jovem Bugre não é da mesma natureza que a relação de Galvão com seus escravos — esta é mediada pela força; aquela, pelo favor. Mas é preciso verificar também que o mandonismo e a supremacia do senhor sobre seus agregados, protegidos e empregados é derivação e parte constituinte da mesma sociedade escravista. Em palavras simples: por mais que o agregado não seja um escravo, ele jamais é visto pelo senhor como um igual; pior do que isso: a submissão do agregado ao senhor e a arbitrariedade deste em relação à vida daquele é, de certa forma, uma consequência da escravidão — ou seja, a relação social de base, a escravidão, acaba matizando todas as outras1. Por isso, a devoção de Jão Bugre a Luís Galvão: Crescendo, veio a ser o camarada de Luís, a quem servia com dedicação que, sob aparência ríspida e seca, era sincera e infalível. As vezes em que salvara a vida do jovem patrão já não se contavam. Arriscar-se estouvadamente o moço fazendeiro, e salvá-lo com fria intrepidez o rapaz, era fato comezinho* e trivial na existência de ambos. [...] Autor: Carlos Rogerio Duarte Barreiros, professor de Literatura, Artes Visuais e Língua Portuguesa do CPV Vestibulares há dezoito anos, doze deles dedicados à preparação ao vestibular, sempre no CPV. Também é escritor, crítico literário e pesquisador de Literatura, doutorando na Universidade de São Paulo (USP). 1A descrição da lógica do favor, brevemente aqui apresentada, pode ser lida no Capítulo 1 de Ao Vencedor, as Batatas, de Roberto Schwarz, intitulado “As ideias fora do lugar”. Nossa análise de Til tem como ponto de partida a leitura das análises desse crítico literário a respeito da literatura e da cultura brasileiras. * comezinho: fácil de entender, simples TIL CPV TIL 22 Luís Galvão era magano e fragueiro*; gostava de bulir com as raparigas e pregar peças aos caipiras. Daí resultavam constantes desavenças, em que Jão, para defender o moço, tinha necessidade de desancar os assaltantes, pagando em muitas vezes com a pele as aventuras galantes do jovem patrão. Uma vez travou-se tão renhida luta que o Bugre prostrou morto a seus pés um arrieiro* com quem Luís Galvão puxara briga, oferecendo vinte patacões pela mula de estimação em que ele montava, a fim de fazer torresmos do couro. Irritou-se o tropeiro por tal forma com o sarcasmo, que teria com certeza morto ao filho do fazendeiro, se Jão não lhe arrostasse* a fúria. Com algum dinheiro tapou-se a boca aos parentes do morto e acomodou-se tudo, de modo que o Bugre continuou a acompanhar o patrão em suas correrias.2 Jão Bugre tira a vida a outros homens por fidelidade a seu companheiro e patrão — essa ambivalência na relação entre Galvão e o Bugre, que é ao mesmo tempo afetiva (a dedicação de Bugre a Galvão é “sincera e infalível”) e empregatícia (Galvão é “patrão” do Bugre), também é uma consequência da lógica do favor: não há entre o senhor e seu dependente uma relação meramente de empregador e de empregado; entre eles existe também um laço afetivo, na medida em que o senhor acolhe o agregado, que lhe será eternamente grato por não ser abandonado. Ao mesmo tempo que essa relação pode ser lida na chave da amizade ou da camaradagem, também pode ser entendida na da crueldade, devido à dependência que constitui. Mas a parceria entre Galvão e Já Bugre terá fim devido ao desejo de Galvão por Besita, “a mais bonita moça que havia em Santa Bárbara em 1826”, que é também amada por Bugre. Quando o patrão não se casa com a moça por ela ser pobre, deixando-a disponível para o casamento com o Ribeiro (o grande vilão e criminoso do romance), mas insistindo em abordá-la a ponto de estuprá-la na ausência do marido, Jão Bugre abandona o patrão. A situação piora quando Besita tem uma filha de Galvão – Berta, “aquela que brilha”, também chamada de Inhá e finalmente de Til, a protagonista do romance — , resultante da violência sexual que sofrera. Abandonada pelo marido recente, que logo depois do casamento fora à cata de fortuna, e pelo homem que a tomara à força, Besita só conta com o apoio da negra Zana e de Jão Bugre — que, no entanto, não consegue impedir que Besita seja assassinada pelo marido quando ele, ao retornar de longo período distante, em que gozou largamente a fortuna que alcançou, imaginou-se traído já mesmo antes do casamento. Perceba a violência dos fatos narrados e o caráter machista da sociedade patriarcal em que estão inseridas as personagens: o mandonismo e a impunidade das classes dominantes, na figura de Galvão, cujos caprichos podem levar à morte de homens mais humildes, além da supremacia do “macho adulto branco sempre no comando”3, que leva ao estupro de uma mulher casada e à sua morte, sem que ela possa defender-se do “crime de honra” cometido pelo marido, sem julgamento ou interferência da justiça. Terra de ninguém — ou terra em que muito poucos gozam da prerrogativa de dispor da vida e da morte de todos os outros. Esse é o universo em que se insere a narrativa de Til. 2 Todos os trechos de Til foram extraídos da edição publicada por Ateliê Editorial (2012), com apresentação e notas de Ivan Teixeira e glossário de Geraldo Gerson de Souza. 3 Expressão de Caetano Veloso, da canção “Estrangeiro”, do álbum do mesmo nome (1989). * magano e fragueiro: malicioso, travesso e independente * arrieiro: aquele que inspeciona e cura os animais da tropa * arrostar: conter CPV TIL Depois da morte da mãe, Berta será acolhida por Nhá Tudinha, mulher cuja bondade, alegria e disposição para o trabalho destoam da violência que descrevemos. O crescimento da órfã será acompanhado pela mãe adotiva, por Jão Bugre (que passará a chamar-se Jão Fera, porque, para sobreviver, adotará a ocupação de assassino de aluguel) e pelo irmão adotivo Miguel. Inicialmente abastada, essa família empobrecerá — e pode ser entendida pelo leitor como um núcleo de brancos sem propriedades4, classe social bastante retratada pelos escritores brasileiros do século XIX. No topo da pirâmide social, Luís Galvão, depois das inconsequências da mocidade, torna-se um fazendeiro rico e empreendedor, depois de casar-se com uma mulher de posses e de origem aristocrática e fluminense: Tinha Luís Galvão o gênio empreendedor e gosto para a lavoura; casando com a filha de um capitalista de Campinas, que lhe trouxe algumas dezenas de contos de réis, além do crédito, pôde ele, dando alas à sua atividade, fundar uma importante fazenda, que a muitos respeitos servia de norma e escola ao agricultor brasileiro. Aquele jovem irresponsável, ao atingir a vida adulta, ocupar-se da propriedade e casar-se com uma mulher de família respeitável, deixa o passado vil para trás, sob o signo da impunidade. É a vingança de Ribeiro — que assumirá o nome de Barroso — vinte anos depois, que será a principal mola da narrativa de Til: o marido de Besita, depois de ausentar-se para evitar acusações pelo crime que cometera, retornará a Santa Bárbara, disposto a vingar-se de Galvão, com a intenção de assassiná-lo e tomar-lhe o lugar na família e na fazenda. Vinte anos depois, Galvão dirige a pujante Fazenda das Palmas, produtora de café, modelo para quaisquer propriedades rurais. É casado com Dona Ermelinda: Filha de um capitalista de Campinas, D. Ermelinda recebera em um colégio inglês da Corte educação esmerada, que desenvolveu a natural distinção de seu espírito. Recolhida à sua província, teria sem dúvida perdido ao atrito dos costumes do interior aquele tom fidalgo, se fosse ele um artifício do hábito, em vez de um dom, que era da natureza, o qual o exemplo fizera senão polir. À expansão dessa natureza delicada, ao perfume de bom gosto que derramava em torno de si, deve-se atribuir a ausência da cor local que se notava, se não em toda a casa, ao menos na família. Aquela esfera que recebia a influência imediata da dona da casa não era paulista, mas fluminense; e não fluminense pura, senão retocada já pelo apuro escocês e pela graça francesa. 4A violência inerente à sociedade patriarcal, que atinge especialmente essa camada social é estudada minuciosamente por Maria Sylvia de Carvalho Franco, Professora Livre Docente da USP, na obra Homens Livres na Ordem Escravocrata. TIL Embora o narrador não o afirme explicitamente, o casamento de Galvão e Dona Ermelinda é evidentemente um casamento de conveniência: por meio dele, Galvão obtém terras, capital e crédito. Da mesma forma que o estupro de Besita é descrito de modo bastante velado, também o é a descrição do casamento por interesse. Dona Ermelinda reveste a Fazenda das Palmas do véu aristocrático da corte carioca e de ares europeus, além de trazer um bom dote a Galvão. Os filhos, Linda e Afonso, já em seus nomes, são extensão da família a que pertencem, de cuja tradição não se desligarão até o fim da obra: Linda tem o mesmo nome e o mesmo ar aristocrático — e ao mesmo tempo submisso, como veremos — da mãe; Afonso tem o nome do avô. Também faz parte da família um pária*, ignorado por todos, Brás, sobrinho de Luís Galvão, homem irracional, ser enlouquecido e animalizado, chamado frequentemente de “idiota” pelo narrador. Brás é filho de uma irmã de Luís Galvão e cometerá perigosas loucuras ao longo do romance, pondo em risco, inclusive, a vida de Berta. Entre os pobres, destaca-se, primeiramente, a família composta por Nhá Tudinha, mãe adotiva de Berta (personagem central do romance) e Miguel, filho de Nhá Tudinha, apaixonado pela irmã adotiva. Berta inspira a paixão de muitas personagens, exatamente como sua mãe, mas termina o romance sem casar-se com ninguém; ao final da narrativa, Berta será a mediadora (qualidade tradicionalmente atribuída à Virgem Maria) entre as personagens repugnantes e a realidade — Zana, que está velha e enlouquecida pelo assassinato de Besita; Brás, que é mais animal do que homem; e Jão Bugre, depois chamado Fera, que carrega a responsabilidade e a culpa de diversos assassinatos —, de modo a purgar-lhes* as violências que cometeram (no caso dos dois últimos) ou que sofreram (Zana). Do ponto de vista interpretativo, portanto, toda a violência que há nos pressupostos da história acaba purificada pela bondade e pela abnegação de Berta. Mas não adiantemos o final do romance, nem todas as interpretações que ele sugere. Basta saber que, inicialmente, os quatro jovens — Linda e Afonso, Berta e Miguel — encontram-se frequentemente num lugar chamado de Tanquinho, espaço de integração plena entre homem e natureza, em que a interferência daquele nesta alcança a perfeição. O idílio* apaixonado que ocorre neste espaço — o amor dos dois rapazes por Berta, que nega as investidas a ambos e que tenta aproximar Miguel de Linda, que já o ama — dista diametralmente da perfídia* que o cerca, concentrada especialmente em outro espaço, desta vez maldito, em que se encontram todos os facínoras da região: a taberna e estalagem de Chico Tinguá. Lá Jão Fera compromete-se com Barroso — que é, na verdade, Ribeiro, de volta a Santa Bárbara vinte anos depois — * pária: membro de casta ou classe social desprezada * purgar: purificar, eliminar as impurezas * idílio: amor poético e suave, fantasia, devaneio * perfídia: traição, deslealdade, falsidade 23 a assassinar seu antigo patrão, Luís Galvão; no mesmo local, diversos caçadores de recompensas buscarão informações a respeito de Fera, cuja cabeça está a prêmio, especialmente o valentão Gonçalo. Todas essas ciladas serão em vão: Ribeiro-Barroso não alcançará a morte de Luís Galvão — na primeira vez, porque Berta impede Jão Fera de cometer o crime; na segunda, depois da festa de São João que acontece na Fazenda das Palmas, porque o próprio Jão Fera impede que o antigo patrão seja morto. Também os que tentam tirar a vida a Jão Fera não alcançarão o intento, porque seu esconderijo (uma caverna aberta por uma árvore entre as rochas) é uma fortaleza quase inexpugnável e porque Fera conhece bem as veredas e caminhos das redondezas, movimentando-se quase livremente, integrado ao espaço. Apesar de as violências físicas contra Luís Galvão não ocorrerem, os eventos resultantes do retorno de Ribeiro-Barroso desencadeiam revelações do segredo que o fazendeiro guardava. Mas não apenas eles: antes mesmo de ter a vida ameaçada, na festa de São João, Galvão é vítima das fofocas a respeito de seu passado, numa passagem que o crítico literário Roberto Schwarz colocaria na galeria da “tradição do instante cafajeste”5: os homens mais velhos comentam os sucessos sexuais do fazendeiro, sem perceber que a esposa dele passava por perto e flagrava a “cafajestagem” dos comentários, que traziam à tona não apenas uma aventura sexual da juventude, mas uma paternidade não assumida — exatamente a de Berta: Voltados para o terreiro, observavam de longe as folias, de que tinham saudades; e muitos porventura invejavam ainda aos moços o prazer das estripulias, que já lhes permitiam a gravidade dos anos e a rijeza dos músculos. — O Afonso é endiabrado! — Tem a quem sair. — Oh! Se tem! Cá o Luís foi de truz*! — Um maganão* chapado! — Como se enganam! retorquiu Luís a rir. Sempre fui da pacata! — Da sonsa, talvez! — O que sei é que no nosso tempo ninguém punha pé em ramo verde! — Mas não pescava senão peixões! — Que história estão vocês aí a inventar? tornou o fazendeiro com disfarce. — E a filha do Guedes, lembra-se? — A que o marido abandonou? — A Besita, sim! — Essa não! exclamou involuntariamente Galvão contrariado. — Ora negue! Antes e depois! — Do parto? — Do casamento! — Que tal o cujo? exclamaram diversos. Uma risada geral acolheu a pilhéria, que perturbou o fazendeiro. — Mudemos de conversa! disse ele com algum vexame. D. Ermelinda, que se tinha aproximado da janela vizinha, à procura da filha, apanhara aquele trecho de conversa; e teve um aperto de coração. 5 O crítico Roberto Schwarz alude a essa tradição no Capítulo 1 de Ao Vencedor, as Batatas, especificamente a respeito da obra de José de Alencar: “A importação do romance e suas contradições em Alencar”. * truz: pessoa de valor, distinta, excelente, notável. * maganão: brincalhão TIL CPV TIL 24 Acreditamos que o trecho pertence à tradição do instante cafajeste porque flagra, com bastante naturalidade — como se a conversa entre senhores soasse comum, ao menos aos homens do tempo e da classe de Galvão —, um momento simples em que toda a estrutura patriarcal vem à tona: o deboche (que hoje chamaríamos de machista) ofensivo dos comentários dos senhores mais velhos degrada a imagem de uma mulher que foi um “peixão pescado” por Luís Galvão, pretensamente “antes e depois” do casamento — o que não é verdade, pois o estupro ocorreu apenas depois do casamento de Besita e Ribeiro-Barroso; o grupo de “machos adultos brancos” celebra a posição privilegiada de que todos gozam por meio dos sucessos sexuais do seu membro mais bem sucedido — Luís Galvão. “Pescar o peixão” de nome Besita não representa apenas uma conquista sexual, mas também a supremacia do proprietário rico sobre a mulher pobre — e, de forma simbólica, sobre todas as classes sociais; as piadas de mau gosto – saberíamos, se quiséssemos, de modo bastante grosseiro, atualizar a expressão “pescar o peixão” — escamoteiam* ainda mais a violência que impera na sociedade patriarcal, seja a dos senhores sobre suas mulheres e filhas (note a situação vivida por D. Ermelinda, que, a despeito de toda a educação de origem europeia, sofre a opressão do marido), por meio do machismo violento e esmagador; seja a dos senhores sobre os pobres, por meio da lógica do favor, que transforma o homem supostamente livre em dependente; seja, finalmente, a dos senhores sobre os escravos, por meio da violência física infligida a estes, não pelos próprios senhores (que não sujam as mãos de sangue), mas pelos capatazes e capitães, brancos livres que ganham a vida engendrando a violência que perpetua a sociedade patriarcal escravista. As duas tentativas de assassinato de Luís Galvão são malogradas. Na primeira, Jão Fera está prestes a matá-lo para cumprir o combinado que acertara com Ribeiro-Barroso, mas Berta o impede, alertada pelos maus pressentimentos de D. Ermelinda; na segunda, logo depois da noite de São João, em acerto com o negro Monjolo e o mulato Faustino, que trabalham na Fazenda das Palmas, e com o valentão Gonçalo Pinta, Ribeiro-Barroso iniciará um incêndio no canavial que terminaria com a morte de Luís Galvão. Mas Jão Fera impedirá, mais uma vez, que seu antigo patrão seja morto — não pela fidelidade antiga que lhe devotou, mas pelo amor a Berta, a quem Jão Fera protege cegamente, como se fosse ele próprio o pai. As piadas de mau gosto, mas principalmente o retorno e a tentativa de vingança de Ribeiro-Barroso desencadeiam a série de revelações das violências do passado de Luís Galvão e do próprio Jão Fera, bem como as devidas reparações e ajustes familiares e pessoais. Primeiramente, Jão Fera se entregará à polícia pelos crimes que cometeu, mas fugirá da cadeia e será perdoado por Berta, ao redor da qual se constituirá uma comunidade dos párias, loucos e abandonados. Investigaremos o caráter de Berta mais adiante, mas já é necessário afirmar, como * escamotear: ocultar CPV TIL já o fizemos anteriormente, que ela servirá de medianeira, como uma espécie de santa dos pobres, por meio da qual aqueles que se arrependerem se livrarão de suas culpas: “Meu lugar é aqui, onde todos sofrem”, diz a Miguel, quando este, a caminho de São Paulo para estudar, já aceito pela família Galvão, se despede da irmã. É a “alma sóror”, alma caridosa de Berta, que encerra o romance (e que, de certa forma, perdoa e acoberta a violência de que ela própria é vítima e resultado, como analisaremos depois): Berta acolhe o louco e “idiota” Brás (que, por ser louco, não tem ciência do que faz e, por isso, não pode ser responsabilizado pelos atentados à vida que comete ao longo do romance, atacando a velha Zana e deixando uma cobra no quarto de Linda), logo depois de uma de suas crises nervosas. Berta também acolhe a velha Zana, enlouquecida há muitos anos devido à dupla violência sofrida por sua senhora Besita, mãe de Berta (o estupro de Luís Galvão e a morte pelas mãos de Ribeiro-Barroso). Além disso, Jão Fera obtém o perdão de Berta, prometendo jamais cometer novas violências, depondo as armas e trabalhando para o sustento da casa em que todos sofrem. Finalmente, quando Miguel vai embora para São Paulo, estudar Direito para poder desposar Linda, também Nhá Tudinha fica amparada apenas pela companhia de Berta. Nas linhas finais do romance, todos oram na casa: Quando o sol escondeu-se além, na cúpula da floresta, Berta ergueu-se ao doce lume do crepúsculo, e com os olhos engolfados na primeira estrela, rezou a Ave-Maria, que repetiam, ajoelhados a seus pés, o idiota, a louca e o facínora remido*. Como as flores que nascem dos despenhadeiros e algares*, onde não penetram os esplendores da natureza, a alma de Berta fora criada para perfumar os abismos da miséria, que se cavam nas almas, subvertidas pela desgraça. Era a flor da caridade, alma soror. A imagem é bastante impressionante: Berta, a personagem que era desejada pelo irmão adotivo, Miguel, e pelo rapaz da família rica, Afonso, além de ter causado confusos sobressaltos (que sugerem também o instinto sexual) em Jão Fera, acaba por tornar-se uma espécie de santa popular, canonizada in partibus6, por todos aqueles que sofrem. A história do Brasil conhece muitos santos canonizados pela população, sem o reconhecimento oficial da Igreja Católica: são os casos de Padre Cícero e Antônio Conselheiro, que são, ao mesmo tempo, líderes religiosos e políticos que agrupam em torno de si multidões de pessoas muitas vezes miseráveis que lhes devotam fé e lhes atribuem milagres. As literaturas popular (como a literatura de cordel) e erudita (como o romance que estamos analisando) registraram, romancearam e criaram diversos casos de canonização in partibus. Mais recentemente, na década de 1980, a banda de rock Legião Urbana também contou uma história como essas, na canção “Faroeste Caboclo”, em que o herói João de Santo Cristo é predestinado a ser corajoso e a transformar-se em líder popular, devido ao seu desejo de “falar com o presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”7. 6 “canonização in partibus” é a canonização de santos não reconhecidos pela Igreja. 7 A respeito da canção Faroeste Caboclo, da Legião Urbana, pode-se ler a dissertação de mestrado do autor deste resumo, disponível em http://www.dominiopublico. gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=109432 * facínora remido: criminoso perdoado * algar: barranco, despenhadeiro TIL Em resumo, Berta encarna, no romance de Alencar, uma personalidade comum dos espaços rurais em que o mandonismo dos senhores sobrepõe-se ao poder público do Estado: o líder religioso por meio do qual os pecadores se redimem dos pecados e por meio do qual são acolhidos os loucos, os desajustados e os velhos sem amparo. Berta faz a mediação necessária, através da religião e da caridade, entre essas pessoas e o resto da sociedade, transformando o facínora em trabalhador e afastando os loucos do convívio social. Encerremos este resumo da história de Til observando o destino da casa em que “todos são felizes” — na fala da própria Berta. Na Fazenda das Palmas, tudo se ajustou depois do atentado à vida de Luís Galvão: ele já tinha ido a Campinas, sem que o narrador o revelasse ao leitor, no início do romance, para registrar em cartório um testamento em que reconhecia a paternidade de Berta; também já confessara à esposa a violência que cometera na juventude — o que lhe rendeu a confiança dela de volta e a sugestão de que Berta fosse acolhida como membro da família. Mas Berta nega esse reconhecimento e opta pela casa em que “todos sofrem”, adotando Jão Fera como pai, já que ele cuidara dela ao longo de toda a vida, mesmo que à distância. Linda e Miguel, por intermediação de Berta, apaixonam-se e decidem casar-se, sob as condições de D. Ermelinda — que inicialmente não aceitara o namoro dos dois, por ser Miguel rapaz pobre, paulista e grosseiro, como os seus. Tudo se ajusta, entretanto, com o compromisso de Miguel de estudar em São Paulo, isto é, de ascender socialmente de forma simbólica, revestindo-se do título de bacharel que alcançará8. D. Ermelinda não só aceita o ingresso de um jovem pobre em sua família como também perdoa o marido e sugere o acolhimento de Berta — atitude que pode ser lida pelo menos de três maneiras, que não se excluem uma à outra: a primeira é que D. Ermelinda pretendia preservar as aparências e a união da família — valor fundamental para as pessoas de sua classe social, em que separações e divórcios são fatos mais escandalosos do que as conhecidas visitas dos senhores às casas das moças pobres e às senzalas; a segunda é que D. Ermelinda amava de fato o marido e aceitava-o como ele era, com o passado que tivera e com a filha que dele trazia — uma vergonha para a família, mas menor do que o escândalo do rompimento; e a terceira é que D. Ermelinda era, antes de tudo, mãe, de alma boa e caridosa — o que é, de certa forma, também operar a mediação estabelecida por Berta, mas em classe social diferente. Note-se como tudo se acomoda, quase sem traumas: a boa imagem da família é preservada, o menino pobre é agraciado não só com o casamento, mas também com um título acadêmico que lhe seria impossível sem o enlace, o pai de família é perdoado pelos erros da juventude. D. Ermelinda também é mediadora, como Berta. 8 Processo semelhante ocorre, por exemplo, com João Romão em O Cortiço: a ascensão social dessa personagem não se dá apenas no plano econômico, por meio do enriquecimento, mas também no plano simbólico, por meio da compra de roupas da moda, da aquisição de costumes e hábitos típicos das classes dominantes, do casamento com uma moça de família aristocrática e finalmente com a filiação a um grupo de abolicionistas. 25 Olhemos essas personagens, agora, à distância de cento e quarenta anos (o romance foi publicado em livro em 1872): as duas mulheres — uma mais velha, de origem carioca, estudada e, de certa forma, esclarecida; outra mais jovem e pobre, sem estudo — são, para os padrões do século XXI, mulheres oprimidas pela sociedade patriarcal. Conhece-se bem a desgraça social que cairá sobre os ombros da primeira delas, D. Ermelinda, se divorciar-se do marido: o falatório, a impossibilidade de casar-se novamente, provavelmente a impossibilidade material de viver, afinal todo o seu sustento estava nas mãos de Galvão. A opressão da segunda é ainda pior: além de ser resultado de uma relação sexual violenta e adúltera, Berta é enjeitada pelo pai ao longo de toda a vida, o que só se altera devido às revelações causadas pela língua solta dos velhos amigos de Galvão e pelos acontecimentos desencadeados pela vingança malograda de Ribeiro-Barroso. Mais do que isso: por mais que pudesse reclamar pelo direito que tinha à herança, Berta resolve-se pelo cuidado dos miseráveis e excluídos, infligindo ao pai somente a pena de ser ele o único “pai enjeitado” de quem se tem notícia — pena barata para um estupro seguido de abandono da própria filha. De certa forma, as mediações e ajustes levados a cabo por D. Ermelinda e Berta acabam por perpetuar a supremacia do “macho adulto branco”, proprietário, cujas violências não são punidas. Mas essa perpetuação está revestida de valores que são, na perspectiva da época, mais importantes: a preservação do núcleo familiar, por meio da pretensa superioridade do homem sobre a mulher, que é santa, medianeira e pacificadora porque se cala e aceita os desígnios de seu esposo. A violência fica assim recoberta pelo véu da santidade — e o romance “acaba bem”, ao gosto do leitor da época, identificado com os valores acima e que não vê na escravidão e no mandonismo do senhor sobre as mulheres e os homens pobres a crueldade, a exploração e a injustiça que o leitor do século XXI vê com toda nitidez. A perspectiva do narrador Acabamos de afirmar que o romance “acaba bem” porque os leitores da época reconheciam no texto seus próprios valores — perpetuação da família, supremacia do homem branco e proprietário, mulheres submissas e caladas, mesmo frente às traições e às mais cruéis violências. A aura de santidade com que o narrador reveste as últimas linhas de Til também é parte componente de uma instituição cara aos leitores do tempo — a Igreja Católica e a escala de valores que carrega consigo. Talvez um dos maiores deles seja a caridade, o amor que se manifesta gratuitamente, como aquele que Berta manifesta pelos que sofrem, devido à alma soror, alma boa de irmã, alma de caridade, com que nasceu e que lhe é inerente. O leitor do século XXI, ainda que possa aceitar essa bondade como inata a Berta, provavelmente se chocará com o tom mediano com que são relatadas as violências cometidas pelos senhores. E também não deixará de notar que o narrador, ao descrever os crimes de Jão Fera ou as loucuras de Brás, é muito mais expressivo. Acrescentem-se a esses elementos formais do romance outros dois: a intriga com que são construídos os fatos narrados e o suspense que deriva dela. Em palavras simples: quando relatamos os principais acontecimentos de Til, eles foram apresentados em ordem cronológica, para facilitar a compreensão da história. Mas o andamento do romance e a apresentação dos fatos não são constituídos dessa forma: não sabemos, por exemplo, que Barroso é Ribeiro e desconhecemos as máculas da vida de Luís Galvão, até o terceiro volume. O autor não ordena os fatos em ordem cronológica para obter o efeito do suspense — necessário para romances publicados na forma de folhetim, cujos finais de capítulo deveriam causar no público a curiosidade para que continuassem acompanhando a história. TIL CPV TIL 26 Se lermos Til com cuidado, perceberemos algumas particularidades do romance que atenuam toda a violência que fizemos questão de revelar em nosso resumo. Boa parte da organização do romance, por exemplo, se dá por meio de peripécias, definidas pelo crítico literário Antonio Candido da seguinte maneira: A peripécia não é um acontecimento qualquer, mas aquele cuja ocorrência pesa, impondo-se aos personagens, influindo decisivamente no seu destino e no curso da narrativa. Ela é, pois, em literatura, um acontecimento privilegiado, na medida em que é a verdadeira mola do entrecho [enredo], governando tiranicamente a personagem9. A existência de algumas peripécias fundamentais — a decisão de Galvão de não casar-se com Besita, mas de possuí-la sexualmente; a decisão de Jão de abandonar Galvão e de tornar-se assassino de aluguel; o retorno de Ribeiro-Barroso para vingar-se — que acabam desencadeando boa parte das ações descritas no romance, bem como diversos flashbacks, mas especialmente o que é feito no início do Terceiro Volume, conferem ao romance seu caráter de mercado — em palavras simples, a intenção do autor de prender a atenção do leitor e de fazê-lo virar a página, para descobrir a solução que será dada para o conflito que fica em suspenso ao final de cada uma das partes — mas também acabam por escamotear* as violências inerentes ao panorama socioeconômico em que ocorrem as ações da obra. O narrador atém-se mais aos idílios dos quatro jovens no Tanquinho do que ao estupro cometido pelo pai de três desses jovens; as façanhas de Jão Fera (por exemplo, quando salva Berta e um escravo do ataque violento de porcos do mato) são assunto de capítulos inteiros, ao contrário dos assassinatos que cometeu por fidelidade a Galvão ou por dinheiro de outros poderosos; o poder mágico-religioso de Berta (que encanta a serpente que foi deixada no quarto de Linda), suas habilidades de cupido (que fazem Miguel voltar os olhos a Linda) e sua abnegação santa (que ensina o alfabeto ao idiota Brás e que perdoa os crimes a Jão Fera) ocupam muito mais linhas do romance do que suas hesitações em não ocupar o lugar de medianeira e de santa. Com tudo isso, queremos dizer que o narrador privilegia as peripécias narrativas, os efeitos causados pelas reviravoltas e pelos flashbacks e as descrições grandiloquentes da natureza e das qualidades heroicas de suas personagens em detrimento da paisagem social e histórica em que ocorrem os fatos. Essa paisagem está no romance o tempo todo, mas como pano de fundo, o que privilegia e acaba enaltecendo o silêncio e a passividade das personagens femininas e escamoteando, como elas próprias, a violência de que são vítimas. DIÁLOGO ENTRE OBRAS Em negativo, para entender como seria um romance bem acabado a partir da mesma realidade, apesar de se passar na Corte, no Rio de Janeiro, podemos investigar brevemente as Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, que pouco ou nada têm das aventuras de Til, ao contrário: no primeiro romance da maturidade machadiana, o ponto de vista a partir do qual é contada a história encarna a consciência de classe dominante, de homens como Luís Galvão. É por isso que os castigos cruéis ao pequeno escravo Prudêncio são narrados com naturalidade — e com humor negro, se assim podemos 9 Antonio Candido. Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos. Editora da Universidade de São Paulo, 1975. p.127. * escamotear: ocultar CPV TIL dizer; é por isso que os comentários maldosos e irônicos ao fato de Eugênia ser coxa são aceitos com naturalidade — como se as Memórias fossem uma grande conversa do narrador com o leitor a respeito das aventuras (muitas vezes, sexuais) de Brás Cubas, como se o romance machadiano fosse uma conversa entre aqueles senhores mais velhos que narram uns aos outros, com diversos “instantes cafajestes”, os sucessos da própria vida. Com efeito, não há mola que mova as Memórias Póstumas a não ser os caprichos e os mandonismos do defunto-autor — que afirma, por exemplo, que a utilidade da existência de Dona Plácida é ocultar o caso amoroso que ele tinha com Virgília. Para ele, brancos livres sem propriedades nada mais são que instrumentos para obtenção de uma supremacia qualquer — exatamente na mesma lógica de Til, em que Besita é apenas um objeto do desejo sexual de Galvão, que ele sacia à força. Em resumo, a perspectiva adotada pelo narrador de Til é teoricamente uma perspectiva distanciada, de narrador-observador, em terceira pessoa, mas que se constitui a partir dos valores da época, perdoando a violência a Luís Galvão e consagrando as mulheres que se calam — mas os recursos narrativos utilizados conferem ao romance, numa primeira leitura, a aparência de romance de vingança, cheio de reviravoltas e até, como poderemos observar adiante, de romance documental, devido às longas descrições do interior paulista e de seus costumes. Para concluir a comparação, nas Memórias Póstumas, tem uma perspectiva diferente: no romance machadiano, tem a voz o proprietário, de modo que a toda a violência, todo o mandonismo e todo o capricho das nossas classes dominantes soem como graça do narrador ou como resultado de sua cultura europeizada. Longas descrições Muito da resistência dos candidatos ao vestibular e dos leitores do século XXI, em geral, aos romances de José de Alencar se deve às longas descrições feitas pelo autor. Devemos nos debruçar sobre elas, porque constituem parte fundamental do romance, da mesma forma que as peripécias ou os flashbacks, compondo um todo, que nos interessa compreender. Comecemos pelas descrições do espaço. Assim como temos, entre as personagens, dois núcleos (o dos dois jovens ricos, Linda e Afonso; e o dos dois jovens pobres, Berta e Miguel), também temos, no espaço, a Fazenda das Palmas em oposição à pousada dos facínoras, de Chico Tinguá; dentro da própria fazenda é possível opor a casa onde vive a família de Luís Galvão ao espaço do quartel ou quadrado da fazenda “nome que tem um grande pátio cercado de senzalas, às vezes com alpendrada corrida em volta, e um ou dois portões que o fecham como praça d’armas”. Cada um desses espaços será descrito longamente pelo narrador. Uma das primeiras análises formuladas a respeito das Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, sugeria que a importância desse romance estava em seu valor documental, na medida em que registrava diversos costumes da cidade do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XIX, no “tempo do rei”. Hoje sabemos que o valor dessa obra vai muito além do documental: as Memórias de um Sargento de Milícias revelam uma dinâmica social bastante específica daquele tempo e daquele espaço, e as descrições do narrador, algumas vezes, são o ponto fraco da composição10 especialmente quando não servem à constituição daquela dinâmica, que dá impulso ao romance. 10 Esse ponto de vista é defendido pelo crítico literário Antonio Candido, no famoso ensaio “Dialética da Malandragem”, a respeito das Memórias de um Sargento de Milícias. TIL Talvez algo semelhante possa ser dito a respeito do Til, de José de Alencar. Há, com efeito, alguns capítulos bastante extensos e de largo valor documental, como a descrição a respeito da Festa de São João entre os ricos proprietários e entre os escravos e mestiços. No capítulo “O Samba” (Quinto capítulo do Quarto Volume), podemos observar as origens da canção popular brasileira, que nasceu exatamente das danças e dos improvisos que o narrador do romance descreve cuidadosamente11, entre os negros e mestiços. Observamos também as diferenças entre os negros escravos (que participam ativamente das danças e dos improvisos de canção) e os mestiços (que invejam a festa dos negros, mas de que evitam fazer parte, exatamente para se diferenciarem dos escravos): Hesitou o mulato por algum tempo, receoso de derrogar* de sua nobreza de pajem misturando-se com a ralé da enxada, até que rendido pelos lascivos* requebros da crioula, que já se espreguiçava ao som do urucungo*, saltou no batuque. Embora fragmentos como esse sejam bastante interessantes para compreendermos a natureza das relações sociais e humanas da época, eles não se integram plenamente à narrativa. Com efeito, a longa descrição a respeito da Festa de São João no espaço das senzalas não contribui em nada para o andamento das verdadeiras molas da narrativa de Til. Salvo a participação de um negro (Monjolo) e de um mestiço (Faustino) na cilada contra Luís Galvão, pouco ou nada contribuem os escravos e os mestiços na constituição do romance. Da mesma forma, a importância da negra Zana não está exclusivamente no fato de ela ser escrava, mas de ter presenciado o assassinato de sua senhora e de ser visitada constantemente por Berta — de modo que possamos conhecer a alma caridosa da protagonista, que acolherá a negra enlouquecida na casa “em que todos sofrem”. Algumas das longas descrições feitas em Til não contribuem em nada para a construção da narrativa e acabam sobrando, como defeito. O exemplo oposto está nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance em que o narrador machadiano chama a atenção para si o tempo todo, prejudicando a visão do panorama12. O defunto-autor conta a própria história sem a preocupação de detalhar o espaço, a época ou a situação social em que está inserido. Mas é por meio de sua forma de narrar que descobrimos que ele pertence à classe dominante. O narrador de Alencar, ao contrário, adota o distanciamento que lhe confere o efeito da objetividade — mas a completude do panorama, em que tudo é descrito minuciosamente, faz muitas vezes que o romance perca o ritmo. Só funcionam as descrições que servem ao andamento da narrativa e à construção das personagens. Na festa de São João entre os escravos, a briga entre Rosa e Florência, por mais que interesse como retrato social, não contribui para o andamento do romance. Mas na descrição do Tanquinho, espaço idílico em que se encontram os quatro jovens — Berta, Linda, Afonso e Miguel —, em segredo, ocorre o oposto: 11 Para conhecer as origens da canção popular brasileira e sua relação com os improvisos descritos por José de Alencar, leia O Século da Canção, de Luiz Tatit, publicado pela Editora Ateliê. 12 A descrição minuciosa dos recursos de Brás Cubas para chamar a atenção do leitor para si, desviando o olhar do leitor, evitando que ele se aperceba do panorama geral em que se inserem as passagens do romance, está na obra Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis, de Roberto Schwarz. * derrogar: anular * lascivos: sensuais * urucungo: instrumento musical de origem africana 27 Parecia esmero* d’arte o sítio aprazível*; não que possa o gênio do homem jamais atingir os primores da criação; ordena, porém, muitas vezes e resume em breve quadro cenas que a natureza só desdobra em larga tela; e colige* em uma só paisagem cópia de belezas que andam esparsas por vários sítios. Desenhava-se o pequeno e mimoso prado* em oval alcatifado* e com alfombra* de relva e cingido* quase em volta pela floresta emaranhada, que a fechava como panos de muralha, cobertos de verdes tapeçarias e vistosas colgaduras*, apanhadas em sanefas e bambolins de flores. À face oposta assomava a soberba colunata do Palmar que estendia-se até ali, formando arcarias góticas, fustes* elegantes de estilo dórico, e arabescos rendados de maravilhoso efeito. Chamam a atenção na descrição acima diversos aspectos: o primeiro deles é a ideia de que o gênio humano jamais poderá atingir os primores da criação — reafirmando o que já sabemos, isto é, que o Criador está acima de tudo na escala de valores, e Berta será a grande expressão do amor caridoso e gratuito, que a aproxima de Deus. Apesar disso, também é necessário perceber que o narrador entende que o engenho humano é capaz de sintetizar as belezas da criação, exatamente como ocorre no Tanquinho, espécie de espaço sagrado, do amor mais puro que pode haver, daí a alusão a motivos medievais (a muralha, as tapeçarias e as cortinas), sempre integrados à exuberância natural brasileira. O trecho é precioso porque nele é valorizada a integração da cultura humana à natureza. E, no Brasil, a cultura é de caráter europeu — daí as “arcarias góticas”, que aludem à arquitetura da Idade Média; os “fustes elegantes de estilo dórico”, que remetem à da Antiguidade Clássica; e os “arabescos rendados de maravilhoso efeito”, que acenam para o Oriente — na síntese que “colige em uma só paisagem cópia de belezas que andam esparsas por vários sítios” e que faz do Brasil uma nação especial, em que todos esses elementos culturais se integram por meio da exuberância e da riqueza natural. A descrição do Tanquinho, portanto, ganha importância por dois motivos: o primeiro é o de integrar-se ao projeto de identidade nacional brasileira, por meio da valorização da nossa exuberância natural. José de Alencar já havia descrito, em O Guarani, o Solar de Dom Antônio de Mariz, pai de Ceci, como “um castelo no trópico”13, em que o Portugal medieval incrustava-se no coração da Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro; em Til, o Tanquinho e a colunata do Palmar (conjunto de palmeiras) celebram a convergência de diversas culturas — a medieval, a clássica e a oriental — na exuberância natural brasileira, como se este espaço fosse uma espécie de ponto para o qual todas aquelas construções se dirigem e acabam se superando pela mão divina dos “primores da criação”. Em outras palavras, a natureza brasileira não só absorve e contém as culturas que aqui chegaram, como também as faz alcançar um nível mais elevado. 13 Expressão de Alfredo Bosi, no capítulo “Um mito sacrificial: o Indianismo de Alencar”, in Dialética da Colonização, Companhia das Letras. * esmero: cuidado com que se faz alguma coisa * aprazível: que dá prazer * coligir: reunir, compilar, colecionar * prado: campo, terreno coberto de plantas herbáceas * alcatifado: que cobre ou se estende como um tapete * alfombra: campo relvado, tapete de verdura * cingido: cercado, rodeado * colgaduras: tecido ornamental que se pendura em janelas * fuste: haste TIL CPV TIL 28 O Tanquinho também é importante no plano interno da narrativa: é uma espécie de espaço mágico, em que o idílio do amor mais puro, ingênuo e virginal pode acontecer livremente; os primeiros movimentos da alma sóror de Berta se darão ali, desviando-se de Afonso e aproximando Linda de Miguel. Por isso, a descrição desse espaço, ao contrário, de outras, é fundamental para a construção de Til. Berta e Til: caridade e perpetuação da violência Já dissemos que os nomes das personagens são alterados ao longo da narrativa. Jão Bugre, por exemplo, é o primeiro nome de Jão Fera. Essas mudanças de nome correspondem a alterações no interior das personagens, o que ocorre tradicionalmente em narrativas míticas. É comum heróis mudarem de nome quando recebem algum título que os enobrece, como nas narrativas medievais. Em inversão a essa lógica, como extensão da violência que já investigamos, Jão Bugre torna-se Fera pela violência; Ribeiro assume o nome de Barroso para não ser reconhecido e para planejar incólume as ciladas contra Galvão. Mas Berta merece atenção especial — primeiramente porque seu nome significa “aquela que brilha”. O caráter de alma sóror vai crescendo ao longo de toda a narrativa. Berta rejeita as investidas amorosas de Miguel, mas sem intencionar machucá-lo; é ousada com Jão Fera, impedindo-o de cometer o crime contra Galvão; é a única pessoa que visita constantemente a velha Zana e que a acolhe, apesar de sua loucura e — finalmente — é a responsável pela humanização de Brás, que se aproximava mais de um animal selvagem (uma serpente) do que de uma pessoa. Não será por acaso, aliás, que a cobra lançada no quarto de Linda pelo próprio Brás será encantada por Berta — revelando que a protagonista tem poderes mágicos que dominam seres selvagens. O nome Til, dado por a Berta a si mesma, a fim de ensinar a Brás os rudimentos do alfabeto, tem exatamente essa origem. Brás, devido à sua limitação mental, por ser mais animal do que homem, não consegue aprender as lições da escola em que é colocado pelo tio — e é alvo de pesados castigos corporais infligidos pelo professor a alunos incapazes. Só o encanta o sinal gráfico do til: Quando lhe puseram nas mãos a carta pregada em uma tábua, o menino percorreu todos aqueles hieróglifos com os olhos pasmos e botos, e só deu sinal de atenção, em descobrindo o til. Então expandiu-se-lhe o estúpido semblante com um riso alvar, que estertou na gorja*, e, tomado por súbita alacridade*, ele, de ordinário soturno e pesado, começou a fazer trejeitos e gatimonhas* ao pequeno sinal ortográfico, procurando imitá-lo com os dedos, com a boca e até com todo o corpo nos saltos extravagantes que dava pela casa. O encanto de Brás com o til pode admitir a seguinte interpretação, sem que ela seja obrigatória: essa personagem é frequentemente comparada a uma serpente, cavando na terra e armando ciladas no meio do mato. O que pode ter havido entre Brás e o til talvez seja certa identificação, já que esse sinal diacrítico*, de certa forma, lembra a forma de uma cobra; e se assumirmos esse réptil como representação bíblica demoníaca, * estertou na gorja: reverberou na garganta * alacridade: alegria, entusiasmo * gatimonhas: sinais feitos com as mãos * diacrítico: sinal gráfico que distingue a modulação das vogais CPV TIL das tentações e dos apelos mundanos, que confundem os homens e os fazem mergulhar em perdição, então verificaremos que faz sentido que Brás só aprenda o “abecê” por meio da intervenção caridosa de Berta — exatamente sua dimensão elevada, que a aproxima da santa popular e que encerra a obra. Trata-se da “influência misteriosa e sobrenatural” de Berta, sua habilidade de medianeira, sobre aqueles que sofrem: ao chamar a si mesma de Til e ao dedicar-se abnegadamente ao idiota, Berta desperta nele um lampejo de inteligência ou de humanidade, se assim quisermos, por meio da caridade. Em palavras simples, já encerrando esta análise: a identificação inicial de Brás com o til estava associada ao caráter animalesco, pouco elevado e obscuro da consciência do idiota. No momento em que Berta — “aquela que ilumina” — chama a si própria de Til, esse sinal é ressignificado pelo seu oposto: o esclarecimento por meio das letras e por meio da bondade da criatura dedicada àqueles que sofrem. O título da obra pode ser, portanto, considerado sua síntese: Til é sinal que aponta inicialmente ao caráter mais baixo dos homens — a violência que os aproxima dos animais, como na ferocidade de João, na irracionalidade de Brás, mas também na cobiça e na vingança de Ribeiro-Barroso e na violência sexual gratuita de Luís Galvão. É pela mediação de Berta que esse sinal é ressignificado e todos, de alguma maneira, encontram a própria redenção, exceto Ribeiro-Barroso, que é morto por Jão Fera com as próprias mãos: este é perdoado por Berta, e Brás é acolhido por ela, ambos agrupados em torno da moça iluminada, de poderes sobrenaturais que são o bálsamo dos que sofrem; o pai também é perdoado por ela, não sem a pena de ser enjeitado — bastante leve para o crime cometido. É evidente, portanto, que Berta, depois transformada em Til, cuja alma sóror alivia os pecados aos pecadores, é a expressão clara da mediação religiosa que se fazia presente (e, de certa forma, necessária) no espaço rural paulista de meados do século XIX — porque, se pensarmos em perspectiva, a sociedade brasileira do tempo está erigida sobre uma instituição que é violenta em si — a escravidão — e da qual derivam relações sociais específicas, mas todas violentas, cada uma em sua medida: entre os proprietários, a concorrência pelos bens uns dos outros (a terra, os escravos e as esposas, conforme o pensamento da época), expressa no romance nas diferenças entre Galvão e Ribeiro-Barroso, levará dependentes como Jão à violência remunerada e quase gratuita; entre os proprietários e os dependentes, a lógica do favor fará que estes se submetam aos caprichos e mandonismos daqueles com o mesmo peso do poder que os proprietários exercem sobre os escravos, sempre vítimas da força dos senhores. Em um panorama social fundado na violência, Berta ou Til surge, na perspectiva do narrador, como uma espécie de atenuadora das desigualdades e das violências delas resultantes. Segundo o olhar do século XXI, é mais plausível afirmar que a mediação estabelecida por Berta, por mais que atenue as desigualdades, também acabe por perpetuá-las — em dialética analítico-interpretativa que talvez tenha levado à escolha do Til, de José de Alencar, à lista de obras literárias obrigatórias da FUVEST 2013. TIL EXERCÍCIOS OBJETIVOS 01. Era tal a parecença dos dois irmãos, que um dia, havia tempos, Afonso lembrou-se de fazer uma travessura. Vestiu-se com roupas da irmã, e tomando uns ares hipócritas, saiu ao encontro de Berta que vinha visitar Linda, como de costume. A moça, cuidando ver a amiga, correu abraçá-la, e cobriu-a de uma chuva de beijos, que lhe foram pontualmente retribuídos. (José de Alencar, Til) O trecho acima destaca um aspecto sobre o enredo de Til, de José de Alencar. Assinale a alternativa que o identifica. a) Afonso era homossexual e tinha costume de vestir as roupas da irmã. b) Afonso tinha raiva de Berta, por isso constantemente pregava peças na moça. c) Afonso repete essa mesma travessura diversas vezes no desenrolar da obra. d) Afonso tem uma irmã gêmea, Linda. e) Afonso tinha ciúmes da amizade entre Berta e Linda. 02. Era medonha a catadura de Jão Fera quando voltou-se. A fauce hiante do tigre, sedento de sangue, ou a língua bífida da cascavel, a silvar, não respirava a sanha e ferocidade que desprendia-se daquela fisionomia intumescida pela fúria. Berta, ao primeiro relance, sentiu-se transida de horror; e o impulso foi precipitar-se, fugir, escapar a essa visão que a espavoria. Reagiu, porém, a altivez de sua alma e a fé que a inspirava. (José de Alencar, Til) O trecho acima se insere em qual contexto no enredo do romance Til, de José de Alencar? a) Trata-se do momento em que Berta deve levar uma mensagem de Luís Galvão a Jão Fera. b) Trata-se do momento em que Berta impede que Jão Fera assassine Luís Galvão. c) Trata-se do momento em que Berta planeja matar Jão Fera, vingando-se do assassinato de Luís Galvão. d) Trata-se do momento em que Berta oferece socorro a Jão Fera, ferido por Afonso. e) Trata-se do momento em que Jão Fera tenta estuprar Berta. 03. A preta, que era naturalmente a cozinheira da casa, despertada pelo sol, do costumado cochilo, acendera o fogo e preparava o almoço, quando ouviu chamarem-na do interior. Deixou a ocupação, e acudiu alguém, que estava na alcova. Aí ouviu assustada e com espanto o que lhe dizia essa pessoa, e, achegando-se à janela na ponta dos pés, enfiou os olhos na direção que lhe fora indicada. Assim permaneceu algum tempo, até que recuou espavorida, com a máscara do terror no semblante e os ossos dos joelhos a estalarem, batendo um contra o outro. O que vira ela? Não pudera a menina atinar ainda, nem com a explicação desse terror, nem como resto da história, que de mais se complicava. (José de Alencar, Til) 29 Assinale a alternativa correta sobre o trecho acima. a) A menina em questão é Linda, irmã de Afonso. b) A preta em questão é nhá Tudinha, mãe adotiva de Til. c) No trecho, Berta observa Zana tentar, gesticulando, fazer para a menina uma revelação sobre o passado. d) No trecho nhá Tudinha conta a Linda uma história da sua juventude. e) Nenhuma das alternativas anteriores. 04. Assinale a alternativa que apresenta apenas afirmações corretas sobre o romance Til, de José de Alencar: I. Brás é sobrinho de Luís Galvão II. Brás é descrito como louco. III. Brás é órfão. a) Apenas a alternativa I b) Apenas a alternativa II c) Apenas a alternativa III d) Nenhuma das alternativas é correta e) Todas as alternativas estão corretas. 05. Luís Galvão, personagem do romance Til de José de Alencar, representa o fazendeiro branco e senhor de terras, no contexto escravocrata do século XIX. Assinale a alternativa que não apresenta aspectos do roteiro que caracterizam corretamente sua posição social. a) Luís Galvão pode escapar de seus crimes, como o estupro de Besita, devido à sua condição social. b) A relação de Jão Bugre com Luís Galvão estabelece-se como uma troca de favores, pois Jão é agregado na casa dos Galvão, por isso protege Luís. c) A união de Luís Galvão com Dona Ermelinda foi feita por um casamento de conveniência. d) Os relatos de conquistas amorosas de Luís Galvão na juventude podem ser interpretados como parte da cultura machista da época em que se passa o romance. e) A autoridade de Luís Galvão sobre os filhos é demonstrada quando ele proíbe Afonso de casar-se com Berta. 06. Sobre o romance Til, assinale a alternativa incorreta. a) Os atos violentos de Jão Fera e Brás são tratados pelo narrador com maior destaque e expressão que os de Luís Galvão; é possível interpretar que isso ocorre porque o último é o patriarca de uma família rica e a obra se insere na cultura escravista do século XIX. b) A loucura ocupa um lugar importante no enredo da obra, que apresenta dois personagens loucos, Zana e Brás. A relação entre esses personagens leva o narrador a questionar a psique humana e os limites indefinidos entre loucura e sanidade. c) A obra foi publicada na forma de folhetim, aspecto perceptível pelas conclusões de capítulos, que em geral criam suspense e expectativa para a continuidade da leitura. d) O apelido Til, assumido pela protagonista Berta e reafirmado no último capítulo da obra, simboliza a abnegação e caráter santo e caridoso que a moça demonstra no decorrer da obra, principalmente em sua conclusão. e) Na obra estão presentes longas descrições, tanto dos espaços rurais do interior paulista, quanto do caráter e das ações das diversas personagens. TIL CPV TIL 30 07. A respeito da obra Til, de José de Alencar, assinale a alternativa incorreta. a) A obra pertence ao Romantismo. b) A fauna, a flora e o espaço rural estão muito presentes na obra. c) Jão Fera, Berta e Brás são personagens da obra. d) Til, título do livro, é um apelido de Berta. e) A obra retrata o meio urbano caótico que começa a se formar na capital de São Paulo. 08. Sobre o enredo da obra Til, de José de Alencar, assinale a alternativa incorreta. a) A obra apresenta características de suspense. b) Luís Galvão e Ribeiro se apaixonam pela mesma mulher, Besita. c) Luís Galvão mais tarde é chamado de Barroso. d) Ribeiro foge para Portugal após assassinar sua esposa. e) Luís Galvão é protegido por seu capanga Jão Bugre, que ao longo da história será chamado de Jão Fera. 09. Qual dos acontecimentos abaixo recebe maior foco na narração de Til, de José de Alencar? a) b) c) d) e) O assassinato de Besita. O estupro de Besita. O nascimento de Berta. A vingança de Ribeiro. O abandono de Besita. Parecia esmero de arte o sítio aprazível; não que possa o gênio do homem jamais atingir os primores da criação; ordenara, porém, muitas vezes e resume em breve quadro cenas que a natureza só desdobra em larga tela; e colige em uma só paisagem cópia de belezas que andam esparsas por vários sítios. Desenhava-se o pequeno e mimoso prado em oval alcatifado e com a alfombra de relva e cingido quase em volta pela floresta emaranhada, que a fechava como panos de muralha, cobertos de verdes tapeçarias e vistosas colgaduras, apanhadas em sanefas e bambolins de flores. À face oposta assomava a soberba colunata do Palmar que estendia-se até ali, formando arcarias góticas, fustes elegantes em estilo dórico e arabescos rendados de maravilhoso efeito. José de Alencar, Til. CPV Assinale a alternativa que reúne apenas afirmações corretas sobre o trecho acima. I. Trata-se de um dos poucos trechos descritivos da obra. II. Descreve um espaço construído pelo homem integrado a belezas naturais brasileiras. III. Usa referências de diferentes culturas para constituir um quadro descritivo. TIL a) b) c) d) e) Todas as alternativas estão corretas. Nenhuma das alternativas está correta. Apenas as alternativas I e II estão corretas. Apenas as alternativas II e III estão corretas. Apenas as alternativas I e III estão corretas. Texto para as questões de 11 a 14. V – O Samba À direita do terreiro, adumbra-se* na escuridão um maciço de construções, ao qual às vezes recortam no azul do céu os trêmulos vislumbres das labaredas fustigadas pelo vento. (...) É aí o quartel ou quadrado da fazenda, nome que tem um grande pátio cercado de senzalas, às vezes com alpendrada corrida em volta, e um ou dois portões que o fecham como praça d’armas. Em torno da fogueira, já esbarrondada pelo chão, que ela cobriu de brasido e cinzas, dançam os pretos o samba com um frenesi que toca o delírio. Não se descreve, nem se imagina esse desesperado saracoteio, no qual todo o corpo estremece, pula, sacode, gira, bamboleia, como se quisesse desgrudarse. Tudo salta, até os crioulinhos que esperneiam no cangote das mães, ou se enrolam nas saias das raparigas. Os mais taludos viram cambalhotas e pincham à guisa de sapos em roda do terreiro. Um desses corta jaca no espinhaço do pai, negro fornido, que não sabendo mais como desconjuntar-se, atirou consigo ao chão e começou de rabanar como um peixe em seco. (...) José de Alencar, Til. (*) “adumbra-se” = delineia-se, esboça-se. 10. 11. (FUVEST-SP/Nov-2012) Para adequar a linguagem ao assunto, o autor lança mão também de um léxico popular, como atestam todas as palavras listadas na alternativa: a) b) c) d) e) saracoteio, brasido, rabanar, senzalas. esperneiam, senzalas, pincham, delírio. saracoteio, rabanar, cangote, pincham. fazenda, rabanar, cinzas, esperneiam. delírio, cambalhotas, cangote, fazenda. 12. (FUVEST-SP/Nov-2012) Na composição do texto, foram usados, reiteradamente, I. sujeitos pospostos; II. termos que intensificam a ideia de movimento; III. verbos no presente histórico. Está correto o que se indica em: a) b) c) d) e) I, apenas. II, apenas. III, apenas. I e II, apenas. I, II e III. TIL 13. (FUVEST-SP/Nov-2012) Ao comentar o romance Til e, inclusive, a cena do capítulo O samba, aqui reproduzida, Araripe Jr., parente do autor e estudioso de sua obra, observou que esses são provavelmente os textos em que Alencar mais se quis aproximar dos padrões de uma “nova escola”, deixando, neles, reconhecível que, no momento em que os escreveu, algum livro novo o impressionara, levando-o pelo estímulo até superfetar* a sua verdadeira índole de poeta. Alguns dos procedimentos estilísticos empregados na cena aqui reproduzida indicam que a nova escola e o livro novo a que se refere o crítico pertencem ao que historiadores da literatura chamaram de: a) b) c) d) e) Romantismo-Condoreirismo. Idealismo-Determinismo. Realismo-Naturalismo. Parnasianismo-Simbolismo. Positivismo-Impressionismo. 14. (FUVEST-SP/Nov-2012) Considerada no contexto histórico a que se refere Til, a desenvoltura com que os escravos, no excerto, se entregam à dança é representativa do fato de que: a) a escravidão, no Brasil, tal como ocorreu na América do Norte e no Caribe, foi branda. b) se permitia a eles, em ocasiões especiais e sob vigilância, que festejassem a seu modo. c) teve início nas fazendas de café o sincretismo das culturas negra e branca, que viria a caracterizar a cultura brasileira. d) o narrador entendia que o samba de terreiro era, em realidade, um ritual umbandista disfarçado. e) foi a generalização, entre eles, do alcoolismo, que tornou antieconômica a exploração da mão de obra escrava nos cafezais paulistas. 15. (PUC-SP/2013) Leia o texto a seguir: No terreiro das Palmas arde a grande fogueira. É noite de São João. Noite das sortes consoladoras, dos folguedos ao relento, dos brincados misteriosos. Noite das ceias opíparas, dos roletes de cana, dos milhos assados e tantos outros regalos. Noite, enfim, dos mastros enramados, dos fogos de artifício, dos logros e estripulias. Outrora, na infância deste século, já caquético, tu eras festa de amor e da gulodice, o enlevo dos namorados, dos comilões e dos meninos, que arremedavam uns e outros. As alas da labareda voluteando pelos ares como um mastro de fitas vermelhas que farfalham ao vento na riçada cabeça de linda caipira, derramam pelo terreiro o prazer e o contentamento. No trecho acima, do romance Til, de José de Alencar, é possível identificar: a) linguagem fortemente poética , evidenciada pelo uso de figuras de estilo, entre as quais se destacam metáfora, comparação e onomatopeia. b) linguagem puramente referencial, visto que descreve uma cena envolvendo uma festa religiosa e folclórica. c) linguagem dominantemente emotiva, identificada pelas marcas do eu lírico que se mostra especialmente emocionado diante da cena. d) linguagem exclusivamente apelativa, visto que todo o trecho gira em torno da interpelação do eu lírico à noite. e) linguagem com força metalinguística, apoiada na repetição intencional de palavras caracterizadoras de uma comemoração junina. EXERCÍCIOS DISCURSIVOS 16. Entraram em seguida na roça, onde o feijão estava em flor e o milho espigava, agitando os seus louros pendões. Logo adiante ficavam os vastos cafezais, recentemente carpados e já frondosos para mais tarde se cobrirem de bagas escarlates, como fios de corais, entrelaçados pela folhagem de brilhante esmeralda. (*) “superfetar” = exceder, sobrecarregar, acrescentar-se (uma coisa a outra). 31 José de Alencar, Til. a) Identifique no trecho da obra Til, de José de Alencar, uma característica estilística que pode ser observada nas obras do autor em geral. b) Dentro da obra de José de Alencar, quanto aos temas e a ambientação, como pode ser classificado o romance Til? Cite outra obra do mesmo autor que se aproxima de Til por esses aspectos. 17. Leia o trecho de Til, de José de Alencar. Contradição viva, seu gênio é o ser e o não ser. Busquem nela a graça da moça e encontrarão o estouvamento do menino; porém mal se apercebam da ilusão, que já a imagem da mulher despontará em toda sua esplêndida fascinação. A antítese banal do anjo-demônio torna-se realidade nela, em quem se cambiam no sorriso ou no olhar a serenidade celeste com os fulvos lampejos da paixão, à semelhança do firmamento onde ao radiante matiz da aurora sucedem os fulgores sinistros da procela. a) A qual personagem se refere o trecho acima? b) Cite duas ações da personagem, no desenrolar da obra, que confirmam a descrição apresentada. 18. Sobre o romance Til, responda: a) Por quais nomes é chamada a protagonista do romance? Por quem esses nomes são usados? b) Qual é o primeiro momento em que a personagem é chamada de Til? Descreva a situação que a levou a assumir o apelido. 19. Partiu-se Jão a galope e foi ter em casa com o patrão: — Nhô Luís, ela lhe quer bem!... case com ela! — Qual, Jão!... O velho não admite! (José de Alencar, Til) Sobre o trecho acima, responda: a) A que mulher refere-se Jão? Por que o pai de Luís Galvão não aceita o casamento? b) Com quem se casa, afinal, o fazendeiro? Por que o casamento é preferível? 20. Berta desprendeu-se dos braços do moço: — Não, Miguel. Lá todos são felizes! Meu lugar é aqui, onde todos sofrem. E rompendo o doce enlevo que a prendia um momento antes, soluçou: — Adeus!... (José de Alencar, Til) a) A que lugar se refere Berta quando trata de “lá”? Por que “todos são felizes”? b) E o “aqui”? A que se refere? Quem são “todos” e por que sofrem? TIL CPV TIL 32 21. Tanto em O Cortiço quanto em Til, faz parte do enredo a ascensão social de personagens. 26. (FUVEST-SP/Jan-2013) Leia com atenção o trecho de Til, de José de Alencar, para responder ao que se pede. [Berta] — Agora creio em tudo no que me disseram, e no que se pode imaginar de mais horrível. Que assassines por paga a quem não te fez mal, que por vingança pratiques crueldades que espantam, eu concebo; és como a suçuarana, que às vezes mata para estancar a sede, e outras por desfastio entra na mangueira e estraçalha tudo. Mas que te vendas para assassinar o filho de teu benfeitor, daquele em cuja casa foste criado, o homem de quem recebeste o sustento; eis o que não se compreende; porque até as feras lembram-se do benefício que se lhes fez, e têm um faro para conhecerem o amigo que as salvou. [Jão] — Também eu tenho, pois aprendi com elas; respondeu o bugre; e sei me sacrificar por aqueles que me querem. Não me torno, porém, escravo de um homem, que nasceu rico, por causa das sobras que me atirava, como atiraria a qualquer outro, ou a seu negro. Não foi por mim que ele fez isso; mas para se mostrar ou por vergonha de enxotar de sua casa a um pobre-diabo. A terra nos dá de comer a todos e ninguém se morre por ela. [Berta] — Para ti, portanto, não há gratidão? [Jão] — Não sei o que é; demais, Galvão já pôs-me quites dessa dívida da farinha que lhe comi. Estamos de contas justas! acrescentou Jão Fera com um suspiro profundo. a) Qual personagem ascende socialmente em cada uma das obras? b) Qual é a característica comum entre esses dois processos de ascensão? Cite também uma diferença entre eles. 22. — Vai embora! disse ela com império; e a voz parecia rangerlhe nos lábios pálidos. Foi a pupila inflamada e sanguinária do assassino a que abateu-se. Recolhendo o passo, quedou-se um instante perplexo, absorto por uma luta que se renhia dentro, procela a subverter o pélago insondável dessa consciência. Rompeu-lhe do seio uma sublevação contra o poder misterioso e incompreensível, que lhe agrilhoava com um fio de cabelo as pujanças terríveis do coração, até aí indomável e sedento como a sanha do tigre. (José de Alencar, Til) a) A personagem chamada de “assassino” no trecho acima é conhecida ao longo da obra Til por dois nomes. Citeos e explique por que esses nomes são usados. b) Essa é a primeira passagem em que essa personagem aparece no romance. Considerando as revelações posteriores do enredo, em que consiste esse “poder misterioso” de Berta sobre o capanga? 23. Sobre a relação que existia entre Jão Bugre e o jovem Luís Galvão, personagens do romance Til, de José de Alencar, responda: a) Por que era interessante o companheirismo para cada um deles? b) Por que a relação entre eles foi rompida? 24. Soaram os passos de Zana no corredor e logo depois a voz da preta a trocar perguntas e respostas com a pessoa que batia. Afinal rangeu a chave na fechadura. — Nhazinha, é sinhô! Ia Besita levantar-se precipitadamente para receber o marido, quando sentiu no escuro que dois braços a cingiam e uma carícia atalhava-lhe a palavra nos lábios. Ao bruxulear da madrugada, Zana acudindo ao chamado da moça foi achá-la debulhada em pranto, na maior consternação. — Tu me perdeste, Zana! Não era meu marido! — Quem era então, Nhazinha? perguntou a preta espantada. — Olha! disse a moça mostrando-lhe o vulto de Luís Galvão que se afastava. (José de Alencar, Til) a) Com pouca ênfase, o trecho acima trata de uma ação grave de violência. De que se trata? Quais personagens envolve? b) A personagem que comete a violência é punida no desenvolvimento da obra? Relacione a punição ou a falta dela ao contexto histórico em que se insere o romance. 25. Sobre o romance Til de José de Alencar: CPV a) Cite dois acontecimentos do enredo do livro que caracterizam o sistema patriarcal e machista presente na sociedade da época (século XIX). b) Explique, de forma sucinta, a qual contexto histórico pertencem esses aspectos. TIL a) Nesse trecho, Jão Fera refere-se de modo acerbo a uma determinada relação social (aquela que o vinculara, anteriormente, ao seu “benfeitor”, conforme diz Berta), revelando o mal-estar que tal relação lhe provoca. Que relação social é essa e em que consiste o mal-estar que lhe está associado? b) A fala de Jão Fera revela que, no contexto sócio-histórico em que estava inserido, sua posição social o fazia sentir-se ameaçado de ser identificado com um outro tipo social — identificação, essa, que ele considera intolerável. De que identificação se trata e por que Jão a abomina? Explique sucintamente. 27. (UNICAMP-SP/2013) — (...) Quando o Bugre sai da furna, é mau sinal: vem ao faro do sangue como a onça. Não foi debalde que lhe deram o nome que tem. E faz garbo disso! — Então você cuida que ele anda atrás de alguém? — Sou capaz de apostar. É uma coisa que toda a gente sabe. Onde se encontra Jão Fera, ou houve morte ou não tarda. Estremeceu Inhá com um ligeiro arrepio, e volvendo em torno a vista inquieta, aproximou-se do companheiro para falar-lhe em voz submissa: — Mas eu tenho-o encontrado tantas vezes, aqui perto, quando vou à casa de Zana, e não apareceu nenhuma desgraça. — É que anda farejando, ou senão deram-lhe no rasto e estão-lhe na cola. — Coitado! Se o prendem! — Ora qual. Dançará um bocadinho na corda! — Você não tem pena? — De um malvado, Inhá! — Pois eu tenho! (José de Alencar, Til, em Obra Completa) O trecho do romance Til transcrito acima evidencia a ambivalência que caracteriza a personagem Jão Fera ao longo de toda a narrativa. a) Explicite quais são as duas faces dessa ambivalência. b) Exemplifique cada face dessa ambivalência com um episódio do romance.