FORMALISMO E FUNCIONALISMO Arlete Ribeiro Nepomuceno* Maria Ieda Almeida Muniz* RESUMO: Este estudo procura oferecer uma breve visão panorâmica do paradigma funcional em contraposição ao paradigma formal. Após traçarmos um paralelo entre as abordagens formal e funcional do pensamento linguístico, detemo-nos na apresentação de uma visão geral da gramática funcional, a qual é tida como um sistema adaptativo, como uma estrutura maleável e emergente, num processo contínuo de variação e mudança para atender a necessidades cognitivas e/ou discursivo-pragmáticas. Concluímos que as análises linguísticas se baseiam no uso concreto da língua pelos falantes, admitindo que a gramática se molda a partir do uso linguístico que se dá em situações comunicativas. RÉSUMÉ: Cet étude cherche offrir une bref vision panoramique de la linguistique fonctionnelel en opposition à la linguistique formelle. Après avoir tracé un parallèle entre les tèories formelle et fonctionnelle de la pensée linguistique, nous détenons dans la présentation d’une vision générale de la grammaire fonctionnelle, auquelle est vue comme un système adaptatif, comme une structure malléable et emergente, dans un procès continu de variation et changement pour attendre aux nécéssités cognitives et/ou discoursif-pragmatiques. Nous avons conclu que les analyses linguistiques se donnent dans une situation réelle de langue pour les parlants, tout en admettent que la grammaire se modifie à partir de la situation communicative réelle. PALAVRAS-CHAVE: formalismo, funcionalismo, gramática funcional. MOTS-CLÉ: formalisme, fonctionalisme, grammaire fonctionnelle. Formalismo e Funcionalismo: oposições na sintaxe A consideração da existência de um modelo com visão funcionalista da linguagem, vendo a linguagem como uma entidade não suficiente em si, leva, em primeiro lugar, à contraposição com outro modelo que, diferentemente, examina a linguagem como um objeto autônomo, investigando a estrutura linguística independente de seu uso. Distinguem-se, tomando como escopo, nesse trabalho, somente o viés sintático, não se levando em conta, por exemplo, os estudos fonológicos e morfológicos, dois pólos de atenção opostos no pensamento linguístico: o funcionalismo, no qual a função das formas linguísticas parece desempenhar um papel predominante, e o formalismo, no qual a análise da forma linguística parece ser primária, enquanto os interesses funcionais são apenas secundários. Nessa oposição, encontram-se no pólo funcionalista a Escola de Genebra (implicitamente com Saussure, Bally, Tesnière – que influenciou Helbig e Martinet), passando pela Escola de Praga (com Mathesius, Trubetzyoy, Jakobson, Danes, Firbas, etc), chegando-se à Escola de Londres (com Firth e Halliday), e ao Grupo de Holanda (com Reichling e Simon Dik). Recentemente, destacam-se, também, os linguistas da costa oeste norte americana: Givón, Hopper, Thompson e Chafe, entre outros. Por outro lado, o pólo formalista tem seus expoentes máximos no estruturalismo norte-americano (com Bloomfield, Trager, Bloch, Harris, Fries) e, num sentido menos rigoroso, está também nos sucessivos modelos de gerativismo, culminando na teoria padrão de Chomsky. Em termos gerais, enquanto o Formalismo se caracteriza pela tendência a analisar a língua como um objeto autônomo, cuja estrutura independe de seu uso em situações comunicativas reais, interpretando a língua como uma atividade mental, o Funcionalismo caracteriza-se pela concepção da língua como um instrumento de comunicação que, como tal, não pode ser analisada como um objeto autônomo, mas como uma estrutura maleável, sujeita às pressões oriundas das diferentes situações comunicativas, que ajudam a determinar a sua estrutura gramatical. Assim sendo, segundo Dillinger (1991), os formalistas, entre eles os gerativistas, estudam a língua como objeto descontextualizado, sem relação com o meio, de modo a equiparar a língua à sua gramática cuja função precípua é a expressão do pensamento, preocupando-se com características internas – seus constituintes e as relações entre eles -, mas não com as relações entre os constituintes e seus significados, ou entre a língua e seu meio; chegam-se, então, à concepção de língua como um ‘conjunto de frases’, ‘um sistema de sons’, ‘um sistema de signos’, equiparando, desse modo, a língua à sua gramática (NEVES, 2001, p. 41). Já os funcionalistas se detém nas relações entre a língua como um todo e as diversas modalidades de interação social, destacando a relevância do contexto social na compreensão da natureza das línguas. Por isso, ao contextualizar os fatos gramaticais na situação de fala que os gerou, toma como ponto de partida as significações das expressões linguísticas, indagando como elas se codificam gramaticalmente (CASTILHO, 1994, p.76). Em suma, enquanto o Estruturalismo vê a língua como um sistema, o Gerativismo a vê como uma atividade mental e o Funcionalismo, do ponto de vista social, o que configura diferentes maneiras de abordar a língua. A distinção básica entre o Funcionalismo e o Formalismo é que aquele incorpora elementos extralinguísticos nas análises enquanto este limita a analisar somente o que está transparente na forma. Dik (1989, p.2-7) contrapõe o paradigma formal ao paradigma funcional, como mostra o Quadro 1. PARADIGMA FORMAL PARADIGMA FUNCIONAL Como definir a língua Conjunto de orações Instrumento de interação social Principal função da língua Expressão dos pensamentos Comunicação Correlato psicológico Competência: capacidade de produzir, interpretar e julgar orações Competência comunicativa: habilidade de interagir socialmente com a língua O sistema e seu uso O estudo da competência tem prioridade sobre o da atuação O estudo do sistema deve fazer-se dentro do quadro do uso Língua e contexto/ situação As orações da língua devem descrever-se independentemente do contexto / situação A descrição das expressões deve fornecer dados para a descrição de seu funcionamento num dado contexto Aquisição da linguagem Universais linguísticos Relação entre sintaxe, a semântica e a pragmática Faz-se com o uso das propriedades Faz-se com a ajuda de um inatas, com base em um input input extenso e estruturado de dados apresentado no restrito e não estruturado de dados contexto natural Propriedades inatas do organismo humano Explicados em função de restrições; comunicativas; biológicas ou psicológicas; contextuais A pragmática é o quadro A sintaxe é autônoma em relação dentro do qual a semântica e à semântica; as duas são a sintaxe devem ser autônomas em relação à pragmática; as prioridades vão da estudadas; as prioridades vão sintaxe à pragmática via semântica da pragmática à sintaxe via semântica Quadro 1 - Paradigma Formal e Paradigma Funcional - Fonte: (2001, p. 46-47) Neves Assim, ao analisar essas duas grandes correntes modernas, Dik apresenta no paradigma formal a linguagem como um sistema autônomo no que diz respeito ao uso. Já no paradigma funcional, apresenta a linguagem sob um viés pragmático-discursivo. Nessa perspectiva, o linguísta ressalta o fato de que o termo paradigma é proposto para designar cada conjunto de crenças e hipóteses em interação. Leech (1983, apud Neves, 2001, p. 49), assim como Dik, apresenta, no Quadro 2, um paralelo entre as abordagens formal e funcional. ABORDAGEM FORMAL ABORDAGEM FUNCIONAL Linguagem como fenômeno mental Linguagem como fenômeno primariamente social Universais linguísticos: herança linguística genética comum da espécie humana Universais linguísticos: derivação da universalidade dos usos da linguagem nas sociedades humanas Aquisição da linguagem pela criança: capacidade inata humana para aprender a língua Aquisição da linguagem pela criança: desenvolvimento das necessidades e habilidades comunicativas Estudo da linguagem como sistema autônomo Estudo da linguagem em relação com sua função social Quadro 2 - Abordagem Formal e Abordagem Funcional - Fonte: Neves (2001, p. 49-50). Contudo, Leech (1983, apud NEVES, 2001, p. 49), diferentemente de Dik, critica a adoção isolada de qualquer uma dessas abordagens, considerando que não se pode negar que a linguagem é um fenômeno psicológico e social. As diferentes abordagens prendem-se a formas distintas de encarar a natureza da linguagem: para os formalistas, é um fenômeno eminentemente mental; para os funcionalistas, um fenômeno primariamente social. Desse modo, para Leech, a eleição de um modelo teórico, em detrimento de outro, não se justifica, pois ambos apontam não só objetos de estudos distintos, como também diferentes pressupostos, objetivos e metodologia. No Brasil, os contrastes entre o Formalismo e o Funcionalismo também foram notados pelos linguistas. Parte dessa polêmica traduziu-se nos artigos de Nascimento (1990) e Dillinger (1991), referentes ao artigo de Votre e Naro (1989). Primeiramente, Nascimento, corroborando a idéia defendida por Leech, critica a comparação estabelecida por Votre e Naro (1989) entre o Formalismo, sobretudo na abordagem gerativista, e o Funcionalismo, defendendo que os dois enfoques definem diferentes objetos de estudo, abordando, pois, diferentes aspectos do complexo fenômeno da linguagem. De fato, para Nascimento, o gerativismo pressupõe que os falantes sejam dotados naturalmente de um conjunto de princípios e parâmetros geneticamente determinados, o que lhes permite adquirir e colocar em prática o conhecimento da língua. É esse conhecimento da língua que constitui o objeto de investigação no modelo gerativista. Nas palavras de Nascimento, a gramática gerativa traça como objeto de estudo o conhecimento da língua, distinguindo-se uma teoria do conhecimento da língua e uma teoria do processamento linguístico, em que esta implica aquela. Nessa veia, o objeto de estudo da perspectiva funcionalista se identifica com o domínio do processamento linguístico. Ademais, Nascimento postula que Chomsky considera a possibilidade de enfoques não mentalistas, a qual corresponde o conceito de língua externalizada, definida como uma coleção de ações ou comportamento. O modelo gerativista se define no interior de uma teoria mentalista, que delimita o seu objeto como a língua internalizada. O estudo dos mecanismos de processamento linguístico, identificáveis como sendo a língua externalizada, é o que define o modelo funcionalista de pesquisa. Eis a pertinência das palavras de Nascimento (1990, p. 86): o texto de V&N pode levar o leitor menos atento a pensar que as duas abordagens são comparáveis, apresentando-se como alternativas para o tratamento de um mesmo fenômeno, de um mesmo objeto. E não o são. Elas definem diferentes objetos de estudo, propondo-se a estudar aspectos diferentes do complexo fenômeno da linguagem, com pressupostos, metodologia e objetivos diferentes. A questão de se saber qual dos dois é o melhor, portanto, não se coloca. Logo, reconhecendo as diferenças entre o Funcionalismo e Formalismo (Gerativismo), Nascimento (1990, p. 97) afirma que um modelo não exclui o outro e melhor seria integrar as análises linguísticas funcionais com as formais. Em seguida, Dillinger (1991) publica um artigo sobre o debate travado por Nascimento, Votre & Naro. Nesse artigo, Dillinger postula que há um problema concernente à terminologia adotada por esses teóricos. Para Dillinger, a abordagem funcionalista e a formalista lidam com diferentes fenômenos, pois no primeiro caso o contexto é levado em consideração e no segundo, não. Porém, o objeto de ambas é o mesmo, a língua, diferentemente do que sugeriu Nascimento. Assim, tais teorias não se excluem, mas, sim, se complementam. Os linguistas deveriam, portanto, tentar construir uma teoria que possibilitasse unir essas abordagens sem excluí-las: precisa-se de um quadro teórico ao mesmo tempo bastante geral para abarcar todas as investigações da linguagem e suas manifestações – dando a todas igual valor – e suficientemente específico para mostrar a relação de cada uma com as outras (DILLINGER, 1991, p. 405). Naro e Votre retomam a distinção entre Funcionalismo e Formalismo explicitadas no texto de 1990. No novo artigo, os autores definem o Funcionalismo como um estudo no discurso e não do discurso: os dados do funcionalista são buscados NO discurso; são, portanto, concretos e contextualizados. Permitem a verificação empírica, a contagem de frequências, a visão e o controle do contexto linguístico anterior e posterior e a correlação com variáveis sócio-culturais e pragmáticas (NARO E VOTRE, 1992, p.287). Retomando Dillinger (1991), é lícito afirmar que, embora um tanto distintos, os dois enfoques não têm de ser necessariamente alternativos, de modo que a escolha de um implique a rejeição do outro. O que se sabe é que essa polêmica foi útil para criar novos horizontes na linguistica brasileira, pois abriu espaço para uma teoria sintática de base funcionalista e evidenciou a necessidade de coexistência de diferentes perspectivas teóricas. Nesse contexto, podemos afirmar ainda que não existem teorias superadas, teorias corretas, visto que a produção humana é, por definição, mais ou menos adequada, representando aproximações. Na verdade, não há como afirmar o quão próximo nós estamos de uma perspectiva teórica dita ideal, dado que não há padrão de referência para que possamos comparar graus de adequação. O critério de escolha é apontado pelo grau de satisfação que cada estudo proposto provoca na comunidade discursiva na qual ele se produz. No quadro em que se verificam os desmontes das propostas paradigmáticas fechadas, parece não fazer sentido insistir em uma formulação exata, estrita e restrita de uma só abordagem teórica. Com efeito, em vista de a linguagem possuir um caráter multifacetado, convivemos com a tendência de fusão de opostos e de complementares, em que as teorias se unem ou se reúnem numa visão uni-, inter-, multi- e transdisciplinares. Um esboço da teoria Funcionalista A chamada gramática funcional, derivada do pensamento funcionalista da Escola de Praga, remete, de um lado, ao chamado “Funcionalismo Clássico”, baseado na idéia da língua como instrumento de comunicação da experiência humana, representada pelo francês André Martinet (Escola de Genebra). De outro lado, surge, mais recentemente, um Funcionalismo dito “moderado” na Escola de Londres, com o modelo sistêmico-funcional de Halliday que, trabalhando com as metafunções, relaciona linguagem, situação e cultura, e, no Grupo da Holanda, com o modelo de Dik, segundo o qual a expressão linguística é mediadora no processo de interação verbal (que é a interação social estabelecida por meio da linguagem) entre a intenção do destinador e a interpretação do destinatário. Remete-se, ainda, ao funcionalismo dito “extremo”, que ganhou força nos Estados Unidos a partir da década de 70, passando a servir de rótulo para o trabalho de linguistas como Sandra Thompson, Paul Hopper e Talmy Givón, que passaram a postular uma linguística baseada no uso, cuja tendência principal é observar a língua do ponto de vista do contexto linguístico e da situação extralinguística. De acordo com a concepção desse funcionalismo “extremado”, a sintaxe é uma estrutura em constante mutação em consequência das vicissitudes do discurso. A sintaxe tem a forma que tem em razão das estratégias de organização da informação empregadas pelos falantes no momento da interação discursiva. Dessa maneira, para compreender o fenômeno sintático, seria necessário estudar a língua em uso, em seus contextos discursivos específicos, pois é nesse espaço que a gramática é constituída. É, pois, a partir desse funcionalismo extremado, advogado por Sandra Thompson, que, a título de ilustração, mostraremos, mais adiante, um exemplo da gramática funcional. Mackenzie (1992) afirma que a gramática funcional tem como hipótese fundamental a existência de uma relação não arbitrária entre a instrumentalidade do uso da língua (o funcional) e a sistematicidade da estrutura da língua (a gramática). Em outras palavras, a gramática funcional visa explicar regularidades nas línguas e, por meio delas, aspectos recorrentes das circunstâncias sob as quais as pessoas usam a língua. A gramática funcional ocupa, então, uma posição intermediária em relação às abordagens que dão conta apenas da sistematicidade da estrutura da língua ou apenas da instrumentalidade do uso da língua. Isso não equivale dizer que a gramática funcional é uma espécie de guarda-chuva protegendo todos os tipos de trabalho, tanto gramaticais quanto pragmáticos; ao contrário, afirma Mackenzie, há uma tradição coerente da gramática funcional ligando explicitamente construções linguísticas a constelações pragmáticas. Nesse contexto, dentro da perspectiva da gramática funcional, a designação falante/ouvinte vai sendo substituída pela expressão “usuário da língua” – o que parece bem apropriado, já que a linguagem é concebida como um processo de interação, segundo o qual o indivíduo usa a língua não apenas como veículo para exteriorizar pensamentos ou veicular informações, mas também como instrumento para realização da interação humana. Conforme assinala Travaglia (1996, p. 23): A linguagem é, pois, um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela produção de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em um contexto sociohistórico e ideológico. Os usuários da língua ou interlocutores interagem enquanto sujeitos que ocupam lugares sociais e ‘falam’ e ‘ouvem’ desses lugares de acordo com as formações imaginárias (imagens) que a sociedade estabeleceu para tais lugares sociais. Nessa veia, podemos considerar que o funcionalista se preocupa com a capacidade de o usuário empregar satisfatoriamente a língua em diversas situações de comunicação, ou seja, de uma maneira interacionalmente satisfatória, em razão de o discurso estar intimamente ligado à situação de comunicação. O usuário sofre influências de uma série de fatores no momento em que usa a língua – então, há a necessidade de se descrever o funcionamento da língua em situações reais de comunicação. Em vista disso, a gramática funcional trabalha, entre outros enfoques, com a chamada competência comunicativa – definida como a capacidade que os indivíduos têm não apenas de codificar e decodificar expressões, mas também de usar e interpretar essas expressões de uma maneira interacionalmente satisfatória (TRAVAGLIA, 1996, p.17-18) e que pode ser resumida da seguinte forma: A competência gramatical ou linguística – Capacidade que tem todo usuário da língua, com base nas regras da língua, de gerar um número infinito de sequências linguísticas gramaticais. A competência textual – Capacidade que tem todo usuário da língua de, em situações de interação comunicativa, produzir e compreender textos considerados bem formados, valendo-se de capacidades textuais básicas que seriam essencialmente as seguintes: a) capacidade formativa - possibilita aos usuários da língua produzir e compreender um número de textos que seria potencialmente ilimitado e, além disso, avaliar a boa ou má formação de um texto dado. b) capacidade transformativa - possibilita modificar, de diferentes maneiras e com diferentes fins, um texto e também julgar se o produto dessas modificações é adequado ao texto sobre o qual a modificação foi feita. c) capacidade qualificativa - possibilita dizer a que tipo de texto pertence um dado texto, segundo uma determinada tipologia. Segundo Neves (2001, p. 15), o termo competência comunicativa é geralmente relacionado a Hymes (1974), que propunha acrescentar ao processo tradicional de descrição gramatical a descrição das regras para o uso social apropriado da linguagem. Para Hymes (1974, apud NEVES, 2001, p. 44), a competência comunicativa é definida como o conhecimento que o indivíduo, falante de uma língua natural, necessita possuir sobre como usar as formas linguísticas adequadamente, além de sua habilidade de se valer da linguagem como meio de interação social. Ainda segundo Neves (2001, p. 44), essa interpretação de “competência” não significa que não se possa distinguir entre ‘competência’ (conhecimento exigido para certa atividade) e ‘atuação’ (implementação real desse conhecimento na atividade) (NEVES, 2001, p. 44). Assim sendo, considera-se que a competência comunicativa abarca vários tipos de capacidades, não apenas a habilidade de construir e interpretar expressões linguísticas, mas também a habilidade de usar essas expressões de modo apropriado e efetivo de acordo com as convenções da interação verbal que prevalecem numa comunidade linguística. Crystal (2000, p. 54-55), por sua vez, focaliza a competência comunicativa como a capacidade de o ‘falante nativo’ produzir e compreender sentenças apropriadas ao ‘contexto’ em que ocorrem – o que precisa saber para que possa se comunicar com eficácia em lugares socialmente distintos. Desse modo, para o autor, essa competência resume os determinantes sociais do comportamento linguístico, inclusive questões ambientais como, por exemplo, as pressões advindas do tempo e do lugar da conversa. Argumenta-se que, se os falantes têm um conhecimento tácito de tais ‘restrições’ comunicativas, uma teoria linguística deve tentar fornecer um relato explícito desses fatores. O que se sabe é que essa abordagem foi bem aceita; porém, até hoje, pouco progresso houve sobre a questão de como definir essa concepção mais ampla de competência em termos precisos. É graças a essa competência comunicativa que o usuário da língua será capaz de identificar uma escolha linguística que melhor atenda à situação comunicativa, como se verá a seguir. A título de ilustração, vejamos um exemplo da língua em uso em propagandas, em que se verifica a maleabilidade da língua e a plasticidade da gramática funcional, defendendo a idéia de uma linguística enraizada no uso e condicionada a situações de interação variadas. Thompson & Mann (1983,1985), discutindo o fenômeno de combinação de cláusulas objetivando verificar que tipo de texto funciona em termos de coerência, trabalham a noção de proposições relacionais (inferências), as quais auxiliarão para a análise das cláusulas hipotáticas justapostas de realce em propagandas: Sedex. Mandou, Chegou. Nesse caso, sob o viés da Gramática Tradicional, numa visão formalista da linguagem, essa sentença seria classificada como uma estrutura de coordenação assindética, sendo, portanto, orações independentes, priorizando somente a forma, o que configuraria a sua insuficiência no tratamento dado às orações. O que se sabe é que, sob o olhar da gramática funcional, nas análises linguísticas de qualquer enunciado, deve-se considerar não só a forma e o conteúdo, como também a ligação entre eles, pois, se a língua existe para comunicar, o usuário da língua escolhe, entre diversas possibilidades, a mais apropriada a seu propósito. Essa escolha é motivada pela intenção, pelo contexto, pelo grau de intimidade entre os interlocutores, pelo assunto a ser comunicado, etc. Assim, a estrutura reflete a organização do discurso. Nesse contexto, a significação não está presa à sentença, priorizando a sintaxe em detrimento da semântica e da pragmática. Ao contrário, parece ter um caráter elástico, pois se estende, adaptando-se a diferentes contextos, em função das necessidades comunicativas do usuário da língua. A significação é, pois, negociada pelos interlocutores em situações contextuais específicas, o que torna possível que elementos linguísticos se adaptem às diferentes intenções comunicativas, apresentando flutuações de sentido. Nos termos de Mann & Thompson (1983) e Thompson & Mann (1985), trabalhando com o processo de combinação de cláusulas implícitas no discurso – proposições relacionais –, das quais não falaremos detalhadamente por fugir do escopo desse trabalho, que geram inferências e que não são necessariamente explicitadas por meio de conectivos, no exemplo arrolado acima, é possível depreendermos não só uma relação hipotática de realce (condição) – a qual a gramática tradicional não estaria apta a aceitar, tendo em vista, por exemplo, a forma em que se encontram os tempos verbais (verbos no passado, e não no subjuntivo), mas também, a partir dela, uma série de outras inferências como, por exemplo, tempo e motivação (causa). Nesse caso elucidado acima, observamos o caráter não estático da língua, demonstrando que ela está em constante mudança em consequência da incessante criação de novos arranjos nas orações, objetivando a atender a interesses comunicativos. A compreensão é que, do ponto de vista da evolução, a língua está num contínuo fazerse, o que nos possibilita falar de uma relativa instabilidade da estrutura linguística. É sob esse aspecto que se fala de uma gramática emergente, no sentido de que a gramática de uma língua natural nunca está pronta. Assim, uma análise que leve em conta as proposições relacionais pode fornecer explicações para as chamadas falsas coordenações, ou, até mesmo, para as ditas coordenadas, em vista de o processo inferencial estar aí latente. Ficando, desse modo, evidenciado que importa o tipo de proposição relacional que emerge da combinação de cláusulas hipotáticas de realce, e não a marca dessa relação circunstancial. Considerações Finais Do que foi exposto, podemos identificar, nos estudos linguísticos modernos, embora existam divergências, duas perspectivas diferentes de se estudar a linguagem dentro do quadro de estudos da sintaxe: a perspectiva formal e a perspectiva funcional. A perspectiva formal sintaxista interpreta a língua em si mesma e por si mesma, configurada num conjunto de sentenças, analisando-as isoladamente. O que se sabe atualmente é que abordagens gerativistas alternativas, como a semântica gerativa, ou a gramática dos casos podem ser vistas como um esforço, no paradigma formalista, de questionar algumas das propostas desse paradigma, por um ângulo semântico-funcionalista. Já a perspectiva funcional está interessada em explicar as regularidades observadas no uso interativo da língua, analisando as condições discursivas em que se verifica esse uso. Ultrapassam, portanto, o âmbito da estrutura gramatical e buscam na situação comunicativa, que envolve o usuário da língua, seus propósitos e o contexto discursivo, a motivação para os fatos da língua. Sem deixar de lado a crença na existência da estrutura fonológica, gramatical e semântica das línguas, os funcionalistas estariam preocupados não com a forma em si, mas como as funções que essas estruturas têm de exercer nas sociedades em que operam. Nesse caminho, não desejamos um pensamento linguístico unificado, o qual seria ingênuo para o desenvolvimento científico. Acreditamos, contudo, na adequação do funcionalismo como teoria linguística, na coerência e objetividade de seus métodos e na validade de suas análises para explicar o funcionalismo das línguas naturais como veículo por excelência da comunicação social entre os homens. * Unimontes/Fapemig – Professora adjunta do Departamento de Comunicação e Letras da Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/Minas Gerais –,doutoranda em Estudos Linguísticos na FALE/UFMG. * Unimontes – Professora doutora do Departamento de Comunicação e Letras da Unimontes – Universidade Estadual de Montes Claros/Minas Gerais. 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