CIDADE BARROCA OU TARDO MEDIEVAL? A ARQUITETURA NA DEFINIÇÃO DOS TRAÇADOS URBANOS DA AMÉRICA PORTUGUESA. José Pessôa Universidade Federal Fluminense. Brasil Como traduzir a idéia de um urbanismo barroco para o conjunto de cidades fundadas e ampliadas na América Portuguesa nos séculos XVII e XVIII? Para situar a idéia de urbanismo barroco cremos ser oportuno recorrer a Leonardo Benévolo que propõe a leitura do conjunto de intervenções ocorridas na cidade européia entre os séculos XVI e XVIII, através da busca para adequar a cidade, às regras de perspectiva nascidas da cultura do renascimento italiano no século XV.1 A perspectiva passa a dispor os objetos arquitetônicos na cidade igualitariamente diante da visão do observador segundo a visão da cultura humanista renascentista. Ruas retilíneas são abertas no tecido medieval, e construídas com palácios volumetricamente semelhantes, como na Strada Nuova em Genova, onde se constrói a imagem idealizada de paisagem urbana renascentista gravada pelos pintores da época em obras como a vista imaginária de cidade atribuída a escola de Piero della Francesca e conservada no Museu de Urbino. Outro tipo recorrente de intervenção, dentro deste período, é o das praças retangulares formadas por uma seqüência de fachadas que repetem o mesmo motivo arquitetônico criando um espaço fechado e simétrico quando visto de qualquer de seus ângulos. As praças reais de Madrid ou Paris e as praças ducais de Vigevano ou Gualtieri são bons exemplos disto. É esta cultura que irá se defrontar com o território do novo mundo. A cidade européia murada contraposta ao território rural envoltório não encontrará semelhança com nenhuma das ocupações no território americano então existentes, os grandes impérios asteca e inca tinham os seus centros monumentais construídos numa relação direta com a paisagem envoltória, sendo cidade e território pensados de uma maneira única.2 O traçado em damero das Leis das Índias que será adotado como regra em fins do século XVI na América Espanhola é fruto da racionalização natural a fundação de cidades, sejam as colônias romanas, sejam bastides ou cidades novas medievais, mas reflete também a assimilação da cultura visual renascentista já incorporada na mente dos conquistadores espanhóis. A novidade aqui, diante dos modelos de cidade ideal difundido na Europa está acima de tudo na escala que estas irão adquirir. Diante da grandiosidade da paisagem americana a cidade é proposta como modelo racional invariante e não delimitado, onde os módulos das quadras podem crescer em qualquer sentido. A grandeza geográfica do reticulado corresponde, no entanto, a ocupação feita de arquiteturas em escala modesta que remetem a dimensão do homem e de um controle visual afim a idéia das Strade Nuove européias, ou seja, 1 Ver Il difficile adequamento alle regole della prospettiva in BENEVOLO Leonardo La città nell’storia delll’europa. 2 A este respeito ver “Il confronto col mondo” in BENEVOLO Leonardo La città nell’storia delll’europa. 1133 edifícios volumetricamente semelhantes gerando uma leitura estática do conjunto para quem o percorre. A amplidão da experiência urbanística americana irá influir no posterior desenvolvimento das cidades européias, estas muito mais subordinadas a limites espaciais e as regras da perspectiva. A cultura clássica irá a partir destas experiências desenvolver nos séculos XVII e XVIII duas idéias de espaço urbano. O experimento da intervenção episódica no tecido pré-existente da cidade européia onde a implantação de uma igreja ou palácio com perspectivas geradoras de paisagens visualmente dinâmicas ou a grande intervenção originada da cidade ideal e da construção das cidades hispano-americanas.3 Com Bernini a perspectiva avança no sentido da criação de espaços urbanos dinâmicos, que direcionam o olhar para o grande monumento arquitetônico. O experimento berniniano do projeto da colunata na Praça de São Pedro no Vaticano representou o marco desta nova tendência que se difundirá por toda a Europa, marcadamente na relação dos palácios e igrejas com o tecido urbano envoltório. O olhar se amplia, e as novas ruas têm como fundo o monumento arquitetônico que passa a subordinar o traçado urbano, a exemplo dos pequenos centro alemães de Karlsruhe e Mannhein, onde a direcionalidade das ruas tem como objetivo o enquadramento dos palácios principescos. A leitura destas experiências formou a base para a criação do conceito de urbanismo barroco. Essa conceituação quando remetida ao universo urbanístico americano, não foi capaz de identificar experiências que pudessem situá-lo no mesmo contexto de experimentação. No caso brasileiro, os estudos sobre a cidade portuguesa na América privilegiaram inicialmente o modo de implantação do traçado das cidades procurando relaciona-lo a uma lógica temporal. A preocupação em classificar como regular ou informal, o desenho assumido pelos traçados urbanos foi, talvez, necessária para criar uma chave de distinção entre as urbanizações havidas nos dois lados da maleável linha de Tordesilhas, mas não serviu para construir um quadro real do caráter da primeira urbanização brasileira. Paulo Santos dividia os traçados das cidades coloniais no Brasil em quatro categorias: inteiramente irregulares; de relativa regularidade; inicialmente irregulares, sendo depois refeitos em perfeita regularidade; e perfeitamente regulares. Essa classificação procurava ensaiar uma linha evolutiva, onde a falta de ordem inicial seria resultado da sujeição do colonizador ao sítio escolhido, superada, posteriormente, por uma vontade de ordenação que culmina com as cidades previamente projetadas. Horta Correia identifica 2 grandes famílias de cidades barrocas: “As que alguma coisa devem ao barroco romano, tal como se concretizou urbanisticamente entre o plano ordenador de Sisto V e a conclusão da Roma berniniana e onde avultam o efeito de surpresa, um novo uso da perspectiva, a transferência para o urbanismo de valores até então especificamente arquitectónicos e uma vivencialidade teatralizada do efêmero da festa e da própria arquitectura; As que alguma coisa devem, por genealogia das formas, às cidades ideais do Renascimento em qualquer das suas vertentes radiocêntricas ou ortogonais, despidas agora de conteúdo ideológico, mas mantidos os seus princípios no planeamento de cidades cortesãs, ou os seus modelos nas cidadesfortalezas da Europa ou nas cidades de expansão urbana no Novo Mundo.” (HORTA CORREIA José E. “Urbanismo da Época Barroca em Portugal”. em CÁRITA Helder e ARAUJO Renata (coord.). Colectânea de Estudos. Universo Urbanístico Português, 1415-1822.Lisboa. Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 1998. pp 467-482.) 3 1134 A idéia de sujeição do colonizador português ao território americano já estava presente no texto clássico no Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda4, que afirmava ser a cidade da América Portuguesa parte do quadro da natureza, produto de uma cultura não consciente da própria manifestação de vontade e espírito. A irregularidade dos traçados seria fruto da permanência cultural medieval no mundo português, refratário a cidade regular renascentista, e que só seria gradativamente substituída pela cultura iluminista no século XVIII. Cremos que tratar de cidades irregulares ou regulares na América Portuguesa significa trabalhar com a mesma lógica espacial, comum a este universo urbanístico, que faz com que tenhamos resultados muito semelhantes entre cidades que tiveram o desenho prévio, cidades ordenadas a partir de um núcleo espontâneo pré-existente e cidades não projetadas. Projetistas reais e arruadores municipais trabalharam dentro da mesma lógica na construção da paisagem das cidades da América Portuguesa – tendo sido estas planejadas ou não. Superada - ou talvez seja mais apropriado dizer - abandonada, parcialmente, esta primeira questão, pelos estudiosos que substituíram o antagonismo entre medieval versus renascentista, isto é, traçado irregular versus traçado regular, pela discussão da cidade como produto, não da permanência de uma cultura retrograda tardo medieval e sim de uma nova cultura visual barroca. Era a idéia de definição da paisagem pela lógica que, nascida diretamente do espírito do seu tempo, informava a configuração assumida pelas cidades - um zeitgeist barroco, como explicação da localização de igrejas, conventos e palácios nas vilas coloniais. Nestes termos, o trabalho de Giovanna Rosso Del Brenna abordava pioneiramente a questão em um texto fundamental5, onde contrapunha a idéia de urbanismo medieval a de um urbanismo orgânico barroco, que se caracteriza mais pela dinâmica da implantação do que pela escala e linguagem da arquitetura, de resto muito singela na maioria das cidades da América Portuguesa. A disposição de edifícios e chafarizes era produto da organização mental do homem da época barroca e criava uma nova espacialidade, cheia de efeitos surpresas que ampliam dinamicamente as visuais de quem percorre estas cidades. Podemos identificar a implantação de três grandes redes urbanas na América Portuguesa de meados do século XVI até o final do século XVIII: a ocupação inicial do litoral, por vilas de iniciativa de donatários ou sesmeiros e cidades reais, fundadas principalmente nos séculos XVI e XVII, e caracterizadas pela dualidade cidade alta/cidade baixa e pela irregularidade ou regularidade relativa de seus traçados; a ocupação do sertão a partir da descoberta das jazidas de ouro e pedras preciosas, atividade fundamentalmente urbana que espalhou uma rede de arraiais e vilas nas áreas centrais do território cuja irregularidade do traçado é ditada pelo desenvolvimento das áreas de extração mineral; e a ocupação dos territórios da Amazônia e das fronteiras criadas pelas novas demarcações resultantes dos Tratados de Madrid e Santo Ildefonso dentro de um projeto real de ocupação sistemática do território que se utilizará do repertório de formas ortogonais, radiais, etc recorrente nas diversas iniciativas de povoamento sistemático ocorridas na Europa no mesmo período6. O Semeador e o Ladrilhador in HOLLANDA Sergio Buarque, Raízes do Brasil. Rosso Del Brenna Giovanna Medieval ou Barroco? Proposta de Leitura do Espaço urbano colonial in Revista Barroco n. 12, Belo Horizonte, 1982/83, pp 141/145. 6 A este respeito ver as cidades de colonização do território do Império de Catarina II da Rússia e as novas capitais dos pequenos estados alemães em SICA Paolo, Storia dell’urbanistica: il settecento, Laterza, Bari, 1992, pp 115/146. 4 5 1135 Como estas redes se relacionam com a idéia de uma espacialidade barroca e do conceito de um urbanismo barroco americano? É necessário primeiro ressalvar que os processos que informam a construção da cidade são na realidade distintos, e muito mais lentos, dos que informam a história da arquitetura e das artes em geral. Diante desta premissa o conceito de estilo pouco se ajusta a proposição de uma história da cidade. O que não nos impede de reconhecer que os arraiais mineiros da América Portuguesa nasceram barrocos. No seu traçado, nas suas arquiteturas e na espacialidade resultante propõem nas “fronteiras” do mundo ocidental um barroquismo afinado com a cultura européia dos séculos XVII e XVIII. Este conceito de barroquismo não se restringe a rede de arraiais e vilas da mineração e pode ser estendido ao conjunto de cidades da América Portuguesa. Mas no que consiste este barroquismo? A espacialidade barroca de algumas suas praças e ruas não nos permite definir Ouro Preto, Salvador ou Rio de Janeiro do século XVIII como exemplos de projetos urbanos barrocos, considerando-se que são cidades em que a maioria dos seus monumentos precedem à criação da trama urbana. A ocupação pelos portugueses de seu território americano, e conseqüentemente sua urbanização, foi fundamentalmente um empreendimento comercial. O traçado destas cidades é resultado, não de um caráter medieval remanescente na cultura portuguesa, e sim da adequação funcional do sítio cuja escolha já fora funcional, somada aos modos com que os percursos se faziam necessários, pelo surgimento dos diversos pólos urbanos, isto é, as igrejas, conventos, casas de câmara e cadeia, os portos e os fortes geradores das praças-adros, ruas direitas e ruas novas. Os monumentos, portanto, precedem o traçado ou são vinculantes na transformação deste. A paisagem resultante deste processo faz com que a arquitetura religiosa e as grandes obras públicas desempenhem um papel fundamental fechando a perspectiva das ruas, ou ambientando os grandes espaços abertos de praças ou largos. Numa situação em que os monumentos precedem a própria existência da malha urbana, esta acaba por se organizar tendo os monumentos como elemento direcionador. Na obra coletiva da cidade americana, o trabalho do arruador vai dar o caráter barroco a estrutura organizada em torno dos poucos monumentos. Mais do que urbanismo barroco português na América deve-se falar em paisagem urbana barroca das cidades brasileiras nos séculos XVII e XVIII. Ao contrário do damero hispano-americano, as ruas no Brasil têm como ponto de fuga e enquadramento final uma construção. A instalação de ordens conventuais fora dos primeiros núcleos de habitações nas vilas fundadas, leva a uma direcionalidade do crescimento urbano na direção destes complexos. As arquiteturas singulares desempenham, portanto, um papel fundamental na definição do traçado urbano das cidades da América Portuguesa. Então estaríamos retomando o conceito proposto por Sérgio Buarque de Hollanda7 e propondo que os portugueses teriam realizado um urbanismo barroco inconsciente? Não, são inúmeros os exemplos de intervenções barrocas nas cidades da América Portuguesa resultado da obra de engenheiros militares, arquitetos e arruadores, tais como: a Praça Tiradentes, em Ouro Preto, com a construção da Casa de Câmara e Cadeia e a demolição do conjunto de casas fronteiras a esta para criar o 7 HOLLANDA Sergio Buarque – idem. 1136 centro urbano da cidade na nova praça onde Palácio dos Governadores e Casa de Câmara confrontam-se; ou a Praça de São Cristóvão no Sergipe, onde o Convento Franciscano, a Misericórdia e a Casa de Câmara e Cadeia ocupam três lados da praça retangular criando um espaço monumental; ou a ordenação, a partir das regras estabelecidas pelas câmaras das vilas, de alturas e espaçamento de vãos e pés direitos, que resultaram em espaços urbanos compostos por arquiteturas em série como a Rua Direita de Mariana ou a cidade baixa de Salvador8. Nesses casos, o que torna fundamentalmente barroca, medieval ou neoclássica uma cidade é a sua arquitetura. Vejamos mais alguns exemplos: No Rio de Janeiro, em 1789, sob o vice-reinado de Luiz de Vasconcelos e Souza, um grande promotor de obras urbanísticas e de embelezamento da cidade, o Largo do Carmo, isto é, a praça onde se situava o palácio dos vice-reis, coração da cidade, foi totalmente remodelada sob a coordenação do engenheiro sueco Jacques Funk. Consagrando-se como principal espaço das cerimônias oficiais, foi calçada com grandes pedras, construindo-se nela um cais, em cantaria com escadas e rampas, no meio do qual instalou-se novo chafariz assinado por Mestre Valentim.9 O paço dos vice-reis ganhou na fachada voltada para a praça mais um andar central que lhe conferiu uma imagem apalacetada, condizente com a nova praça. Neste caso não há a unidade das arquiteturas em série, nem a direcionalidade visual provocada pelos monumentos arquitetônicos. A arquitetura tem as características simplificadas do estilo chão português, porém o tratamento dado às escadas e rampas do chafariz com as igrejas servindo de fundo e a marcação do calçamento em forma estelar remetendo o olhar ao centro da praça, somada a sua animação e a sua centralidade garantiam a imponência da espacialidade barroca, como assinalava o oficial Alemão Carlos Schlichthorst que lá esteve entre 1824 e 1826 ao escrever que, “O Paço Imperial não difere muito dos outros edifícios da cidade. Seu interior não é deslumbrante e há centenas de casas particulares melhor alfaiatadas mas sua posição transforma-a num palácio de fadas. Por todos os lados o ar refrescante do mar penetra nos altos aposentos abobadados. A seus pés se estende uma praça limitada por um cais maciço onde durante horas se observa o colorido formigar da multidão.” A disposição dos edifícios e o tratamento de pisos e do mobiliário urbano davam ao local a teatralidade necessária para a porta oficial de entrada da cidade numa versão simplificada mas com o mesmo interesse visual das grandes praças européias junto aos rios do período. Outro ponto de leitura é no que se refere a atitude barroca de tentar dominar a natureza e subordina-la a ação do homem. Em um território tropical onde a natureza explodia em todos os cantos da cidade, a criação de jardins públicos eram uma afirmação do mundo barroco no continente americano. Eles representam no século XVIII uma modificação na relação entre a cidade e a paisagem circundante. O Passeio Público do Rio de Janeiro é o exemplo mais significativo desta nova tendência. Construído pelo Governador Luiz de Vasconcellos entre os anos de 1779 e 8 REIS Nestor Goulart. “Notas sobre o Urbanismo Barroco no Brasil”. em CÁRITA Helder e ARAUJO Renata (coord.). Colectânea de Estudos. Universo Urbanístico Português, 1415-1822.Lisboa. Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 1998. pp 467-482. 9Cf. FERREZ, Gilberto – A Praça 15 de Novembro, Antigo Largo do Carmo, Rio de Janeiro, Riotur, 1978. 1137 1783, foi sem dúvida a intervenção urbana mais inovadora na então capital da colônia. Dedicado ao Amor do Público e à Saudade do Rio10 e executado segundo risco do escultor mulato Mestre Valentim, 1745/1813, foi o primeiro jardim público construído na América Portuguesa. Após décadas de esforço em dotar a cidade de um sistema de abastecimento d’água, chegara a hora de construir um espaço de lazer, a exemplo do que há alguns anos antes havia sido feito em Lisboa. Aterrou-se uma lagoa, chamada do Boqueirão, que se situava no caminho que da cidade conduzia à pequena igreja da Glória. Um quadrilátero murado recortado por alamedas retilíneas, arborizadas por uma série de espécies tropicais – mangueiras, jaqueiras, tamarineiras, jambeiros, fruta-pão – que garantiam sombra aos visitantes. Seguindo o eixo da alameda principal, a partir do portão uma rua foi aberta e recebeu o nome de rua das Belas Noites, terminando em um chafariz, denominado das Marrecas, obra também de Valentim11. O jardim acabava junto ao mar, em um terraço retangular com dois pequenos pavilhões em suas extremidades. Pavimentado com lajes de pedra, cercado de muretas feitas em forma de bancos de alvenaria, com encosto de azulejos, o Passeio Público inaugurava a relação da cidade com a paisagem como atividade contemplativa e de lazer. O seu terraço foi o primeiro mirante construído de uma série que se faria nos séculos seguintes – Vista Chinesa, Mesa do Imperador; Corcovado, Pão de Açúcar – onde a natureza deixava de ser o território a ser controlado e defendido para virar objeto de contemplação e admiração. Idéia reforçada nos dois pavilhões dedicados a Apolo e Mercúrio e decorados, em seus interiores, com penas e conchas respectivamente, além de um conjunto de pinturas de paisagens, de Leandro Joaquim, retratando aspectos da vida quotidiana e de festas da cidade e de sua relação com o mar. O passeio teatralmente construído e murado na afirmação do controle do homem sobre a natureza, celebrava a cidade na sua beleza, visível do grande terraço e na festa barroca gravada nas pinturas expostas nos pavilhões. Cotidiano, festa e contemplação eram resultado da junção de elementos arquitetônicos – pirâmides, terraços e pavilhões – escultóricos e pictóricos e do arranjo da natureza. O Passeio Público do Rio de Janeiro foi criado no século XVIII, no momento de maior desenvolvimento da vida urbana na colônia traduzível também pela criação de melhoramentos que modificaram a paisagem das vilas e cidades com a introdução de novos mobiliários urbanos que dignificaram os ambientes abertos. Aquedutos, fontes, pontes, passos e oratórios sistematizam percursos e no seu tratamento arquitetônico nobilitam os espaços públicos da singela arquitetura colonial portuguesa. Ouro Preto exemplifica bem o papel que o mobiliário urbano tem na construção de uma paisagem urbana barroca. O percurso das procissões é marcado com pequenas capelas, integradas ou não as edificações, que sinalizam as passagens e configuram-se na paisagem como 10 As duas expressões “Ao amor do público” e “A saudade do Rio” estão gravadas em lioz nas duas pirâmides que enfeitam o jardim. 11 Inscrito no chafariz o registro da urbanização realizada: “Durante o reinado de Maria I e Pedro III/Secou-se um lago outrora pestífero/E converteu-se em forma de passeio/Repeliram-se as águas do mar or ingente Muralha/Aduziram-se fontes em jorrantes bronzes/Derribados os muros, transformou-se o horto em rua,/Construíram-se casas em admirável simetria./ao Vice-Rei Luiz de Vasconcellos de Souza, sob cujos auspícios foi tudo realizado/O povo do Rio de Janeiro, em sinal de grato ânimo/No dia 31 de Julho de 1785.” 1138 um elemento de destaque em meio ao ritmo serial imposto pelas normas camaristas nas construções. Num território de relevo muito acidentado todo recortado por cursos d’água as pontes são um elemento fundamental de ligação. Elas adquirem na cidade o papel de espaços de estar, construídas com bancos e detalhes caprichosos no seu acabamento. Finalmente os chafarizes são parte de um sistema, o de abastecimento d’água, imprescindível para a vida urbana, e de grande animação do cotidiano. O tratamento e a disposição dos chafarizes em Ouro Preto reforçam a idéia de paisagem barroca da cidade. No Rio de Janeiro o abastecimento d’água já vinha também sendo organizado desde 1723 com a construção do primeiro chafariz no Largo da Carioca, assim denominado por ser provido pelas nascentes do rio com o mesmo nome. O aqueduto que trazia suas águas ganhou a forma definitiva, que apresenta ainda hoje em dupla arcaria romana, no governo de Gomes Freire de Andrada, entre 1744 e 1750. É, sem dúvida, a obra de engenharia de maior vulto do período colonial. Ao primeiro chafariz somaram-se diversos outros – o do Largo do Carmo e o da Junta (1750-53), o da Glória (1772), o das Marrecas (1785), o do Lagarto (1786), o do Largo do Moura (1794) e o do Campo de Santana (1808) – dotando a cidade de uma rede de abastecimento d’água com tratamento arquitetônico elaborado a semelhança do realizado em Ouro Preto. Do mesmo modo, só que em escala muito menor, o conjunto de vilas brasileiras no século XVIII irá receber chafarizes, na maior parte dos casos reduzidos a um ou dois exemplares, mas com a mesma intenção de qualificação do cenário da cidade. Para concluir verificamos que, se não é o caso de falar em urbanismo barroco nas cidades da América Portuguesa, podemos identificar o caráter barroco que tem boa parte de seus espaços públicos. Esse caráter irá produzir uma paisagem diferenciada, onde mais do que o traçado urbano é a arquitetura a fornecer um papel preponderante na sua definição. A arquitetura em série resultante no caso brasileiro, das normas edilícias estabelecidas pela Câmaras das Vilas, onde os proprietários individualmente construíam a unidade do conjunto a partir do respeito às regras estabelecidas, é um modelo que só será introduzido na Europa, com as mesmas características no início do século XIX. Esta arquitetura modulada será junto com as características arquitetônicas de igrejas, capelas e chafarizes e o papel destas na direcionalidade do tecido urbano das vilas, o fator que configurará os traçados urbanos da América portuguesa. O resultado será uma paisagem marcada pelo barroquismo dos seus edifícios, inclusive daqueles construídos nos inícios do século XIX e que nos faz identificar uma idéia de urbanismo barroco marcado fundamentalmente pela arquitetura. 1139 Bibliografia BENEVOLO Leonardo, La cittá nella storia d’Europa, Bari, Laterza, 1994, 2ª. Storia dell’architettura del Rinascimento, Bari, Laterza, 1988, 7ª. Ed CÁRITA Helder e ARAUJO Renata (coord.). Colectânea de Estudos. Universo Urbanístico Português, 1415-1822.Lisboa. Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 1998. pp 467-482. DELSON Roberta Marx. Novas vilas para o Brasil-Colônia, Planejamento espacial e social no século XVIII, trad. Fernando de Vasconcellos Pinto,Brasília, Editora ALVA-CIORD, 1997, 2a. ed. FERREZ, Gilberto – A Praça 15 de Novembro, Antigo Largo do Carmo, Rio de Janeiro, Riotur, 1978. GUTTIERRES Ramon Arquitectura y Urbanismo em Iberoamerica, Madrid, Ed. Cátedra, 1984. HOLLANDA Sergio Buarque, Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, J Olimpio, 1976, 10ª. Ed. LAMAS José M. Ressano Garcia, Morfologia urbana e desenho da cidade, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. MARX Murillo, Cidade no Brasil terra de quem? São Paulo, Nobel, 1991. ROSSO DEL BRENNA Giovanna, “Medieval ou Barroco? Proposta de leitura do espaço urbano colonial”, Barroco, Belo Horizonte, n. 12, 1982/3, pp 141-146 REIS Nestor Goulart, Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial, São Paulo, Edusp/Fapesp, 2000. SANTOS Paulo F. Formação de cidades no Brasil Colonial, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2001, 2a. ed. SICA Paolo, Storia dell’urbanistica: il settecento, Bari, Laterza, 1992, 5a. Ed. 1140