PENSAR E DIZER A História dos Códigos de Ética Médica No momento em que os Conselhos Regionais e Federal de Medicina discutem a reforma do Código de Ética Médica é bom relembrar o caminho inicial destes diplomas éticos até chegar aos nossos dias. Códigos, juramentos e orações orientadoras para aqueles que cuidam da saúde dos doentes existem há séculos. E códigos de ética têm sido expressos sob a forma de orações, juramentos, credos e normas institucionais. Segundo Robert Veith, qualquer que seja a forma adotada, isto implica um imperativo moral a ser aceito tanto pelo profissional, individualmente, quanto por suas organizações profissionais, pela comunidade religiosa ou pelo corpo governamental. Um dos primeiros documentos conhecidos nesta linha ética é o juramento feito para estudantes de medicina existente em antigo manuscrito indiano, o Ayurveda. Nele, os estudantes são exortados a seguir um caminho de sacrifício pessoal e de compromisso para com seus deveres. Também o Código de Hamurabi (1780 a.C) apresenta normas de conduta médica. 22 MEDICINA CONSELHO FEDERAL pessoais inerentes ao cidadão. Consequentemente, o que era levado em conta eram o caráter, a honra ou a desonra, a virtude ou o vício. A ética nada tinha a ver com códigos de conduta previamente estabelecidos. O entendimento era que um verdadeiro profissional, por ser um cavalheiro, não necessitaria de nenhuma instrução escrita para determinar seu comportamento. “A mais significativa contribuição para a história da ética médica ocidental, depois de Hipócrates foi dada por Tomas Percival, médico, filósofo e escritor inglês, que em 1803 publicou um Código de Ética Médica. Sua personalidade, seu interesse por assuntos sociológicos e seu contato íntimo com o hospital de Manchester levaram-no a organizar um manual de condutas profissionais relacionadas a hospitais comuns e de caridade, a partir do que chegou ao código que leva seu nome.” Assim se manifestou a Associação Médica Americana, em 1847, reconhecendo a importância do trabalho deste médico inglês. Thomas Percival (1740 -1804) iniciou seus estudos de medicina em Edimburgo, mas graduou-se em medicina em Leyden, Holanda, em 1765. Retornando para a Inglaterra, fixou-se em Manchester ali permanecendo por toda sua vida. Na medicina ocidental, o juramento de Hipócrates tem sido o grande influenciador das normas de conduta médica. E já no século VII d.C. o Juramento de Asaf, revela influências hipocráticas nas suas orientações sobre a não administração de venenos ou abortivos, a realização de cirurgias, ao não cometimento de adultério e ao sigilo profissional. Na China, preceitos éticos estão contidos no taoísmo, onde são salientadas a importância da preservação da vida e de servir aos interesses do paciente. O texto judaico mais conhecido é a Oração diária de um médico, atribuída ao médico e filósofo judeu Maimônides, que viveu entre 1135 e 1204. Durante sua atividade profissional publicou vários artigos sobre medicina e ciências, como: Ensaios médicos e experimentos, (1767), e Ensaios médicos, filosóficos e experimentais (1773). Porém, dois trabalhos marcaram sua trajetória definitivamente. Baseado na sua experiência atuando nos hospitais publicou um Regimento Interno dos Hospitais, em 1771, e Normas de conduta profissional relativas aos hospitais e outros hospitais de caridade, em 1772. Embora estes textos citados fossem do conhecimento dos estudiosos, até por volta de 1800, a ética, sobretudo a ética profissional, estava relacionada a questões Ainda que os antigos documentos definissem normas de conduta ética, o trabalho de Thomas Percival é considerado o primeiro código moderno de Ética Médica. Inicialmente um opúsculo foi ampliado e publicado em 1774, com o título de Jurisprudência Médica ou Código de Ética e Instituições adaptado para as profissões de Físico e Cirurgiões. Nove anos depois, ele publicaria em livro uma versão ampliada e atualizada - Ética Médica ou Fundamentos e Regras adaptadas para a conduta profissional de físicos e cirurgiões - onde se tem registrado pela primeira vez as expressões “ética profissional” e “ética médica”. A origem do código de Percival deve-se a uma discussão entre físicos (clínicos), cirurgiões e boticários (farmacêuticos) a respeito de suas obrigações no atendimento dos doentes internados, vítimas da epidemia de febre tifóide que grassara por aquela época em Manchester. Afastado, por questões de saúde, do exercício da profissão, sua personalidade, seu interesse por assuntos sociológicos e seu contato íntimo com o hospital de Manchester levaram-no a organizar um manual de condutas profissionais relacionadas a hospitais comuns e de caridade, a partir do que chegou ao código que leva seu nome. Assentado na autoridade moral e independência do médico a serviço dos outros, o código afirma a responsabilidade profissional no cuidado com os doentes, enfatizando a honra individual. A repercussão do trabalho de Percival foi de tal relevância que, em 1847, a Associação Médica Americana adaptou-o para uso pelos médicos americanos tornando-se assim o primeiro código de ética adotado por uma associação profissional nacional. No Brasil, o primeiro decreto sobre o exercício legal da profissão de médico data de 1851, elaborado pela então Academia Imperial de Medicina, depois Nacional de Medicina, mas sem as características de um código de ética. Em 1867, a Gazeta Médica da Bahia publica uma tradução portuguesa do Código de Ética Médica da Associação Médica Maio/Junho/2009 PENSAR E DIZER Americana, tecendo elogios ao povo americano pela iniciativa e esquecendo de mencionar a origem real do Código. Depois desta iniciativa dos médicos baianos, somente com a criação do Sindicato Médico Brasileiro, em 1927, é que, além dos interesses classistas, surgiria também a preocupação com as questões éticas, conforme previsto nos estatutos, e que culminaria com a publicação, em 1929, no Boletim do Sindicato Médico Brasileiro, do Código de Moral Médica, uma tradução do código de mesmo nome aprovado pelo VI Congresso Médico LatinoAmericano, realizado em Havana, em 1926. A publicação deste Código de Moral Médica tinha a intenção de divulgar o texto, promover debates e acolher sugestões que permitissem a produção de um Código adaptado à realidade brasileira. O resultado de todo este processo foi debatido no Primeiro Congresso Médico Sindicalista, realizado em julho de 1931 no Rio de Janeiro, e culminou com a aprovação de um Código de Deontologia Médica, que embora sendo praticamente o mesmo texto de Cuba continha uma modificação interessante: a criação de um “Conselho de Disciplina Profissional” e um Index, onde figurariam os profissionais “indignos da profissão”. A promulgação do novo Código aconteceu em 14 de outubro do mesmo ano. Embora subscrito pelo então Ministro da Educação e Saúde, Dr. Belizário Pena, o Código não gozava de status jurídico. Mesmo assim, influenciaria na publicação do Decreto nº 20.931, de 1932, que regulamenta profissões na área da saúde, incluindo a medicina, e em vigor até hoje. Somente em 1944 surgiria o primeiro Código de ética médica oficialmente reconhecido pelo Governo. Era o Código de Ética Médica aprovado no IV Congresso Médico Sindicalista realizado naquele ano, mas que só iria ser oficializado em setembro do ano seguinte, com a publicação do Decreto-lei nº 7.955, que criou os Conselhos Federal e Regionais de Medicina e pôs em vigor o citado Código. Maio/Junho/2009 O vazio produzido no movimento sindical em razão do Estado Novo levou ao surgimento de outro tipo de organização: a associação profissional na figura da Associação Médica Brasileira, em 1951, e que em 1953 elaboraria um novo Código de Ética Médica, baseado no juramento de Hipócrates, na declaração de Genebra, adotada pela Organização Mundial de Saúde, e no Código Internacional de Ética Médica. Por razões diversas que fogem ao tema aqui abordado, os atuais Conselhos de Medicina somente se estabeleceriam a partir de 1957, através da lei 3268/57, que também determinava que fosse assumido o Código de Ética Médica da Associação Médica Brasileira até que outro código fosse elaborado. A elaboração de um novo Código, agora no âmbito dos Conselhos de Medicina, resultou num anteprojeto produzido em 1960 por uma Comissão, sob o título de Código Brasileiro de Deontologia Médica, e que embora mantendo basicamente o conteúdo do Código de 1953, inspirouse, também nos códigos sueco, americano e inglês. O texto final seria aprovado em um Congresso dos Conselhos Regionais de Medicina, realizado em julho de 1963, mas somente entraria em vigor com a aprovação do Conselho Federal e publicação no Diário Oficial em janeiro de 1965 e já contento algumas modificações. O Código de 1965 vigoraria até 1984, quando um novo Código, agora Código de Deontologia Médica, entraria em vigor, embora o fosse por pouco tempo. Em 1987, como parte do processo de redemocratização por que passava o país, foi realizada, no Rio de Janeiro, de 24 a 28 de novembro, a 1ª Conferência Nacional de Ética Médica, quando o texto de um novo Código foi produzido. Este Código, cuja finalidade seria não somente contemplar a realidade da prática médica, mas ter também a perspectiva e o compromisso de sua transformação, conforme Francisco Álvaro Barbosa Costa, então presidente do Con- Aristoteles Guilliod de Miranda é cirurgião vascular e corregedor do CRM-PA selho Federal de Medicina, seria publicado no Diário Oficial em janeiro de 1988, estando em vigor até os nossos dias. Considerado bastante avançado para a época e ainda hoje, por contemplar questões amplas no âmbito da medicina, da saúde e da sociedade, o Código de 1988, documento maior da profissão médica, está em discussão, visando sua atualização e aprimoramento, em função dos avanços da ciência e das modificações ocorridas na sociedade, particularmente a partir das demandas bioéticas, e que em breve deve ser aprovado passando a balizar as ações dos médicos brasileiros. Nas palavras de Leonard M. Martin, “mais importante que criar um código novo, porém, é criar uma profissão médica com mentalidade nova, que resgate algo da benignidade do antigo profissional liberal que vivia a medicina como sacerdócio, mas sob perspectivas mais contemporâneas que levem em conta as novas condições de trabalho e procurem criar estruturas que permitam ao médico ser bom técnico e cientista, com remuneração digna, sem que precise abrir mão da própria humanidade, nem da dignidade humana de seus pacientes. Nesse compromisso com o humanitário, podemos sonhar com uma nova figura do médico responsável pela saúde do mundo e solidário na construção de uma ética médica aberta à bioética, em que a compaixão não ceda lugar nem à ciência, nem ao lucro”. 23 MEDICINA CONSELHO FEDERAL