CEM ANOS DE SOLIDÃO E MEMÓRIA - Faculdade de Letras

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GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ: CEM ANOS DE SOLIDÃO E MEMÓRIA
“Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había
de recordar aquella tarde remota en que su padre lo llevó a conocer el hielo” (GARCÍA MÁRQUEZ,
1992, p. 9). O escritor colombiano Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de Literatura em 1982,
inicia sua obra Cien años de soledad com uma imagem do futuro representando uma lembrança do
passado, complexidade que se soma à referência temporal do título. A evocação da memória no
momento que poderia ser o último suspiro de sua existência leva o coronel Aureliano Buendía à
recordação inocente de sua infância; distante digressão que se contrasta com sua trajetória sangrenta
e libertina. Esse recurso imagético-mnemônico juntar-se-á ao binômio antitético “amor-solidão” para
compor o transcurso dessa família, marcada pelo signo solitário da incapacidade de amar. Paralela a
esse binômio, encontrar-se-á também a fuga solitária dos personagens através do isolamento da
realidade, sintetizado numa entrevista de García Márquez a Ernesto González Bermejo:
"De Cien años de soledad se han escrito toneladas de papeles, se han dicho cosas tontas,
cosas importantes, cosas trascendentales, pero nadie ha tocado el punto que a mí más me
interesaba al escribir el libro, que es la idea de que la soledad es lo contrario de la
solidaridad y que yo creo que es la esencia del libro. Eso explica la frustación de los
Buendía, la frustración de Macondo”. (GONZÁLEZ BERMEJO, 1970)
O romance se passa na em Macondo, cidade que tem sob sua origem a mácula de haver
nascido pela cicatriz da morte e da reminiscência incestuosa, camuflada, porém, na tentativa de
encobrir a clara constatação de um casamento sem amor e sem solidariedade. Antes da fundação da
cidade pelo casal José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, estes “estaban ligados hasta la muerte por
un vínculo más sólido que el amor: um común remordimiento de conciencia. Eran primos entre
si” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 9), fato que, aliado aos prognósticos da mãe de Úrsula, nos
quais os filhos desse tipo de matrimônio nasceriam com rabo de porco, fez com que por mais de seis
meses o casal não tivesse relações sexuais, posto que a mulher usava um improvisado mas eficiente
cinto de castidade: “Durante la noche forcejeaban varias horas com uma ansiosa violencia que ya
parecía um sustituto del acto de amor (...)” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 24). De alguma maneira
os habitantes da região perceberam o estado virginal de Úrsula, o que desembocará no duelo de
honra entre José Arcadio Buendía e Prudencio Aguilar quando aquele foi ofendido por este, episódio
no qual o Buendía atravessa a garganta de seu oponente com uma lança. Em seguida, José Arcadio
Buendía entra no quarto de Úrsula ordenando-lhe que tirasse o cinto de castidade: “Quítate eso (...).
Tú serás responsable de lo que pase (...)” respondeu ela. “Si has de parir iguana criaremos iguanas –
dijo –. Pero no habrá más muertos en este pueblo por culpa tuya” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992,
p.25). Em meio à lança ensangüentada e aos prantos dos parentes do falecido, o casal Buendía,
depois de um diálogo marcado pela mútua indiferença, no qual cada um responsabiliza o outro pela
atitude tomada, finalmente se consuma a “união” matrimonial, tendo nesse ato forçado a gênese de
sua estirpe. Assombrado pelas constantes visitas do espírito de Prudêncio Aguilar, o casal e seus
amigos abandonam a região dispostos a apagá-la da memória, direcionando-se a uma terra que
ninguém lhes havia prometido.
O nascimento e a criação do primogênito José Arcadio e Aureliano passam quase
despercebidos pelo patriarca devido à chegada dos ciganos à cidade, um dos quais, chamado
Melquíades, exerce um fascínio a quase toda à descendência masculina da família. As melhores
recordações dos dois irmãos estão vinculadas a presença cigana na cidade: os relatos fantásticos de
Melquíades, o contato com o gelo, etc. Entretanto, havia um abismo egocêntrico na educação
paterna: “José Arcadio Buendía (...). Miró a través de la ventana y vio a los dos niños (...), y tuvo la
impresión de que sólo en aquel instante habían empezado a existir (...)” (GARCÍA MÁRQUEZ,
1992, p. 19). O pai repensou suas atitudes e tentou melhorá-las após evocar regiões inexploradas das
lembranças, mas ainda assim, vive sob as deslumbrantes novidades trazidas por Melquíades, o que
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pode ser evidenciado pelo fato de que, mesmo instruindo e mostrando a seus filhos as maravilhas
ciganas, José Arcadio Buendía é arrebatado pelas influências das mesmas em detrimento da
educação de seus descendentes.
Deixado de lado por seu pai, o primogênito perde sua inocência nos labirintos solitários das
relações sem amor, e às vezes à força, nos quais o sentido olfativo é guiado pelo ar repugnante de
fumaça e lodo, contaminado com seus relatos o pequeno Aureliano e imergindo ambos no refúgio da
solidão: “Al principio, el pequeño Aureliano sólo comprendía el riesgo (...). (...) sintieron el mismo
desprecio por la alquimia y la sabiduría de su padre y se refugiaron em la soledad” (GARCÍA
MÁRQUEZ, 1992, p. 31). O isolamento de José Arcadio dá lugar à fuga com os ciganos quando
descobre que terá um filho, o qual se chamará Arcadio e que será concebido por Pilar Ternera,
mulher que tirava a sorte no baralho e que havia participado do êxodo para Macondo com o intuito
de apagar a vergonha de haver sido violada por um homem que a desprezou: “arrastrada por su
familia para separarla del hombre que la violó a los catorce años y siguió amándola hasta los
veintidós, pero que nunca se decidió a hacer pública la situación (...)” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992,
p. 30-31).
O nascimento de Amaranta e a chegada de Rebeca, 0prima de Úrsula desencadearão um
processo que poderia mudar o signo negativo da família, mas que o acentuará ainda mais devido à
incapacidade solidária da mesma. Após o crescimento de ambas e das experiências sexuais de
Aureliano, vazias e solitárias como a vida de seu irmão, nas quais se encontra sua relação com Pilar
Ternera, “La casa se llenó de amor” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 58) quando chegam Remedios
Moscote e o italiano Pietro Crespi, por quem se apaixonarão Aureliano e Rebeca, respectivamente:
“Aureliano expresó em versos que no tenían ni principio ni fin” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 5859) e “Rebeca esperaba el amor a las cuatro de la tarde bordando junto a laventana” (GARCÍA
MÁRQUEZ, 1992, p. 59).
A alegria pela decisão matrimonial que deveria ser compartilhada pela família dá lugar a
declarações como “El amor es uma peste” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 61), esbravejada pelo
patriarca ao saber que seu descendente se casaria com a filha de seu inimigo. Ou então a promessa
solitária de Amaranta, na qual Pietro Crespi e Rebeca só se uniriam “pasando por encima de su
cadáver” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 61), posto que no fundo de seu baú escondiam-se as cartas
de amor nunca enviadas ao italiano, denunciando seus sentimentos mais secretos, mas até então
jamais revelados: (...) padecía la espina de un amor solitario. Encerrada en el baño se desahogaba del
tormento de uma pasión sin esperanzas escribiendo cartas febriles que se conformaba con esconder
en el fondo del baúl” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 61). A boda dos dois casais marcada para o
mesmo dia só acontece para Aureliano e Remedios, pois numa carta, a qual nunca se averiguou
quem a havia escrito, informava-se sobre a morte da mãe de Pietro Crespi; o primeiro de muitos
adiamentos de seu matrimônio com Rebeca que vão provocar o esfriamento da relação, até que José
Arcadio volta e se casa com ela, deixando o italiano desimpedido para Amaranta através dessa união
incestuosa. Entretanto, Amaranta imerge-se em amargura e solidão, pois seu ciúme pela felicidade
nupcial de sua irmã levou-a ao envenenamento mortal do café de Rebeca, mas que foi tragicamente
bebido por Remedios, desencadeando a fuga solitária do sofrimento de Aureliano e Amaranta,
representada respectivamente pela guerra e pela criação de Aureliano José, filho daquele com Pilar
Ternera.
Após ser cortejada por Pietro Crespi e comprometer-se a casar com ele, Amaranta o rejeita
veementemente, episódio que culminará no suicídio do italiano. Contraditoriamente, ela deseja viver
essa paixão juvenil com o coronel Gerineldo Márquez, mas mesmo assim o nega, entregando-se aos
delírios de uma paixão com seu sobrinho Aureliano José, que a tem como um paliativo de sua
solidão (Ver GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 118) e que seria igualmente rejeitado por sua tia.
Amaranta chega à velhice com todas as suas recordações, diferentemente de seu irmão Aureliano que
conseguiu esterilizá-las, e de Rebeca, que após anos de sofrimento desde a inexplicável morte de seu
marido conquistou os privilégios da solidão, isolando-se em sua casa: “Aureliano Segundo resolvió
que había que llevarla a la casa y protegerla, pero su buen propósito fue frustrado por la
inquebrantable intransigencia de Rebeca, que había necesitado muchos años de sufrimiento y miseria
para conquistar los privilegios de la soledad, y no estaba dispuesta a renunciar a ellos
(...)” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 176). Sabendo da proximidade de seu fim, Amaranta o
anuncia à Macondo, e numa tentativa de reparar sua vida mesquinha, oferece levar cartas de seus
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habitantes aos mortos (Ver GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 221), revelando uma clara direção
contrária às cartas secretas a Pietro Crespi escondidas no fundo do baú.
Primos-irmãos pelas relações solitárias de seus pais, Aureliano José e Arcadio morrem
baleados tragicamente, sendo que o primeiro não chegou a viver a felicidade negada a ele por
Amaranta, mas predestinada a outra mulher pelos baralhos de sua mãe se a morte não o alcançasse
primeiro(GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 126); e, o segundo, mesmo sem conhecer sua filiação e
rejeitando ser um Buendía, tenta ter relações sexuais com sua mãe, que ao impedi-lo, encaminha-lhe
a Santa Sofía de la Piedad. Ambos morrem antes de seus pais, mas só Arcadio reflete sobre sua vida
e logra desaparecer o medo que o atormentava desde sua relegada infância (Ver GARCÍA
MÁRQUEZ, 1992, p. 37), adquirindo o entendimento do valor sentimental momentos antes de
morrer: “Pensaba en Úrsula (...).Pensaba en su hija (...). Pensaba en Santa Sofía de la Piedad (...).
Pensaba en su gente sin sentimentalismo, en un severo ajuste de cuentas con la vida, empezando a
comprender cuánto quería en realidad a las personas que más había odiado” (GARCÍA MÁRQUEZ,
1992, p. 99-100). Essa será a semente a ser plantada para as próximas gerações Buendía, já que a
anunciada morte do coronel, antecipada pela de seus descendentes, fechou temporariamente um ciclo
de relações sem amor: “El único afecto que prevalecía contra el tiempo y la guerra, fue el que sintió
por su hermano José Arcadio, cuando ambos eran niños, y no estaba fundado en el amor, sino en la
cumplicidad” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 141), e que só poderia desembocar na solidão, “(...)
comprendió que el secreto de una buena vejez no es otra cosa que un pacto honrado con la
soledad” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 168) e no esquecimento “(...)un artesano sin recuerdos,
cuyo único sueño era morirse de cansancio en el olvido (...)” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 172).
“Años después, en su lecho de agonía, Aureliano Segundo había de recordar la lluviosa tarde
de junio en que entró a conocer su primer hijo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p.148). O fim da
guerra e do luto evidenciado pela reforma e alegria que voltaram a habitar a casa da Família Buendía
contrasta-se com o espelhismo ao retornar à sentença inicial da obra, revelando que a aparente
mudança no curso da história faz parte da circularidade negativa a que a estirpe está condenada. Os
gêmeos Aureliano Segundo e José Arcadio Segundo, a pesar das grandes diferenças que tinham entre
si, apresentavam o mesmo ar solitário da família (Ver. GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p.149), e
igualmente ao vivenciado por seu pai Arcadio que compartilhou a mesma mulher com seu irmão
Aureliano José, ambos se relacionaram com Petra Cotes, até que Aureliano Segundo ficou com ela
até a morte, mesmo sendo casado com Fernanda Del Carpio.
Desde sua infância, José Arcadio Segundo esteve marcado pelo sorriso triste de um fuzilado,
episódio no qual o coronel Gerineldo Márquez levou a criança ao quartel para ver essa barbárie,
transformando-a na mais antiga lembrança que possuía e que o dissociou de sua linhagem: “José
Arcadio Segundo no era miembro de la famila, ni lo sería jamás de otra, desde la madrugada distante
en el que el coronel Gerineldo Márquez lo llevó al cuartel, no para que viera um fusilamiento, sino
para que no olvidara en el resto de su vida la sonrisa triste y burlona del fusilado” (GARCÍA
MÁRQUEZ, 1992, p. 208). Suas recordações o levaram a pensar na guerra e, possivelmente, o
tenham inspirado na revolta contra a companhia bananeira, fato que vai gerar o genocídio do qual só
ele sobreviverá para rememorá-la, criando-lhe seqüelas que só serão amenizadas no baluarte da
solidão: “La simple idea de abandonar el cuarto que le había proporcionado la paz, aterrorizó a José
Arcadio Segundo. Gritó que no había poder humano capaz de hacerlo salir, porque no quería ver el
tren de doscientos vagones cargados de muertos (...) Sólo entonces Úrsula comprendió que él estaba
en un mundo de tinieblas más impenetrable que el suyo, tan infranqueable y solitario como el del
bisabuelo” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 264).
Aureliano Segundo viveu a prosperidade de uma vida regalada, mas que teve um preço
também alto: a infelicidade de sua mulher Fernanda, pois a riqueza dele vinha da relação com a
amante; o esquecimento de sua filha Renata Remedios e sua posterior paixão por Mauricio
Babilonia, seguida de seu sofrimento ao vê-lo inválido por um tiro após ser denunciado por
Fernanda. O casal morreu separado e no silêncio de suas velhices solitárias, sem a possibilidade de
compartilhar a criação de seu filho que empreenderá uma jornada para saber sua filiação. Talvez
tenha sido por isso que Aureliano Segundo investe todas as suas forças numa última empreitada
financeira para custear os estudo da caçula Amaranta Úrsula em Bruxelas e livrá-la de Macondo,
pois seu filho José Arcadio estava sob os cuidados de Úrsula, que por sua vez abandonou as
preocupações por Remedio la Bella, deixando-a vagar no deserto da solidão até esta ascende aos
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céus, sem recordações: “Remedios, la bella, se quedo vagando por el desierto de la soledad, (...) en
sus hondos y prolongados silencios sin recuerdos (...). Úrsula (...) dejó las sábanas a merced de la
luz, viendo a Remedios, la bella, que decía adiós con la mano, entre el deslumbrante aleteo de las
sábanas que subían con ella (...) y se perdieron con ella para siempre en los altos aires donde no
podían alcanzar ni los más altos pájaros de la memoria” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 189).
Os gêmeos morreram exatamente na mesma hora, mas não antes de terem cumprido suas
últimas tarefas: Aureliano Segundo envia Amaranta Úrsula para Bruselas e enseguida morre na cama
de Fernanda, a quem trocou incontáveis vezes pelos braços da amante Petra Cotes. José Arcadio
Segundo morre sobre os pergaminhos de Melquíades após ensinar o pequeno Aureliano Babilonia a
ler e a escrever, além de introduzi-lo nos estudos do cigano (Ver GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p.
277).
O processo final no qual se extinguirá para sempre a memória da família Buendía se dará
com a morte em série de quase todos os seus membros: os gêmeos, Úrsula, Rebeca, José Arcadio,
Fernanda e Aureliano Amador, último da estirpe do coronel que sequer foi reconhecido quando bateu
à porta: “Se identificó, suplicó que le dieran refugio en aquella casa que en sus noches de paria había
evocado como el último reducto de seguridad que le quedaba en vida. Pero José Arcadio y Aureliano
no lo recordaban” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 293). Esse apagamento mnemônico sobre toda
uma linhagem se corrobora também no esquecimento da cidade: “La desidia de la gente contrastaba
con la voracidad del olvido, que poco a poco iba carcomiendo sin piedad los recuerdos” (GARCÍA
MÁRQUEZ, 1992, p. 271) e “Aureliano no encontró quien recordara su familia, ni siquiera al
coronel Aureliano Buendía” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 301), “En aquel Macondo olvidado
hasta por los pájaros, donde el polvo y el calor se habían hecho tan tenaces que costaba trabajo
respirar (...)”(GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p.316).
O retorno de Amaranta Úrsula de Bruxelas, aliado aos encontros de Aureliano com sua
amante e às consultas dele com Pilar Ternera confirmam o ciclo infindável que se consumará com o
incesto entre tia e sobrinho. Entretanto, um novo signo se instaurava em meio à Macondo sem
lembranças: a felicidade amorosa dos dois “les revelaron la verdad de que habían sido felices juntos
desde que tenían memoria” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p.319), isolando-se para o mundo na
solidão de uma casa centenária, testemunha muda das fugas enclausuradas da família.
Esse aspecto positivo da memória, tão incomum para a família Buendía encontra respaldo nos
pressupostos teóricos de Henri Bergson, nos quais a memória permite a relação do corpo presente
com o passado, interferindo no processo corrente das representações al mesclar-se com as
percepções imediatas. Entretanto falta em Bergson um tratamento da memória como um fenômeno
social, em que a subjetividade pura do espírito e a exterioridade da matéria dêem lugar à temática
dos sujeitos e das coisas recordadas (Ver BOSI, 1994, p. 54), para que, segundo Pierre Achard, o
passado possa ser inserido no discurso concreto em que se encontra (Ver ACHARD, 1999, p. 14).
Essas duas divisões marcam a distância que separa a “realidade” da “significação”, assim como o
simples registro da realidade e da memória social, conforme o conceito de memória de Halbwachs:
“lo que es todavía vivo en la conciencia del grupo para el individuo y para la
comunidad”. (Halbwachs M. In ACHARD, 1999, p. 25)
O nascimento do filho do casal trouxe consigo o inesperado rabo de porco prognosticado por
Úrsula, mas que não causou preocupação frente ao sangramento de Amaranta Úrsula que provocou
sua morte. Sobreveio a Aureliano Babilonia todo o fardo solitário de sua família ao encontrar-se
sozinho, “(...) buscando un desfiladero de regreso al pasado” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 322),
mas que num instante de lucidez ao ver seu descendente também morto decifrou os pergaminhos de
Melquíades, tomando a decisão mais luminosa de sua vida: esquecer de seus mortos e de suas dores,
para então descobrir quem era seu pai.
Por ser fruto de uma união que os familiares não concordavam, Santa Sofía de la Piedad
escondeu de todos sua origem e relatou que o havia encontrado num cesto flutuando sobre o rio,
similar ao relato judaico–cristão de Moisés, responsável pela libertação israelense do domínio
egípcio e que também foi encontrado num cesto de junco num rio. A esperada fuga para terra
prometida empreendida por Moisés só foi possível para Josué e Calebe, devido ao medo instigado
pelos espias ao relatar sobre os perigos que havia na terra que mana leite e mel (Ver A BÍBLIA
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SAGRADA, Números 13: 31-32). Algo semelhante aconteceu com Aureliano Babilonia, que
buscou sua filiação ao compreender o enigmático pergaminho, encontrando-a depois de passar pela
história incestuosa e sem amor de sua família: uma linhagem marcada pela fuga solitária e
amedrontada da realidade, com o último membro vivo de sua descendência sendo arrebatado pelo
vento apocalíptico que leva a Macondo babilônica para o total esquecimento (Ver A BÍBLIA
SAGRADA, Apocalipse 18) “en el instante en que Aureliano Babilonia acabara de descifrar los
pergaminos, y que todo lo escrito en ellos era irrepetible desde siempre y para siempre, porque las
estirpes condenadas a cien años de soledad no tenían una segunda oportunidad sobre la
tierra” (GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 325).
A memória de cem anos de solidão impregnadas na família Buendía registra a marca
indelével da hereditariedade solitária de sua linhagem. À essa herança que não se pode escapar
geneticamente, também estão relacionados fatores passíveis de mudança, mas que se esvaem na
incapacidade solidária de seus personagens: a ausência de amor; o medo do sofrimento gerando a
fuga e o isolamento; a busca do interesse próprio em detrimento do outro, sendo fortemente
evidenciado no abandono da instrução aos mais jovens; dentre outros exemplos reveladores de que a
estirpe condenada a cem anos de solidão talvez pudesse mudar seu destino.
A possibilidade de transformação fica em aberta, pois temos a relação solidária entre
Aureliano Segundo e sua amante Petra Cotes despertada nos anos de miséria (Ver GARCÍA
MÁRQUEZ, 1992, p. 265), o que por sua vez se contrasta com o desamparo do mesmo à sua esposa
Fernanda e com o cumprimento da promessa de morrer junto à ela, deixando a amante em segundo
plano. Há também o exemplo da concepção do último Aureliano, o único descendente gerado com
amor em mais de um século de família: “era el único en un siglo que había sido engendrado con
amor”(Ver GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p. 322). Percebemos, entretanto, que os laços Amaranta
Úrsula e Aureliano Babilonia foram muito mais superficiais do que os vividos entre Aureliano
Segundo e sua amante Petra Cotes, por exemplo, baseando-se mais na sexualidade do que na
cumplicidade. Além disso, no fato do recém nascido ter sido temporariamente deixado pela fuga de
seu pai, mostra-se mais uma vez a busca dos interesses próprios em detrimento do que está ao redor,
no momento em que Aureliano Babilonia deixa seu filho ser comido pelas formigas enquanto está
concentrado nos pergaminhos, semelhante a seu isolamento no quarto quando José Arcadio foi
assassinado: “(...) José Arcadio estaba terminando su baño diario cuando irrumpieron por entre los
portillos de las tejas los cuatro niños que había expulsado de la casa. Sin darle tiempo de defenderse,
se metieron vestidos en la alberca, lo agarraron por el pelo y le mantuvieron la cabeza hundida, hasta
que se cesó (...). Aureliano, encerrado en su cuarto, no se dio cuenta de nada” (Ver GARCÍA
MÁRQUEZ, 1992, p. 294).
Qual o mecanismo presente nos pergaminhos de Melquíades que previa todas as vicissitudes
que aconteceriam com os Buendía? Por quê os ciganos levaram uma máquina para esquecer das más
recordações justamente quando Melquíades não estava com eles? (Ver GARCÍA MÁRQUEZ, 1992,
p. 20) Por quê Melquíades, que se pensava estar morto, apareceu e curou as pessoas da peste da
insônia, que fazia com que todos se esquecessem do passado? (Ver GARCÍA MÁRQUEZ, 1992, p.
46) Se o esquecimento aliviava as dores da família, por que Melquíades sempre as incitava ao invés
de ajudá-los a mudar, posto que já sabia o que estava escrito?
Como se opera a memória quando se faz um pacto com o esquecimento e com a alienação?
Certamente as lembranças dolorosas da família Buendía relacionadas à incapacidade solidária da
mesma, só poderiam ser amenizadas no triste recôndito da solidão através da fuga, mas que não pode
se esconder da realidade já registrada nos pergaminhos com um século de antecedência. Não
adiantou o coronel queimar os papéis amarelados de seus pensamentos (Ver GARCÍA MÁRQUEZ,
1992, p. 142), tampouco Amaranta esconder suas cartas de amor no baú (Ver GARCÍA MÁRQUEZ,
1992, p. 61), pois a escritura de Melquíades é o meta-texto para o esquecimento de uma estirpe
maculada com a ausência da essência humana: o amor; sendo levada pelos ventos do apocalipse
junto com a Macondo pecaminosa para onde só jaz o vazio do olvido.
“Caiu, caiu a grande Babilônia e se tornou morada de demônios, covil de toda espécie de
espírito imundo (...) O quanto a si mesma se glorificou e viveu em luxúria, dai-lhe em
igual medida tormenta e pranto (...). Tu, grande cidade, Babilônia, tu poderosa cidade.
Pois em uma só hora chegou o teu juízo (...). Assim, nunca jamais será achada” (Ver A
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BÍBLIA SAGRADA, Apocalipse 18: 02, 08, 10 e 21).
BIBLIOGRAFIA:
A BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2ed. São
Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993
ACHARD, Pierre... [et al.]. Papel da memória. Trad. e Introd. José Horta Nunes. Campinas: Pontes,
1999..
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GARCÍA MARQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. 20 ed. Bogotá: Oveja Negra, 1992..
GONZÁLEZ BERMEJO, Ernesto. "30 preguntas a García Márquez", Ahora, 28 de diciembre de
1970, N 372.
JOSET, Jacques. Folios 34-5, Julio 1999,Monte Ávila Editores Latinoamericana C.A y Consejo
Nacional de la Cultura (CONAC), paginas 3 -11.
SUBIRATS, Eduardo. Memoria y exilio. Madrid; Buenos Aires: Losada, 2003.
Daniel Rodrigues de Castro (mestrando em Letras Neolatinas, UFRJ)
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