COMARCA DE PASSO FUNDO - 1ª VARA CÍVEL PROCESSO Nº 02100885509 NATUREZA: AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE AUTORES: PLÍNIO FORMIGHIERI E OUTRA RÉUS: LOIVO DALL’AGNOL E OUTROS PROLATOR: LUÍS CHRISTIANO ENGER AIRES DATA: 17.10.2001 Vistos etc. Trata-se de pedido de reintegração de posse ajuizada por Plínio Formighieri e sua esposa, alegando serem proprietários e possuidores de uma área de 11.563.529m², localizada no lugar denominado Rodeio Bonito, no município de Pontão, e que esse imóvel foi invadido por aproximadamente 600 pessoas no dia 15 p.p. Relataram a forma de ocupação e informaram tratar-se de propriedade produtiva, tendo os requeridos se instalado em aproximadamente três hectares, localizados a cerca de 1.500 metros da divisa com a rodovia Pontão-Ronda Alta. Dizendo estarem presentes os pressupostos legais, pediram liminar para reintegrar-se na posse do imóvel, a qual, contudo, não é de ser deferida. Com efeito, apesar de terem os autores juntado comprovante de terem adquirido a área em questão já há longo tempo e afirmarem sua produtividade, deixaram de demonstrar a adequação legal do exercício do direito de propriedade, através do atendimento da sua função social. Em primeiro lugar, necessário deixar frisado que, apesar da sua insuficiência - se analisados solitariamente -, os autores deveriam ter acostado aos autos a chamada Declaração de Propriedade (Estatuto da Terra, art. 49), onde conste o grau de utilização da terra e o grau de eficiência ‘obtido nas diferentes explorações’ (Lei nº 8.629/93, arts. 2º e 9º, em especial). Tais índices, por essas regras, são considerados como graus capazes de orientar o operador do direito na análise e no juízo da produtividade e do cumprimento da função social da propriedade em questão. E não o fizerem, como se possível fosse extrair das suas afirmações alguma presunção absoluta de que a propriedade em questão atende a produtividade que seria socialmente desejada. 1 Por evidente, outrossim, que tampouco a juntada desses documentos poderia modificar esse panorama sem o concurso de outros elementos de prova, já que a correspondência desses dados com a realidade está afeta ao INCRA e este órgão, como se sabe, tem sido impedido de realizar a tarefa justamente por aqueles que poderiam se beneficiar da fiscalização, quais sejam, os proprietários rurais. De qualquer sorte, sequer esses elementos vieram aos autos, como já dito, inviabilizando uma análise segura quanto à produtividade da área e, de outra, ao cumprimento da função social constitucionalmente imposta a qualquer propriedade - e que não pode ser objeto de singela justificação prévia, já que diverso o objeto. E essa análise faz-se imprescindível, pois a mera regularidade formal do título de propriedade não impede que o Poder Judiciário – e mesmo a Administração Pública – investiguem a adequação legal do exercício desse direito, quando isso se torne necessário. No caso dos autos, já referi acima, os autores são proprietários de 11.563.529m² e os requeridos, trabalhadores rurais sem-terra, ocuparam uma área de três hectares (30.000m²), onde instalaram um acampamento na esteira de mais uma manifestação do MST contra a morosidade do projeto de reforma agrária no país e no estado. Nessas circunstâncias vê-se logo ter se instalado um conflito entre direitos - o direito de propriedade dos autores e o direito fundamental à vida digna dos requeridos -, o qual deve ser solvido, mesmo que provisoriamente (como é a natureza dessa decisão) através da justa ponderação acerca dos interesses em conflito. Para tanto, desde logo necessário reconhecer a total ineficácia dos mecanismos jurídico-processuais tradicionais para a solução adequada e razoável de conflitos coletivos. Efetivamente, sua individualização e atomização não permite sejam eles efetivamente resolvidos, mas apenas afastados, até porque normalmente refletem demandas sociais decorrentes de problemas estruturais e supraindividuais. Em outras palavras: políticos. De qualquer forma, desaguando o litígio – que é apenas parte do conflito – em demanda judicial, impõe-se seja apresentada uma solução. E esta 2 solução, como em toda atividade jurídica, passa pela interpretação do direito que, por sua vez, vai transformar as disposições legais na norma do caso concreto. Pois bem, considerando essa afirmação, necessário ainda referir que a lógica jurídica implica em escolha de uma solução entre várias possíveis e, no caso em exame, tenho que a mais justa e coerente com o princípio básico de solidariedade social implica na rejeição do pedido de liminar. Com efeito, a Constituição da República – através de cuja ótica deve ser interpretado todo o direito posto – estabeleceu um projeto emancipatório que deve ser perseguido pelo poder público – em todas as suas esferas de expressão – e pela sociedade, inclusive pelos juízes no exercício de suas tarefas, visando estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Tal regra, a toda evidência, faz repousar o direito brasileiro na idéia de justiça e de solidariedade, razão de ter sido expressamente funcionalizada a propriedade (art. 5º, XXII e XXIII), dentre outros aspectos que não vem ao caso examinar nos limites desta decisão. Portanto, para alguém exigir a tutela judicial de proteção à sua posse ou propriedade, necessita fazer prova adequada de que esteja usando ou gozando desse bem ‘secundum beneficium societatis’, ou seja, de acordo com os interesses da sociedade e não apenas seus próprios interesses ou de sua família, principalmente, quando o grau de comprometimento desse exercício é diminuto como na hipótese, já que ocupados apenas três hectares no universo da propriedade. Assim, “se o proprietário não cumpre e não se realiza a função social da propriedade, ele deixa de ser merecedor de tutela por parte do ordenamento jurídico”1, desaparecendo o direito de propriedade, consoante afirmação de PIETRO PERLINGIERI, plenamente assimilável no direito brasileiro como visto acima. Assim, tem-se que a função social passa a ser elemento constitutivo do direito de propriedade, como reconhecido por JOSÉ AFONSO DA SILVA, ao afirmar que é 1 PERLINGIERI, Pietro. Introduzione allá problemática della ‘proprietá’. Apud SILVEIRA, Domingos Dresch da. A propriedade agrária e suas funções sociais. In O direito agrário em debate. Livraria do Advogado, POA, 1998, p. 14. 3 ela “elemento da estrutura e do regime jurídico da propriedade”2. Por isso a importância da demonstração – initio litis – de que os autores observam efetivamente a funcionalização da propriedade se impunha, já que do contrário correr-se-ia o risco de reintegrar na posse aquele que já não tem mais direito à propriedade. Ademais, não se pode esquecer que o conflito trazido a exame deste magistrado traduz colisão entre direitos, cuja solução implica – como já dito – em ponderação dos interesses em jogo, inclusive mediante a observação da necessária proporcionalidade. Assim, de um lado, temos o direito de propriedade e o conseqüente prejuízo patrimonial que eventualmente seja causado aos autores pela ação dos requeridos; e, de outro, o direito à vida digna dos requeridos, que buscam obrigar o Estado brasileiro a cumprir – com urgência – as tarefas que lhe foram impostas constitucionalmente e que tem sido historicamente postergadas. Não tenho dúvida de que, havendo necessidade de um desses direitos ser sacrificado, deve ele ser o patrimonial, considerando que a Constituição da República (art. 1º, II e III, e art. 3º) reconheceu aquilo que a doutrina e a jurisprudência alemãs chamam de ‘garantia estatal do mínimo existencial’ ou ‘garantia positiva dos recurso mínimos para uma existência digna’. E como garantir esse mínimo sem atentar para a necessidade de preservar os bens fundamentais (trabalho, moradia, educação, saúde) que correspondam à qualidade humana, sem os quais sequer se poderia falar de pessoa, consoante afirmado por RICARDO LUIS LORENZETTI3? O faço, assim, tendo em vista que admitir a reintegração de posse nessas circunstâncias implicaria em desconsiderar qualquer critério de razoabilidade e em literalmente jogar os requeridos na estrada, submetendo-os aos riscos daí decorrentes, inclusive à sua sobrevivência. Ademais, não se afiguraria proporcional exigir dos requeridos que deixassem o imóvel – desde logo -, sem que tivesse sido comprovado satisfatoriamente o cumprimento da 2 Apud SILVEIRA, Domingos Dresch da. Op. Cit., p.13. LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. RT, SP, p. 328, tradução Vera Maria Jacob de Fradera. 3 4 função social da propriedade em questão e considerando a mínima parcela do imóvel que ocupam, o que certamente não inviabiliza a atividade produtiva dos autores e nem coloca em risco sua segurança pessoal ou de seus empregados. Por fim, não é demais considerar que a manifestação dos requeridos encontra raízes no exercício da cidadania – como universalidade abstrata reconhecida pelo Estado moderno – contra a insuficiência das ações estatais destinadas a corrigir a grave chaga social da exclusão. Tal conduta, à evidência, implica em tensionamento entre os fatores sociais e políticos, de um lado, e as normas jurídicas, de outro, no sentido de estimular demandas sobre o poder público. E tal ação, novamente considerando as tarefas constitucionais impostas tanto ao poder público como à própria sociedade e constantemente negligenciadas, implica que diante do conflito concreto aqui examinado, se considerem as partes com absoluta igualdade, pois ‘Se o conceito de homem, ou de cidadão, contém em si um valor, então do juízo de igualdade entre os homens, ou entre os cidadãos (dois, alguns ou todos), deriva a prescrição de tratá-los como iguais, ou seja, de considerar e respeitar em cada homem ou cidadão o valor (ou valores) que leva consigo qualquer outro homem ou cidadão’4. Para considerá-las como tal, impossível agregar à pretensão dos autores qualquer presunção decorrente do título de propriedade, sacrificando-a – mesmo que parcial e provisoriamente – em favor do ‘mínimo existencial’ reconhecido pelo Estado em favor dos requeridos, como decorrência do princípio de solidariedade social albergado pela Constituição da República (art. 3º, I). Isso posto, INDEFIRO a liminar postulada e DETERMINO a citação dos requeridos, para que contestem, querendo, a presente ação no prazo legal. Intimar. 4 BOVERO, Michelangelo. Sobre los fundamentos filosóficos de la democracia, in Diánoia – Anuário de Filosofia, México, Universidad Autónoma de México/Fondo de Cultura Económica, ano XXXIII, nº 33, 1987, p. 156 5 Passo Fundo, 17 de outubro de 2001. Luís Christiano Enger Aires Juiz de Direito 6