TAOÍSTAS: CORPOS E TRAJETÓRIAS* José Bizerril Neto1 “To change a body of habits, physical or cultural, can never be a matter of wishful thinking and trying; it depends on learning and practicing new techniques (Jackson, 1989:19)”. Na tradição taoísta, as transformações inscritas no corpo são parte integrante da trajetória do praticante. Não são meramente a expressão da reelaboração da pessoa, da visão de mundo e da sua experiência de vida, mas sim um elemento central do processo de inserção no “mundo da vida”(Lebenswelt) taoísta. A corporificação (embodiment) do taoísmo pelo praticante se dá fundamentalmente pelo treinamento2 , isto é, pelo engajamento regular em uma atividade que transforma a teoria em experiência e percepção, por meio da observação e da prática continuada de posturas e padrões de movimento, orientados pelo uso da intenção (Yi) ou imaginação criadora (Ver Bizerril, 2000 e 2001). Em uma comunicação anterior (Bizerril, 2002), sintetizei minhas conclusões sobre o lugar do corpo no taoísmo, e discuti alguns aspectos desta questão em termos de uma descrição mais geral desta tradição a partir de minha etnografia do Taiji3 Pai Lin. Retorno a uma história de vida discutida no capítulo etnográfico de minha pesquisa de doutorado (Bizerril, 2001) como forma de ilustrar de modo mais concreto estas considerações. Para tanto necessito retomar algumas considerações sobre os praticantes. * Agradeço a Sônica Maluf e Marina Cardoso pela oportunidade de participar do GT: “Pessoa, Sa úde, Corporalidade: Cruzamentos”, VRAM, 30/11-04/12/2003, Florianópolis. E a todos os participantes do grupo de trabalho pelos comentários e sugestões. 1 doutor em antropologia social, pelo PPGAS-UnB. Professor do departamento de psicologia da Faculdade de Ciências da Saúde - FACS do Centro Universitário de Bras ília - UniCEUB. E-mail: jbizerril@yahoo.com.br. 2 “Treinar” (Shiou Lien) é uma categoria nativa que caracteriza a postura dos taoístas, segundo o mestre Liu Chih Ming, filho do falecido mestre Pai Lin (1907-2000). Material didático do “Seminário de Práticas e Vivências de Treinamentos Secretos Taoístas dos Seres Iluminados”, p17, Brasília, 3-5/10/2003. 3 Optei por grafar o termos chineses, sempre que possível, seguindo a norma Pinyin da República Popular da China. 1 Em termos de setting, minha pesquisa não possuía as fronteiras claras que situavam as comunidades estudadas em uma localidade de pequenas proporções, como as aldeias das etnografias clássicas. O campo estava disperso por uma rede que ligava várias localidades em uma mesma cidade, no caso São Paulo, e várias cidades no Brasil e no exterior. Por esta razão, enfatizei os momentos de treinamento das técnicas corporais na minha prática etnográfica, por ser um momento performático de construção da comunidade de praticantes. O universo das práticas taoístas combina três aspectos principais: elementos de medicina tradicional, artes marciais da escola interna (nei jia) - como o Taiji Quan e o Bagua Zhang - e meditação (jing zuo). No contexto do Taiji Pai Lin, o aspecto marcial é o menos enfatizado por ser considerado por seus representantes mais oficiais “um lado inferior da prática” (Jerusha Chang, 06/10/1998). Esta afirmação fica mais clara no seguinte fragmento de uma fala do mestre Liu Pai Lin4 : “... por que os Mestres das Linhagens Retas e Verdadeiras (maiúsculas no original) chamam o Tai Chi Chuan (Taiji Quan) de Tao Kong Chuan (Dao Gong Quan)? (...) O que ressalta é que o Tao Kong visa mais ao cultivo do corpo e à realização do Espírito no Grande Tao (maiúsculas no original). Por isso, não se objetiva um inimigo imaginário, diferentemente de outras formas de Tai Chi (Taiji), que visam à arte marcial, ao Tui Shou (Tuisou), às apresentações, disputas e competições. No Tao Kong Chuan (Dao Gong Quan) utilizam-se as cinco energias das mãos para se interagir com as da Natureza, com a finalidade de tonificar a si próprio”. Apenas uma minoria, dentre os praticantes mais antigos, tem conhecimento do treinamento marcial. O aspecto mais vis ível é o terapêutico. Tanto Liu Pai Lin quanto seu filho Liu Chih Ming destacam-se em São Paulo como expoentes da medicina tradicional chinesa. Mas a dimensão implícita na prática é a da experiência espiritual, considerada pelo praticantes como constituindo um nível mais profundo. 2 Os graus de vinculação à tradição variam. Nem todos reconhecem o mestre como um líder espiritual nem aderem ao taoísmo como tradição espiritual. Defino, abaixo, os praticantes por seu nível de engajamento no modo de vida taoísta. Em termos de um contato mais superficial, há os meros pacientes de medicina tradicional chinesa (massagem Tuina, fitoterapia e acupuntura 5) e praticantes eventuais de Taiji Quan e técnicas corporais correlatas, como atividade terapêutica, freqüentemente recomendada como tratamento complementar e medicina preventiva. Dentre estes, em um estágio inicial é comum a prática apenas no espaço formal das aulas, de duas a três vezes por semana, durante cerca de uma hora e meia. Uma parcela deste público parte para um mergulho mais profundo no taoísmo. Em um nível intermediário, há os praticantes com atividade regular e diária. Um sub-grupo desta categoria compreende os freqüentadores dos eventos de instrução na filosofia e na medicina tradicional taoísta, como as palestras e seminários do mestre Liu Pai Lin. A partir do ano 2000, alguns praticantes prosseguiram o seu estudo acompanhando a transmissão por Jerusha Chang, assistente pessoal do mestre durante 20 anos6 , e/ou por Liu Chih Ming 7 , filho do mestre e herdeiro da linhagem. Um grupo ainda mais restrito compreende aqueles que foram reconhecidos por Liu Pai Lin ou Liu Chih Ming como “discípulos da linhagem”. E um número ainda menor dentre estes passou por um ritual formal de iniciação. 4 “O Segredo da Longevidade Taoísta”, apostila 3, Instituto Pai Lin de Vila Mariana (atual Shiao Lin), publicação de circulação interna. 5 Esta última enfatizada por Liu Chih Ming. 6 Atual presidente da Associação Tai Chi Pai Lin, sediada no Espaço Luz, rua Fradique Coutinho, 1434, Vila Madalena, São Paulo. 7 Coordenador do CEMETRAC, Centro de Estudos de Medicina Tradicional Chinesa, que contém tanto uma clínica quanto uma escola de acupuntura e de práticas taoístas, Rua Pirapitingüi, 156, Liberdade, são Paulo. 3 Já que, para a maioria dos praticantes, o primeiro contato com o modo de vida taoísta decorre de problemas de saúde8 , considero plausível estabelecer um paralelo entre esta situação e o tema da “doença iniciática” presente em outras tradições, como no xamanismo eurasiático (Eliade, 1968), nos modernos cultos devocionais hindus (Kakar in Clément & Kakar, 1994) nos cultos de possessão africanos (por exemplo, Ndembu, Turner, 1967; ou Songhay, Stoller, 1989b) ou afro-brasileiros (vastamente documentados na literatura etnográfica brasileira). É interessante que o personagem mais paradigmático da escola taoísta estudada, o próprio mestre Liu Pai Lin, general aposentado e experiente praticante de artes marciais, voltou-se mais profundamente para o aspecto terapêutico e espiritual das práticas após sofrer uma séria lesão de guerrra, que quase levou à amputação de suas pernas. A referência acima exemplifica a imbricação da biografia do mestre ao perfil mutável do ensinamento, com as conseqüentes transformações sofridas pela escola ao longo de sua história no Brasil (Bizerril, 2001). Considerando as características fundamentais do taoísmo: a inseparabilidade de teoria e prática, a compreensão simultânea da natureza e de si mesmo, a centralidade das técnicas corporais e da medicina tradicional, posso afirmar que tornar-se taoísta é “corporificar” (embody) os seus princípios não apenas nos momentos específicos de treinamento, mas também ao longo do cotidiano. Neste sentido, trata-se de uma forma de construção de si (Bildung) 9 eminentemente corporificada. Mais do que em termos de crença, definiria o taoísmo pela sua atitude existencial, seu ritmo próprio, seu modo de lidar com as circunstâncias da vida. 8 Em minha tese de doutorado (Bizerril, 2001), outros tipos de primeiro contato. Há praticantes de artes marciais, psicólogos, artistas e descendentes de imigrantes chineses e japoneses, por exemplo, que possuem outras expectativas e interesses com rela ção ao taoísmo. 9 Agradeço a Sônia Maluf por esta sugestão. 4 *** Este breve mapeamento do grupo foi necessário para melhor situar o caso que discutirei a seguir. Decidi enfatizar o aspecto biográfico/etnográfico sob forma narrativa, partindo da proposta metodológica de Jackson (1996). A narrativa é tanto o meio para articular significados partilhados quanto para estabalecer laços. Contar histórias é constitutivo da vida social, mas também é fundamental para o etnógrafo, como parte central da atividade do mundo da vida, como reve ladora da ligação de discurso e prática. Em poucas palavras, é o gênero de discurso ideal para a descrição da experiência, no contexto de uma antropologia da experiência, por ser o tipo de escrita que faz justiça à experiência vivida. No caso, a entrevista aberta foi o ve ículo para a elaboração a duas vozes da narrativa a seguir. Ao fim do relato, demarcarei, de forma mais sistemática, seus elementos relevantes para questão da relação entre corpo e trajetória no taoísmo. Ressalto que, em certo sentido, o relato a seguir derivou do meu próprio engajamento nas atividades de treinamento como estratégia de pesquisa, em função dos meus primeiros contatos com o entrevistado. Durante a pesquisa de campo em São Paulo para a tese de doutorado, conheci Ant ônio em uma aula de Tuisou10 , em um sábado pela manhã no Parque Ibirapuera. Posteriormente tornei a encontrá- lo nas práticas de meditação “Sentar na Calma”, no Espaço Luz que ocorriam nas segundas- feiras à noite. Ele era também freqüentador assíduo das palestras e seminários do mestre. Atua lmente com cerca de 50 anos, discípulo do 10 Treinamento feito a dois, necessário à aplicação marcial do Taiji Quan. O principal especialista neste assunto é o professor Augusto, que coordenava as aulas de sábado no Ibirapuera, para um público de praticantes experientes. 5 mestre Liu Pai Lin, especialista no Livro das Mutações (Yijing), professor de Taiji Quan, tornou-se um dos meus principais colaboradores de pesquisa e um amigo. Sua trajetória evoca até certo ponto a descrição pioneira de uma “nova consciência religiosa” (Soares, 1994:213-15), mas sem se reduzir a ela. Em sua entrevista, Antônio preferiu come çar a narrar como conheceu o mestre, para depois articular outros elementos de seu passado, estrat égia que também utilizarei. Destaco a ausência proposital de referências à infância e à juventude na entrevista, como efeito de uma construção narrativa que tinha por tema a elaboração da experiência de Antônio em sua relação com o taoísmo. O primeiro contato de Antônio com a linhagem surgiu por uma combinação de dois fatores, problemas de saúde e sua paixão pelo Yijing. Antônio estudara o seu uso oracular desde 1973. “Antônio: Eu conheci o mestre no inicio de 86. Eu fui fazer uma consulta médica com ele, (...) com a orientação de várias pessoas que me falaram dele, (...) três pessoas amigas [que haviam feito tratamento]. Eu fui ficando com aquilo na cabeça, que era uma pessoa interessante. E uma outra pessoa, que era a responsável por um grupo de Yoga 11 que eu participava aqui em São Paulo (...) me falou do mestre, dizendo assim: ‘Se você está interessado no Yijing, você tem que conhecer o mestre Liu’” (08/10/1998). Na entrevista que me deu no ano seguinte, Antônio recontou com mais detalhes o mesmo episódio. A coordenadora do grupo de Siddha Yoga em São Paulo fizera um curso de Yijing de três anos de duração, com o mestre Liu. Havia também praticado Taiji por cinco anos: “Antônio: Aquilo ficou assim meio que ressoando na minha cabeça. Falei: ‘bom, tem profissionais aqui, que eu deveria conhecer’. Mas não fui, de imediato. Uma amiga, que era uma pessoa de anos antes, com quem eu tinha militado no partido de esquerda, me contou (...) do outro lado, da medicina, que ela tinha feito tratamento com ele, que era uma coisa complicad íssima e que ele (...) foi a única pessoa que conseguiu ajudá- la, era um problema de ossos, pescoço. Ela tinha dores horríveis, ninguém sabia nada, ninguém entendia de nada. E depois um amigo meu, que era de um outro círculo completamente diferente, contou também uma história assim, que ele começou a perder muito cabelo e não tinha nenhuma resposta, nenhuma medicina, menos na medicina chinesa, que ele ouviu falar que tinha uma perspectiva, então foi fazer um tratamento com o mestre Liu e então deteve a queda 11 Mais precisamente Siddha Yoga, descrito por Antônio como mais dedicado à meditação, ao canto de mantras e ao estudo das escrituras do que ao corpo (08/10/1998). 6 de cabelo. Eu já vi que ele era um personagem realmente interessante por essas razões todas. Aí houve um momento que eu me senti complicado, de saúde, foi quando eu fui consultá- lo. Eu tinha decidido mudar para o litoral, (...) na encosta da Serra do Mar, pertinho da praia, aluguei uma casinha lá e pretendia ficar por lá. Era um tipo dum retiro, um mato. Mas, eu fiquei fazendo as práticas, de Siddha Yoga, intensivamente. E me deu uma descompensação. Eu estava meditando muito, eu estava cantando bastante, e eu nadava, eu andava, eu fazia Hatha Yoga na época, mas me deu uma descompensação. Então, eu tinha sempre uma tendência pra prisão de ventre, entrei num quadro de prisão de ventre terrível e uma dor de cabeça que eu nunca tinha tido na vida, radical. Para a medicina chinesa é uma síndrome muito clara. Então, a parte aqui dos intestinos, toda a parte de baixo do corpo, ficou sem a vitalidade necessária pra funcionar e a energia veio pra cabeça e fez a cabeça explodir. “Por coincidência” (entre aspas), ainda tinha um acupunturista na praia vizinha, que eu fiquei sabendo, fui vê- lo e ele deu este quadro, o diagnóstico dele. E que depois eu vi que era isso, o mestre falou a mesma coisa. Ele me aliviou muito com a acupuntura, mas a coisa não saía, voltava e voltava. Aí eu vi que era profundo, me toquei e falei: ‘não, eu acho que eu vou procurar esse senhor’. (...) quando eu cheguei lá, pra ser consultado, conversando com as pessoas, preenchi a ficha dizendo que eu era “Ichinólogo”. (...) me falaram, que tinha uma aula com Daoyin12 , na qual ele falava sempre sobre o Yijing. Eu fui nessa aula de Daoyin e (...) o gancho dele foi muito interessante. Ele deu um treinamento que era pra conduzir a energia da cabeça 13 , pela coluna, até o cóccix e voltar. Quando chegou a energia no pescoço, na nuca pra descer, me deu uma dor terrível, muito muito forte, mas muito muito mesmo.. Muito impressionante, eu fiquei impressionad íssimo. E aí eu insisti, insisti, insisti e consegui fazer a energia passar, mas era pouquinho, como se fosse um resto, um bloqueio bárbaro aqui. Aí depois que acabou esse treino, que ele mandou todo mundo fazer junto, eu falei isso: “— ah, aconteceu assim, assim e assim”. E ele fez um sermão sobre a morte. Falando que eu estava com o pescoço enrijecido e que aquilo era o início da morte, aquele era o ponto da menopausa e que o pescoço endurece, (...) a morte começa pelo pescoço...Toda aquela história do pescoço, e fez um terrorismo tal, que ele terminou falando que você tem que fazer Taiji, urgente (risos)” (29/04/1999). Nos três anos anteriores, Antônio havia morado no México, onde conhecera o Siddha Yoga, sua “primeira iniciação espiritual mais clara”, desde o rompimento com o catolicismo na adolescência (Ant ônio, 08/10/1998). No início dos anos 70, Antônio organizara uma república/comunidade com amigos de faculdade, no espírito de experimentação da contracultura. Mas não suportando a falta 12 Segundo o mestre Liu Chih Ming (idem, p25) “...é um conjunto de métodos milenares chineses para promover a saúde (...) baseia-se em técncias de respiração e concentração combinados a movimentos corporais...” Mestre Liu Pai Lin ensinava treinamentos interiores e práticas de meditação sob esta denominação. 7 de individualidade ali reinante, abandonou a comunidade após poucos meses. Em busca de uma reestruturação pessoal, Antônio passou dois anos viajando pelo mundo. Após visitar o Peru e a Bolívia, foi visitar uma tia por três meses na Califórnia, onde teve seu primeiro contato com o Yijing, em uma comunidade yogi rural, no ano de 1973. Descobriu o uso oracular do clássico, através de um colega de quarto, com quem fez sua primeira consulta. “Na verdade foi o Yijing que me trouxe de volta pra o chão, de volta a uma vida coerente, de trabalho... em todos os sentidos” (Antônio, 08/10/1998). Duas semanas depois, de volta à cidade, adquiriu a tradução inglesa de Richard Wilhelm 14 (Antônio, 08/10/1998). “Antônio: eu vi que era muito profundo, que era super sério e (...) eu intuía a profundidade dele, me deu orientação concreta, mas eu percebia que era muito mais do que o que eu estava conseguindo entender. Nos dois anos seguintes, depois disso, eu fiquei consultando o Yijing direto, todo o dia ou quase todo os dias, às vezes até várias vezes por dia, sobre, por exemplo, (fazia uma lista de temas que eu queria esclarecer) assuntos que eu queria entender, assuntos pessoais, assuntos de outras pessoas ligadas a mim, que tinham ficado aqui [em São Paulo], por exemplo, nessa comunidade, ou questões de conhecimento da realidade, por exemplo, perguntava sobre personagens históricos que eu queria conhecer (...) Eu perguntava essas coisas pro Yijing” (08/10/1998). Inicialmente restrito ao conhecimento oracular, o estudo intensivo de Antônio levou-o inclusive a memorizar passagens inteiras do livro. Com o Yijing como companheiro de viagem: “Antônio: Da Califórnia fui para o México, depois fui para Inglaterra, depois fui para África. Viajei vários países da África, no penúltimo país da África em que eu estava viajando, eu fui preso, porque eu entrei nesse país sem visto. Claro, Moçambique tinha acabado de se tornar independente. Eu cheguei em Moçambique, e fui pra o país vizinho que era a Tanzânia, e que era um dos Países que tinha ajudado Moçambique na guerra de guerrilhas contra Portugal. Eu cheguei lá como se... ‘aqui todos são amigos, todo mundo apoiou Moçambique’... Mas a burocracia governamental não queria saber muito disso e achou que eu era agente da CIA, qualquer bobagem assim. Fiquei um mês como preso político numa colônia penal agrícola, que ficava perto da fronteira, aonde eu entrei. E em isolamento, quer dizer, totalmente isolado, de cela só pra mim, e eu só saía no pátio dessa ala separada, segregada da prisão, que era dos presos políticos, (...) nos horários que os outros não 13 Um aspecto relevante da meditação taoísta é o exercício da percepção de determinadas localizações (pontos e centros) e trajetórias energ éticas (relativas aos 12 meridianos, e aos 8 “vasos extraordinários” ) na superfície e no interior do corpo. 14 Referida pelo mestre Liu Pai Lin como a melhor tradução ocidental do “Livro das Mutações”, apesar do viés eminentemente confucionista de algumas interpretações de Wilhelm. 8 estavam. Então nesse isolamento todo, a única coisa que eu tinha pra me entreter era o que eu me lembrava do Yijing. Então eu fiquei um mês decorando o que eu já tinha visto. Eu ficava lembrando dos nomes, das figuras, do texto das figuras e quando que tinha saído pra mim, resposta pra que, e aí foi quando eu construi uma visão geral de todos os hexagramas, que eu não tinha, até então. Quer dizer, eu estava consultando, consultando, consultando, mas eu desenhava na terra, do chão da prisão, umas figuras e eu me envolvi tremendamente nesse mês, foi assim, intensivíssimo, dormia e acordava com Yijing, era o tempo inteiro. (...) depois de um mês, eu vi que não iam me tirar tão cedo dali, eu até fiz uma consulta, pra saber se eu ia fazer greve de fome ou não. (...)Eu não tinha o livro, mas eu consegui uns feijões, porque como era uma colônia penal agrícola(...). Então com três feijões vermelhos e três feijões pretos, eu fiz como se fossem três moedas com dois lados. Eu fiz uma consulta pra saber se eu ia fazer greve de fome, ou não. E foi muito difícil interpretar porque eu estava sem o livro, tinha que usar só a memória, pra conseguir interpretar aquilo e era uma coisa muito grave, que eu podia morrer de fome, ninguém nem ia ficar sabendo. (...) Nesse meio tempo chegou lá uma oportunidade de conseguir indulto presidencial, em uma data do ano que eles davam indulto ou você escrevia para o Presidente e pedia. Eu escrevi e pedi, argumentei lá a meu favor, mas o que me deram foi o direito de ser julgado. Aí eu fui julgado e fui absolvido” (08/10/1998). Antônio seguiu viagem para o Quênia, onde teve notícias sobre a reestruturação do movimento estudantil na Universidade de São Paulo e decidiu voltar ao Brasil. Fez um novo vestibular para Ciências Sociais e voltou à militância em um partido de esquerda (Antônio, 08/10/1998). Em um ambiente desfavorável, ficou por algum tempo afastado do Yijing, “porque todo mundo era contra, todo mundo achava que que aquilo era misticismo, etc.” (Antônio, 08/10/1998). A fase de militância entrou em declínio. Em crise com sua atividade política e vida pessoal, Antônio retornou ao uso do Yijing. Em 1982, de volta ao México, ainda militando, suas inquietações existenciais o conduziram a uma terapia reichiana: “Antônio: Era um terapeuta reichiano ál na cidade do México. Eu fui fazer um trabalho que eles chamavam de comunidade terapêutica, um workshop de uma semana em uma montanha lá do México, que era muito interessante, muito forte. E aí o terapeuta, toda noite, lia umas histórias, umas coisas e eu me irritava vendo as histórias porque eu não entendia (risos), então em vez de pedir para alguém me explicar, eu ficava bravo (...) Não gostava. Aí ele um dia falou: ‘Bom, já que você não gosta das histórias, então hoje a noite vamos fazer outra coisa diferente, você vai fazer uma consulta de Yijing pra cada um. É porque ele sabia que eu consultava pra mim, há muito tempo e que tinha uma relação séria com o livro. E vendo a minha interpretação para os clientes dele (...) que estavam ali naquele grupo, ele gostou tanto que falou: ‘você devia trabalhar com isso’. Depois de um tempo, 9 comecei a contemplar aquilo que ele tinha falado e realmente acabei botando lá um cartazinho. Aliás, o primeiro cartaz foi até no instituto dele que eu coloquei, porque queria fazer uma propaganda dessas consultas e aulas do Yijing. E aí começou, depois quando eu voltei pro Brasil, aconteceu isso que já tinha falado, que tinha a pessoa do grupo de Yoga que coordenava esse grupo, me falou que, e se eu tava interessando no Yijing, eu tinha que conhecer o mestre” (Ant ônio, 08/10/1998). Assim, o círculo se fecha. Mas há mais. Oscilando entre a Índia e a China, com um pé em que cada tradição, Antônio voltou a viajar à cidade do México em busca da mestra indiana, em 1987, no mesmo momento em que o mestre Liu visitou a cidade a convite de um praticante com o objetivo de dar um seminário curto15 . Seguiu também para a Índia, onde permaneceu em um ashram, pela primeira vez por cerca de um mês e meio, no final de 1986, retornando em 1993 por um ano e meio, após novo encontro com a mestra indiana nos Estados Unidos, 1992. Em 1991, envolveu-se com o processo de formação da Associação Taiji Pai Lin e começou a dar aulas de Taiji Quan. Na primeira permanência no Ashram, continou a praticar o Treinamento Interior do Taiji, considerado pelo mestre Liu como simultaneamente fundamental e de alto nível. “Antônio: E quando eu voltei pra cá, depois desse mês e meio, eu achei muito interessante porque eu fiquei achando: ‘bom, eu vou chegar lá, eu vou estar duro, eu não vou lembrar nada, eu vou estar errando todos os movimentos’. Mas as pessoas vinham me dizer que eu estava com o movimento muito solto, que eu estava muito bem, o que aconteceu comigo e tal. E eu não entendia porque eu não tinha feito Taiji, mas eu tinha feito muita meditação, e treinamento interior 16. Quer dizer, o trabalho interno, seja meditando, seja fazendo a pulsação do baixo ventre, soltou muitas coisas, e aí o Taiji cresceu (08/10/1998). Na segunda permanência na Índia, mais longa, Antônio prosseguiu o aprofundamento no Taoísmo, praticando e inclusive ensinando os treinamentos para os residentes do Ashram. Durante este período, ele organizou sua rotina nas tarefas diárias de modo a conciliar trabalho para a comunidade e treinamentos. Em certa ocasião, ele feriu o pé em um arame e tratou o ferimento apenas com treinamentos de Qigong. 15 Discuto o tema das “coincidências significativas”, freqüentes na biografia de vários praticantes, em um outro capítulo da tese (Bizerril, 2001). 16 Em um descrição sumária, o treinamento interior do Taiji, tamb ém chamado “Pulsação dos Cinco Corações” ou “Respiração de Raiz”, consiste da prática da pulsação simultânea do baixo -ventre, das solas dos pés e das palmas das mãos, quando realizado na postura de pé. É uma técnica clássica do Taiji e de outras artes internas taoístas. Segundo a tradição, fortalece a saúde, pela tonificação da energia Yin do praticante, mediante a absorção da energia da terra. 10 “Antônio: eu fui para a vila de Ganeshpur, que é a vilazinha onde o Ashram fica próximo. Mais ou menos um quilômtro. Eu fui andando a pé, com uma sandália, daquelas sandálias abertas indianas de couro, que eu adorava usar, era fresca, macia. E a estrada, meio de terra, meio asfaltada, meio suja. E depois você vai andando pela vila que é mais suja ainda. O fato é que a gente suja os pés. E com o pé sujo desse jeito, eu tirei as sandálias pra entrar em uma lojinha, que era a oficininha de um joalheiro, um joalheiro pobre, fazia umas pulseirinhas de prata com continhas, essas coisas. Eu fui ál olhar um Ganesha pequeninho, que eu achei bonito, uma coisa dessa. Mas esse cara, a lojinha dele tinha assim, o piso elevado em relação a rua de, sei lá, 30 ou 40 cm acima da rua, e era tipo um assoalho de tábuas. E entre uma tábua e outra, tinha uma bela de uma frestona aberta. E numa dessas frestas tinha um araminho de prata que caiu daquele trabalho dele e ficou com a ponta prá cima (...) E aquele arame entrou no meu calcanhar até o osso mesmo. (...) Senti uma dor absolutamente lancinante. E eu estava no meio daquela vila, paupérrima e imunda. Com o meu pé absolutamente imundo usando uma sandália aberta, mais imunda ainda. A 1km de distância do Ashram. Falei: ‘Bom, vou morrer!’ Até eu poder fazer alguma coisa com o curativo, eu já entrou todos os bichos imagináveis na minha corrente sangüínea. Eu fiquei realmente muito preocupado. Aí eu falei: ‘Já que eu não posso fazer nada, então eu rezo, vou embora, tranq üilo, até o Ashram’. E fui. O fato e que eu fui voltando umas 2 horas depois: Já estava completamente seco (...) Antes eu fui até o templo, para visitar o mestre do mestre da minha ex - mestra, que está enterrado lá neste templo. Eu não podia dar meia- volta como um covarde sendo que bastava andar mais 20 m para ir até o templo. O fato é que eu lavei o pé duas horas depois. Já estava tudo seco, fechado. (...) O osso estava ferido, eu tinha certeza que o osso estava ferido, eu senti lá dentro. Eu sabia que a capacidade do meu corpo regenerar os membros, principalmente os pés, não estava muito boa” (29/04/99). Antônio tinha seus motivos para seu preocupar. O incidente da perfura ção com arame ocorreu no começo de1994. Mas desde 1992, constatara uma dificuldade cr ônica de cicatrização de um ferimento nos pés que o mestre diagnosticou, no vocabulário da medicina tradicional, como “insuficiência da energia do fígado para nutrir os tendões”. “Antônio: Se aquela ferida que estava em São Paulo, super bem cuidada, bem tratada, não cicatrizava, imagina agora que entrou um arame no meu calcanhar, até o osso e nestas circunstâncias de assepsia absolutamente inexistente. (...) A única coisa que eu posso fazer pra mim mesmo é fazer muito treinamento” (29/04/99). 11 Decidiu praticar as 12 formas de Qigong 17 todas as manhãs, ao ar livre, especialmente um exercício especial para as pernas, durante dois meses. Felizmente seus temores não se confirmaram. “Antônio: Quando acabou esse período, (...) eu já tinha até esquecido da ferida na sola do pé, porque ela não se manifestou. Não chegou nem a inflamar nada. Mas eu parei com essa disciplina que eu me coloquei, porque de repente eu percebi o seguinte: chegou à superfície do calcanhar uma mancha preta e era exatamente no lugar aonde tinha sido o furo. De repente apareceu uma mancha preta. E apareceu e sumiu. Não tinha dor, não tinha nada. E aí fui entender o seguinte: aquela mancha preta era o sangue pisado, lá de dentro da ferida, que foi expulso pela energia, por essa prática” (29/04/1999). Durante este longo período, de 1987 a 1993, paralelamente à prática de Siddha Yoga, freqüentou intensivamente as atividades da escola do mestre Pai Lin enquanto estava em São Paulo. Atualmente, Antônio exerce profissionalmente atividades relacionadas ao Yijing, consultas oraculares e cursos sobre seu aspecto tanto divinatório quanto filosófico. No primeiro semestre de 2003, a convite de discípulos de Brasília, ministrou um curso nesta localidade em três encontros mensais, de fim-de-semana. Antônio levou anos para resolver seu duplo vínculo, decidindo-se finalmente pelo último, após muitos dilemas, muitos conflitos entre os aspectos mutuamente contraditórios do ethos das duas tradições: “Antônio: na tradição indiana sempre eu percebia uma coisa muito grande de fazer coisas acontecerem, fazer as coisas acontecerem , [repetição enfática] então todo mundo trabalha muito, (…) festivais, comemorações, celebrações. Você vê que tem muito trabalho envolvido, muito esforço. Muita gente dorme tarde fazendo serviço, muita gente dorme muito pouco e aí deixa de meditar e deixa de comer e por aí a fora. Isso é considerado normal, inclusive é considerado saudável espiritualmente. Uma prática, por exemplo, nesse caminho que eu seguia se chamava tapasya, austeridade. Na tradiç ão taoísta, no nosso grupo, não existe isso. Você chama de dispersão. É um crime, você está se lesando. Então, (risos) meu dilema, por exemplo, de vários momentos quando eu estava com um pé em cada tradição. Houve certos momentos em que eu me metia em atividades [do grupo de Siddha 17 Uma das séries de treinamento da transmissão do mestre Liu Pai Lin, exercícios de captação da energia da natureza. 12 yoga], aceitava as responsabilidades e aí depois que as coisas estavam andando, no meio do bonde andando, já, eu falava: ‘Ops! Espera um pouco’. E começava a tirar o corpo fora de certas coisas, inclusive coisas que eu tinha assumido responsabilidade, que eu percebia claramente que estavam me lesando. Era muito, aquilo, que não era pra fazer. E aí dava as maiores confusões, eu ficava queimado, porque eu estava me furtando a fazer coisas que eu tinha me compromentido a fazer. Mas eu percebia, que eu já tinha um olho aberto do outro lado. Já estava ouvindo o mestre, já fazia anos 18” (29/04/1999). O que ficou claro para Antônio (29/04/1999) é que o aprofundamento no caminho proposto por uma tradição era incompatível com o trânsito entre as duas, que surgiam dilemas em função de orientações e atitudes de vida contraditórias, sobretudo na questão do equilíbrio ent re sacrif ício, enfatizado pela tradição indiana, e preservação da energia, enfatizada pelo taoísmo como base da saúde e da longevidade. Não deixa de ser uma constatação interessante, diante da reflexão de Carvalho (1994) sobre uma certa impossibilidade para alguns trânsitos interreligiosos, quando os estilos específicos das tradições apresentam contradições fundamentais. No caso, a comensurabilidade poderia até se produzir por meio das sínteses produzidas pelo indivíduo 19 , que tem um sentido de vivência particular (Erlebnis), mas não pelo aprofundamento numa perspectiva mais convencional de vinculação a uma religião. Por iniciativa do mestre, Antônio teve de se decidir, e tornou-se discípulo taoísta em 1999 20 . Esta decisão conduziu-o a uma mudança de ethos e de postura. Por exemplo, vegetariano por sua vinculação ao Yoga, Antônio passou, por insistentes recomendações médicas do mestre, a consumir, primeiro mariscos, e depois carne de porco. O pé do porco, considerado o animal mais yin na cosmologia tradicional chinesa, cozido sem sal, com nir á, 18 Não só ouvindo, mas também praticando os treinamentos taoístas inclusive nos períodos em que esteve no ashram na Índia. 19 À maneira do estilo de espiritualidade característico do universo New Age, como na concepção de “sínteses cosmológicas particulares”, proposta por Maluf (comunicação pessoal). 20 Data da iniciação formal. 13 é uma receita taoísta clássica para tonificar os rins e renovar a essência (jing). Por essa razão é visto como um excelente fortificante. Antônio prossegue suas atividades como discípulo taoísta, mantendo uma ligação com a Associação Taiji Pai Lin. Esteve em Brasília em 2003, local de resid ência do etnógrafo, ministrando um curso sobre o Yijing Tao ísta, organizado por praticantes locais, ligados ao mestre Pai Lin e a Jerusha. *** Em caráter de considerações finais, focalizarei três aspectos: I) a relação entre biografia e experiência coletiva; II) a questão da rela ção entre trajetória e escolha por uma tradição espiritual; III) o paralelo para mim insuspeito com a religiosidade popular; IV) a relação delicada entre experiência vivida, narrativa e interpretação etnográfica. I Seria incorreto reduzir a história de vida de Antônio a um mero arquétipo da trajetória taoísta. Sua narrativa caracteriza-se por uma experiência que pode ser narrada e que portanto tem valor coletivo (Erfahrung) 21 , elementos comuns às histórias de outros praticantes do mesmo grupo e em certo sentido constitutivas do seu senso de identidade cultural. Mas é necessário também preservar sua singularidade. Por um lado, a questão da superação de um problema crônico e crucial de saúde (exemplificada no motivo da primeira consulta ao mestre), do impacto da presença de um instrutor que literalmente encarna os saberes e o modo de vida taoísta (expresso no diagnóstico e na prescrição para o tratamento, sem falar nos mais de 10 anos de convivência com o mestre), transformações na pessoa observáveis pelos demais, na 21 Utilizo este termo no mesmo sentido de Benjamin, em suas reflexões sobre narrativa (1936) e o fim da tradição caracterizado pelo empobrecimento da experiência (1933), em função do desaparecimento da 14 graciocidade de seus movimentos, na saúde e na longevidade, índices de sabedoria, são compartilhadas com outros praticantes. A dimensão intersubjetiva da construção de pessoa aparece na referência à percepção do eu no olhar do outro, exemplificado por Antônio ao se referir às mudanças em seus padrões de movimento, reconhecidas pelos demais praticantes, após uma de suas permanências na Índia. Ressalto também que, em certo sentido, as transformações no corpo são, no caso, transformações na pessoa, a flexibilidade e graciosidade não são atributos meramente superficiais. O dilema com o Yoga foi mais específico, assim como o interesse pelo Livro das Mutações. Com relação ao primeiro assunto, adotou por postura dedicar-se cada vez mais exclusivamente ao estudo da tradição taoísta, como caminho de vida e opção espiritual. No grupo há outros posicionamentos, exemplos do popular sincretismo brasileiro e também o trânsito de um público, sobretudo entre pacientes de massagem/alunos de Taiji, também dotado de características mais marcantemente New Age 22 . Com relação ao segundo tema, talvez Antônio seja o discípulo que fez o investimento mais sistemático neste aspecto da filosofia tao ísta, pois, além de oráculo, o clássico é um tratado sobre o funcionamento da natureza e cont ém uma série de segredos para os treinamentos 23 . Certamente, também está entre os discípulos mais viajantes do mestre, pelo menos dentre os que entrevistei em campo. experiência coletiva na modernidade. Contudo, espero ter deixado claro que, no caso do taoísmo, a questão da experiência transmissível, dotada portanto de validade coletiva, continua bastante presente. 22 Que descrevi com mais detalhes na tese de doutorado (Bizerril, 2001). As possibilidades são múltiplas. Para alguns praticantes, o Taiji não apresenta uma conotação propriamente religiosa ou espiritual, resume-se a uma “tecnologia do eu”, a uma técnica para manutenção da saúde, de modo que não levanta questionamentos à vinculação religiosa do praticante. Para outros, existe a possibilidade da combina ção com a religiosidade tradicional - por exemplo, com o catolicismo ou com o espiritismo. Para um terceiro grupo, o taoísmo aparece como um dentre vários “espaços” percorridos no contexto do circuito neo-esot érico, no caso paulistano, descrito por Magnani (1999). 15 Além disso, a despeito da relativa tendência atual à padronização de alguns treinamentos no interior da escola, faz parte do ethos taoísta um certo respeito às preferências pessoais de um praticante adiantado, por uma determinada prática, bem como ao estilo individual de execução de uma postura ou um movimento específicos, desde que de acordo com certos princ ípios básicos24 . Este assunto no entanto, só poderá ser vislumbrado por meio de material audio-visual ou experiencial, ainda não disponíveis para esta comunicação. II Tem sido mais freqüente nos estudos sobre religiosidade urbana no Brasil, sobretudo no campo da espiritualidade New Age e nas abordagens de caráter mais sociológico, a tendência a perceber as adesões e mudanças religiosas em termos da lógica individualista, e mesmo capitalista, do mercado de bens simbólicos. O indivíduo optaria, de maneira pragmática, por produtos e serviços religiosos, como quem opta por qualquer outra mercadoria 25 . Mas para compreender a trajetória de Antônio, uma teoria da escolha racional é insuficiente. Como contrapartida, proponho uma teoria da experiência significativa. A vinculação a uma determinada tradição espiritual diz mais respeito ao caráter persuasivo das experiências vivenciadas por um determinado sujeito no contexto do horizonte de experiência oferecido por uma determinada tradiç ão, do que se refere propriamente a uma decisão baseada em critérios unicamente racionais. Isso implica tamb ém um entendimento da corporalidade mais a partir da experiência do que a partir da representa ção. Voltando à etnografia, Antônio, por vários anos, participou de duas tradições do estilo meditativo de 23 24 Cf. Antônio no curso o Yijing Taoísta, primeiro semestre de 2003, Brasília. Alinhamento da coluna, soltura, circularidade, movimento unificado do corpo inteiro orientado pela cintura. 16 espiritualidade (Carvalho, 1994), esteve existencialmente enredado em ambas e optou por uma delas em meio a circunstâncias em que algo verdadeiramente crucial estava em jogo: sua saúde, possivelmente a duração e a qualidade de sua vida, sua paixão pelo Yijing. Foi a partir do impacto existencial de uma série de situações concretas que fez sua opção pelo taoísmo. III Anteriormente estive mais familiarizado com as características das tradições pertencentes ao chamado estilo meditativo de espiritualidade, caracterizado pela ênfase nas técnicas contemplativas de controle da mente e na vivência de estados de superconsciência (Carvalho, 1994). Neste universo, o taoísmo e algumas linhagens de yogis destacavam-se como uma exceção, em função da valorização da longevidade e da priorização da saúde. Observo por exemplo que, para um guru hindu, ou um mestre budista, o número de anos vividos não é índice crucial de realização ou sequer um valor em si mesmo 26 . Neste sentido, havia algo de sui generis nestes conjuntos de tradições, a recusa do dualismo corpo/espírito ou equivalente. Há dois anos e meio leciono antropologia para alunos de psicologia, e no intuito de adequar a disciplina às necessidades específicas do curso, escolhi, entre outros temas, a problemática da cura cultural, com uma atenção maior a fenômenos clássicos brasileiros. Constato que, guardadas as marcantes diferenças entre a espiritualidade taoísta e a matriz religiosa popular brasileira, um paralelo imediato surge quando confrontamos o tema central da afli ção. 25 Considerando todo o problema da fetichização da mercadoria e do prestígio associado à posse de determinados bens, da sofisticação das estratégias de propaganda, etc., valeria a pena questionar até que ponto o consumo de mercadorias segue uma lógica eminentemente racional. 17 No caso da matriz religiosa popular brasileira, subjaz a id éia de que o “sofrimento da carne” é índice de um distanciamento da ordem do cosmos. A relação entre obsessão, débito cármico e fraqueza moral que explica o sofrimento na concepção espírita (por exemplo, Greenfield ,1999; Rabello et al 2002). O enfraquecimento do axé, da relação com as entidades tutelares, o problema do não cumprimento das obrigações rituais, vastamente registrado no universo afro-brasileiro (por exemplo, Rabello et al ,2002) . O afastamento de Deus, e a doença como oportunidade de redenção no catolicismo popular (Minayo in Alves e Minayo, 1998). A vulnerabilidade ao mal, como produto da distância de Deus no pentecostalismo (Rabelo et al, 2002; Alvito, 2001). No caso taoísta, a doença é produto do desconhecimento e da não-integração aos processos da natureza (Bizerril, 2001). Obviamente este é apenas o esboço de um paralelo, tendo em vista, que seria necessário abordar mais cuidadosa e detalhadamente as concepções de corpo e pessoa de cada uma destas tradições para aprofundar a discussão. Além disso, como bem demonstra Minayo (idem), a concepção religiosa de cura transcende a dimensão médico-psicológica, mas abarca todos os níveis da vida. IV Preferi oferecer em primeiro lugar a narrativa, em toda sua dimensão mais humana e poética, para depois chegar a reflexões mais teóricas ou generalizantes. Parece-me que existe uma tendência, que ronda a prática etnográfica, mas também sociológica e psicológica, a substituir a experiência vivida por um excesso (hiper-)racional de interpretação, que a esvazia de seu conteúdo existencial e estético, alé m de ter uma série de limitações para a própria compreensão. Mesmo com o cuidado de perceber o problema em 26 Por exemplo, os casos de Sri Ramakrsna na mística bengali do séc. XIX, ou os recentemente falecidos 18 termos das diferenças entre tradições antropológicas nacionais27 , gostaria de encerrar esta comunicação com um questionamento. Por mais que isto já tenha sido previamente denunciado (por exemplo Segato, 1992; Stoller, 1989a e 1997; Jackson, 1989 e 1996; Goulet e Young, 1994), até que ponto os antropólogos e antropólogas estão dispostos a levar a sério a experiência do nativo, ainda é uma questão metodológica e política importante. Sua raiz talvez seja um secreto ranço que caracteriza a academia: quanto persiste a premissa de que o conhecimento intelectual, racional, cient ífico, é a forma superior de conhecimento com relação a todo e qualquer assunto? REFERÊNCIAS ALVES, Paulo César & MINAYO, Maria Cecília de Souza (orgs.) Saúde e doença: um olhar antropológico, Rio de Janeiro, Fiocruz, 1998, 1a reimpressão.. ALVITO, Marcos. As Cores de Acari, Rio de Janeiro, FGV, 2001. BIZERRIL, José. Narrando o Tao comunicação apresentada no Fórum de Pesquisa “Interpretando narrativas, performances e estéticas: cruzando imagens, poéticas orais, visuais, gestuais e sonoras” na XXII Reunião Brasileira de Antropologia, 15-19/07/2000, Brasília. BIZERRIL, José. Retornar à Raiz: Tradição e Experiência em uma Linhagem Taoísta no Brasil, tese de doutorado em antropologia, PPGAS, Brasília, UnB, 2001. 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