a festa do rosário: a alegoria barroca e a reconstrução das diferenças

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A FESTA DO ROSÁRIO:
A ALEGORIA BARROCA E A RECONSTRUÇÃO DAS
DIFERENÇAS∗
Célia Maia Borges
Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Religião.
Universidade Federal de Juiz de Fora. Brasil **
Introdução
Esta comunicação pretende mostrar o papel desempenhado pela festa do
Rosário na conversão dos negros escravos ao catolicismo e na socialização do africano
e seus descendentes durante os séculos XVIII e XIX em Minas Gerais (Brasil).
Historicamente esta festa atravessa todo o período colonial até ao Brasil
Império e a sua promoção estava a cargo dos escravos, negros alforriados e livres
congregados nas Irmandades1 do Rosário. Ela significava a homenagem à santa
padroeira e constituía o momento máximo da vida da organização fraternal. Além das
missas e procissões, e da cerimônia de posse do rei e da rainha da irmandade, a festa
também era preenchida por representações dramáticas conhecidas como Congadas,
por vários banquetes e quitutes nas casas dos festeiros.
Há no entanto expressivas diferenças na forma como essas festas se
desenvolveram no Brasil2. Apenas nos cingiremos aos rituais em Minas, região
mineradora na época colonial.
O primeiro ponto do nosso enfoque levará em conta o significado da festa na
sociedade mineradora onde as múltiplas expressões da arte barroca marcaram uma
presença duradoura. A festa do Rosário alcançava o seu pleno sentido no diálogo com
outros acontecimentos rituais: fosse nas dramatizações feitas pelas associações
religiosas, fosse nos cultos, na preparação para a morte, nos poderes simbólicos da
estatuária barroca que seduzia os confrades, como no elemento mágico que polarizava
∗
A presente comunicação é, em parte, resultado do trabalho de pesquisa que realizei para
a minha tese de doutorado defendida em 1998 na Universidade Federal Fluminense, Brasil, e que se
intitula – Devoção Branca de Homens Negros: as Irmandades do Rosário em Minas Gerais no Século XVIII .
Trata-se de um trabalho que enfoca o papel social, cultural e religioso assumido pelas Irmandades do
Rosário no contexto da região mineradora do Brasil colonial.
**
Prof.ª do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora/Brasil. Doutora em História Social pela Universidade
Federal Fluminense e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
1
A fim de facilitar a exposição, utilizo indistintamente as palavras irmandades e confrarias,
apesar dos aspectos legais que as diferenciam.
2
Carlos Rodrigues Brandão mostra como no Brasil se geraram diferentes formas de
Congadas. Alguns dos rituais estruturaram-se em torno da apresentação de embaixadas e de danças
dramáticas representando grupos rivais em combate. Esses rituais em Minas ganharam força
permanecendo até hoje em inúmeros lugarejos. Uma segunda modalidade diz respeito aos desfiles pelos
arraiais, apenas com cortejo e sem danças. Uma outra variação era a coroação do rei com grupos de
dançantes, a que se acrescenta uma outra versão, a inclusão de reis nas embaixadas dramáticas. Esses
modelos dão idéia das variações de um ritual com uma mesma matriz (cf. BRANDÃO, Carlos Rodrigues.
Festim dos Bruxos, Campinas, São Paulo, Editora da Unicamp, Ícone, 1987, pp. 198-199).
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o binômio promessa/milagre. Tudo isso, enfim, possibilitava a reordenação cultural
dos diversos grupos étnicos que compunham a sociedade mineradora do século XVIII.
O colorido e a variedade das práticas religiosas traduzia-se em grandes
espetáculos permeados de fé, em procissões recheadas de alegorias susceptíveis de
arrastar toda a sociedade local3. Mediante recurso a dispositivos pirotécnicos,
montavam-se espetáculos cênicos com grandes coreografias, sendo difícil separar as
manifestações sagradas da profanas. Danças, mistérios, música, jogos, comida,
carros alegóricos, eis os vários cenários de fundo em que se desdobravam essas festas
cristãs Os irmãos do Rosário, longe de se alhearem dos acontecimentos, participavam
ativamente, quer desfilando com suas opas e tochas nas procissões, quer
ornamentando as ruas e preparando outrossim as luminárias e os carros alegóricos.
De notar que a presença dos irmãos se restringia a duas formas distintas de
rituais: os internos à organização e os externos. Neste caso último caso tratava-se de
rituais promovidos por outras associações. Isto significa que os membros das
confrarias religiosas interagiam com a linguagem simbólica própria da sociedade
local. É, pois, nesse sentido que devemos entender a própria essência da festa
naquelas irmandades em que a homenagem a N.ª S.ª do Rosário exprimia a
ritualização de conflitos e a configuração de conteúdos veiculados pelo imaginário
católico e estilizados pela estatuária barroca. A festa do Rosário, efetivamente,
mesclava elementos da tradição católica com elementos da cultura africana. Ao
conteúdo barroco das festas cristãs sobrepunham-se outras expressões artísticas que
lhe emprestavam novos traços simbólicos.
O segundo ponto do nosso enfoque tem a ver com a dinâmica interna da festa
do Rosário, a sua relação com os demais rituais católicos onde os irmãos, de formas
distintas, também se integravam segundo os códigos da estética barroca. Iremos
observar como o acontecimento se revestia de capital importância para a congregação,
atraindo novos integrantes, principalmente negros que se associavam à irmandade.
Era um momento alto de confraternização entre os irmãos, não só do Rosário senão
também de outras irmandades de negros, escravos, forros e livres que se sentiam
atraídos para a religião católica.
Contudo, para entender a festa em si convém ter presente algumas
particularidades da sociedade mineradora.
O controle sobre as Minas e a busca da autonomia religiosa
Minas Gerais caracterizou-se por ser bem distinta de outras regiões do Brasil.
A fim de fiscalizar a saída do ouro e controlar as populações locais, a Coroa
portuguesa proibiu a entrada de ordens religiosas na região, expulsando inclusive as
que lá se tinham estabelecido nas primeiras décadas de Setecentos. Por força desta
medida, a própria sociedade local investiu na organização dos cultos e festividades
católicas, fato que deu às irmandades, confrarias e ordens terceiras um papel
fundamental nesse processo, cada qual com o seu capelão oficiante4. Elementos do
clero secular, contratados pelas irmandades, celebravam os sacramentos em
consonância com as determinações da mesa diretora da confraria. Os leigos detinham
3
1980.
Ver ÁVILLA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco, São Paulo, Perspectiva,
4
Sobre as Irmandades em Minas, ver BOSCHI. Caio César. Os Leigos e o Poder:
Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo, Ática, 1986; SALLES, Flitz
Teixeira de. Associações Religiosas no Ciclo do Ouro, Belo Horizonte, Universidade de Minas Gerais, 1963.
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fundamental na organização dos rituais e na disseminação do catolicismo barroco.
Missas acompanhadas de músicas, novenas e procissões, com várias encenações
bíblicas, representavam um verdadeiro espetáculo para toda a comunidade em meio
aos inúmeros fogos de artifício. A festa servia também de palco a vários outros
acontecimentos paralelos: barracas de comida, músicas e danças.
A proibição de entrada das ordens religiosas em Minas não significou, todavia,
menos controle religioso por parte das autoridades eclesiásticas. A Igreja, na pessoa
de bispos e párocos, tentou a todo o custo intervir na organização dos cultos
religiosos. A disputa pela gestão dos assuntos religiosos acabou por gerar um sem
número de incidentes entre autoridades eclesiásticas e confrades que queriam
chamar a si a administração dos bens sagrados. Todas as confrarias lutaram pelo
direito de oficiar os cultos à sua maneira, principalmente sem a presença do vigário, e
pelo direito de isenção no pagamento de taxas paroquiais.
Na seqüência destes conflitos os irmãos do Rosário, aliados ao capelão,
lograram um certo espaço de autonomia para a produção festiva, aproveitando a luta
dos próprios senhores de escravos, comerciantes e donos de lavras que desejavam
celebrar os seus cultos e festividades religiosas longe do olhar das autoridades
coloniais.
Deste modo, as associações representativas de diferentes categorias sociais
brigaram pelo direito de liberdade religiosa, muitas vezes associando-se ou resistindo
às autoridades eclesiásticas no sentido de recriarem os seus cultos da maneira que
mais lhes conviesse. Nesse jogo sutil, complexo e dialético enredaram-se as elites
dominantes, numa ação que variou entre a concessão e a repressão de acordo com os
seus interesses.
Justamente porque a festa foi alvo de perseguições ao longo do século XVIII por
um setor da Igreja reformadora, os compromissos das Irmandades tiveram que ser
atualizados e adaptados a uma estratégia política de sobrevivência.
Por conseguinte, a produção artística na colônia, conhecida como barroca, não
pode simplesmente ser associada ao projeto católico reformador, uma vez que entre a
arte produzida pela sociedade e a convencionada pelos representantes da ideologia
tridentina se interpunha uma tensão permanente. Os grupos dominantes, herdeiros
das tradições lusitanas, plasmavam a sua religiosidade em inúmeras festas religiosas,
em representações dramáticas, as quais formavam um verdadeiro cenário onde
diversos atos decorriam. Os negros das irmandades foram influenciados pelo
imaginário religioso católico, sobretudo na sua versão popular, isto graças ao contato
com as múltiplas manifestações artísticas, o que lhes possibilitou dar um novo
sentido às suas antigas tradições.
festa
Os reis e as rainhas das Irmandades do Rosário: a ritualização do poder na
Em homenagem a N.ª S.ª do Rosário 63 confrarias foram criadas nesta região,
todas constituídas majoritariamente por homens negros5. As associações religiosas
5
BORGES, Célia Maia. Devoção Branca de Homens Negros: as Irmandades do Rosário em
Minas Gerais no séc. XVIII. Niterói (Brasil), Universidade Federal Fluminense, 1998, p. 15.
1226
eram o único lugar possível, do ponto de vista legal, para reuniões e organização de
festas e onde, de fato, muitos homens e mulheres – vindos de lugares distintos de
África, e também escravos nascidos no Brasil – se encontravam.
Todas as irmandades e confrarias se inspiravam nas festas da tradição católica
européia e comemoravam festas anuais de preito ao seu santo devoto. Cada uma, de
acordo com os seus usos, organizava as suas próprias festividades religiosas. Nos
séculos XVIII e XIX havia cerca de 322 associações fraternais em Minas Gerais 6, as
quais congregavam pessoas de determinados segmentos sociais, conforme a profissão,
situação econômica, cor, ou mesmo a condição social (escravo, forro ou livre).
Enquanto os altos dignitários, ricos donos de lavras e grandes comerciantes se
reuniam habitualmente nas Ordens Terceiras do Carmo, na de São Francisco e na
Irmandade do Santíssimo, os homens pardos e os negros livres reuniam-se na
Irmandade das Mercês e na de São Gonçalo; os negros escravos e forros nas do
Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. A composição social das irmandades refletia
assim a organização da própria sociedade colonial7.
As irmandades, confrarias e ordens terceiras fundadas no Brasil, no período
colonial, reproduziram o modelo das organizações pias e caritativas existentes na
Europa. Prestar devoção ao santo protetor, dar impulso à solidariedade entre irmãos,
auxiliar nos momentos de infortúnio, garantir a assistência ao confrade na hora da
morte, acompanhar o féretro e assegurar um lugar de sepultamento nas igrejas das
Irmandades, eis todo um conjunto de deveres e objetivos por que se regiam as
associações fraternais. Para acautelar estas obrigações, havia uma mesa diretora
responsável pela organização e recolhimento de um fundo capaz de custear as
despesas.
Nas irmandades de homens negros, além de juizes e juízas, escrivão, tesoureiro
e procuradores (estes com assento também nas mesas diretoras das restantes
corporações), havia ainda os reis e as rainhas. Em algumas, o poder dos reis e
rainhas estava acima do dos seus confrades e foram eles exatamente, frente à
comunidade local, que se bateram repetidas vezes pelos interesses da organização
fraternal. Depois de entronizados com as suas coroas e com o cetro no dia da festa, os
reis desfilavam com seu séqüito numa demonstração simbólica de poder.
A busca de respeito e reconhecimento da autoridade dos reis não era um
problema exclusivamente externo às organizações. Os confrades das irmandades
negras provinham, muitas vezes, de diversas partes de África, e por isto, pertencentes
a grupos étnicos distintos. Daí os inúmeros conflitos em virtude de um grupo se
querer sobrepor aos demais. Em muitos lugares do litoral do Brasil – como no Rio de
Janeiro e em Salvador da Bahia – os grupos tendiam a se agrupar de acordo com a
origem geográfica ou a base “étnica” dos seus membros. Na Bahia, por exemplo, os
Jêjes reuniam-se em uma irmandade; os Nagô em outra; os “Angola” em uma terceira,
criando zonas fronteiriças definidoras de cada grupo 8. No Rio de Janeiro, os Maki
congregavam-se na Irmandade de N.ª Sr.ª dos Remédios 9, os de “Angola” e
BOSCHI, op. cit., p. 190.
SALLES, op. cit.
8
REIS João José. A Morte é Uma Festa: Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do
Século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 55; VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo do Tráfico de
Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos, XVIII ao XIX (tradução de Tasso Gadzanis)
São Paulo, Corrupio, 1997, pp. 524-525
9
SOARES, Maria de Carvalho. Identidade Étnica, Religiosidade e Escravidão. Os “pretos
minas” no Rio de Janeiro (século XVIII), tese de doutorado em História/UFF, Niterói, 1997, p. 96.
6
7
1227
“Benguela” na do Rosário, o que originou uma complexidade de relações que exigia de
cada uma funções de liderança10.
Dizem os pretos da nação Benguela, irmãos de N.ª Sª do Rosário, que não
devendo haver mais Rei do que o da Irmandade da mesma Senhora do Rosário
algumas nações dos mesmos pretos têm erigido outras Irmandades, nas quais
constituem em cada uma seu Rei e até têm instituído um rei chamado do Congo, em
cuja multiplicidade de Reis, se fermentam discórdias, querendo cada um dos referidos
Reis que todas as mais nações o acompanhem e porque não deva haver mais rei do que
a Irmandade de N.Srª do Rosário, a quem todas as nações devem obedecer [...] pedem
a V. Exa lhes faça mercê mandar que os suplicantes não sejam obrigados a
acompanhar mais do que o Rei da Irmandade do Rosário 11.
Em Minas, pelo contrário, não existiu essa exclusão como nos foi dado
constatar ao longo das nossas pesquisas 12. Afinal, em função da história de cada
lugar, os diferentes grupos no processo de conjunção de forças imprimiram aos
rituais formas e conteúdos diversos. No litoral os grupos estavam divididos; cada um
reivindicava o direito a eleger a sua realeza. Ao invés disso, em Minas, as Irmandades
do Rosário tiveram um caráter aglutinador, os grupos que entravam nessas
irmandades comprometiam-se, no essencial, a aceitar a realeza que o conjunto da
irmandade elegesse. Quando assim não sucedia, estalavam os conflitos, como
dissemos. Logo a eleição tinha um cunho eminentemente negocial que se renovava
nos momentos de choque entre as várias facções. Ser realeza significava deter as
prerrogativas próprias de uma autoridade e esta aparecia simbolicamente
representada no momento da festa.
Essa relação, como é evidente, fixou os marcos de convivência entre as
distintas frações. Competia à realeza, depois da sua entronização, intervir na
organização da sociedade. A festa era portanto um acontecimento especial na vida do
grupo, no sentido da ritualização e dramatização de tais conflitos13.
Dependendo da irmandade e do espaço geográfico, a organização fraternal
nunca deixava por mãos alheias a defesa dos interesses dos irmãos. Essa prática era
extensiva às Irmandades do Rosário. Nalgumas destas irmandades o rei e a rainha
eram mais do que um poder simbólico, restrito à festa. Eram também reis e rainhas
da comunidade negra, pleiteando o direito de organizar autonomamente os rituais,
como o fizeram, de resto, muitas outras irmandades; ou pleiteando a consecução das
suas festas; ou a defesa da igreja ao verem-se ameaçados de perder os seus templos.
Ser rei da irmandade conferia prestígio, mesmo a um escravo. Ganhava-se
deferência tanto junto dos seus pares como frente à comunidade. É certo que a
autoridade do rei se circunscrevia aos dias de festa, porém isso acontecia porque o
ritual da festa é que legitimava tal dignidade. A posse outorgava o título de rei do
Congo, mas a cabeça coroada tanto podia ser um “Benguela”, um “Angola”, como um
“Mina” ou um crioulo14. Os rituais contavam com a participação de grupos sociais
Por uma questão de comodidade referimo-nos aos “Angola” e aos “Benguela” como
grupos, todavia sabemos que estas denominações serviam para identificar os portos de embarque dos
escravos. No entanto, como encontramos esta classificação nos livros das Irmandades adotamo-la por
comodidade, tanto mais que novos grupos se constituíram formando novas identidades a partir desta
classificação.
11
«Requerimento da Irmandade do Rosário de 1767, enviado ao vice-rei, o conde da
Cunha››. Documento transcrito por Francisco Noronha Santos. Igrejas e Irmandades [mimeo]
12
BORGES, Célia, op. cit.
13
Idem, ibidem.
14
Crioulo no Brasil é a denominação atribuída ao escravo nascido na colônia.
10
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marcados por origens e etnias diversas, por isso não é correto dizer que se tratava de
representações decalcadas de cultos praticados no Reino do Congo. Eram, sim,
representações de grupos que haviam sofrido um processo histórico de
transculturação e que em novo ambiente colonial, o do Brasil, se reconstruíram
adquirindo uma nova plasticidade na sua relação com o mundo envolvente. Em
Minas, os irmãos vindos do Congo nem sempre foram maioria nas irmandades.
A festa do Rosário: o acontecimento
A festa da Rosário conciliava tradições nem sempre homogêneas dentro de um
mesmo acontecimento. Elementos específicos das festas barrocas eram adaptados a
um novo cenário onde ocorriam simulações de cenas de combates. Vários quadros
dramáticos se desenvolviam em simultâneo, embora em espaços diferentes, numa
mesma vila ou cidade. Assim, por via desses grupos do Rosário, situados na base da
pirâmide social, se criaram novas festas, novas linguagens simbólicas que os
identificavam como protegidos de Nossa Senhora. Eram festas repletas de
coreografias, de indumentárias coloridas que personificavam os grupos em situação
de combate: negros, índios e marinheiros (brancos). Os negros nos autos dramáticos
figuravam sempre como vencedores, amparados pela poder miraculoso da santa
homenageada.
As festas do Rosário constituíam o ponto alto da mobilização dos confrades.
Estes afluíam de toda a parte da Capitania, até de pontos distantes, para participar
do grande acontecimento. Uma semana antes compareciam na igreja se tivessem
templo próprio; de contrário compareciam no templo onde a Irmandade estivesse
filiada e aí mesmo elegiam os reis e a Mesa diretora. Após uma semana de votação, os
reis assumiam o posto e eram coroados no dia da festa do Rosário.
É com base nas crónicas dos viajantes Spix e Von Martius, do início do século
XIX, cujos relatos se reportam à festa na região do Tejuco, que apoiaremos a nossa
descrição etnográfica e procuraremos elucidar o que foi (ou foram) o(s) significado(s)
desse acontecimento para a comunidade fraternal 15.
Abria o préstito um homem transportando um estandarte com o emblema da
irmandade, cuja pintura ostentava a figura de N.ª S.ª do Rosário. Completava o
cortejo uma banda de músicos negros vestindo uma indumentária de gala: capa
vermelha e roxa. Um homem mascarado de preto antecedia a família. Esta aparecia
ornada com suas insígnias. Primeiro o príncipe e a princesa, acompanhados por
pajens que carregavam suas capas. O rei e a rainha com o cetro e a coroa. Os novos
monarcas seguiam atrás enfeitados com jóias. A família real impunha-se para a
“comunidade” – intra e extra-irmandade. O cortejo seguia em direção à Igreja onde
tinha lugar a cerimonia de posse.
O ritual de sagração decorria em lugar especialmente preparado para o efeito e
cercado de uma grande pompa, recebendo o rei e a rainha os seus distintivos: a coroa,
o manto e o cetro. É interessante notar como em algumas irmandades as coroas
tinham valor monetário por serem de ouro ou prata 16, ao contrário de Pernambuco
15
SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil, 1817-1820, vol. 2, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, São
Paulo, 1981, p. 47.
16
No inventário de bens da Irmandade do Rosário de Itabira do Campo consta o seguinte:
«uma coroa de prata que serve ao Rei desta Irmandade, cujo peso é de trezentos e dezoito oitavas»; «uma
coroa pequena de prata que serve à rainha da irmandade, pesando trinta e oito oitavas». Igualmente
consta um cetro de prata que serve ao rei, de peso vinte e oito oitavas». A Irmandade do Rosário de
1229
onde Koster observou que a coroa do rei era feita de papelão17. Este evento descrito
por aqueles viajantes, no que toca aos rituais em Minas, pode ser confrontado com as
aquarelas de Carlos Julião. Em diversos quadros, o artista evidencia a pompa dos reis
e o seu séquito, do qual faziam parte músicos do sexo masculino, e a rainha com as
suas mucamas e mulheres instrumentistas.
A festa tinha, numa palavra, essa função: espelhar a realeza, os “Reis do
Congo”, enquanto representantes da organização fraternal. Fosse quem fosse,
legitimava-se como representante das irmandades e reconstruía um novo grupo, com
novos códigos e novos arranjos políticos internos. A realeza simbolicamente
harmonizava as diferenças.
Atente-se na aquarela de Carlos Julião cuja imagem é uma corte barroca; não
falta nenhum ingrediente sugestivo. As personagens têm pose e gestos de uma
realeza européia. Apesar disso, não se pode ignorar que, apesar da aparência de uma
corte européia, essa realeza se perfilava como uma instituição criada à escala de
diversos povos africanos.
A produção dos rituais: a integração das diferenças
Por meio da produção cênica os irmãos durante a festa podiam transcender a
realidade cotidiana e integrar-se no drama subjacente à estrutura do rito. Na história
mítica eles eram os vencedores, os eleitos de Nossa Senhora. Vivenciando o
acontecimento festivo, resgatavam o mito do aconchego de uma mãe protetora e parte
dos diversos significados que o cerimonial no seu conjunto veiculava. A coreografia
dos grupos, entoando cânticos e ao som de instrumentos musicais, ajudava os
participantes a alcançar intimidade com os conteúdos que davam suporte às
festividades.
Outra curiosidade na festa do Rosário era a ponte que se estabelecia com os
elementos sagrados da religião dos grupos dominantes. A expressão artística dos
teatros religiosos, tendo como atores os próprios irmãos, produziu essa simbiose que
proporcionava aos irmãos novas emoções e, inclusive, os fazia sentir-se num outro
tempo e lugar. A festa suspendia provisoriamente a experiência concreta dos sujeitos,
no seu dia-a-dia. Era um acontecimento em que o irmão sentia inverter-se
simbolicamente a sua condição de escravo, forro e oprimido e entrar num novo tempo,
o do encontro e do aconchego; momento em que o grupo de irmãos se tornava forte
pela convivência ritual. Beber e comer juntos tinha uma força simbólica
extraordinária, porque recriava a troca do afeto, da amizade e reforçava pactos de
solidariedade. Ao darem forma orgânica a essas liturgias, os irmãos aos poucos
passaram a reconhecer como sagrados os diversos símbolos dos cultos católicos: as
imagens, a cruz, o cálice e a hóstia.
Fruto desta vivência ritual, os irmãos experimentavam sensorialmente a
entrada na esfera do sagrado, a utopia de uma vida nova, sendo a promessa o recurso
infalível. Ao santo agradava-se com oferendas ou candidatando-se a juiz ou juíza de
devoção, ou dançando na festa. Ao apropriarem-se de uma prática radicada na crença
Tiradentes registrou em seu inventário (...) «uma coroa de ouro que serve a rainha, e (...) uma vara de
prata que serve no juizado» (AEAM. Livro 32, «Inventário de alfaias da Irmandade de N.ª Sra. do Rosário
de Itabira do Campo, 1809››; AESAT. «Livro de Inventários dos Bens da Irmandade N.ª Sra. do Rosário dos
Homens Pretos da Vila de S. José, 1808»).
17
RUGENDAS, Maurício. Viagem Pitoresca Através do Brasil, São Paulo, Ed. Martins, USP,
1972, pp. 280-281.
1230
“popular”, os irmãos interiorizaram ser necessário estar em boas relações com o santo
para obter benefícios. Faziam-se promessas que às vezes, segundo as crenças, eram
atendidas. Lévis Strauss mostrou bem a eficácia simbólica do rito para fazer reverter
um quadro de doenças. A crença nisso era fundamental18.
Entrar para a irmandade terá sido o sonho de muitos negros. Agruparem-se
para cantar e dançar era uma forma de reconstruir sociabilidades e resgatar a
soberania do seu corpo, gestos e voz, expressão limitada de uma precária liberdade.
Através da linguagem corporal estabelecia-se a comunicação entre os grupos. Nos
dias de festividade, as roupas eram outras, a comida abundante. Era a grande festa
da comunidade negra, legalmente constituída, onde era possível ao homem negro
participar de um teatro, poder desfrutar de uma experiência religiosa e dar um novo
sentido à sua vida.
O desejo, consciente ou inconsciente, de recriar laços afetivos, assim como a
busca de proteção, atraiu os negros para os recintos religiosos. Motivos de ordem
existencial, política e econômica, impulsionaram os confrades do Rosário a cimentar a
solidariedade do grupo fraternal; solidariedade consagrada na festa e que adquiria
força por ser intensamente vivida pelos irmãos que ali celebravam a sua fraternidade.
É isso que explica sua permanência até hoje em muitas cidades mineiras
Concluindo, a festa do Rosário significou, antes de tudo, a personificação de
uma identidade de grupo, cuja dinâmica funcionou como uma espécie de catalisador
pelo qual foi possível limar ou atenuar divergências internas. Se as diferenças étnicas
dos vários grupos foram muitas vezes fatores de conflito, a vivência ritual permitiu a
superação dessas querelas e a sua dramatização nos dias de jubileu.
Sem dúvida que a integração dos negros na nova sociedade colonial lhes
permitiu adquirir elementos e valores da tradição cultural dos grupos dominantes
europeus, mas também – e sobretudo – a reformular as suas representações coletivas
de origem. Nisso a arte barroca teve o mérito de desempenhar um papel-chave, na
medida em que ajudou a difundir um imaginário religioso, conferindo um estatuto de
verdade a uma vivência do sagrado.
18
LEVI-STRAUSS, C. «O Feiticeiro e Sua Magia» In: Antropologia Estrutural , Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1991.
1231
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