PABLO NERUDA E O OLHAR POÉTICO SOBRE AS CIDADES CHILENAS: TEMUCO, SANTIAGO E VALPARAÍSO Ximena Antonia Díaz Merino Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requesito necessário para a obtenção do Título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas) Orientadora: Profa. Doutora Mariluci da Cunha Guberman Rio de Janeiro Agosto de 2008 Pablo Neruda e o olhar poético sobre as cidades chilenas: Temuco, Santiago e Valparaíso Ximena Antonia Díaz Merino Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas. Examinada por: ______________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Mariluci da Cunha Guberman ______________________________________________________ Profa. Doutora Lívia Maria de Freitas Reis - UFF ______________________________________________________ Profa. Doutora Edna Maria dos Santos – UERJ ______________________________________________________ Prof. Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina - UFRJ ______________________________________________________ Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho - UFRJ ______________________________________________________ Profa. Doutora Maria Aparecida da Silva – UFRJ, Suplente ______________________________________________________ Profa. Doutora Adja Balbino de Amorim Barbieri Durão - UEL, Suplente Rio de Janeiro Agosto de 2008 2 Díaz Merino, Ximena Antonia. Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas, Temuco, Santiago e Valparaíso / Ximena Antonia Díaz Merino. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. xiv, 243 f.: il.; 30 cm. Orientadora: Mariluci da Cunha Guberman Tese (doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2008. Referências Bibliográficas: f. 226-243. 1. Imagem poética. 2. Cidade. 3. Identidade. I.Guberman, Mariluci da Cunha. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas. III. Título. Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas, Santiago e Valparaíso. 3 DEDICATÓRIA Em primeiro lugar, dedico esta Tese a meu esposo Marcos e a minhas filhas Thaís Lorena e Mariana Luiza. De forma especial, dedico o fruto de meus estudos a minha querida mãe, exemplo de dedicação total aos filhos. Ás preciosas amizades cultivadas no transcurso deste estudo. 4 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço à Pró-Reitoria da UFRJ pela Bolsa concedida para a realização deste Doutorado, assim como à CAPES pela Bolsa de Doutorado que possibilitou ampliar minhas pesquisas e reflexões. Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da FL – UFRJ, pelo incentivo e apoio dado ao avaliar o meu trabalho de pesquisa, viabilizando a concessão de Bolsa CAPES. Agradeço, de forma muito especial, a participação fundamental da Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman, minha querida e respeitada orientadora, pelo valioso apoio teórico e bibliográfico, assim como pela dedicação incondicional demonstrada durante todo o processo de desenvolvimento desta Tese. Faço questão de registrar ainda a luminosa, firme, rara, incansável e terna presença de Mariluci nos diferentes estágios de elaboração deste estudo. Aos professores do Curso de Doutorado, Profª Drª. Maria Aparecida da Silva, Profª Drª Silvia Cárcamo, Profª Drª Angélica Soares, Profº Drº Marcelo Jacques e Profº Drº Luiz Edmundo Bouças, que com seus ensinamentos e questionamentos forneceram subsídios importantes para a elaboração desta Tese. Agradeço de forma especial à Professora Doutora Lívia de Freitas Reis da Universidade Federal Fluminense e ao Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho pelos valiosos comentários, críticas e sugestões apresentados na etapa de qualificação desta pesquisa. 5 À minha querida e respeitada Juçara, figura importantíssima na minha caminhada de aperfeiçoamento, cujo incentivo e apoio me possibilitaram intensa dedicação à vida acadêmica. Não poderia esquecer neste momento da minha grande amiga Joana, sempre disposta a oferecer seu tempo e ajuda incondicional, exemplo de ser humano inigualável. Finalmente agradeço a meu marido Marcos o apoio, o interesse e a dedicação demonstrada nesta minha caminhada, mas, sobretudo, pelo amor e compreensão, sem os quais não teria sido possível a conclusão desta etapa. 6 SINOPSE Estudo do imaginário poético das cidades chilenas – Temuco, Santiago e Valparaíso – na obra de Pablo Neruda. Temática desencadeada a partir do choque cultural sofrido pelo autor na passagem da província para a cidade grande (1921), um “rito de passagem” modificador da figura e da lírica do poeta chileno, um observador do espaço urbano. Abordagem do sistema do poeta: “poesía impura”, ruptura dos moldes pré-estabelecidos. Revelação do encontro de dois olhares: o olhar da memória e o olhar do estrangeiro, aguçados pelos sentidos nerudianos. 7 Resumo Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas: Temuco, Santiago e Valparaíso Ximena Antonia Díaz Merino Orientadora: Profª. Drª. Mariluci da Cunha Guberman Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas). A construção citadina abrange mais do que um espaço geográfico habitado e seus patrimônios visíveis. Há também um patrimônio constituído pela palavra escrita, que permite a reconstrução da paisagem e do cotidiano urbano através dos ecos do passado e remete às origens do espaço urbano. No decorrer da história esses registros têm-se cristalizado tanto na prosa quanto na poesia, configurando um espaço simbólico que faz possível sua interpretação num tempo histórico distante e alheio ao do autor. Dentro desse contexto se desenvolveu a analise das passagens do texto nerudiano – prosa e poesia – dedicadas às cidades chilenas em que o poeta morou: Temuco, Santiago e Valparaíso, tendo como base de estudo os espaços habitados, a memória primordial, a identidade nacional, a imagem poética e o olhar citadino. O desenvolvimento deste estudo se encaminhou para a confirmação da hipótese de que o fio condutor da poesia citadina nerudiana está constituído pela reincidência de determinados signos sensíveis ou arquétipos primigênios. Assim também, os processos migratórios nerudianos revelaram um corpo viajante que concebe a existência de um sujeito fronteiriço situado entre o universo provinciano e o urbano, revelando o corpus da escritura poética nerudiana. Palavras chave: imagem poética, cidade, identidade, memória. Rio de Janeiro Agosto de 2008 8 Resumen Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas: Temuco, Santiago e Valparaíso Ximena Antonia Díaz Merino Orientadora: Profª. Drª. Mariluci da Cunha Guberman Resumen da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas). La construcción citadina abarca más que un espacio geográfico habitado y sus patrimonios culturales visibles. Existe también un patrimonio constituido por la palabra escrita, que permite la reconstrucción del paisaje y del cotidiano urbano a través de los ecos del pasado y remite a los orígenes del espacio urbano. En el transcurso de la historia esos registros se han cristalizado tanto en la prosa como en la poesia, configurando un espacio simbólico que posibilita su interpretación en un tiempo histórico distante y ajeno al del autor. A partir de ese contexto se desenvolvió el análisis de los recortes textuales – prosa y poesía – dedicados a las ciudades chilenas en que el poeta vivió: Temuco, Santiago y Valparaíso, teniendo como base de estudio los espacios habitados, la memoria primordial, la identidad nacional, la imagen poética y la mirada citadina. El desenvolvimiento de este estudio se encaminó para la confirmación de la hipótesis de que el hilo conductor de la poesía citadina nerudiana se constituye en la reincidencia de determinados signos sensíbles o arquetipos primigenios. De la misma forma, el proceso migratorio nerudiano reveló un cuerpo viajero que concibe la existencia de un sujeto fronterizo localizado entre el universo provinciano y el universo urbano, revelando el corpus de la escritura poética nerudiana. Palabras clave: imagen poética, ciudad, identidad, memoria. Rio de Janeiro Agosto de 2008 9 Résumé Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas: Temuco, Santiago e Valparaíso Ximena Antonia Díaz Merino Orientadora: Profª. Drª. Mariluci da Cunha Guberman Résumé da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas). La constitution d’une ville ne se réduit pas à un espace géographique habité et à ses patrimoines visibles. On y trouve également un patrimoine formé aussi du mot écrit, qui permet de reconstruire le paysage et le quotidien urbain à travers les échos du passé tout en renvoyant aux origines de l’espace urbain. Tout le long de l'histoire, ces registres se sont cristallisés aussi bien dans la prose que dans la poésie ; ils configurent un espace symbolique qui rend possible son interprétation dans un temps historique lointain, différent de celui de l'auteur. Dans ce contexte, et à partir de l'étude des espaces habités, de la mémoire primordiale, de l'identité nationale, de l'image poétique et du regard citadin, s'est developpée l'analyse des passages du texte nerudien - prose et poésie consacrés aux villes chiliennes où le poète a vécu: Temuco, Santiago et Valparaíso. Le développement de cette étude a conduit à la confirmation de l'hypothèse selon laquelle le fil conducteur de la poésie citadine nerudienne est constitué par la récurrence de certains signes sensibles ou archétypes. Ainsi, les processus migratoires nerudiens ont-ils révélé un corps voyageur concevant l'existence d'un sujet qui se trouve à la frontière de l'univers provincial et de l'univers urbain, en révélant le corpus de l’écriture poétique nerudiana. Mots clés: image poétique, ville, identité, mémoire. Rio de Janeiro Agosto de 2008 10 Abstract Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas: Temuco, Santiago e Valparaíso Ximena Antonia Díaz Merino Orientadora: Profª. Drª. Mariluci da Cunha Guberman Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas). The city construction covers more than one geographical area inhabited and its assets visible. There is also an assets consist including the written word, which allows the reconstruction of the countryside and the urban daily life through the echoes of the past and refers to the origins of urban space. In the course of history these records have been crystallized in both prose and in poetry, setting a symbolic space that makes possible its interpretation in a historical time and distant alien to the author. Within that context has developed to analyze the passages of the text nerudiano - prose and poetry - dedicated to Chilean cities where the poet lived: Temuco, Santiago and Valparaíso, based on study of the inhabited areas, the 0essential memory, national identity, the poetic image and look city. The development of this study was sent to confirm the hypothesis that the main theme of poetry is made by the city nerudiana recurrence of certain sensitive or signs archetypes. Also, the migration processes nerudianos body revealed a traveller who designs the existence of a subject located between the universe provincial and urban universe, disclosing the corpus of the nerudiana poetical writing. Key words: poetic image, city, identity, memory. Rio de Janeiro Agosto de 2008 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 15 1ª PARTE PABLO NERUDA E A HARMONIA ENTRE VIDA E OBRA 1. Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto e o Álbum de Temuco 21 2. Ruptura e permanência: marcas da criação nerudiana 28 2.1 Da tradição à inovação 35 2.2 Proclamação da poesia sem pureza 41 2.3 “Verdadismo”: a poesia popular da justiça social 47 2.4 O poeta americanista 60 2.5 O ciclo das odes 69 3. As marcas autobiográficas na obra de Pablo Neruda 73 4. De Búffallo Bill aos clássicos 87 2ª PARTE O DISCURSO FUNDADOR DAS CIDADES CHILENAS 1. Da cidade letrada aos imaginários urbanos 94 2. A cidade como um todo 98 3. Configuração do espaço citadino 103 4. Fundação das cidades chilenas 106 5. Caracterização do povo chileno 111 5.1 Os chilenos: um povo novo 115 5.2 Agua de temu: território de pioneiros 121 5.3 A conquista do mítico Valle de Chile 124 5.4 Valle del Paraíso: um assentamento à beira do Pacífico 127 12 3ª PARTE O OLHAR E A MEMÓRIA NO PROCESSO IMAGÉTICO NERUDIANO 1. A palavra poética e a imagem citadina em Neruda 136 2. O Tempo: ponte entre a memória e o espaço 139 3. As imagens primordiais e sua relação com o espaço habitado 146 3.1 Temuco: a paisagem primigênia 148 3.2 Santiago de Chile: um mar desconhecido 154 3.3 Valparaíso: a cidade mais amada 169 4ª PARTE PARA UMA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL CHILENA 1. Identidade cultural e consciência nacional 179 2. Formação das nacionalidades na América Hispânica 183 3. O sentimento nativista na configuração da identidade nacional chilena 188 4. O processo migratório como “rito de passagem” 195 4.1 O corpo viajante do poeta peregrino 201 4.2 A migração de Temuco para Santiago 210 4.2 O caráter fronteiriço do sujeito citadino 219 Conclusão 221 Bibliografía 226 Anexo 13 [...] La primera edad de un poeta debe recoger con atención apasionada las esencias de su patria, y luego debe devolverlas. Debe reintegrarlas, debe donarlas. Su canto y su acción deben contribuir a la madurez y al crecimiento de su pueblo. El poeta no puede ser desarraigado, sino por la fuerza. Aún en esas circunstancias sus raices deben cruzar el fondo del mar, sus semillas seguir el vuelo del viento, para encarnarse una vez más, en su tierra. Debe ser deliberadamente nacional, reflexivamente nacional, maduramente patrio. El poeta no es una piedra perdida. Tiene dos obligaciones: partir y regresar. El poeta que parte y no vuelve es un cosmopolita. Un cosmopolita es apenas un hombre, es apenas un reflejo de la luz moribunda. Sobre todo en estas patrias solitarias, aisladas entre las arrugas del planeta, testigos integrales de los primeros signos de nuestros pueblos, todos, todos desde los más humildes hasta los más orgullosos, tenemos la fortuna de ir creando nuestra patria, de ser todos un poco padres de ella [...] Pablo Neruda, 1954*. * Discurso de Neruda em 20 de junho de 1954 com motivo da doação de sua biblioteca particular à Universidad de Chile. In: NERUDA (2001) p.945-946. 14 INTRODUÇÃO Escrever sobre a literatura de Pablo Neruda pode parecer uma tarefa fácil se considerados o tempo decorrido após sua morte e a abundância de estudos sobre sua obra. Contudo, o imenso aporte humano, literário e, cultural legado pelo poeta chileno ao longo de sua vida permanece uma inesgotável fonte de estudos literários. A presente pesquisa versará de forma pontual sobre os textos que Neruda dedicou às cidades chilenas onde morou: Temuco, Santiago e Valparaíso. Estas cidades surgem reiteradas vezes e nas mais diferentes etapas da obra do poeta chileno; assim sendo, optou-se pelo estudo da tríade campo/cidade/porto por ser significativa a presença das imagens do espaço rural, urbano e portuário em sua criação poética. A concentração demográfica nas grandes cidades é uma das características do século XX, entre outros fatores. Transtornos urbanos, avanços tecnológicos, velocidade, descobertas, expansão das indústrias são alguns dos problemas das grandes cidades. A configuração do imaginário das cidades enquanto espaço geográfico tornar-se-á símbolo das reflexões e experiências do homem moderno, possibilitando, com isto, estabelecer correspondências entre os ambientes rural, urbano e portuário com a literatura. O espaço urbano representa para o homem moderno uma parte fundamental de sua vida. Uma série de sensações provocadas pela vida agitada e de rápidas mudanças são experimentadas. Para o indivíduo procedente da província, o ritmo desenfreado dos grandes centros urbanos se opõe ao ritmo tranqüilo da vida no campo. 15 Ano após ano, geração após geração, os jovens migram para as cidades grandes em busca de trabalho, estudos ou melhores condições de vida. Cabe destacar que o próprio Neruda viveu a experiência de fugir do seu destino provinciano quando, em 1921, aos dezessete anos de idade, partiu da província de Temuco para Santiago, capital política e cultural do Chile, com o objetivo de fazer carreira literária, transformando-se em mais um interiorano na conturbada vida da capital. Sua inadaptação e seu desejo de uma vida simples ficaram registrados em sua poesia. Da mesma forma também transpareceu o sonho de retorno ao mundo longínquo da infância e da adolescência. Este estudo comparativo entre as cidades onde Neruda viveu focaliza dois grandes centros urbanos, Santiago e Valparaíso, que se opõem à província de Temuco. Analisar-se-á de que forma Neruda aborda o tema da cidade, do campo e do porto, assim como a importância que estes ambientes representaram para o desenvolvimento de sua própria vida e obra. Os conflitos resultantes dessas experiências foram manifestados, por exemplo, nos versos de “Crepúsculos de Maruri” (1923) onde a paisagem urbana do presente se opõe ao passado, vivenciado no meio rural de Temuco. A questão entre o espaço do presente ou imediato da cidade e a do espaço do passado ou provinciano mediado pela memória, atravessa boa parte da obra nerudiana, ressaltando sempre as diferenças entre estes territórios. Em Neruda, a relação entre espaço, memória e identidade é apresentada em termos binários de oposição ou de integração. Às vezes alguns de seus poemas fazem emergir a impressão de que é a noção de simples oposição que vigora, porém, à medida que se estuda sua obra, a 16 integração, por exemplo, entre a visão do espaço portuário e a do espaço provinciano, se faz patente. A estratégia desta pesquisa ocorre através da tríade espaço, tempo e identidade. O levantamento de dados biográficos e a análise da obra nerudiana permitiram observar uma complementariedade entre os três elementos dessa tríade e a presença de um multifacetado sujeito lírico, que manifesta sentimentos ora de nostalgia, ora de rejeição, ou ainda, de identificação em relação às cidades de Temuco, Santiago e Valparaíso. Se por um lado, a relevância deste estudo está no fato de levantar a discussão sobre as “cidades chilenas na poesia nerudiana” e, por conseguinte, o papel do poeta na sociedade, acompanhado do valor estético; por outro lado, a relevância está na possibilidade de encontrar uma articulação precisa, que relacione os resultados das criações-pensamentos do poeta com a realidade citadina, tendo como foco os seguintes tópicos: o espaço urbano, a memória, a imagem poética, o olhar citadino e a identidade cultural. A metodologia a ser aplicada surge do âmbito exploratório da produção poética de Pablo Neruda. Primeiramente observar-se-á a inserção do poeta em questão na literatura vanguardista hispano-americana, principalmente na chilena, a sua visão de mundo e de sociedade. Para este fim, se tem como apoio teórico os significativos intelectuais: Emir Rodríguez Monegal (1977), Hugo Verani (1990), Saúl Yurkievich (1984, 1988, 1997) e Octavio Paz (1975, 1984, 2006). Pode-se considerar a cidade como um centro de concretude das ações humanas sem, ao mesmo tempo, deixar de ser ela própria uma das formas de expressão do homem. O espaço urbano é visto como um lugar em constante 17 transformação, que concentra os diferentes elementos que fazem parte da cultura. De forma que, para o aprofundamento sobre a relação do homem moderno com seus espaços urbanos serão relevantes os textos teórico-críticos de Otávio G. Velho (1967); Walter Benjamin (1989); Ítalo Calvino (1990), Kevin Lynch (1997), Néstor García Canclini (1999, 2000); Ángel Rama (1985) e Benjamín Subercaseaux (2005). Este estudo abordará também a questão da memória, aspecto que se justifica pelo fato de a poesia nerudiana apresentar um caráter intimista no sentido de se tratar de territórios geográficos da terra natal do poeta, os quais sem dúvida reportaram ao seu cotidiano. Desta maneira, para o desenvolvimento desta parte da pesquisa são de fundamental importância os seguintes teóricos: Gaston Bachelard (1988 a-b, 1993), Pierre Achard (1999), Ecléa Bosi (1994, 2003) e Gilles Deleuze (2003). A seguir, o estudo abordará reflexões sobre a imagem poética e sobre o sentido lírico do espaço urbano. Para tratar desses aspectos, encontrou-se sustentação em pesquisas bibliográficas sobre a imagem artística de Octavio Paz (1975, 2006); Gilbert Durand (1998) e Justo Villafañe (2002). Também será analisada a contribuição do olhar citadino do autor em sua poesia, isto é, como Neruda percebe a cidade e de que maneira ele expressa essa percepção. Assim sendo, serão relevantes os estudos reunidos por Adauto Novaes na obra O olhar (1988). Outro tópico a ser abordado está relacionado com a questão da identidade. Tópico que se justifica partindo da idéia de cidade como construção organizada que implica na identidade formada por seus cidadãos. Conta-se para isto, com os seguintes estudiosos: Bernardo Subercaseaux (1999), Luis 18 Mizón (2001), Pedro Gómez García (1998), Rosalba Campra (1987), Jorge Larrain (2003), Zigmung Bauman (2005), Benedict Anderson (2008) e Darcy Ribeiro (1986,2007). Após as reflexões enunciadas sobre o espaço urbano, a memória, a imagem, o olhar e a identidade, remeter-se-ão às próprias declarações nerudianas contidas nas suas memórias. Declarações que servirão de guia para o acompanhamento da sua produção poética, por serem reflexões abrangentes sobre sua poesia e sobre sua vida, que se tornaram imprescindíveis para a compreensão de seu mundo poético. Em suas Memórias, Confieso que he vivido, bem como no texto complementar Para nacer he nacido, o autor tece comentários sobre sua vida e sua produção literária, apresentando um nível de autoconsciência, que presupõem uma definição de seu gênesis poético. Esses textos por serem posteriores à sua poesia, podem ser considerados como uma glosa desta. Assim sendo, pretende-se verificar em que medida esses comentários contribuem para o entendimento do contexto, das influências e do próprio significado de sua criação poética, focalizando, especificamente, o ambiente citadino, de forma a possibilitar a identificação das influências por ele absorvidas. A partir do fio condutor da poesia citadina nerudiana, constituído pelas imagens primordiais e amparado pelo resgate da memória e pela experiência de vida do autor, poder-se-ão estabelecer parâmetros, às vezes comparativos, às vezes associativos, que permitirão elucidar os questionamentos do sujeito citadino. Um sujeito plural que reflete os conflitos íntimos do indivíduo e está à procura do grande mistério da vida: criar e viver intensamente. 19 1ª PARTE PABLO NERUDA E A HARMONIA ENTRE VIDA E OBRA Entre Michoacán y Punitaqui […] la nueva capital de la frontera poblada por los chilenos. Ésta se llamó Temuco y ella es la historia de mi familia y de mi poesía. Mis padres vieron la primera locomotora, los primeros ganados, las primeras legumbres en aquella región virginal de frío y tempestad. Yo nací el año 1904, y antes de 1914 comencé a escribir allí mis primeras poesías. Los largos inviernos del sur se metieron hasta en las médulas de mi alma, y me han acompañado por la tierra. Para escribir me hacía falta el vuelo de la lluvia sobre los techos, las alas huracanadas que vienen de la costa y golpean los pueblos y montañas, y ese renacer de cada mañana [...] Para escribir también me hicieron falta por el mundo las goteras. Las goteras son el piano de mi infancia [...] Así, pues, yo soy un poeta natural de la guerra y de las ciudades, de las máquinas y de las habitaciones, del amor, del vino, de la muerte y de la libertad. Pero soy también un poeta natural de aquellos bosques sombríos, que recuerdo ahora con empapada fuerza. Yo he empezado a escribir por un impulso vegetal y mi primer contacto con lo grandioso de la existencia han sido mis sueños con el musgo, mis largos desvelos sobre el humus [...]. Viajes 2 Pablo Neruda,1942 -1943* * NERUDA (2001) p. 522. 20 1. Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto e o Álbum de Temuco Laurita, a irmã caçula de Pablo Neruda, sempre atribuiu um valor especial às fotografias familiares. Sigilosamente, ela recolhia e guardava os retratos como se fossem tesouros. Graças a Laurita é possivel hoje acompanhar imagens dos primeiros anos de Eliecer Neftalí. O Álbum de Temuco (2003) é a compilação fotográfica organizada por Bernardo Reyes, sobrinho neto de Pablo Neruda, que apresenta fotografias valiosíssimas guardadas por Laura Reyes. Estes documentos configuram um arquivo pessoais revelador de imagens, às vezes embaçadas, às vezes nítidas, que permitem uma aproximação mais íntima do Nobel chileno. Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto, mais tarde Pablo Neruda, nasceu na cidade de Parral em 12 de julho de 1904. Sua mãe, Rosa Basoalto, uma professora, morreu dois meses após seu nascimento, motivo pelo qual o pequeno Neftalí morou até os dois anos de idade com seus avós. Da cidade de nascimento, assim como da figura da mãe, Neruda não guardou recordações fato que deixou registrado Pablo Neruda, 19051 décadas mais tarde em Memorial de Isla Negra (1964), no poema “Nacimiento” (NERUDA,1993a:1021-1022): Nació un hombre entre muchos que nacieron [...] 1 REYES (2003) p.18. 21 Parral se llamaba el sitio del que nació en invierno. Yo no tengo memoria del paisaje, ni tiempo, ni rostros, ni figuras, sólo polvo impalpable, la cola del verano y el cementerio en donde me llevaron a ver entre las tumbas el sueño de mi madre. Y como nunca vi su cara la llamé entre los muertos, para verla, pero como los otros enterrados, no sabe, no oye, no contestó nada, y allí se quedó sola, sin su hijo, huraña y evasiva entre las sombras [...] No ano de 1906, seu pai, José del Carmen Reyes Morales, um ferroviário, o levou a morar a Temuco, na “ciudad maderera”. No novo lar, Neftalí foi criado por Trinidad Candia Marverde, segunda esposa de seu pai e com a qual já tinha um filho, Rodolfo. O chamado feito por Neftalí a sua falecida mãe — “la llamé entre los muertos, para verla” — encontrou resposta na ternura e carinho com que Trinidad o Pablo Neruda, 19062 recebeu. A forte união surgida entre o pequeno orfão e a “mamadre”, nome com o qual Neflalí se dirigia a Trinidad, 2 REYES (2003) p.19. 22 ficou estampado no poema “La Mamadre” (NERUDA,1993a:1025-1026), um testemunho comovente de amor e gratidão que vale a pena ser admirado: La mamadre viene por ahí, con zuecos de madera [...] y ahora, en la mañana de sol helado, llega mi mamadre, doña Trinidad Marverde, dulce como la tímida frescura del sol en las regiones tempestuosas, lamparita menuda y apagándose, encendiéndose para que todos vean el camino. Oh dulce mamadre — nunca pude decir madrastra —, ahora mi boca tiembla para definirte, porque apenas abrí el entendimiento vi la bondad vestida de pobre trapo oscuro, la santidad más útil: la del agua y la harina, y eso fuiste: la vida te hizo pan y allí te consumimos [...] Ay, mamá, como pude vivir sin recordarte cada minuto mío? No es posible posible. Yo llevo tu Marverde en mi sangre, el apellido del pan que se reparte, de aquellas dulces manos […] y cuando todo estuvo hecho, y ya podía yo sostenerme con los pies seguros, se fue, cumplida, oscura, al pequeño ataúd donde por vez primera estuvo ociosa bajo la dura lluvia de Temuco. No poema supracitado, Neruda exaltou a importância da figura materna tanto em sua infância quanto na idade adulta e a chamou de “mamá”, nome carinhoso e muito significativo para os chilenos. 23 Rosa Neftalí Opazo Basoalto3 mãe de Pablo Neruda Trinidad Candia Marverde, 19274 a “mamadre” Quando o futuro poeta contava com aproximadamente dez anos de idade chegou ao lar sua meia-irmã Laurita, fruto de outro relacionamento clandestino de José del Carmen. A pequena Laura, um pouco mais nova que Neftalí, se converteu em sua companhia inseparável e elo de comunicação entre o poeta e a família. O jovem Neftalí realizou seus estudos no Liceo de Hombres de Temuco. Mais tarde o jornal regional La Mañana publicou seus primeiros versos. Em 1919 obteve, com seu poema "Nocturno ideal", o terceiro prêmio nos Juegos Florales de Maule e no ano seguinte colaborou com a revista literária Selva Austral. O jovem intelectual adotou cedo o pseudônimo Pablo Neruda por medo das reprimendas do pai que não aceitava manifestações de arte dentro de casa. O jovem Neftalí pensou nesse pseudônimo como uma solução provisória 3 4 REYES (2003) p.19. REYES (2003) p.20. 24 que duraria uns poucos meses, porém, em 1946 ditou-se a sentença judicial que declarava que o nome legal de Neftalí passava a ser Pablo Neruda. Neruda, um homem que fez sua história. Cresceu num acampamento militar onde se derrubavam bosques e matas para se construir cidades de madeira. Uma vida que tinha tudo para ser condenada ao anonimato, mas o jovem provinciano mudou seu destino quando descobriu a leitura e com ela o poder da palavra. Em março de 1921 Neruda viajou a Santiago para estudar francês no Instituto Pedagógico. Mas o jovem de dezessete anos descobriu na cidade grande o mundo da boemia literária e começou a dedicar-se mais à poesia que aos estudos, como relatado por ele próprio: Hacíamos los poetas estudiantiles una vida extravagante […] fuera de mi habitación y de mi calle, la turbulencia de la vida de los escritores de la época tenía una especial fascinación. Estos no concurrían al café, sino a las cervecerías y a las tabernas. Las conversaciones y los versos iban y venían hasta la madrugada. Mis estudios iban resistiendo (NERUDA.In: AGUIRRE, 1967:119). Na capital chilena dos anos vinte se realizavam inolvidáveis festas que concentravam a alegría coletiva, foi numa das muitas festas da Primavera que Pablo Neruda ganhou um concurso literário com o poema “La canción de la fiesta”. O poema premiado foi publicado em 14 de outubro de 1921 por “Ediciones Juventud” e, no dia seguinte, foi reproducido na revista Claridad. Aos dezenove anos Neruda escreveu Crepusculario e aos vinte Veinte poemas de Amor y una canción desesperada. Rapidamente o jovem poeta ficou conhecido na capital de seu país e, entre os anos de 1924 e 1926, publicou vários livros, dirigiu a revista Caballo de bastos e colaborou em várias 25 outras. Em 1926, a veia modernista do vate apontava em direção ao vanguardismo e resultou nos seguintes livros: Tentativa del hombre infinito (1924), El habitante y su esperanza (1926) e Anillos (1926). Mas a fama não o tirou da pobreza em que vivia e, na necessidade de sobreviver, tornou-se diplomata. No ano de 1927, viajou ao Oriente onde desempenhou o cargo de cônsul honorário em Rangum, Ceilão, Java e Singapura. Durante os cinco anos em que permaneceu no Oriente, Neruda mergulhou na mais profunda solidão, apesar dos amores, das viagens e das novidades que lhe oferecia a nova cultura, muitas vezes chegou ao desespero. Em suas Memórias Neruda relata o cotidiano do trabalho consular: Mi vida oficial funcionaba una sola vez cada tres meses, cuando arribaba un barco de Calcuta que transportaba parafina sólida y grandes cajas de té para Chile. Afiebradamente debía timbrar y firmar documentos. Luego vendrían otros tres meses de inacción, de contemplación ermitaña de mercados y templos Ésta es la época más dolorosa de mi poesía (NERUDA, 2000:115). A profunda solidão em que se encontrava submerso ficou estampada em seus versos, assim como as experiências vividas, algumas delas ameaçadoras e perigosas. Surgiu, assim, nas páginas de Residencia en la tierra (1925-1931), uma poesia que rompiu com os moldes estabelecidos e que constituiu sua própria vanguarda. Em 1930, ainda no Oriente, Neruda casa-se com María Antonieta Hagenaar, uma jovem holandesa que vivia em Java. Seis anos depois o casal se divorcia. Do relacionamento entre Neruda e Maria Antonieta nasceu Malva 26 Marina. Filha única de Neruda, a pequena Malva Marina morreu muito cedo vítima de uma doença rara. Pablo Neruda também foi Cônsul do Chile em Buenos Aires em 1933, cidade em que conheceu Federico García Lorca. No ano seguinte viajou para Espanha como cônsul e em 1936, eclodiu a Guerra Civil Espanhola. Profundamente afetado com a guerra e com o assassinato do amigo García Lorca, o poeta chileno comprometeu-se com o movimento republicano. Na França, em 1937, escreveu España en el corazón e retornou para o Chile onde começou a produzir textos com temáticas políticas e sociais. No ano de 1939 foi designado cônsul para a imigração espanhola em Paris e, em 1940, Cônsul Geral no México. Em 4 de março de 1945 Neruda foi eleito Senador da República do Chile. Incomodado com o tratamento repressivo que era dado aos trabalhadores das minas chilenas, começou a fazer vários discursos com críticas ao presidente González Videla. Passou a ser perseguido pelo governo do Chile e se exilou na Europa. Em 1952, de volta do exílio, publicou no Chile Los versos del capitán e, dois anos depois, Las uvas y el viento e Odas elementales. Recebeu o Prêmio Stalin da Paz em 1953. No ano de 1955, se divorciou de sua segunda esposa, Delia del Carril, com quem havia-se casado em 1943. Em 1965, recebeu o título Doutor Honoris Causa em Filosofia e Letras da Universidade de Oxford (Inglaterra), título pela primeira vez concedido a um sulamericano. Em 1966, legalizou sua união com Matilde Urrutia. Em outubro de 1971 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, enquanto exercia o cargo embaixador na França, e em 10 de dezembro desse mesmo ano recebeu o 27 galardão em Estocolmo das mãos do rei Gustavo Adolfo convertendo-se no terceiro latino-americano a receber essa distição e no segundo chileno, depois de Gabriela Mistral. Um ano mais tarde recebeu o Prêmio Lênin da Paz, pouco tempo depois regresou definitivamenta ao Chile. Em 11 de setembro de 1973 um golpe militar derrubou o governo de Salvador Allende. Doze dias após o golpe militar, em 23 de setembro, faleceu aos 69 anos de idade o poeta Pablo Neruda. A opinião pública internacional se enterou, com profundo estupor, de que as casas de Valparaíso e de Santiago tinham sido saqueadas e destruídas pelos militares. Ao morrer Neruda deixou oito livros sem publicar, eles estavam destinados à comemoração de seus setenta anos de vida. 2. Ruptura e permanência: marcas da criação nerudiana Yo cambié tantas veces de sol y de arte poética que aún estaba sirviendo de ejemplo en cuadernos de melancolía cuando ya me inscribieron en los nuevos catálogos de los optimistas, y apenas me habían declarado oscuro como boca de lobo o de perro denunciaron a la policía la simplicidad de mi canto y más de uno encontró profesión y salió a combatir mi destino en chileno, en francés, en inglés, en veneno, en ladrido, en susurro. La Barcarola,1967. Pablo Neruda*. * NERUDA (1993b) p. 113. 28 Ao observar o conjunto da obra nerudiana pode-se constatar uma literatura em permanente metamorfose, um processo criativo em reformulação constante, registradas pelo poeta ao longo de sua vida na prosa, na lírica e em artigos. Mudanças freqüentes delatam uma exigência criadora, que constitui um dos fatores da originalidade deste autor, característica reconhecida por Rodríguez Monegal (2003:38), quando afirma que as mudanças em Neruda, […] têm um sentido unívoco: permitir ao poeta desenvolver-se ao longo de sua obra e de uma vida de constante exigência criadora; manter o poeta em seu movimento central sem paralisar a possibilidade da aventura. Por isso Neruda se transforma sem descaracterizar-se, assume novas máscaras para expressar melhor a pessoa única, foge para ficar cravado em seu mesmo centro. [Trad. da autora] Para fazer um croqui da obra nerudiana é oportuno refletir sobre os escritos em que o autor expõe seu pensamento estético. Todavia, antes da leitura de sua obra, cabe fazer uma reflexão a respeito do período das vanguardas como estratégia para entender o processo criativo desenvolvido pelo poeta chileno e, com isto, fornecer os elementos para a realização da análise da estética nerudiana. O século XX foi marcado pela crescente industrialização, avanços tecnológicos, científicos e mudanças nas artes e na literatura. Desde 1914, início da Primeira Guerra Mundial, as tendências artísticas inovadoras se generalizaram configurando o período vanguardista. Como espaço de agitação e transformação, as vanguardas foram formadoras de realidades paralelas através da linguagem e representaram a procura por outras verdades e pela inovação. Contudo, os poetas vanguardistas desejavam transferir para o texto literário todas as experimentações técnico-científicas e filosóficas surgidas no 29 final do século XIX, originando uma proliferação de movimentos estéticos. Com isto, as vanguardas literárias expressaram em vários momentos uma desarticulação das linguagens tradicionais. É a denominada época dos –ismos, que representou o surgimento de uma série de movimentos como cubismo, futurismo, expressionismo, dadaísmo e surrealismo. Neste período histórico conturbado os intelectuais direcionaram sua atenção para a Europa, sendo Paris o centro de convergência, O encontro de artistas das mais diferentes áreas fez com que o período inicial das vanguardas fosse caracterizado pela interação entre pintores, poetas, escritores e escultores, dentre outros, movidos pela vontade de abolir as fronteiras entre as diversas expressões artísticas e, ao mesmo tempo, provocando influências mútuas (Díaz Merino, 2004:28). Na procura por essa renovação, a figura do poeta teve um papel importantíssimo. Por meio da poesia, o homem pôde visitar lugares inexplorados: o universo mágico do poema. A revolução vanguardista européia ocorreu num momento em que o homem americano estava à procura da sua inserção na modernidade, na sociedade industrial. Nesse momento histórico, as idéias revolucionárias originadas na Europa foram trazidas ao contexto latino-americano pelas vozes de jovens poetas, adquirindo a cor local: os vanguardistas hispano-americanos lutaram pela valorização da arte nacional e pela consagração de sua excelência, revelando uma arte nova, rítmica e vital. A vanguarda na América Hispânica desenvolveu-se com toda força criativa entre os anos de 1916 e 1935, tendo como figuras representativas de desse período dois destacados poetas chilenos: Vicente Huidobro e Pablo Neruda. Sobre a representatividade desses poetas para a vanguarda Latino- 30 americana, Hugo Verani (2006:138), no texto A vanguardia y sus implicaciones, declarou: Antes da publicação de El espejo de agua (1916) de Vicente Huidobro, havia somente precursores influentes e antecipações isoladas dos últimos remanescentes do Modernismo; no momento em que Pablo Neruda publicou sua segunda Residencia en la Tierra (1935), a Vanguarda já tinha cumprido seu propósito histórico. Depois disso houve um deslocamento de sensibilidades, uma notável diminuição do humor experimental e um aumento drástico no papel social do autor; em particular, consolidaram-se os logros estéticos do período. [Trad. da autora] Vicente Huidobro, precursor e propagador do primeiro movimento de vanguarda na América Hispânica, o criacionismo (1916), promoveu uma experimentação poética que desencadeou uma onda vanguardista que provocou a proliferação de uma série de –ismos: ultraísmo, estridentismo, martinfierrismo, runrunismo e nadaismo, dentre outros. Movimentos estéticos surgidos quase que simultaneamente, enquanto seus idealizadores alçavam voz contra a arte dominante que não se adequava ao novo contexto histórico de “la sociedad urbana tecnológica” (Verani, 2006:140), um mundo em plena transformação, que clamava por formas inovadoras. Cabe destacar a influência causada pela palavra huidobriana em jovens escritores espanhóis na época em que o poeta chileno divulgou sua estética criacionista na Espanha. Como decorrência das idéias de Vicente Huidobro, o escritor espanhol Rafael Cansinos-Asséns escreveu o Manifesto Ultra (1918) no qual sintetizou a conformação oficial da vanguarda de seu país. A importância da passagem de Huidobro pela Espanha foi registrada pelo próprio Cansinos-Asséns com as seguintes palavras: 31 Huidobro trazia primícias completamente novas, nomes novos, obras novas; um ultramodernismo. Desdenhando os doutores do tempo. O autor de Horizon carré limitou-se a difundir a boa nova entre os poucos e os mais jovens [...] Desses colóquios familiares, uma virtude de renovação transcendeu a nossa lírica [...] (Poesía, 1989:72). [Trad. da autora] Na segunda década do século XX, a grande maioria dos países americanos apresentava diversos movimentos vanguardistas e consecutivamente grupos proclamavam a ruptura com a arte tradicional, assim como a fundação de novos –ismos. Contudo, a vanguarda não se desenvolveu homogeneamente em todo o continente americano, sendo que “[...] as primeiras e mais sofisticadas manifestações floresceram nos principais centros da cultura urbana (Buenos Aires, Lima, Santiago, Ciudad de México)” (Verani,2006:148). Os principais –ismos hispano-americanos, que surgiram após o criacionismo, foram, primeiramente o Ultraísmo (1921), movimento divulgado por Jorge Luis Borges na Argentina e, no ano seguinte, surgiu no México o Estridentismo (1922), fundado por Manuel Maples Arce e Los Contemporáneos (1928). Essa proliferação de movimentos estéticos estava em sintonia com o momento histórico de rápidas transformações e proclamava a ruptura com o passado, visando somente o presente e o futuro. Surgem neste contexto grupos de jovens literatos que propõem mudanças radicais na literatura: abolição da mímesis, da descrição e da expressão sentimental em prol da liberdade inventiva e da experimentação, sem os limites impostos pelas formas tradicionais. Os jovens vanguardistas, conscientes de que para alcançar as drásticas mudanças propostas era necessário assumir uma posição combativa e enfática que chamasse a atenção do mundo, divulgaram suas idéias através de documentos com mensagens diretas e objetivas que tinham uma rápida 32 chegada ao público: manifestos, cartas e proclamas eram publicados em jornais e revistas de forma intensa. Assim, esses documentos foram o principal meio de divulgação e consolidação dos movimentos vanguardistas que, conforme Hugo Verani (2006:139), transformaram-se em verdadeiros símbolos da época, porque, Os manifestos, as proclamações, as funções públicas, as cartas abertas, as polêmicas e as pequenas revistas converteram-se nos símbolos típicos do período, geralmente mais interessantes que as obras literárias escritas [...] Escrever sobre literatura equivalia a fazêla [...].[Trad. da autora] As revistas literárias que acolheram as novas vozes não abraçavam nenhuma tendência em particular. Sendo seu objetivo principal a divulgação de idéias vanguardistas. Na América Hispânica, segundo o crítico mexicano José Luis Martínez (1979:76), cabe destaque para as seguintes revistas: [...] as argentinas Prisma (1921-1922), Proa (1922-1923) e Martín Fierro (1924-1927); as mexicanas Horizonte (1926-1927), Ulises (1927-1928) e Contemporáneos (1928-1931); a cubana Revista de Avance (1927-1930); a peruana Amanauta (1926-1932) e as uruguaias Los Nuevos (1920) e Alfar (1921-1955). No Chile, as revistas literárias nos anos vinte também tiveram uma considerável produção. Algumas dessas revistas foram: Claridad (1920-1924), Elipse (1922), Ngulltún (1924), Mandrágora (1938), Caballo de fuego e Orfeo. Pablo Neruda, que a partir de 1921 vivia na capital chilena, publicou seus textos em várias revistas vanguardistas. O jovem poeta, imerso na solidão da multidão, se entregou a uma escritura existencialista e dexou patente seu desejo de registrar a realidade, observada num afã de conciliar a vivência e sua representação. Neruda revelou o mundo em que vivia através de sua poesia. 33 Revelou também o desejo de articular poesia e vida. No ano de 1922, com apenas dezoito anos, o vate já procurava uma expressão simples para sua arte, desejo divulgado através da Revista Claridad5. Na edição nº 122, datada em junho de 1924, Neruda (2001:398) declarou: A veces me alcanza el deseo de hablar poco, sin poema, con las frases mediocres en que existe esta realidad, del rincón de calle, horizonte y cielo que avizoro al atardecer, desde la alta ventana donde siempre estoy pensando […] Decir, por ejemplo, que la calle polvorienta me parece un canal de tierra inmóvil, sin poder de reflejo, definitivamente taciturno […] As novas idéias e questionamentos estéticos que invadem Neruda a partir da experiência citadina não implicaram somente em uma mudança de conceitos, mas também em uma transformação interna que resultou em novas formas de percepção, de pensar e, conseqüentemente, de representar, criando uma voz comprometida com o homem, com o mundo e com a memória, “[...] seus poemas vão nadando à deriva, levando consigo uma incubação de desejos e recordações” (Anderson-Imbert,1988:205) [Trad. da autora]. Mas, é na denominada “segunda fase vanguardista” (VERANI,2006:151) que a voz do jovem Pablo Neruda se faz ouvir com mais força. A segunda fase vanguardista se inicia com a publicação da antologia Índice de la nueva poesía hispanoamericana (1926) editada por Jorge Luis Borges, Alberto Hidalgo e Vicente Huidobro, fato que marca a consolidação da vanguarda hispanoamericana. As palavras de Verani sobre o assunto são as seguintes: Claridad foi a revista da Federación de Estudiantes de Chile editada, numa primeira etapa, entre 1920 e 1932. Os textos de Pablo Neruda publicados na revista vanguardista e citados neste estudo foram extraidos do livro Pablo Neruda. Obras completas IV: Nerudiana dispersa I (1915-1964), publicado em 2001. 5 34 Apesar de não haver uma linha de separação entre a primeira e a segunda onda vanguardista, essa antologia demarcou um momento de câmbio [...] a arte como valor de choque e como explosão incendiária tinha completado seu ciclo e a consolidação da Vanguarda começava a adquirir o valor de uma alternativa institucional. [Trad. da autora] Contudo, a consagração de Pablo Neruda aconteceu somente a partir de 1935, ano em que começou a publicar suas obras fora do Chile: Espanha, México, França e Itália. O êxito internacional de Neruda confirmou a presença da poesia chilena, após Gabriela Mistral e Vicente Huidobro, nos círculos mais importantes do mundo intelectual da época. 2.1 Da tradição à inovação El poeta no debe ejercitarse, hay un mandato para él y es penetrar la vida y hacerla profética [...] La inteligencia de los poetas, desde hace tiempo ha apartado toda relación humana de lo que dicen, y toda cordialidad y amistad para el mensaje poético han huido del mundo, cuando en verdad, ¿qué otro objeto el de la poesía que el de consolar y el de hacer soñar? [...] la poesía debe cargarse de sustancia universal, de pasiones y de cosas. Eso quiero hacer yo: una poesía poética. Pablo Neruda, 1931*. Conforme mencionado anteriormente, Neruda chegou pela primeira vez à capital chilena no ano de 1921. Na bagagem o jovem levava os versos escritos entre 1918 e 1920, aproximadamente duzentos poemas. Esses poemas estavam divididos em três cadernos, sendo que um deles tinha sido especialmente preparado por Neruda para ser publicado na capital, mas o projeto do livro intitulado Helios não se concretizou. Somente dois anos após sua chegada a Santiago do Chile, Neruda publicou sua primeira obra, * NERUDA. In: RODRIGUEZ MONEGAL (1977) p. 83 35 Crepusculario (1923), que além dos novos poemas escritos em Santiago continha oito pertencentes ao caderno Helios. Ainda que Crepusculario revele uma forte influência do pós-modernismo6 e do romantismo, como o afirma Sáinz de Medrano (1996:105), a obra já apresentava claros elementos vanguardistas. No ano seguinte, 1924, Pablo Neruda publicou Veinte poemas de amor y una canción desesperada. Poemário que segundo o próprio vate não atingiu seu “[...] secreto y ambicioso deseo de llegar a una poesía aglomerativa en que todas las fuerzas del mundo se juntaran y se derribaran” (Neruda,1964:181). Nos anos seguintes, Neruda continuou a incansável procura pela expressão desejada, exercício que o levou a desenvolver uma autonomia estética registrada nos versos de Tentativa del hombre infinito, livro impresso em 1925 e editado em 1926. Nessa obra o vate iniciou sua incursão num mundo poético capaz de traduzir as experiências e as percepções humanas, uma poesia autoreflexiva que rompeu com os cânones da lírica vigente. Mas, apesar de ter dado os primeiros passos em direção à configuração de uma nova estética, Neruda ficou insatisfeito com o resultado de seus esforços, porque não conseguiu realizar a “poesía aglomerativa” tão desejada. Sobre seu terceiro livro Neruda (1964:182) declarou: Empecé una segunda tentativa frustrada y ésta se llamó verdaderamente Tentativa... En el título presuntuoso de ese libro se puede ver cómo esta motivación vino a poseerme desde muy temprano. Tentativa del hombre infinito fue un livro que no alcanzó a ser lo que quería [...] Sin embargo, dentro de su pequeñez y de su 6 O termo modernismo refere-se ao “movimento literário de grande riqueza lingüística e inovação formal que se iniciou na América Hispânica em finais dos anos setenta do século XIX e perdurou até a segunda década do XX” (JRADE, 2006:37), já com o nome de pósmodernismo designa-se o momento de câmbio cultural que ainda não está bem definido, entre as glórias do Modernismo e a violência da Vanguarda [...]” (QUIROGA, 2006:339). [Trad. da autora] 36 mínima expresión, aseguró más que otras obras mías el camino que yo debía seguir. Yo he mirado siempre la Tentativa del hombre infinito como uno de los verdaderos núcleos de mi poesía [...] y si en alguna parte están medidas las expresiones, la claridad o el misterio, es en este pequeño livro, extraordinariamente personal. Nas palavras do próprio Neruda (In: AGUIRRE, 1967:150), Tentativa del hombre infinito “[...] es el libro menos leído y estudiado de mi obra y sin embargo es uno de los libros más importantes de mi poesía, enteramente distinto a los demás”. A mudança formal apresentada no poemário, ausência de maiúsculas e falta de pontuação, provocaram opiniões negativas, já que segundo os críticos da época, a ausência de pontuação dificultava a expressividade do autor. Apresenta-se a seguir um fragmento do livro em que se podem identificar algumas características inovadoras: introspecção, livre associação verbal, justaposição de frases incompletas, impressões sensoriais (NERUDA,1999: 208), Esta es mi casa aún la perfuman los bosques de donde la acarreaban allí tricé mi corazón como el espejo para andar a través de mi mismo esa es la alta ventana y ahí quedan las puertas de quien fue el hacha que rompió los troncos tal vez el viento colgó las vigas su peso profundo olvidándolo entonces era cuando la noche bailaba entre sus redes cuando el niño despertó sollozando. Constata-se com a leitura do poema supracitado um processo criativo que se aproxima da estética surrealista nas visões oníricas e na seqüência ininterrupta de imagens, deixando que os sentimentos emanem livremente sem abandonar por isto a paisagem da infância. Sobre Tentativa del hombre infinito, Hugo Verani (2006:157) escreveu: 37 Tentativa del hombre infinito, um vôo noturno ao subconsciente e ao onírico em busca do ‘homem superior’ em paralelo a André Bretón de que se pode conseguir uma ‘realidade superior’ através do uso livre das associações verbais. [Trad. da autora] Tentativa del Hombre Infinito é considerado a transição para a estética de Residencia en la Tierra obra que, de acordo com Hugo Verani (2006:158), constitui “a melhor contribuição de Neruda para a literatura de Vanguarda”. [Trad. da autora] Entre os anos de 1927 e 1932 Neruda viveu no Oriente desempenhando o cargo de cônsul do Chile. Parte das Residencias foram escritas em terras orientais pelo que muito se especulou sobre os efeitos que a cultura oriental possa ter provocado em sua obra. Sobre tais especulações Neruda (2000:113) escreveu: He leído en algunos ensayos sobre mi poesía que mi permanencia en Extremo Oriente influye en determinados aspectos de mi obra, especialmente en Residencia en la tierra. En verdad mis únicos versos de aquél tiempo fueron los de Residencia en la tierra [...] el Oriente me impresionó como una gran e desventurada familia humana, sin destinar sitio en mi conciencia para sus ritos ni para sus dioses. No creo, pues, que mi poesía de entonces haya reflejado otra cosa que la soledad de un forastero trasplantado a un mundo violento y extraño. O primeiro volume de Residencia en la tierra começou a ser escrito no Chile em 1925 e foi terminado em 1931 na cidade de Colombo. Este livro foi publicado em abril de 1933, no Chile, após a volta de Neruda do Oriente. A experiência de viver num mundo tão diferente dificultou o andamento dos escritos nerudianos e modificou profundamente seu estilo. De acordo com Neruda as mudanças na forma de escrever e de criar têm uma relação direta com o estado emocional e com o ambiente em que o escritor se encontra inserido no momento da criação literária. Cita-se a seguir o depoimento do 38 próprio Neruda (2000:130) sobre os motivos que provocaram mudanças em seu fazer poético: Había casi terminado de escribir el primer volumen de Residencia en la tierra. Sin embargo, mi trabajo había adelantado con lentitud. Estaba separado del mundo mío por la distancia y por el silencio, y era incapaz de entrar de verdad en el extraño mundo que me rodeaba. Mi libro recogía como episodios naturales los resultados de mi vida suspendida en el vacío; ‘Mas cerca de la sangre que de la tinta’. Pero mi estilo se hizo más acentuado y me di alas en la repetición de una melancolía frenética. Insistí por verdad y por retórica en un estilo amargo que porfió sistematicamente en mi propia destrucción. El estilo no es sólo el hombre. Es también lo que lo rodea, y si la atmósfera no entra dentro del poema, el poema está muerto: muerto porque no ha podido respirar. Como se observará a seguir, há uma clara mudança de tom e de estilo entre os poemas de Residencia en la tierra (1925-1931), produzidos no Chile e os produzidos no Oriente. A título de exemplo citam-se dois poemas residenciários, “Galope muerto” escrito no Chile e “Débil del alba” escrito no Oriente: “Galope muerto” Como cenizas, como mares poblándose, en la sumergida lentitud, en lo informe, o como se oyen desde lo alto de los caminos cruzar las campanadas en cruz, teniendo ese sonido ya aparte del metal, confuso, pesando, haciéndose polvo en el mismo molino de las formas demasiado lejos, o recordadas o no vistas, y el perfume de las ciruelas que rodando a tierra se pudren en el tiempo, infinitamente verdes. Aquello todo tan rápido, tan viviente inmóvil sin embargo, como la polea loca en sí misma, esa rueda de los motores, en fin. [...] (NERUDA, 1999:257) “Débil del alba” El día de los desventurados, el día pálido se asoma con un desgarrador olor frío, con sus fuerzas en gris, sin cascabeles, goteando el alba por todas partes: es un naufragio en el vacío, con un alrededor de llanto. [...] Yo lloro en medio de lo invadido, entre lo confuso entre el sabor creciente, poniendo el oído en la pura circulación, en el aumento cediendo sin rumbo el paso a lo que arriba, a lo que surge vestido de cadenas y claveles, yo sueño, sobrellevando mis vestigios morales [...] Estoy solo entre las materias desvencijadas, la lluvia cae sobre mí, y se me parece, se me parece con su desvarío, solitaria en el mundo muerto, rechazada al caer, y sin forma obstinada. (NERUDA,1999: 260-261) 39 O poema “Galope muerto” segue o processo poético iniciado em Tentativa del hombre infinito, uma poesia que se afasta totalmente da representação tradicional do real e se fundamenta na livre associação de elementos e de ações. Os versos lidos apresentam associações incongruentes, opostas e ilógicas e delas fluem imagens enigmáticas e descontínuas, que vão configurando um mundo aparentemente caótico. De acordo com Neruda, o ambiente que envolve o escritor é um fator determinante na maneira como este, o escritor, executa sua obra “El estilo no es sólo el hombre. Es también lo que lo rodea [...]”. A partir dessa declaração, pode-se afirmar que o ambiente caótico revelado em “Galope muerto” emana da particular visão de Neruda sobre a cidade de Santiago do Chile, urbe que nas primeiras décadas do século XX se encontrava em pleno crescimento industrial. De acordo com o poema “Galope muerto”, pode-se verificar que a cena revelada na composição poética se constitui da soma das imagens que fluem dos versos onde as cinzas flutuando nos mares simbolizam a multidão urbana que circula sem parar pelas ruas da cidade. Cenário alcançado pelo som dos sinos do passado, desintegrando-se como pó nas lembranças que trazem o perfume das ameixas que apodrecem ainda verdes. Tudo acontece num tempo rápido e imóvel como a polia louca das máquinas que marca o ritmo citadino. Imagens que bem poderiam compor uma tela surrealista. Já “Débil del alba” revela que o sentimento de solidão e angústia presentes no canto a Santiago fica mais acentuado no Oriente. A melancolia extrema, produto do afastamento de suas raízes dá forma a uma poesia autoreflexiva que se manifesta na presença de um eu lírico imerso numa atmosfera cinzenta, fria e triste, que mergulha nas lágrimas do sujeito poético. O efeito 40 corrosivo do tempo se faz patente na imagem das matérias que se desintegram: “Estoy solo entre las materias desvencijadas”. Segundo Hugo Verani (2006:157), Neruda, ao “liberar-se da representação objetiva e das barreiras retóricas”, dá expressão à desolação e à profunda introspecção em que se encontrava submerso. 2.2 Proclamação da poesia sem pureza Cuando el tiempo nos va comiendo con su cotidiano decisivo relámpago, y las actitudes fundadas, las confianzas, la fe ciega se precipitan y la elevación del poeta tiende a caer como el más triste nácar escupido, nos preguntamos si ha llegado la hora de envilecernos [...] Y entonces, qué queda de las pequeñas podredumbres, de las pequeñas conspiraciones del silencio, de los pequeños fríos sucios de la hostilidad? Nada, y en la casa de la poesía no permanece nada sino lo que fue escrito con sangre para ser escuchado por la sangre. Conducta y poesía, 1935∗. Diferente dos escritores de seu tempo, Neruda não teorizou sobre poesia, mas desenvolveu uma poesia reflexiva, um aprofundamento crítico que faz do leitor um cúmplice de seus questionamentos e de sua estratégia criativa. No poema “Arte poética”, parte constitutiva de Residencia en la tierra (19251931), Neruda revelou os sinais de um estranhamento com o real, uma maneira metonímica de expressar a concretização de seu mundo imagético. O poema, apresentado a seguir, constitui um verdadeiro tratado de estética no ∗ Texto publicado na Revista Caballo Verde para la Poesía, nº 3, Madrid, dezembro de 1935. In: NERUDA (2001) p.383-384. A revista Caballo Verde para la poesía foi editada por Neruda em Madrid entre os anos de 1935 e 136, ao todo foram editados quatro números. Os textos de Pablo Neruda publicados na revista e citados neste trabalho foram extraídos da obra Pablo Neruda. Obras completas IV: Nerudiana dispersa I (1915-1964), publicado em 2001. 41 qual Neruda (1999:274) dá a conhecer os fundamentos de seu processo criativo: Arte poética Entre sombra y espacio, entre guarniciones y doncellas, dotado de corazón singular y sueños funestos, precipitadamente pálido, marchito en la frente y con luto de viudo furioso por cada día de vida, ay, para cada agua invisible que bebo soñolientamente ….. y de todo sonido que acojo temblando, tengo la misma sed ausente y la misma fiebre fría, un oído que nace, una angustia indirecta, como si llegaran ladrones o fantasmas, y en una cáscara de extensión fija y profunda, como un camarero humillado, como una campana un poco ronca, ….. como un espejo viejo, como un olor de casa sola en la que los huéspedes entran de noche perdidamente ebrios, y hay un olor de ropa tirada al suelo, y una ausencia de flores, - posiblemente de otro modo aún menos melancólico -, pero, la verdad, de pronto el viento azota mi pecho, las noches de substancia infinita, caídas en mi dormitorio, el ruido de un día que arde con sacrificio me piden lo profético que hay en mí, con melancolía y un golpe de objetos que llaman sin ser respondidos hay, y un movimiento sin tregua, y un nombre confuso. “Arte poética” sintetiza o processo de gestação e nascimento de uma nova poesia que resultou da aproximação do poeta à matéria. O poema descreve o surgimento de um sujeito lírico perceptivo que se configura a partir do aprimoramento dos sentidos e da observação dos objetos cotidianos. Um poeta que foi capaz de captar a essência das coisas e das experiências terrenas. Nos primeiros cinco versos de “Arte poética” observa-se a configuração de um cenário aparentemente contraditório: “entre sombra y espacio”, “entre guarniciones y doncellas”. Um ambiente silencioso, triste e até fúnebre, revelado através de palavras como “sombra”, “pálido”, “marchito”, “luto”, “viudo”. Cenário observado por um sujeito lírico que surge veladamente nesse 42 ambiente funesto. Já nos seis versos seguintes o sujeito apresenta-se angustiado ao experimentar sensações, sobretudo auditivas, reveladas através dos vocábulos “sonido”, “oído”, “campana”, “sed”, “fiebre”. Nos últimos versos o sujeito lírico se encontra inserido num ambiente doméstico que apresenta elementos cotidianos revelados, principalmente, pelo sentido do olfato: “olor a casa sola”, “olor a ropa tirada”. O poema finaliza destacando a intromissão brusca do “viento”, que de um golpe imprime o dom da criação no sujeito-poeta. Mas, esse sujeito-poeta ainda está à procura do entendimento que o tornará capaz de ouvir o clamor da matéria em busca de um lugar nas “flores ausentes” e no “nombre confuso”, imagens de uma poesia ainda irrealizada que, à semelhança da “rosa huidobriana”7, florescerá configurando uma nova poesia. Nesse mesmo ano, 1933, Neruda reinicia seu trabalho consular. Primeiramente viaja até Buenos Aires, cidade em que inicia sua amizade com Federico García Lorca. No ano seguinte, 1934, é nomeado cônsul na Espanha. Estabelece-se primeiro em Barcelona e em 1935 se translada a Madrid onde é recebido por seu amigo Federico García Lorca. Foi a través de Lorca que Neruda entrou em contato com a Geração de 27, o que possibilitou sua inserção no circulo literário espanhol e a divulgação de seus ideais estéticos. Após a triste experiência dos consulados no Oriente, Neruda encontra na Espanha um ambiente de amizade, de alegrias e de reconhecimento. Em relação a sua permanência na Espanha, Neruda (1966:100) declarou: 7 O poema “Arte poética” (1916) de Vicente Huidobro contém as bases concretas de sua estética criacionista. O poema termina com os seguintes versos: Por qué cantáis a rosa, ¡oh, poetas!/ hacedla florecer en el poema [...], proclamando assim a necessidade do artista de criar realidades novas, únicas e auto-sufientes. In: Díaz Merino (2004b) p. 51-52. 43 Cuando bajé del tren, estaba esperándome una sola persona con un ramo de flores en la mano: era Federico. Pocos poetas han sido tratados como yo en España [...] Encontré una brillante fraternidad de talentos y un conocimiento pleno de mi obra. Y yo que había sido durante muchos años martirizado por la incomprensión de las gentes, por los insultos y la indiferencia maliciosa, drama de todo poeta auténtico en nuestros países me sentí feliz. Em setembro de 1935 o poeta chileno publicou na Espanha o segundo volume de Residencia en la Tierra (1931-1935), obra que rompeu com os cânones da “Poesia pura”. Neruda decidiu publicar seu livro nesse país talvez porque, como afirma Rodríguez Monegal (1977:94), “Demasiado consciente do valor revolucionário de sua nova obra, Neruda quis lançá-la na Espanha para que de lá se projetasse sobre todo o mundo de língua espanhola”8. No lugar da “Poesia pura”, que, de acordo com David Lagmanovich (2004), contava com renomados seguidores “[...]nas letras de Ocidente de Poe até Valery, com picos de atenção crítica nas décadas de 20 e 30 [...]” e que aspirava “[…] a constituir-se num valor absoluto, onde a estruturação dos sons adquire importância fundamental”9, Neruda propõe uma poesia que não procura a forma nem o ritmo, mas o contato com a matéria e o aprimoramento dos sentidos: o olfato, o gosto, o tato, o ouvido e a visão. Exercício que permitirá captar a essência que emana do contato diário dos objetos com o homem, para logo recriar poeticamente o universo cotidiano cheio de emoções e sensações. Em outubro de 1935, após o lançamento do segundo volume de Residencia en la Tierra (1931-1935), Neruda publicou o texto Sobre una poesía sin pureza, prólogo do primeiro número da revista Caballo Verde para la poesía. Nesse prólogo Neruda apresentou e definiu sua poesia “impura”. Uma 8 9 Trad. da autora. Trad. da autora. 44 poesia que, nas palavras de Lagmanovich (2004), “[...] postula a um tipo específico de experiências poéticas, próximas das substâncias elementares da terra […] uma recuperação do sentimento que elimina toda possível contaminação com uma poesia ‘intelectual’”. [Trad. da autora] A seguir destacam-se fragmentos representativos de Sobre una poesía sin pureza. Através de uma linguagem simples, Neruda (2001:381-382) dá a conhecer sua concepção do fazer poético: Es muy conveniente, en ciertas horas del día o de la noche, observar profundamente los objetos en descanso […] De ellos se desprende el contacto del hombre y de la tierra como una lección para el torturado poeta lírico […] Así sea la poesía que buscamos, gastada como un ácido por los deberes de la mano, penetrada por el sudor y el humo […] Una poesía impura como un traje, como un cuerpo […] La sagrada ley del madrigal y los decretos del tacto, olfato, gusto, vista, oído, el deseo de justicia, el deseo sexual, el ruido del océano, sin excluir deliberadamente nada, sin aceptar deliberadamente nada, la entrada en la profundidad de las cosas en un acto de arrebatado amor […] Hasta alcanzar esa dulce superficie del instrumento tocado sin descanso […] Y no olvidemos nunca la melancolía, el gastado sentimentalismo, perfectos frutos impuros de maravillosa calidad olvidada, dejados atrás por el frenético libresco: la luz de la luna, el cisne en el anochecer, “corazón mío”, son sin duda lo poético elemental e imprescindible. Quien huye del mal gusto cae en el hielo. No texto, que pode ser considerado um manifesto, Neruda desmitificou a poesia tradicional ao elaborar uma poesia que nada exclui. O poeta enumera uma série de elementos heterogêneos que não fazem parte do “bom gosto” característico dos versos tradicionais. Nem a melancolia nem o sentimentalismo ficam fora da nova expressão poética proporcionando um lugar literário aos elementos considerados de “mau gosto”, que não tinham direito de entrar na casa da poesia. Mas, a crítica à lírica vigente fica ainda mais patente quando Neruda denomina de “impura” sua poesia: ”Una poesía 45 impura como un traje, como un cuerpo”, porque segundo o próprio autor, “Quien huye del mal gusto cae en el hielo”. Para Luis Rosales o manifesto Sobre una poesía sin pureza é de grande importância porque estabelece mudanças pontuais na poesia dos anos trinta. As palavras de Rosales (1974:61) foram as seguintes: [...] o manifesto de Neruda foi capital na renovação da poesia no que se refere a quatro aspectos fundamentais: a substituição da poética da beleza pela poética da existência, o encontro de novos esquemas formais, a criação de uma nova sintaxe e, finalmente, a ampliação ilimitada e planetária do mundo poético. [Trad. da autora] A poética nerudiana propunha a revelação da existência em todos seus aspectos, uma expressão totalizadora que pudesse fundir todos os recursos expressivos: cantar, contar e dizer. Expressão totalizadora que o vate alcançou no desenvolver de sua poesia e que foi reconhecida por um dos escritores mais representativos da América Latina, Miguel Ángel Asturias (1973:15): Pablo Neruda, poeta habitado, ou poderia se dizer planeta habitado. No universo da poesia giram poetas que foram como planetas mortos e os que são como planetas vivos. Neruda, mais que nenhum outro, é por excelência o poeta habitado. Sua poesia, por isso mesmo, é um mundo aberto, a poesia que mais objetos contêm, que mais coisas canta, e se não canta, conta, e se não conta, diz. Diz e diz. [Trad. da autora] As críticas contidas no manifesto nerudiano tinham por alvo o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958) para quem a poesia pura era a única poesia possível. Ramón Jiménez era considerado, tanto por espanhóis quanto por hispano-americanos, o “epítome del esteta” (Quiroga,2006:342), mas seu temperamento difícil provocou desentendimentos com seus 46 seguidores, especialmente com os jovens da Geração de 27. Sobre as desavenças com Juan Ramón Jiménez, Neruda (2000:158) esclareceu: Juan Ramón Jiménez, poeta de gran esplendor fue el encargado de hacerme conocer la legendaria envidia española. Este poeta que no necesitaba envidiar a nadie puesto que su obra es un gran resplandor que comienza con la oscuridad del siglo, vivía como un falso ermitaño, zahiriendo desde su escondite a cuanto creía que le daba sombra. Los jóvenes García Lorca, Alberti, así como Jorge Guillén y Pedro Salinas – eran perseguidos tenazmente por Juan Ramón [...] Contra mí escribía todas las semanas en unos acaracolados comentarios que publicaba domingo a domingo en el diario El Sol. Pero yo opté por vivir y dejarlo vivir. Nunca respondí nada, no respondí - ni respondo - las agresiones literarias. Enquanto todos na Espanha celebravam a Neruda, Ramón Jiménez acrescentava a nota discordante no momento em que “nega-se a seguir o carro do novo poeta triunfador e se mantém obstinadamente à margem” (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1977:107). Mas o vate não se deixou abater e começou a escrever os versos da Tercera Residencia (1935-1945), obra que registrou uma nova fase na criação nerudiana. 2.3 “Verdadismo”, a poesia popular da justiça social España es para mí una gran herida y un gran amor [...] Pero los españoles deben saber que yo viví mucho tiempo — los españoles de esta generación que han olvidado ya muchas cosas — y que tomé parte, dentro de una generación extraordinaria, en las preocupaciones, en los deberes y en la poesía de una época. Esa época es para mí fundamental en mi vida. Por lo tanto, casi todo lo que he hecho después, casi todo lo que hecho en mi poesía y en mi vida, tiene la gravitación de mi tiempo de España... Al recordar aquella época, a mí se me confunden las cosas en un gran afecto [...]. Barcelona, junho de 1970* Pablo Neruda. * In GÁLVEZ BARRAZA (2003) p.15. 47 A experiência de viver na Espanha foi inesquecível para Neruda. Além das grandes amizades cultivadas, presenciou a destruição que desolou a terra que tão bem o acolheu. Os fatos vivenciados pelo poeta chileno em terra espanhola decorrentes da Guerra Civil (1936) constituem um dos acontecimentos mais comoventes do século XX. Muito escreveu Neruda sobre Espanha, mas há uma declaração que ilustra claramente a forte ligação entre o poeta chileno e a terra espanhola: “A mí me hizo la vida recorrer los más lejanos sitios del mundo antes de llegar al que debió ser mi punto de partida: España” (NERUDA 2001:454), palavras que adquirem um peso maior quando emanam de quem conheceu quase que o mundo inteiro. Pablo Neruda chegou à Espanha em maio de 1934 para ocupar o cargo de Cônsul em Barcelona. No mês de agosto desse mesmo ano se transladou à capital espanhola e em inícios de 1935 foi nomeado Adido Cultural na Embaixada do Chile em Madrid, sem perder sua categoria de cônsul, como o próprio poeta confidenciou em uma carta a seu amigo Héctor Eandi: [...] Por otra parte resulta que al principio anduve tan mal de ánimo, inestable, errante entre Barcelona y Madrid, y un poco desesperado por mi destino. Al fin haciendo un esfuerzo supremo he logrado que me destinen a Madrid, como agregado a la embajada ( In: AGUIRRE, 1980:134). Em Madrid, centro nevrálgico da Península Ibérica, Neruda se transformou na figura chave da nova poesia e estabeleceu contato com os representantes das letras e das artes espanholas do momento: Federico García Lorca, Miguel Hernández, Rafael Alberti, Manuel Altolaguirre, os pintores Miguel Prieto e José Caballero, dentre outros jovens poetas e artistas aos quais Neruda fez cálidas referências ao longo de sua obra. 48 Em seu discurso “España no ha muerto”, pronunciado em 24 de março de 1939, no Congreso Internacional de las Democracias, realizado em Montevidéu, Neruda (2001:422) lembrou com nostalgia de sua primeira visita a Madrid, quando só viu um rosto conhecido esperando-o na estação ferroviária, suas palavras foram as seguintes: En una noche sobre la cual ha caído el tiempo, un tiempo duro como un látigo, una noche ya envejecida y arrugada por tantas ausencias y quemada con pólvora, bajé del tren para pisar Madrid por primera vez. Y entre la multitud que rodeaba y llenaba la estación, multitud increíblemente remota y desconocida, sólo un rostro era para mí, sólo una cara pálida y morena, sólo una máscara de España venía a encontrarme. Le divisé de pronto, entre el humo, entre toda la soledad que llegaba hacia mí, divisé un hombre en los andenes ya casi desiertos, un hombre que levantando unas flores me esperaba, él solo en la estación de invierno. Pero ese hombre era España y se llamaba Federico. Mas, no dia seguinte, num almoço oferecido em sua homenagem na casa do diplomata Carlos Morla Lynch10, Neruda era esperado por uma multidão de artistas e literatos madrilenhos que queriam conhecer o autor de Residencia en la Tierra. O acontecimento foi registrado no diário de Morla Lynch (In: GÁLVEZ BARRAZA, 2003:53), com as seguintes palavras: Pode se dizer que todos os intelectuais têm acudido para conhecer Pablo Neruda [...] quando o clima de efervescência, apaziguado, cedeu lugar a um período de calmaria, se anunciou a leitura de obras de Neruda. E Pablo sentou-se no centro do salão. Sua voz lenta, de uma doçura envolvente, elevou-se como os eflúvios de um incensário e infundiu a sensação inefável de uma coisa muito bela que não se parece a outras sentidas antes. O poeta chileno foi apresentado oficialmente na Espanha por Federico García Lorca em 6 de dezembro de 1934, na Facultad de Filosofía y Letras de 10 A representação diplomática chilena em Madrid estaba constituida por Aurelio Núñez Morgado, Embaixador; por Carlos Morla Lynch, Encarregado de Negócios; por Gabriela Mistral, Cônsul do Chile em Madrid e por Luis Enrique Délano, Chanceler Consular. 49 la Universidad Central de Madrid. Parte do discurso de García Lorca (1977:1220) foi o seguinte: A América espanhola nos envia constantemente poetas de diferente nume, de várias capacidades e técnicas. Suaves poetas de trópicos, de meseta, de montanha; ritmos e tons diferentes, que dão ao idioma espanhol uma riqueza única [...] Porém nem todos esses poetas têm o tom da América. Muitos parecem peninsulares e outros acentuam em sua voz marcas estranhas, sobretudo francesas. Mas nos grandes não. Nos grandes range a luz ampla, romântica, cruel, desorbitada, misteriosa da América. [Trad. da autora] Na capital espanhola Neruda alugou um apartamento no prédio chamado Casa de las Flores, residência que passou a ser o ponto de encontro de poetas, músicos, pintores e cineastas, destacadas figuras da intelectualidade madrilenha e hispano-americana da época. O ambiente fraternal vivenciado na Casa de las Flores se estendia às ruas: passeios pelo Rastro, por livrarias, por feiras de antiguidades e encontros em bares e cafés eram um compromisso quase que diário para Neruda e seus amigos. Hábitos que o vate deixou registrados em suas Memórias: Con Federico y Alberti, que vivía cerca de mi casa en un ático sobre una arboleda, la arboleda perdida, con el escultor Alberto panadero de Toledo que por entonces ya era maestro de la escultura abstracta, con Altolaguirre y Bergamín, con el gran poeta Luis Cernuda, con Vicente Aleixandre, poeta de dimensiones ilimitadas, con el arquitecto Luis Lacasa, con todos ellos en un solo grupo, o en varios, nos veíamos diáriamente en casas y en cafés. De la Castellana o de la cervacería de Correos viajábamos hasta mi casa, la casa de las flores, en el barrio de Argüelles. Desde el segundo piso de uno de los grandes autobuses que mi compatriota, el gran Cotapos, llamaba “bombardones”, descendíamos en grupos bulliciosos, a comer, beber y cantar [...] (NERUDA, 2000: 156). Para o poeta chileno, Madrid se apresentava como um lugar mágico, cheio de encantos por descobrir, fato reconhecido por Neruda ao declarar: “[...] Toda esa época de antes de la guerra tiene para mí un recuerdo como de 50 racimo cuya dulzura ya se va a desprender, tiene una luz como la del rayo verde cuando el sol cae en el horizonte marino y se despide con un destello inolvidable [...]” (AGUIRRE,1967:196). Em 1935, é publicado na Espanha Residencia en la Tierra, o livro teve uma repercussão enorme, um triunfo literário emoldurado pelas declarações de dez importantes escritores espanhóis que na ocasião da publicação homenagearam Neruda com as seguintes palavras: Chile enviou para Espanha o grande poeta Pablo Neruda, cuja evidente força criadora, em plena possessão de seu destino poético, produz obras personalíssimas, para a honra do idioma castelhano. Nós, poetas e admiradores do jovem e insigne escritor americano, ao publicar esses poemas inéditos - últimos testemunhos de sua magnífica criação - não fazemos outra coisa que exaltar sua extraordinária personalidade e sua indiscutível altura literária. Ao reiterar neste momento uma cordial recepção, esse grupo de poetas espanhóis prazeroizamente manifesta uma vez mais e publicamente sua admiração por uma obra que sem dúvida constitui uma das mais autênticas realidades da poesia de língua espanhola. Rafael Alberti, Vicente Aleixandre, Manuel Altolaguirre, Luis Cernuda, Gerardo Diego, León Felipe, Federico García Lorca, Jorge Guillén, Pedro Salinas, Miguel Hernrández, José A. Muñoz Rojas, Leopoldo e Juan Panero, Luis Rosales, Arturo Serrano Plaja, Luis Felipe Vivanco (In: AGUIRRE, 1967:197-198). [Trad. da autora] Mas, os dias na Espanha tornaram-se sombrios e as tertúlias literárias realizadas quase que diariamente na Casa de las Flores começaram a contrastar com a realidade do povo espanhol. Era uma época de sofrimento e conflitos políticos resultado do chamado “bienio negro”: repressão a sangre e fogo sofrida pelos mineiros de Asturias. Neruda por diversas ocasiões fez referência, tanto em prosa quanto em verso, à repercussão que teve o episódio da Guerra Civil Espanhola em sua obra, assim em Confieso que he vivido escreveu o seguinte: 51 Las primeras balas que atravesaron las guitarras de España, cuando en vez de sonidos salieron de ellas borbotones de sangre, mi poesía se detiene como un fantasma en medio de las calles de la angustia humana y comienza a subir por ella una corriente de raíces y de sangre. Desde entonces mi camino se junta con el camino de todos. Y de pronto veo que desde el sur de la soledad he ido hacia el norte que es pueblo, el pueblo al cual mi humilde poesía quisiera servir de espada y de pañuelo, para secar el sudor de sus grandes dolores y para darle un arma en la lucha del pan (NERUDA:2000, 197-198). Sem dúvida, a viagem à Espanha em 1934 foi determinante para o câmbio de poesia e de compromisso político experimentado pelo vate, mas não há que esquecer que no ano anterior a sua chegada a terra espanhola Neruda foi Cônsul na Argentina, onde entrou em contato com personalidades como Federico García Lorca e Raúl González Tuñón, figuras de espírito revolucionário que nutriram o poeta de novas idéias. Mais tarde, a Espanha revolucionária provocou a mudança na concepção poética do escritor chileno, processo que pode ser acompanhado a partir de Residencia en la Tierra, obra que na primeira etapa apresentou uma poesia metafísica e angustiante provocada pela experiência de ter passado cinco anos de sua vida isolado na Ásia. Pouco a pouco Neruda abandonou a poesia introspectiva e auto-reflexiva que apresentava um eu lírico confuso produto de um mundo caótico. Depois, na Espanha, Neruda voltou os olhos para os outros homens, para o mundo que o rodeava e viu uma realidade que continuava sendo caótica, porém percebeu que não era somente ele quem sofria. Neruda se fez partícipe e cúmplice do mundo e anunciou esse novo olhar nos versos do poema “Reunión bajo las nuevas banderas” (NERUDA, 1999:364-365), […] Yo de los hombres tengo la misma mano herida, yo sostengo la misma copa roja e igual asombro enfurecido: [...] 52 Juntos, frente al sollozo! Es la hora alta de tierra y de perfume, mirad este rostro recién salido de la sal terrible, mirad esta boca amarga que sonríe, mirad este nuevo corazón que os saluda con su flor desbordante, determinada y áurea. Nos versos supracitados o sujeito lírico se reconhece igual a todos os homens, se apresenta e se compromete com eles. O poema marca a introdução de Neruda na contingência histórica. Da poesia metafísica, afastada da realidade, passa à “poesía sin pureza”, à poesia manchada pelo acontecer humano. A atmosfera que envolvia a Espanha em inícios de 1936 estava saturada de dor e traição, um país dividido pelo ódio e pelo antagonismo político e social. Francisco Franco, nacionalista, não aceitava o triunfo político da esquerda e iniciou um levante militar contra o regime republicano democrático. Nesse contexto o poeta chileno acordou para realidade política e social o que provocou uma transformação radical em seu fazer poético. A revolta militar incentivada por Franco se iniciou em julho de 1936. Frente à destruição Neruda não ficou indiferente, reproduziu os acontecimentos e tomou partido. O poeta revelou seu inconformismo, sua dor e sua ira através de poemas como “Canto sobre las ruinas” (1936), “Almería” (1937), ou “Canto a las madres de milicianos muertos” (1936), este último publicado por Rafael Alberti em 24 de setembro de 1936 na revista “Mono Azul” 11 , publicação semanal de la Alianza de Intelectuales Antifascistas. De acordo com Margarita Aguirre12 (1967:198), esse pode ter sido o primeiro poema “abertamente político” escrito por Neruda. Mais 11 Com a palavra “mono” se designava na Espanha à roupa usada pelos guerrilheiros, um macacão de cor azul. 12 Margarita Aguirre (1925-2003), escritora e crítica chilena foi amiga e primeira biógrafa de Pablo Neruda. 53 tarde esses mesmos versos passaram a formar parte da Tercera Residencia (1947): [...] Madres ellos están de pie en el trigo, altos como el profundo mediodía, dominando las grandes llanuras! Son una campana de voz negra que a través de los cuerpos de acero asesinado repica la victoria [...] Y como en vuestros corazones, madres, hay en mi corazón tanto luto y tanta muerte que parece una selva mojada por la sangre que mató sus sonrisas, y entran en él la rabiosas nieblas del desvelo con la desgarradora soledad de los días [...] 13 Em 19 de julho Neruda e Lorca iriam juntos ao circo de um empresário chileno, mas o poeta granadino nunca chegou: “Federico faltó a la cita. Ya iba camino de su muerte. Ya nunca más nos vimos. Su cita era con otros estranguladores. Y de ese modo la guerra de España, que cambió mi poesía, comenzó para mí con la desaparición de un poeta” (NERUDA, 2000:161). A partir desse momento já nada seria igual, a guerra rompeu o coração do poeta chileno e este se revelou disparando versos abertamente a favor dos republicanos, atitude que lhe custou o cargo consular. O governo do Chile, ao constatar que Neruda não mantinha uma posição neutra perante os acontecimentos que assolavam a Espanha, o afastou de seu cargo diplomático. Sem condições de permanecer em terras espanholas Neruda se dirigiu a Paris, onde foi acolhido por seus amigos. Na cidade luz, o ex-cônsul realizou um árduo trabalho em defesa do povo espanhol: editou a revista Los Poetas del Mundo Defienden al Pueblo Español, depois, ao lado de Cesar Vallejo, fundou o Grupo Hispanoamericano de Ayuda a España. Cabe destacar que Vallejo, em seu artigo “Apuntes para 13 NERUDA (2001) p. 371-373. 54 un estudio” criou um novo –ismo para ser aplicado a ele e a Neruda: o “verdadismo”. O novo –ismo tinha por objetivo chamar a atenção “da necessidade de reconhecer os valores humanos, de acordo com a ênfase do nome Verdadismo e oposto à poesia como compromisso intelectual” (VERANI, 2006:159) [Trad. da autora]. Tanto para Neruda quanto para Vallejo o impacto da guerra teve eco instantâneo em suas obras com seus respectivos frutos amargos. Neruda voltou ao Chile em outubro de 1937 e de lá continuou intercedendo pela Espanha com sua única arma de combate, sua poesia. Em novembro do mesmo ano foi publicado em Santiago seu livro España en el corazón: Himno a las glorias del pueblo en la guerra (1936-1937), e no ano seguinte em Barcelona em pleno campo de batalha. Em 1947 o temário da guerra é incluído na Tercera Residencia (1935-1945), um livro que, de acordo com Rodríguez Monegal (1977:119), se converteu no [...] protótipo da poesia combatente desses anos de ferro, que será traduzida em muitas línguas européias e dará uma pauta poética aos resistentes franceses, aos italianos, aos russos na grande contenda que está por vir [...] Um livro de poesia cheio de cólera e de admiração, poesias não de um espectador, mas de um soldado [...]. [Trad. da autora] España en el corazón alcançou um grau de expressividade e emotividade extremas, em versos como os do poema “Explico algunas cosas” (NERUDA,1999:369-371) que dispensam comentários: [...] Preguntaréis, por qué su poesía, no nos habla del suelo, de las hojas de los grandes volcanes de su país natal? Venid a ver la sangre por las calles, Venid a ver 55 la sangre por las calles, Venid a ver la sangre por las calles! […] Mi casa era llamada la casa de las flores, porque por todas partes estallaban geranios: era una bella casa con perros y chiquillos. Raúl, ¿te acuerdas? ¿Rafael te acuerdas? ¿Federico, te acuerdas debajo de la tierra, te acuerdas de mi casa con balcones en donde la luz de Junio ahogaba flores en tu boca? ¡Hermano, hermano! […] Y una mañana todo estaba ardiendo y una mañana las hogueras salían de la tierra devorando seres, y desde entonces fuego, pólvora desde entonces, y desde entonces sangre. De volta em sua pátria Neruda fundou a Alianza de Intelectuales de Chile para la Defensa de la Cultura, também sentiu a necessidade de resgatar suas raízes e de escrever sobre o Chile e seus compatriotas. Muitas são as inquietações que invadiram o poeta após a experiência da guerra: ¿Puede la poesía servir a nuestros semejantes? ¿Puede acompañar las luchas de los hombres? Ya había caminado bastante por el terreno de lo irracional y de lo negativo. Debía detenerme a buscar el camino del humanismo, desterrado de la literatura contemporánea, pero enraizado profundamente a las aspiraciones del ser humano. Comencé a trabajar en mi Canto General […] La idea de un poema central que agrupara las incidencias históricas, las condiciones geográficas, la vida y las luchas de nuestros pueblos, se me presentaban como una tarea urgente (NERUDA, 2000b:185) Quando em 1939 cai o frente militar de Barcelona, quinhentos mil civis fogem para França pelos Pirineus. Na fronteira a maioria dos espanhóis teve problemas para ingressar na França e foram enviados a centros de detenção. 56 Nessa data Pablo Neruda se encontrava em sua casa de Isla Negra dedicado à escrita de seu Canto a Chile, um canto que se estenderia à geografia, aos homens, aos produtos e à natureza de seu país. Mas seu desejo de dedicação total ao labor literário ficou adiado pelo pedido feito por seu amigo Rafael Alberti. Numa carta Alberti lhe pede a Neruda que interceda pelos civis espanhóis partidários da República que, na tentativa de escapar de Franco, enfrentavam severas dificuldades. Imediatamente Neruda pede uma audiência com Pedro Aguire Cerda, presidente chileno na época, e lhe explica a necessidade de ajudar a Espanha. Aguirre Cerda deixa o poeta chileno responsável pelos trâmites imigratórios e o nomeia cônsul especial para a imigração espanhola com sede em Paris. A missão de Neruda era retirar das prisões o maior número possível de espanhóis e levá-los para o Chile. As difíceis gestões realizadas por Neruda em favor dos prisioneiros espanhóis culminaram com a retirada de dois mil refugiados que chegaram ao Chile a bordo do navio Winnipeg em finais de 1939. Em Para nacer he nacido, Neruda (2003:253) lembra do episódio: [...] el navío debía llenarse con dos mil hombres y mujeres. Venían de campos de concentración, de inhóspitas regiones, del desierto, del África. Venían de la angustia de la derrota, y este barco debía llenarse con ellos para llevarlos a las costas de Chile, a mi propio mundo que los acogía. Neruda termina o texto supracitado com as seguintes palavras: "Que la crítica borre toda mi poesía, si le parece. Pero este poema, que hoy recuerdo, no podrá borrarlo nadie" (NERUDA, 2003:255). Nos primeiros dias de 1940, após concluir satisfatoriamente sua missão como cônsul para a imigração espanhola, Neruda voltou ao Chile e se instalou 57 num apartamento em Santiago, na nova residência cobriu as paredes com quadros, cartazes e mapas da Espanha sinalizando as diferentes linhas de ataque, de maneira que na decoração do imóvel tudo estava relacionado com a Guerra Civil Espanhola. Muitos eram os artistas, poetas, escritores e jornalistas que acudiam a visitá-lo. Neruda tinha novamente uma casa onde receber seus amigos. Uma das primeiras entrevistas concedidas por Neruda após seu regresso ao Chile foi para o jornalista peruano Manuel Saoane, nela o poeta descarregou todo seu conhecimento da situação espanhola. Neruda não regressava a descansar, nem a esquecer o barulho das bombas e dos aviões, sentia a necessidade de fazer algo mais por sua América. O vate assume que mudou e o comunica nos versos de “Tal vez cambié desde entonces” (NERUDA, 1993a:1092-1093): A mi patria llegué con otros ojos que la guerra me puso debajo de los míos. Otros ojos quemados en la hoguera, salpicados por llanto mío y sangre de los otros, y comencé a mirar y a ver más abajo, más al fondo inclemente de las asociaciones. [...]De pronto las banderas de América, amarillas, azules, plateadas, con sol, estrella y amaranto y oro dejaron a mi vista territorios desnudos, pobres gentes de campos y caminos, labriegos asustados, indios muertos [...] Da dura experiência da guerra Neruda tirou uma lição de vida que se cristalizou no seguinte compromisso: devia transmitir para América a verdade 58 do ocorrido na Espanha a partir de um posicionamento firme e claro. Sua ferramenta de trabalho seria a poesia, uma poesia comprometida com o povo e para o povo. Como resposta às muitas cartas amistosas que pediam que ficasse imparcial frente à situação espanhola e que se limitasse a cumprir sua missão de poeta, Neruda declarou as razões de seu posicionamento, tanto literário quanto humano, com valentia e determinação no texto “A mis amigos de América” (2001:387-388), publicado em Nueva España, París 9 de março de 1937: [...] Quiero responder de una vez por todas que, al situarme en la guerra civil al lado del pueblo español, lo he hecho en la conciencia de que el provenir del espíritu y de la cultura de nuestra raza dependen directamente del resultado de esta lucha [...] No olvidemos que después del asesinato de Federico García Lorca, en la Plaza de Granada se hizo una hoguera y se quemaron miles de ejemplares del Romancero Gitano y todos los papeles inéditos del poeta [...] Y los rifleros del pueblo al defender su vida defienden las bibliotecas y los museos, y nos defienden a nosotros, escritores de lengua española. Al defender sus ciudades defienden el intelecto de nuestra raza madre [...] estoy y estaré con el pueblo español masacrado por el bandidaje y el celestinaje internacional. Y a todos mis múltiples amigos de América latina quiero decir: no me sentiría digno de vivir si así no fuera. Constata-se, então, que a relação de Pablo Neruda com a Espanha, mais especificamente com os fatos que vivenciou e presenciou nessa terra, resultou numa grande influência tanto para sua vida quanto para sua obra. Talvez seja a Espanha, depois de sua pátria, o país que mais o marcou. 59 2.4 O poeta americanista Yo no puedo vivir sino en mi propia tierra; no puedo vivir sin poner los pies, las manos y el oído en ella, sin sentir la circulación de sus aguas y de sus sombras, sin sentir cómo sus raíces buscan e su légamo las substancias maternas. Pero antes de llegar a Chile hice otro descubrimiento que agregaría un nuevo estrato al desarrollo de mi poesía. Me detuve en el Perú y subí hasta las ruinas de Macchu Picchu […] Me sentí infinitamente pequeño en el centro de aquel ombligo de piedra; ombligo de un mundo deshabitado, orgulloso y eminente, al que de algún modo yo pertenecía […] Me sentí chileno, peruano, americano. Había encontrado en aquellas alturas difíciles, en aquellas ruinas gloriosas y dispersas, una profesión de fe para la continuación de mi canto. “La patria en tinieblas” Pablo Neruda∗. No ano de 1940, aos 36 anos de idade, Neruda se encontrava no auge de sua produção intelectual. Com uma trajetória diplomática bem sucedida, podia escolher o país de sua preferência na hora de cumprir suas funções consulares. Como a Europa estava submersa no caos da Segunda Guerra Mundial, Neruda optou por um país latino-americano que há muito ansiava conhecer: o México. Na década de 40 o México vivia o ápice do grande fenômeno artístico denominado “muralismo mexicano”, um tipo de arte plástica de caráter social que procurava representar e celebrar os ideais da Revolução Mexicana. Por meio do muralismo os artistas mexicanos exaltavam as classes oprimidas e transmitiam uma mensagem de compromisso com a história, a cultura, a arte e o sentir. Entre os principais precursores dessa manifestação estavam: José Clemente Orozco, Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros. Em Confieso que he vivido Neruda (2000:203) escreveu sobre a época em que ∗ NERUDA (2000) p. 219-220 60 chegou à capital maia: “La vida intelectual de México estaba dominada por la pintura. Estos pintores de México cubrían la ciudad con historia y geografía, con incursiones civiles, con polémicas ferruginosas”. Neruda se identificou profundamente com a arte do muralismo, tanto que anos mais tarde pediria a seus amigos mexicanos que ilustrassem a primeira edição de Canto General. Com o falecimento de Orozco, somente Rivera e Siqueiros colaboraram com o poeta. Neruda conheceu a David Alfaro Siqueiros na cadeia. O muralista mexicano tinha sido preso pelo governo de seu país sob a acusação de ter organizado um assalto armado à casa de León Trotski, exiliado no México. Siqueiros foi preso e meses depois, sob risco de vida, solicitou a ajuda de Neruda para conseguir um visto consular que lhe permitisse ingressar ao Chile, na condição de exiliado político. Neruda não hesitou em acatar a solicitação do amigo e, sem pedir autorização ao Ministério de Relações Exteriores do Chile, autorizou o visto. Concessão que lhe custou o afastamento do cargo consular por dois meses, sem remuneração. O episódio foi relatado por Neruda (2000: 2905) assim: Entre salidas clandestinas de la cárcel y conversaciones sobre cuanto existe, tramamos Siqueiros y yo su liberación definitiva. Provisto de una visa que yo mismo estampe en su pasaporte, se dirigió a Chile con su mujer, Angélica Arenales. México había construído una escuela en la ciudad de Chillán, que había sido destruída por los terremotos, y en esa “Escuela México” Siqueiros pintó uno de sus murales más extraordinarios. El gobierno de Chile me pago este servicio a la cultura nacional, suspendiéndome de mis funciones de cónsul por dos meses. No ano de 1961 Siqueiros é preso novamente, mas dessa vez Neruda se encontrava em Cuba e de lá se levantou em defesa de seu amigo e lhe 61 enviou o poema intitulado “A Siqueiros, al partir”, onde declara: “MÉXICO está contigo PRISIONERO” (NERUDA, 2001:1058). Um cartaz de protesto pela prisão de Siqueiros contendo o poema de Neruda circulou pelo México. Na parte superior o cartaz apresentava uma foto do pintor atrás das grades e ao lado desta podia-se ler o local e a data da prisão. Mais abaixo constava o poema “A siqueiros, al partir” escrito por Neruda e uma nota assinada pelo próprio Siqueiros. Neruda revelou que dentro das atividades consulares a serem cumpridas havia alguns processos que não resultavam nada fáceis e com os quais não concordava. Sobre o assunto Neruda (2000:214) escreveu: “El ministerio me imponía que averiguara los orígenes raciales de las gentes, africanos, asiáticos o israelitas. Ninguno de estos grupos humanos podía entrar en mi patria”. Decepcionado e contrário às tarefas consulares a ele designadas, Neruda se dá conta de que a figura de cônsul era meramente decorativa, uma realidade que foi, segundo o próprio Neruda (2000:214): “[...] haciendo de cada cónsul un autómata sin personalidad, que nada puede decidir y cuya labor se aproxima sospechosamente a la de la policía”. Além das atividades burocráticas, o cônsul chileno desenvolveu intensa atividade cultural durante os três anos de sua permanência no México. Dentre elas, pode-se citar a organização de uma exposição do livro chileno, assim como a publicação da revista Araucanía que, além de literatura nacional, informação turística e comercial, apresentava muitas fotografias da paisagem chilena. Neruda (2000:214-215) escreveu: La titulé Araucanía y puse en la portada el retrato de una bella araucana, riéndose con todos sus dientes. Esto bastó para que el 62 Ministerio de Relaciones Exteriores de entonces me llamara severamente la atención por lo que estimaba un desacato [...]. O governo chileno considerou uma provocação à dignidade nacional colocar a imagem de um indígena mapuche na capa da revista. Fatigado por não ter voz, Neruda decide renunciar para sempre ao cargo de cônsul geral. Em setembro de 1943, o ex-cônsul deixou o México com destino a sua terra natal. Na viagem de volta visitou vários países da costa do Pacífico como Panamá, Colômbia e Peru. Em Cuzco conheceu as ruínas de Macchu Picchu, peregrinação que o fez perceber que as raízes históricas de todos os povos americanos são as mesmas, fato que modificou significativamente a concepção inicial da obra em que trabalhava desde 1938, o Canto de Chile. A mudança na concepção dessa obra aconteceu, de acordo com Neruda (2000a:21-22), da seguinte maneira: Pensé muchas cosas a partir de mi visita al Cuzco. Pensé en el antiguo hombre americano. Vi sus antiguas luchas enlazadas con las luchas actuales. Allí comenzó a germinar mi idea de un Canto general americano, antes había persistido en mi idea de un canto general de Chile, a manera de crónica. Aquella visita cambió la perspectiva. Ahora veía a América entera desde las alturas de Macchu Picchu […] El verso debía tomar todos los contornos de la tierra enmarañada, romperse en archipiélagos, elevarse y caer en las llanuras. As ambições literárias do poeta se ampliaram e, a partir desse momento, decide escrever um canto universal, um canto totalizador da realidade histórica da América, mas o poema será também uma reverência à natureza, ao patrimônio cultural latino-americano e aos melhores valores que a humanidade conseguiu cultivar em toda a sua história. Se em España en el corazón prevaleceu a voz do poeta social, agora, em Canto General, Neruda é o poeta 63 épico que denuncia o ultraje coletivo que a América Latina sofreu ao longo de sua história. Mas é, sobretudo, como o afirma Ramón Xirau (1979:187), [...] o escritor comprometido, o escritor de ação e palavra, o poeta cívico. Revela, sobretudo, o poeta da Terra – poeta da terra hispanoamericana – que não comunga com a natureza, mas que a contempla para pintar vastos e esplêndidos afrescos. Cabe destaque neste momento para as palavras da pesquisadora Mariluci Guberman (2006:103) que logra apresentar de forma sintética o canto nerudiano, A epopéia de Neruda nos apresenta, inicialmente, o homem americano como o herói que necessita deixar suas pegadas impressas no solo do plano real em busca de uma existência histórica, para legitimizar sua heroicidade. Desta maneira o autor traz, para o cenário da obra não só a exuberância da natureza americana, mas também os seguintes personagens: conquistadores, libertadores, mártires e homens ilustres da história de América. Há que lembrar que Neruda terminou de escrever Canto General quando estava clandestino em seu próprio país. O poeta chileno, eleito senador da República em 1945 e descontente com o rumo que tinha tomado o governo de González Videla, presidente que ajudou a eleger, começou a declamar calorosos discursos no Senado denunciando injustiças. Considerado traidor, Neruda foi perseguido pela polícia a partir de fevereiro de 1948, motivo pelo qual teve que permanecer escondido em diversas cidades chilenas até que, um ano depois, em fevereiro de 1949, conseguiu cruzar clandestinamente a cordilheira dos Andes. Quinze anos depois, na Revista Mapocho de 1964, Neruda (2001:1205) fez declarações sobre a elaboração de Canto General: En la soledad y aislamiento en que vivía y asistido por el propósito de dar una gran unidad al mundo que yo quería expresar, escribí mi libro más ferviente y más vasto: el Canto General. Este libro fue la coronación de mi tentativa ambiciosa. Es extenso como un buen 64 fragmento del tiempo y en él hay sombra y luz a la vez, porque yo me proponía que abarcara el espacio mayor en que se mueven, crean, trabajan y perecen las vidas y los pueblos. Na qualidade de perseguido político, Neruda voltou ao México em 1948 e, no ano seguinte, para o Congreso Latinoamericano de Partidarios de la Paz. O hino à América Latina foi publicado pela primeira vez no México, em 1950. Os muralistas Siqueiros e Rivera contribuíram para a edição de Canto General com imagens de sua pintura ilustrando as folhas que normalmente aparecem em branco, no início e no final de um livro, estabelecendo dessa maneira sua comunhão de ideais com o poeta chileno. “América Prehispánica” 14 (1950) Diego Rivera 14 Disponível em: http://www.epdlp.com/fotos/rivera3.jpg 65 A pintura da primeira folha de Canto General é obra de Diego Rivera e foi intitulada América prehispánica. A ilustração, dividida em dois, faz referência a maias e incas, exaltando as imagens dos indígenas e da cultura anterior à chegada do conquistador, em cenas ordenadas verticalmente. Um grande Deus Sol dá origem às duas culturas irmãs – maia e inca. A fauna e a flora típicas, assim como os animais que chegaram com os estrangeiros também estão presentes na tela. Esta interpretação em imagens corresponde ao poema "La lámpara de la tierra". A ilustração que conclui o Canto General corresponde a David Alfaro Siqueiros e ilustra o poema “La tierra traicionada” da série “Las tierra y los hombres”. A obra apresenta uma figura humana com os braços estendidos e emergindo da lava de um vulcão, representando o nascimento simbólico do homem americano. “La arena traicionada”15 (1950). David Alfaro Siqueiros 15 Disponível em: http://www.siqueiros.inba.gob.mx/anim_epico.swf 66 Dos quinhentos volumes assinados por Rivera, Siqueiros e Neruda, numa ceremônia simbólica celebrada em 3 de abril de 1950, trezentos foram os subcriptores da Rússia, Itália, Hungria, Inglaterra, Espanha, Estados Unidos, França, Checoslováquia e, claro, da América Latina. O fundo obtido serviu para que Neruda continuasse com seu trabalho. Como Neruda (1999a:629) profetizou nos últimos versos do poemário, o hino da América se mantém atual apesar do tempo decorrido: [...] Y nacerá de nuevo esta palabra, talvez en otro tiempo sin dolores, sin las impuras hebras que adhirieron negras vegetaciones en mi canto, y otra vez en la altura estará ardiendo mi corazón quemante y estrellado. Neruda em sua epopéia logrou resgatar o autêntico valor do homem latino-americano, suas raízes e a memória de seus libertadores. Nos anos de exílio, de 1949 até 1952, Neruda viajou pelos países da Europa e da Ásia até se estabelecer em Capri, na Itália (NERUDA,2000:277): De rumbo en rumbo, en estas andanzas de desterrado, llegué a un país que no conocía entonces y que aprendí a amar intensamente, Italia. En ese país todo me pareció fabuloso. Especialmente la simplicidad italiana: el aceite, el pan y el vino de la naturalidad. Hasta aquella policía que nunca me maltrató, pero que me persiguió incansablemente. Era una policía que encontré en todas partes, hasta en el sueño y en la sopa. Depois de cantar o homem americano, Neruda escreveu, no exílio, Las uvas y el viento, canto dedicado aos países da Europa e da Ásia, um mundo 67 ferido que ressurgia da guerra. No prólogo, intitulado “Tenéis que oírme”, Neruda (1999:911) apresentou seu novo canto: Yo fui cantando errante entre las uvas de Europa y bajo el viento, bajo el viento en el Asia. […] Lo mejor de una tierra y de otra tierra yo levanté en mi boca con mi canto: la libertad del viento, la paz entre las uvas. […] Las uvas y el viento na opinião de Eulógio Suárez (2004:133), é “[…] um livro de inegável importância na poética nerudiana. Segue sua pretendida epopéia iniciada com España en el corazón e desenvolvida em Canto General” O livro é um extenso e intenso volume que conta com vinte e um cantos, prólogo e epílogo. Contudo, ainda que as cidades conhecidas no exílio e os amigos queridos sejam os temas principais de sua nova obra, a nostalgia por sua pátria se faz presente em poemas como “Cuándo de Chile” (NERUDA,1999:1037-1041): Oh! Chile, largo pétalo de mar y vino y nieve, ay cuándo ay cuándo y cuándo ay cuándo me encontraré contigo, […] Ay Patria sin harapos, ay primavera mía, ay cuándo ay cuándo y cuándo despertaré en tus brazos empapado de mar y de rocío. Ay cuando yo esté cerca de ti, te tomaré de la cintura, 68 nadie podrá tocarte, yo podré defenderte cantando, cuando vaya contigo, cuando vayas conmigo, cuándo ay cuándo. Sobre Las uvas y el viento, Neruda (2000:384) confessou: La verdad es que tengo cierta predilección por Las uvas y el viento, tal vez por ser mi libro más incomprendido, o porque a través de sus páginas yo me eché a andar por el mundo. Tiene polvo de caminos y agua de ríos; tiene seres, continuidades y ultramar de otros sitios que yo no conocía y que me fueron revelados de tanto andar. Es uno de los libros que más quiero, repito. Finalmente, em 1952, é revogada a ordem de detenção e, em 12 de agosto o poeta pôde voltar a seu país. Os cinco anos que se seguiram à volta do exílio foram de grande tranqüilidade para Neruda, é a época em que começa a escrever Odas elementales. O livro Las uvas y el viento foi publicado no Chile dois anos após sua volta do exílio. 2.5 O ciclo das odes En las Odas Elementales me propuse un basamento originario, nacedor. Quise redescribir muchas cosas ya cantadas, dichas y redichas […] Ningún tema podía quedar fuera de mi órbita; todo debía tocarlo yo andando o volando, sometiendo mi expresión a la máxima transparencia y virginidad. Confieso que he vivido. Pablo Neruda∗ ∗ NERUDA (2000) p. 384. 69 O livro Odas elementales foi publicado em julho de 1954, data em que Neruda completava cinqüenta anos de idade. Ao primeiro livro de odes se somaram as Nuevas odas elementales (1956) e, em seguida, o Tercer libro de odas (1957). Há um quarto livro de odes intitulado “Navegaciones y regresos” publicado em 1959. Os poemas que deram forma aos livros do denominado “ciclo de las odas” começaram a ser escritos em 1951 e eram destinados à publicação semanal do jornal El Nacional de Caracas. Por exigência de Neruda os versos eram publicados na seção de crônicas e não no Suplemento Literário do jornal, com a finalidade de que pudessem ser lidos por todo tipo de leitores. Anos depois na conferência “Algunas reflexiones improvisadas sobre mis trabajos” (1964), Neruda explicou como foram concebidas as Odas: Así logré publicar una larga historia de este tiempo, de las cosas, de los oficios, de las gentes, de las frutas, de las flores, de la vida, de mi visión, de la lucha, en fin, de todo lo que podía englobar de nuevo en un vasto impulso cíclico mi creación. As Odas representam um câmbio na lírica nerudiana, mas não uma ruptura já que nestes livros o poeta retoma interesses estéticos antigos, como os revelados em “Para una poesia sin pureza” (1935), onde propunha uma aproximação entre o fazer poético e os objetos que rodeiam o homem. Nesta nova etapa, Neruda não canta a intimidade dele mesmo, nem a dos homens, como o tinha feito até então, no novo canto Neruda revela a essência do cotidiano humano. Em Odas Neruda procura a essência das coisas, uma penetração na matéria através de uma linguagem simples, pela qual os objetos deixam de ser simples figurantes e se transformam em personagens. Dessa maneira, os 70 temas prosaicos que não tinham valor artístico, passam a ter um valor poético, como pode ser observado nos versos de “Oda a la cebolla” (NERUDA,1993a:39-41), destacados a seguir: Cebolla, luminosa redoma, pétalo a pétalo se formó tu hermosura, escamas de cristal te acrecentaron y en el secreto de la tierra oscura se redondeó tu vientre de rocio. […] Generosa deshaces tu globo de frescura en la consumación ferviente de la olla, y el jirón de cristal al calor encendido del aceite se transforma en rizada pluma de oro […] Nada ficou fora da casa das odes, Neruda escreveu odes aos objetos, às sensações, aos sentimentos, aos alimentos, à natureza, ao tempo, etc., uma nova concepção do fazer poético que significou a renovação da poesia. Mas um novo rumo na poesia nerudiana levou o poeta ao reencontro com sua própria vida, suas dúvidas e questionamentos transcendentais, característica marcante de sua obra. Este reencontro com ele mesmo se iniciou em Estravagario (1958), poemário em que Neruda se definiu como “[...] un hombre claro y confundido, / um hombre lluvioso y alegre, / enérgico y otoñabundo”. Os versos deste poema, “Testamento de otoño”, revelam um eu lírico que assume e aceita sua personalidade contraditória, reconhece suas constantes transformações e sua fé na poesia, como pode ser observado nos versos a seguir destacados (NERUDA,1993a:707-708): 71 Y así me muevo sin saber a que mundo voy a volver o si voy a seguir viviendo. Mientras se resuelven las cosas aquí dejé mi testimonio, mi navegante estravagario para que leyéndolo mucho nadie pudiera aprender nada, sino el movimiento perpetuo de un hombre claro y confundido, de un hombre lluvioso y alegre, enérgico y otoñabundo. Mais tarde surge Memorial de Isla Negra (1964), um memorial constituído por cinco livros que foram sendo publicados ao longo de 1964. A obra em seu conjunto é considerada uma autobiografia lírica. Como constatado até agora, o elemento autobiográfico está disperso em toda ou quase toda a obra nerudiana, mas a diferença apresentada em Memorial é que o poeta escreve sua vida de forma ordenada. Neruda dá prosseguimento à linha autobiográfica em Confieso que he vivido (1974), livro em prosa que complementa Memorial de Isla Negra. Na década de sessenta, Neruda continuou viajando pelo mundo, recebendo homenagens e, dentro do possível, permanece em sua casa de Isla Negra, localidade próxima a Valparaíso. Nessa casa, considerada o seu refúgio, o poeta continuou a escrever até os últimos dias de sua vida rodeado dos objetos queridos, coleções feitas ao longo de sua existência, de seus livros e da vista maravilhosa do imenso oceano Pacífico. Após a leitura de algumas obras de Pablo Neruda constatou-se que as mudanças ou ciclos nerudianos não são fruto de idéias estéticas preconcebidas, mas de um impulso natural provocado pelos diferentes ambientes e acontecimentos que envolveram o poeta ao longo de sua 72 existência. Acontecimentos que o fizeram reavaliar seus valores e prioridades redefinindo constantemente sua arte. 3. Marcas autobiográficas na obra de Pablo Neruda De tanto amar y andar salen los libros. Y si no tienen besos o regiones y si no tienen hombre y manos llenas, si no tienen mujer en cada gota, hombre, deseo, cólera, caminos: no sirven para escudo ni campana: están sin ojos y no podrán abrirlos, tendrán la boca muerta del precepto. Memorial de Isla Negra* A leitura da obra de Pablo Neruda, nos postulados da autobiografia, faz possível situá-lo historicamente, posto que a escrita autobiográfica se cinge ao tempo recordado que, na obra nerudiana, abarca aproximadamente de 1920 até 1973. Dessa maneira, a leitura dos textos nerudianos implica um retorno a momentos desse tempo histórico. Para melhor abordar a escrita da auto-representação é necessária uma reflexão prévia sobre os conceitos atribuídos à autobiografia, bem como sobre seus desdobramentos. Por se tratar de um texto de natureza híbrida – mescla de verdade e ficção – o gênero autobiográfico apresenta uma estrutura dupla. Para a compreensão dessa duplicidade pode-se recorrer ao denominado * NERUDA (1999a) p.1162. 73 “pacto autobiográfico”, termo apresentado por Philippe Lejeune (1975) para se referir à posição do leitor diante de um texto autobiográfico. Para o teórico francês, o leitor de uma autobiografia deve confiar na sinceridade do autor a ponto de acreditar que não inventa nada do narrado, estabelecendo-se assim uma identidade entre autor e leitor. O “pacto autobiográfico” se realiza, portanto, mediante um contrato implícito entre autor e leitor, de tal maneira que o primeiro se compromete com a veracidade e o segundo garante acreditar nas revelações. Com relação à participação do leitor na caracterização do texto autobiográfico, cabe destacar as palavras de Javier del Prado Biezma (1994:215), no estudo Autobiografía y modernidad literaria: Efetivamente, a intencionalidade de um texto possibilita sua identificação, mas devemos ser conscientes de que isso não é senão um ponto de início virtual; ou seja, que a intencionalidade em si mesma tampouco permite a diferenciação de uma escritura. Por todos é conhecida a proliferação de textos que negam seus próprios propósitos. Portanto, é a materialização textual dessa intenção, isto é, uma vez mais, a funcionalidade desses signos significantes antes mencionados, o que realmente permitirá identificar o texto, estabelecendo, em conseqüência, uma estreita rede de conexões estruturais, de cuja incidência funcional depende a natureza, a essência da escritura que as informa. [Trad. da autora] No texto supracitado, Del Prado Biezma destaca a existência e uma série de textos que se propõem como pertencentes a um determinado gênero sem, contudo, enquadrar-se nele. A autobiografia strictu sensun caracteriza-se por ser uma narrativa cujo assunto é a retrospectiva da própria vida, com destaque para os fatos relevantes da história do autor. Caracteriza-se ainda pela representação dos três elementos constitutivos, autor/personagem/narrador, através de uma só pessoa. Dois exemplos clássicos do que vem a ser a autobiografia são 74 Confissões (400), de Santo Agostinho (358-430), e Confissões (1764), de JeanJacques Rousseau (1712-1778). Nessas obras o motivo central é a procura ou a descoberta do eu. Em sua autobiografia Santo Agostinho apresenta a história dos eventos que o levaram à sua conversão religiosa, suas inquietações e questionamentos frente à vida, que de acordo com José Américo Motta Pessanha (In: Os pensadores, 1999:10), Agostinho: [...] conseguiu redigir uma obra imensa, a maior parte da qual inspirada em problemas concretos que preocupavam a Igreja da época. Excetuaram-se alguns poucos livros, como as Confissões, onde Agostinho se revela admirável analista de problemas psicológicos íntimos, tanto quanto de questões puramente filosóficas [...]. Rousseau, assim como Agostinho, registrou em Confissões suas tentativas de encontrar respostas para seus problemas existenciais. Marilena Chauí (In: Os Pensadores, 1978: XII), ao fazer referência à autobiografia de Rousseau, afirmou: “[...] em quase mil páginas, procura explicar toda sua vida e seu pensamento. Com isto o livro tornou-se uma síntese completa do autor como homem, romancista, filósofo e educador”. Mais tarde com o avanço e as transformações da modernidade surgiram no indivíduo novos questionamentos, intensificando sua procura pela razão de existir, fato que refletiu na busca da identidade e fez com que o relato autobiográfico adquirisse força maior. As mudanças provocadas pela vida moderna, de acordo com Stuart Hall (2003:10), “[...] representam um processo de transformação tão fundamental e abrangente que somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade que está sendo transformada”. O sociólogo aponta para o câmbio de perspectiva que emergiu com a modernidade tardia e fez com que se perdesse 75 o parâmetro, já assentado, do que era o indivíduo. Em seu estudo Identidade Cultural na pós-modernidade (2003:11-13), Hall aponta três concepções de identidade ao longo da história: o “sujeito do Iluminismo”, acepção individualista que concebia um sujeito que já nascia com uma identidade, a qual crescia e se desenvolvia junto com ele; o “sujeito sociológico”, possuidor de uma identidade originada na interação do eu e seu entorno, mas fortemente vinculada aos valores e significados desse entorno cultural; e o “sujeito pós-moderno”, indivíduo possuidor de uma identidade em constante transformação, ou de múltiplas identidades, que lança mão de uma identidade dependendo da situação em que se encontre. Do raciocínio anterior depreende-se que a concepção de identidade, que por longo tempo estabilizou a sociedade, tem-se modificado fazendo surgir novas identidades resultantes da fragmentação do sujeito que, até então, era concebido como um ser unificado. Portanto, chega-se à conclusão de que não há uma única identidade fixa e imutável, posto que atualmente ela [a identidade] encontra-se em crise, ou na denominação de Hall (2003:7) em “deslocamento”, transformação da qual surge o conceito de sujeito pósmoderno. A reflexão sobre as noções de identidade é muito conveniente na abordagem do processo autobiográfico, visto que é nesse tipo de texto que o eu se apresenta sem máscaras, tal como ele é, ou como seu autor/escritor/narrador se enxerga a si mesmo. De acordo com o próprio Lejeune, há o que se convencionou chamar de “autobiografia strictu sensu” e a “escritura autobiográfica”. Nessa última estão contidos os diferentes relatos autobiográficos, que não se prendem a modelos formais, mas se caracterizam por ser relatos da auto-representação. Lejeune 76 (1994:50) definiu a autobiografia como: “Relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, colocando ênfase em sua vida individual e, em particular, na história de sua personalidade”16, e acrescentou que pode ser considerado autobiográfico todo texto que contenha os elementos pertencentes a quatro categorias diferentes, a saber: forma de linguagem, narração ou prosa; tema tratado, vida individual, história de uma personalidade; situação do autor, identidade do autor e do narrador; posição do narrador, identidade do narrador e da personagem principal, perspectiva retrospectiva da narração. Lejeune (1994:51) também chamou a atenção para a existência dos “gêneros vizinhos da autobiografia”: Memórias, biografia, novela pessoal, poema autobiográfico, diário íntimo e auto-retrato ou ensaio, relatos que não cumprem todas as condições da autobiografia. Entende-se, então, que o pacto autobiográfico aponta as diretrizes para classificar ou não um texto como autobiografia, mas há que se levar em consideração a existência de inúmeros relatos em que a emergência do eu fica estabelecida. Partindo dessa constatação cabe refletir sobre a tipologia e os diferentes níveis de emergência do eu nesses relatos. Conforme Lejeune, as Memórias não podem ser consideradas autobiografias strictu sensu porque o tema nelas tratado não aborda somente a vida individual do personagem/autor/narrador, mas o entorno dessa vida. Portanto, as Memórias vêm a ser a recuperação de um tempo que pertence tanto ao passado privado do autor quanto ao passado coletivo da sociedade em que esteve inserido, de maneira a resgatar em maior grau a história da 16 Trad. da autora. 77 coletividade da qual o eu fez parte, do que a história individual do autor. Ao abordar o espaço autobiográfico nerudiano devem ser considerados em primeiro lugar os dez textos publicados em 1962 na revista brasileira O Cruzeiro Internacional sob o título “Las vidas del poeta”; a autobiografia lírica intitulada Memorial de Isla Negra (1964) e as Memórias Confieso que he vivido (1974). O histórico dos escritos autobiográficos nerudianos pode ser rastreado a partir de janeiro de 1954 na conferência intitulada “Infancia y poesía” no Salón de Honor de la Universidad de Chile, texto que posteriormente se transformou no primeiro capítulo de Confieso que he vivido. Os artigos publicados em O Cruzeiro Internacional tratam desde sua infância na província até seu exílio na Itália. Textos estes que se transformaram em material de conferências divulgados pelo mundo na voz do próprio poeta ou em publicações diversas. Pouco a pouco a vida do Nobel chileno ganhou divulgação e despertou o interesse de editores internacionais por uma obra que concentre toda a história do poeta, que vivenciou importantes acontecimentos na primeira metade do século XX. Neruda não demonstrou interesse nas propostas desses editores, mas entre os anos de 1958 e 1973 seus escritos apresentaram uma marcada necessidade de revisão e reflexão sobre seu passado. Esta reflexão consiste na tendência à organização sistemática de suas lembranças. Contudo é possível encontrar, de forma esporádica, já em seus primeiros escritos, quando ainda era um escritor anônimo, versos que apresentam uma clara inclinação à escrita autobiográfica. A título de ilustração apresenta-se a seguir o poema “Sensación autobiográfica” (NERUDA, 2001:158), datado em 12 de julho de 1920: 78 Hace dieciséis años que nací en un polvoroso pueblo blanco y lejano que no conozco aún, y como esto es un poco vulgar y candoroso, hermano errante vamos hacia mi juventud. Eres muy pocas cosas en la vida. La vida No me ha entregado todo lo que yo le entregue [...] Nada más. Ah! Me acuerdo que teniendo diez años dibujé mi camino contra todos los daños que en el largo sendero me pudieran vencer: haber amado a uma mujer y haber escrito un libro. No he vencido, porque está manuscrito el libro y no amé a una, sino que a cinco o seis... Mais tarde esse processo de reorganização das lembranças pode ser observado em Estravagario (1958), poemas em que Neruda, num tom confessional, tenta reordenar sua vida a partir de questionamentos existenciais. Um reencontro com o passado que pode ser observado nos versos de “Regreso a una ciudad” (NERUDA, 1993:607-608): A qué he venido? les pregunto. Quién soy en esta ciudad muerta? No encuentro la calle ni el techo de la loca que me quería. [...] Ahora me doy cuenta que he sido no sólo un hombre sino varios y que cuantas veces he muerto, sin saber cómo he revivido, como si cambiara de traje me puse a vivir otra vida y aquí me tienen sin que sepa por qué no reconozco a nadie, por qué nadie me reconoce, si todos fallecieron aquí y yo soy entre tanto olvido un pájaro sobreviviente o al revés la ciudad me mira y sabe que soy un muerto. [...] A cidade assinalada pelo sujeito lírico é sem dúvida Colombo, no Ceilão. O episódio que inspirou esses versos foi narrado pelo próprio poeta anos 79 depois em Confieso que he vivido. Neruda conta que nos primeiros meses de 1957 foi convidado a participar de um Congresso em favor da paz em Colombo, evento que o fez voltar ao Oriente após décadas. O reencontro com a cultura oriental o fez reviver os anos de juventude em que esteve isolado nessa afastada terra e que provocaram no poeta novas motivações líricas. Sobre sua peregrinação pelo mundo asiático, Neruda escreveu (2000:299): “[...] A los 22 años de edad viví en Ceilán una existencia solitaria y escribí allí mi poesía más amarga rodeado por la naturaleza del paraíso” e acrescentou: Me fui al tanteo por las callejuelas en busca de la casa en que viví, en el suburbio de Wellawatha. Me costó dar con ella. Los árboles habían crecido; el rostro de la calle había cambiado [...] No encontré a ninguno de mis viejos amigos. Sin embargo la isla volvió a llamar en mi corazón, con su constante sonido, con su destello inmenso. Como constatado até agora, a autobiografia é uma escrita pessoal e íntima, associada a um território determinado: uma região, um povoado, uma casa, uma cidade; um lugar conhecido e vivenciado pelo autor. Desta constatação se depreende que paralelamente ao processo autobiográfico vaise desenhando a identidade desse autor. Sobre este aspecto pode-se trazer o referencial teórico proposto por Sylvia Molloy em Acto de presencia (1996). Nesse estudo Molloy apontou uma série de características apresentadas nos escritos autobiográficos hispano-americanos. A autora argentina afirma que a casa, assim como os lugares físicos onde o escritor viveu, formam e configuram seu mundo. Destaca também que a memória familiar se faz presente na maior parte desses escritos, notadamente a relação com a mãe. Sylvia Molloy constatou também que a maioria dos escritores autobiográficos 80 hispano-americanos recorrem à “primeira lembrança” para iniciar seus relatos. Segundo a autora: Situada precisamente no inicio, o muito perto do começo do relato, a primeira lembrança constitui uma espécie de epígrafe, uma autocitação e ainda que não resuma a essência do que continuará, aponta numa direção [...] em todo caso é obvio que, assim como nenhuma recordação é inocente, tampouco é inocente nenhum uso que se faça dela. Ao resgatar uma “primeira lembrança” das muitas que a memória tem armazenado, o autobiógrafo escolhe um início que, de alguma maneira harmoniza, com a imagem que o adulto, no presente da escritura tem de si mesmo (MOLLOY, 1996:257). [Trad. da autora] O parágrafo citado deixa claro que a eleição das lembranças não é arbitrária; pelo contrário, estas são selecionadas dentre as inúmeras alternativas guardadas na memória. Selecionar a primeira recordação é um ato muito significativo, posto que, aponta o verdadeiro nascimento do indivíduo. Ao lançar um olhar sobre os escritos memorialísticos de Pablo Neruda, constatase que as características apontadas por Molloy estão presentes no texto nerudiano. Observa-se, por exemplo, que o primeiro capítulo de Memorial de Isla Negra (1964), intitulado “Donde nace la lluvia”, Neruda (1993:1021-1022) dedica o primeiro poema ao seu nascimento: Nació un hombre entre muchos que nacieron, vivió entre muchos hombres que vivieron, [...] Parral se llamaba el sitio del que nació en invierno. [...] Yo no tengo memoria del paisaje ni tiempo, ni rostros, ni figuras, sólo polvo impalpable[...] 81 Da mesma maneira, em Confieso que he vivido Neruda (2000:11) inicia o primeiro capítulo “Infancia y poesía” com as seguintes palavras: Comenzaré por decir, sobre los días y los años de mi infancia, que mi único personaje inolvidable fue la lluvia. La gran lluvia austral que cae como uma catarata del Polo, desde los cielos del Cabo de Hornos hasta la frontera. En esta frontera, el Far West de mi patria, nací a la vida, a la tierra, a la poesía y a la lluvia. Sylvia Molloy (1996:146), ao abordar a recriação da infância na autobiografia, faz referência à escrita de Pablo Neruda com as seguintes palavras: [...] quando se recria a infância, geralmente é colocada num contexto mais amplo, como primeira entrega da história de uma vida inteira. É o caso de [...] Neruda dentre outros muitos: todos eles dedicam a parte inicial, quando não o volume inicial de sua autobiografia, aos anos da infância. [Trad. da autora] Mas, a rememoração da infância não representa em Neruda a simples nostalgia dessa tenra idade, ele a rememora objetivando ser o ponto de partida para chegar à idade adulta. Ao iniciar suas autobiografias com os episódios da infância, Neruda selecionou o período mais significativo de sua existência dando a ele um destaque proposital, posto que conforme Molloy (1996:257): “nenhuma lembrança é inocente, tampouco é inocente nenhum uso que se faça dela”, o que quer dizer que a eleição da lembrança é o resultado de uma seleção prévia feita de acordo com o peso simbólico que ela representa para o autor. No caso nerudiano, iniciar suas autobiografias com o resgate da primeira idade ratifica a forte identificação com suas raízes sulistas, constituintes marcantes de sua identidade. 82 Hernán Loyola denominou a produção literária nerudiana a partir de finais da década de cinqüenta como uma escrita reveladora de uma “nova lingüagem biográfica” (In: NERUDA, 2001:1079). Para tal declaração se baseia na escrita fragmentada utilizada por Neruda, uma espécie de collage onde a lembrança não se cinge exatamente a um tempo linear e sua emergência se dá em meio às lacunas da memória, retratando assim, a fragmentação da vida. Em Memorial de Isla Negra, autobiografia lírica, Neruda percorre num tom nostálgico seus primeiros sessenta anos de vida. Uma peregrinação que se inicia no sul chuvoso e culmina na Chascona junto de Matilde Urrutia, sua última esposa. O título homenageia a cidade de pescadores próxima a Valparaíso, local onde em 1939 comprou a residência que compartiu com Matilde. Conforme Hernán Loyola, Memorial teve como preâmbulo a série de artigos publicados em O Cruzeiro Internacional. O crítico chileno afirma que “[...] foram ante-sala do projeto Memorial de Isla Negra que Neruda começou a escrever nesse mesmo 1962 [...]” (In: NERUDA, 2001:36) [Trad. da autora]. Memorial de Isla Negra consta de cinco capítulos, sendo o primeiro deles “Donde nace la lluvia”. Houve uma edição prévia desse primeiro capítulo em 1963, que contava como um texto inicial intulado “Prefacio a Pablo Neruda”, no qual o vate declara sua intenção autobiográfica. As palavras escritas pelo poeta foram as seguintes (NERUDA (2001:1101-1102): Es éste el primer paso hacia atrás hacia mi propia distancia, hacia mi infancia. Es el primer volver en la selva hacia la fuente de la vida. Ya se olvidó el camino, no dejamos huellas para caminar y si temblaron las hojas cuando pasamos entonces, ahora ya no tiemblan ni silba el rayo agorero que cayó a destruirnos. Andar hacia el recuerdo cuando éstos se hicieron humo es navegar en el humo. Y mi infancia vista en el año 1962, desde Valpaparaíso, después de haber andado tanto, es sólo lluvia y humareda. Vayan por ella los que me amen: su única llave es el amor [...] Valparaíso, 1962 83 Em cinco capítulos Neruda expõe a essência de sua caminhada existencial até a década de sessenta, etapa que mais tarde foi complementada com suas Memórias publicadas sob o título Confieso que he vivido (1974), autorretrato em prosa, que revela aspectos desconhecidos da personalidade do poeta dispersos em doze capítulos, uma visão totalizadora do que foi sua vida e sua obra. Neruda (2000:7) inicia suas Memórias com as seguintes palavras: Estas memorias o recuerdos son intermitentes y a ratos olvidadizos porque así precisamente es la vida [...] Muchos de mis recuerdos se han desdibujado al evocarlos, han devenido en polvo como un cristal irremediablemente herido [...] Tal vez no viví en mi mismo; tal vez viví la vida de los otros. De cuanto he dejado escrito en estas páginas se desprenderán siempre – como en las viñas – las hojas amarillas que van a morir y las uvas que revivirán en el vino sagrado . Mi vida es una vida hecha de todas las vidas: las vidas del poeta. No texto supracitado, o autor/personagem/narrador reconhece que é impossível lembrar de tudo e constata que nem tudo o que for registrado pela escrita perdurará no tempo transformando-se em “las hojas amarillas que van a morir”, mas confia na permanência de algumas passagens como “las uvas que revivirán en el vino sagrado”, e assim sua existência passará a formar parte da história da humanidade. Entre 1970 e 1972 Neruda residiu na França ocupando o cargo de embaixador. Em 1972, ainda na França, o poeta decidiu reiniciar a redação final de seu projeto autobográfico iniciado com os artigos Las vidas del poeta, para tal emprendimento reuniu as crônicas já publicadas e chamou o poeta chileno Homero Arce, seu amigo e secretário, quem junto com Matilde trancreveu os textos ditados por Neruda e que mais tarde serviram de enlace 84 do material pré-existente. Em novembro desse mesmo ano, já de volta ao Chile por problemas de saúde, Neruda trabalhou incansavelmente em suas Memórias, talvez prevendo o fim. Após sua morte em setembro de 1973, o manuscrito foi enviado à Venezuela onde Matilde Urrutia e Miguel Otero Silva, escritor venezuelano e amigo do falecido poeta, organizaram e publicaram o manuscrito. A esse primeiro lançamento se seguiram inúmeras traduções e publicações no mundo inteiro. Muitas polémicas rondaram as Memórias do Nobel chileno. Questionava-se a autoria das últimas quatro páginas de Confieso que he vivido, posto que o poeta encontrava-se gravemente doente na data dos episódios relatados e que tinham acontecido na semana de sua morte. Mas há varias testemunhas que viram o poeta nas últimas horas de vida, como a advogada Aída Figueroa (In. SOÁREZ, 2004:367) que numa entrevista à Revista Araucaria relatou: A verdade é que Pablo não perdeu nunca o ânimo. Quando fui visitálo na clínica no sábado, um dia antes de sua morte, foi a primeira vez que reclamou das dores [...] Estava lendo um livro, que tinha despedaçado para poder ler. Não era capaz de sustentar um livro nas mãos. Tinham desfeito o livro e Pablo tomava umas quatro folhas para ler. Era uma novela francesa. Enquanto isso, Homero Arce estava no quarto ao lado passando a limpo uns poemas, seus últimos poemas. Homero levava os poemas e Pablo os revisava... [Trad. da autora] Matilde Urrutia numa carta dirigida ao professor chileno Juan Loveluck, residente nos estados Unidos, insistiu que Neruda escreveu até a última linha de suas Memórias: 85 Em setembro, Pablo tinha-me avisado que trabalharia dois meses mais em suas Memórias. Em sua caderneta de notas há vários capítulos anotados que não alcançou a fazer, mas as memórias estavam prontas do começo ao fim, e o último capítulo, que o escreveu depois do dia 11, era o final definitivo decidido por ele (IN: SOÁREZ, 2004:366) [Trad. da autora] Apoiado em declarações como as supracitadas, Eulógio Soárez (2004:366) explicou: “Não pode existir dúvida alguma de que o poeta escreveu realmente cada uma das linhas de suas Memórias”, e acrescentou, “As últimas páginas do livro o retratam de corpo inteiro. Resistem todas as provas. Seus juízos políticos são claros em cada um de seus textos; sua linguagem é a mesma; seu estilo, inimitável” [Trad. da autora]. De acordo com Matías Barchino (12): “Confieso que he vivido tem sido um dos livros mais lidos da literatura autobiográfica hispano-americana do século XX [...] tem sido reeditado continuamente desde sua primeira edição argentina e espanhola de 1974”17. Essas Memórias constituem um verdadeiro autorretrato nerudiano. Uma viagem literária que leva o leitor pelas paragens selvagens do sul chileno, para peregrinar mais tarde pela cidade grande e seguir nas travessias ao Oriente, a Europa e a Ásia. Através dessa viagem literária o leitor vai aprofundando nas principais obras, vivências, encontros e desencontros experimentados pelo vate. No final da viagem, personagem e leitor chegam a Isla Negra, onde o poeta viveu seus últimos dias em meio à turbulência política que assolou seu país. 17 Trad. da autora 86 4. De Búffallo Bill aos clássicos El mundo de las artes es un taller en el que todos trabajan y se ayudan, aunque no lo sepan ni lo crean. Y en primer lugar, estamos ayudados por el trabajo de los que precedieron y ya se sabe que no hay Rubén Darío sin Góngora, ni Apollinarie sin Rimbaud, ni Baudelaire sin Lamartine, ni Pablo Neruda sin todos ellos juntos. Y es por orgullo y no por modestia que proclamo a todos los poetas mis maestros, pues, que sería de mí sin las largas lecturas de cuanto se escribió en mi patria y en todos los universos de la poesia. Neruda, 1962* Pablo Neruda foi um poeta universal, lido no mundo todo e traduzido a inúmeras línguas. Mas, de quem Neruda era leitor? Que obras compunham seu universo literário? Que autores ele reverenciava? Responder a essas perguntas de forma abrangente implicaria numa extensa pesquisa merecedora de um estudo particular. Portanto, neste momento, se propõe apenas uma aproximação às relações literárias estabelecidas pelo poeta. Aproximações que serão feitas a partir do próprio texto nerudiano, objetivando uma visão panorâmica do que foi o seu universo literário. A leitura da obra nerudiana revela um autor que lia incansavelmente. De muito jovem foi um ávido leitor e na idade adulta um bibliófilo conhecedor e colecionador de obras valiosas e de edições raras. Na infância e adolescência Neruda leu de tudo e de forma desordenada. Em suas memórias lembra: “Fui creciendo. Me comezaron a interesar los libros. En las hazañas de Buffalo Bill, en los viajes de Salgari, se fue extendiendo mi espíritu por las regiones del sueño” (NERUDA: 2000:17). Cada livro era um mundo novo, as leituras o transportavam a lugares desconhecidos e maravilhosos. Neruda foi uma criança retraída que encontrou refúgio nos livros, à medida que foi crescendo: * NERUDA (2001) p.1095. 87 [...] avanzaba en el mundo del conocimiento, en el desordenado río de los libros como un navegante solitario. Mi avidez de lectura no descansaba ni de día ni de noche. En la costa, en el pequeno Puerto Saavedra encontré una biblioteca municipal y un viejo poeta, don Augusto Winter, que se admiraba de mi voracidad literaria. “¿Las leyó?”, me decía, pasándome un nuevo Vargas Vila, un Ibsen, un Rocambole, como um avestruz yo tragaba sin discriminar (NERUDA, 2000:29). Suas leituras ganharam novo rumo na época em que cursava o ensino médio. De acordo com o próprio Neruda, foi seu professor de francês, o senhor Ernesto Torrealba, admirador dos poetas simbolistas Rimbaud, Verlaine e Baudelaire, quem o iniciou na poesia francesa. Sobre outra personalidade que o encaminhou para novos horizontes literários, Neruda comentou: “Llegó a Temuco uma señora muy alta, con vestidos muy largos y zapatos de taco bajo” Referia-se a Gabriela Mistral, recém chegada à cidade do poeta para ocupar o posto de diretora do Liceo de niñas. Por esse tempo Neruda teve pouco contato com a poetisa, mas foi o suficiente para despertar o interesse por uma leitura mais sofisticada, especialmente pela literatura russa. Sobre os primeiros contatos com Mistral, Neruda (2000:29), escreveu: Yo era demasiado joven para ser su amigo, y demasiado tímido y ensimismado. La vi muy pocas veces. Lo bastante para que cada vez saliera con algunos libros que me regalaba. Eran siempre novelas rusas que ella consideraba como lo más extraordinario de la literatura mundial. Puedo decir que Gabriela me embarcó en esa seria y terrible visión de los novelistas rusos y que Tolstoi, Dostoievski, Chejov, entraron en mi más profunda predilección. Siguen acompañándome. Neruda foi muito grato com as perssoas que o incentivaram no mundo literário. Uma gratidão que repetiu inúmeras vezes ao se referir a outros 88 autores que foram marcantes no transcurso de sua vida e de sua obra. Emir Rodríguez Monegal (1977:64) detectou essa característica refletida na obra do vate chileno: Como todo grande poeta Neruda se apóia na poesia alheia. Si Darío, Sabat Ercasty, Huidobro, a Mistral, Tagore ou Whitman, marcam seus primeiros versos, outros nomes e outros poemas seguirão [...] Como Shakespeare, como Molière, como Goethe, como Hugo, Neruda se alimenta da poesia de seu tempo com a mesma naturalidade com que aproveita a poesia do fabuloso passado. [Trad. da autora] Em suas Memórias Neruda conta que tardou trinta anos em reunir a maioria dos livros que conformaram sua primeira bilblioteca. Dentre as obras mais apreciadas por ele encontram-se valiosos incunábulos18 e peças originais. Orgulhoso, Neruda (2000:356), dizia: [...] Mis anaqueles guardavam incunables y otros volúmenes que me conmovían; Quevedo, Cervantes, Góngora, en ediciones originales, así como Laforgue, Rimbaud, Lautréamont. Estas páginas me parecia que conservaban el tacto de los poetas amados. Em suas andanças pelo mundo Neruda foi garimpando textos de valor incalculável. Chegou a ter cinco mil exemplares, dentre os quais havia incontáveis obras raras e manuscritos de valor inestimável. Em finais de 1953 Neruda decidiu doar sua valiosa biblioteca à Universidad de Chile cumprindo a promessa feita anos antes no poema “Testamento II” de Canto Genral (NERUDA,1999:832-833), transcrito a seguir: Dejo mis viejos libros, recogidos, en rincones del mundo, venerados en su tipografía majestuosa, 18 Livros impressos antes do 1500. 89 a los nuevos poetas de América, a los que un día hilarán em el ronco telar interrumpido las significaciones del mañana [...] Que amen como yo amé mi Manrique, mi Góngora, mi Garcilaso, mi Quevedo: fueron titánicos guardianes, armaduras de platino y nevada transparencia, que me enseñaron el rigor, y busquen en mi Lautréamont viejos lamentos entre pestilenciales agonías. Que en Mayakovski vean como ascendió la estrella y como de sus rayos nacieron las espigas. O discurso proferido por Neruda em 20 de junho de 1954, na ocasião da doação de sua biblioteca, revela claramente suas preferências de leitura ao enumerar algumas das obras de seu acervo. Para cada uma das obras mencionadas, o poeta tinha uma história pessoal, relatava o caminho e as anedotas que o levaram até elas. Falou, por exemplo, de Alejandro Pushkin, de Victor Hugo, de Rimbaud, de Quevedo, de Darío, de Whitman, dentre outros, e lembrou com emoção dos poetas amigos que lhe dedicaram suas obras: “Aqui está el Romancero gitano dedicado por outro poeta asesinado. Federico escribió delante de mí esa magnánima dedicatoria y Paul Éluard, que también se había ido, también en la primera página de su libro me dejó su firma”. Neruda (2001:949) terminou o discurso com as seguintes palavras: [...] Aquí está reunida la belleza que me deslumbró y el trabajo subterráneo de la consciencia que me condujo a la razón, pero también he amado estos libros como objetos preciosos, espuma sagrada del tiempo en su camino, frutos esenciales del hombre. Pertenecen desde ahora a innumerables ojos nuevos. Así cumplen su destino de dar y recibir luz. Os livros acompanharam Neruda desde seus primeiros anos em Temuco. Na primeira conferência do ciclo “Mi poesía” em 20 de janeiro de 90 1954, no Salón de Honor de la Universidad de Chile, Neruda confirma essa afirnativa: Qué soledad la de un pequeño niño poeta vestido de negro, en la frontera espaciosa y terrible. La vida y los libros poco a poco me van dejando entrever mistérios abrumadores [...] Por entonces comienzo a leer vorazmente, saltándome de Julio Verne a Vargas Vila, a Strindberg, a Gork, a Felipe Trigo, a Diderot. Me enfermo de sufrimiento y de piedad con Los Miserables y lloro de amor com Bernardino de Saint-Pierre. El saco de sabiduría humana se había roto y se desgranaba en la noche de Temuco. No dormía ni comía leyendo. No voy a decir a nadie que leía sin método. Quién lee con método? Sólo las estatuas (NERUDA, 2001:925). Walt Whitman foi o escritor mais admirado por Neruda, seu pai literário, como ele mesmo dizia. A admiração de Neruda por Witman se perde entre as lembranças nerudianas como ele próprio cantou em “Oda a Whitman” (NERUDA,1993a:363-367): Yo no recuerdo a qué edad, ni dónde, si en el gran Sur mojado o en la costa temible, bajo el breve grito de las gaviotas, toqué una mano y era la mano de Walt Whitman: pisé la tierra con los pies desnudos, anduve sobre el pasto, sobre el firme rocío de Walt Whitman. Durante mi juventud toda me acompañó esa mano, ese rocío, su firmeza de pino patriarca, su extensión de pradera, y su misión de paz circulatoria [...] A primeira alusão feita por Neruda sobre Whitman foi numa breve nota na revista Claridad em 5 de maio de 1923. Nessa nota Neruda comentou a 91 tradução feita por Arturo Torres Rioseco. Na ocasião o jovem Neruda (2001:310) escreveu: “Trae este libro animación de parte de este araucano reclamista que es A. Torres Rioseco, y bellas palabras del varón de Camdem, vertidas por primeira vez en un castellano digno del que las escribiera en inglés”. Em sua casa de Valparaíso, La Sebastiana, o escritório de Neruda exibe uma fotografia de corpo inteiro de Whitman. O artigo “Figuras en la noche silenciosa: la infancia de los poetas”, publicado na revista Zig-Zag de 20 de outubro de 1923, revela conhecimento tanto da vida quanto da obra dos autores que lia. No texto acima mencionado e destacado a seguir, Neruda (2001:318-319) escreveu sobre a infância de Papini, Baudelaire, Mirbeau, Valdelomar e Romero Murga: [...] A través de los campos; junto a las ventanas donde cantan y sollozan las lluvias australes; abandonados en la seca campina florentina; olvidados en la Bretaña acre, en el Perú soñoliento, en Chile. En todas partes el niño entristecido que no habla, el hombre que ha de decirnos más tarde, con la mano en la frente, recordando: no, io vi ripeto, non hoavuto fanciulleza... Os destaques e comentários aqui apresentados são suficientes para elucidar um universo literário diversificado e amplo. A bagagem literária de Pablo Neruda ia de Búffallo Bill aos clássicos, revelando com isto um leitor que soube dialogar tanto com autores de seu tempo quanto com autores do passado. 92 2ª PARTE O DISCURSO FUNDADOR DAS CIDADES CHILENAS Los rasgos esenciales comunes del conquistador son muy acusados, en todos late un impulso de proyección fuera de lo ordinario, hay un sentido desmesurado, muy español, por cierto, de realizar empresas inauditas e inverosímiles, todos tienen una ciega fe en sí mismos, desprecio por el peligro, audacia ante lo desconocido. El vértigo colectivo de expansión que anima a la España del siglo XVI se expresa idóneo en la mentalidad del conquistador. En este sentido, la atracción de la aventura americana construyó una verdadera criba, especialmente en Chile. Encina & Castedo*. * ENCINA&CASTEDO (2004) p.9. 93 1. Da cidade letrada aos imaginários urbanos Para levar a diante o sistema ordenado da monarquia absoluta, para facilitar a hierarquização e concentração do poder, para cumprir sua missão civilizadora, acabou sendo indispensável que as cidades, que eram a sede da delegação dos poderes, dispusessem de um grupo social especializado ao qual encomendar esses encargos. Foi também indispensável que esse grupo estivesse embuído da consciência de exercer um alto ministério que o equiparava a uma classe sacerdotal. Ángel Rama*. A noção de cidade letrada foi cunhada por Ángel Rama no estudo intitulado La ciudad letrada (1984). Para analisar as relações entre os intelectuais e o poder na América Latina, Rama apresentou um croqui dos sucessivos modelos culturais distribuídos ao longo do processo históricocultural da América Latina. Esta abordagem abrange da conquista e colonização até a segunda metade do século XX. Conforme o crítico uruguaio, o grupo que dominava as letras estabeleceu desde a colônia uma divisão em relação à sociedade e tomou para si um papel estratégico frente ao poder perpetuando-se concomitantemente às mudanças históricas. Os escritores e a produção literária ocupam um lugar central no relato de Rama. Para Rama o corpo letrado das cidades concentra os construtores, os distribuidores, os administradores e os guardiões da linguagem. Ao longo do estudo, Rama desenha e define o papel dos letrados no âmbito político, econômico e social, além do desenvolvimento urbano. De acordo com o autor, cada período do processo histórico-cultural corresponde a * RAMA (1985) p.41 94 um tipo de cidade: ordenada, letrada, escriturária, modernizada, politizada e revolucionada. No primeiro capítulo intitulado “A cidade ordenada”, Rama afirma que o funcionamento e a manutenção de um modelo cultural somente serão satisfatórios se forem embasados numa organização espacial ordenada desde o início, ou seja: A ordem deve ficar estabelecida antes de que a cidade exista, para impedir assim toda futura desordem, o que alude à peculiar virtude dos signos de permanecerem inalteráveis no tempo e seguir regendo a mutante vida das coisas dentro de rígidos marcos (RAMA,1985:29). Rama enfatiza que as cidades antes de existirem na realidade, eram pensadas e representadas simbolicamente através das palavras que expressavam o desejo de construi-las, assim como as normas que regiriam sua diagramação. A importância da palavra escrita para garantir a posse do solo era fundamental: A escritura possuía rigidez e permanência, um modo autônomo que arremedava a eternidade. Estava livre das vicissitudes e metamorfoses da história, mas sobre tudo, consolidava a ordem por sua capacidade de expressá-la rigurosamente ao nível cultural (RAMA,1985:30). Dessa maneira, o discurso ordenado pela língua proporcionava as diretrizes de um segundo discurso em forma de desenho gráfico ou plano, sendo este último “o melhor exemplo de modelo cultural operativo” (RAMA,1985:30). Vista desta perspectiva, a cidade, além de constituir um cenário, constitui um texto que se expressa numa linguagem silenciosa revelada pelas ruas, escritórios, janelas, habitações, etc. As cidades falam de diferentes maneiras através de suas construções, um corpo de cimento capaz de estabelecer com os corpos 95 humanos uma relação singular onde o corpo leitor, além de constituir a personagem principal, é também o narrador. Logo, cada cidade, enquanto texto veicula e armazena uma cultura, uma memória, um saber, uma narração própria, fatores que passam a ser visíveis por meio do relato. Rama chama de cidade letrada o conjunto de religiosos, administradores, estudiosos, escritores, em suma, o conjunto dos servidores intelectuais que configuravam o centro de toda cidade. O autor explica que dentro da cidade material visível existia uma cidade letrada que conduzia e regia a primeira. A parte material da cidade, constituída ao longo do tempo, passou por inúmeras modificações: “A cidade bastião, a cidade porto, a cidade pioneira das fronteiras civilizadoras [...]. Mas dentro delas sempre houve outra cidade não menos amuralhada, porém mais agressiva e redentorista, que a regeu e conduziu” (RAMA, 1985:42). Rama lembra a importância representada pelo corpo letrado no período colonial, grupo reduzido que participava da empresa fundadora, administrativa e modernizadora da cidade. Era o corpo letrado o encarregado da comunicação entre a metrópole, e a sociedade colonial, portanto, constituía a “delegação do Rei”. Esses grupos de poder alcançaram a supremacia, posto que “[...] seus membros foram os únicos exercitantes da letra num meio desguarnecido de letras, os donos da escritura numa sociedade analfabeta [...]” (RAMA,1985:44). Identifica-se em Rama que a cidade real corresponde à sociedade como um todo e a cidade letrada ao grupo de intelectuais que as dirigiam. O grupo letrado adquiriu um poder que o tornou autônomo dentro das instituições, o que levou ao estabelecimento de um abismo entre esse grupo e 96 o restante da população. A distância entre esses dois grupos é análoga à existente entre a palavra escrita e a falada onde a primeira fica reservada a uma minoria que domina a linguagem oficial e, por isso, está mais apta para criar e interpretar as leis que regem a sociedade. A partir desse momento começaram a coexistir duas línguas separadas hierarquicamente: a norma culta e fala popular, fenômeno explicado por Rama (1985:54) da seguinte maneira: “Foi a distância entre a letra rígida e a fluida palavra falada, que fez da cidade letrada uma cidade escriturária, reservada a uma estrita minoria”. Porém, surgiu um novo grupo letrado que se organizou na procura de outros espaços onde puderam se expressar, emergindo assim, os profissionais liberais, os jornalistas e os humanistas, fundando a cidade modernizada. Desta maneira, no fim do século XIX, a cidade letrada se amplia com a incorporação de novos intelectuais, os quais encontraram no jornalismo seu veículo de ingresso na cidade das letras. A incorporação do novo corpo letrado trouxe um conflito originado pelo pensamento crítico que procurou no pensamento popular a base para a formação de projetos nacionais instituindo a literatura nacional como identidade, fato que contribuiu para a formação de uma cultura urbana. Finalmente, Rama aborda a era das revoluções que gerou a cidade revolucionada. O autor observa como em meio às revoluções latino-americanas sempre se concedeu grande importância à presença dos intelectuais nos campos de luta, “[...] quer se trate de conselheiros privados ou de secretários que dominam a pena, quer dos burocratas sobreviventes de todas as administrações possíveis que esperam o momento em que se reclame deles os inevitáveis serviços" (RAMA, 1985:155). Assim, surgiram as ditaduras que assolaram a América Latina a partir da segunda metade do século XX. 97 O percurso pelo ensaio de Ángel Rama permitiu acompanhar de forma clara a função desempenhada pela classe letrada no planejamento, evolução e desenvolvimento dos centros urbanos na América Latina. A final do século XX, o pesquisador argentino Néstor García Canclini publicou Imaginarios urbanos. Nesse estudo, García Canclini reflete sobre o processo de hibridação cultural, sobre a regionalização, a globalização e, especialmente, sobre o espaço urbano da cultura latino-americana no final do século. Seguindo as acepções de Rama, ao querer compreender o emaranhado da cidade, García Canclini enfrenta o desafio de desvelar a superposição de escrituras que configuram as cidades a partir do seguinte questionamento: é possível pensar a cidade como um todo? 2. A cidade como um todo. Antes de tudo, devemos pensar na cidade como um lugar para habitar e para ser imaginado. As cidades se constroem com casas e parques, ruas, auto-estradas e sinais de trânsito. Mas as cidades se configuram também com imagens. Podem ser as dos planos que as inventam e as ordenam. Mas também imaginam o sentido da vida urbana, as novelas, as canções e os filmes, os relatos de imprensa, o rádio e a televisão. A urbe programada para funcionar, desdenhada em quadrícula, se desborda e se multiplica em ficções individuais e coletivas. Néstor García Canclini*. De acordo com Néstor García Canclini é muito difícil estabelecer a noção de cidade como um todo, abordando os diversos aspectos que esse * GARCÍA CANCLINI (1999) p. 107. Todas as citações do livro Imaginarios Urbanos apresentadas neste subcapítulo foram traduzidas pela autora desta Tese. 98 conceito envolve. O pesquisador argentino, em seu livro Imaginarios urbanos (1999), fez uma retrospectiva temporal enunciando as diversas explicações através das quais se tentou responder à questão do significado de cidade. Explicações que não passam de simples aproximações, pois pretendem estruturar uma noção do que é urbano a partir de alguns aspectos isolados e não da cidade como um todo, Primeiramente, García Canclini (1999:69) cita o enfoque adotado no início do século XX o qual sustentava a noção de cidade a partir da oposição urbano/rural, ou seja, “conceber a cidade como o que não é campo”. De acordo com esse raciocínio, o espaço rural estaria vinculado às relações comunitárias primárias19 e o espaço urbano às secundárias, o que configura no entender de García Canclini, uma abordagem insuficiente para responder à questão, já que aborda só um aspecto do fenômeno citadino. Além disso, não questiona, por exemplo, o que ocorre quando as duas realidades, rural e urbana, se encontram dentro do mesmo espaço geográfico. Situações denominadas por García Canclini (1999:70) como “[...] interseções, entrelaçamentos entre o rural e o urbano”, acontecimentos que registram uma invasão de elementos rurais na cidade ou vice-versa. Cenas fáceis de serem vistas, por exemplo, na cidade de Santiago do Chile, nas primeiras décadas do século vinte, como se observa na seguinte gravura: 19 De acordo com Canclini entendem-se como relações comunitárias primárias os contatos intensos de tipo pessoal, familiar e social próprios dos povoados, já as relações secundarias são as desenvolvidas nos centros urbanos que fazem referência a uma maior segmentação de róis. 99 Rua Arturo Prat (1920) - Santiago do Chile. Archivo Fotográfico Chilectra*. A fotografia apresenta o contraste entre dois meios de transporte numa rua do centro de Santiago: o bonde, símbolo do desenvolvimento urbano da época, ao lado de uma carreta puxada por cavalos. Também poderia acontecer o contrário, no que se refere à penetração da cidade no campo, o que deixa claro que a simples noção de oposição não é suficiente para explicar a cidade. Outra abordagem, desenvolvida por García Canclini (1999:70), explica o urbano a partir do critério geográfico-espacial que define a cidade como “[…] a localização permanente relativamente extensa e densa de indivíduos socialmente heterogêneos”. Critério também insuficiente, segundo o ensaísta argentino, porque não se aprofunda nos processos históricos e sociais que estabeleceram a estrutura urbana. Há outros posicionamentos que se referem aos aspectos econômicos, olhando a cidade como o espaço resultante do desenvolvimento industrial e capitalista, tentativas de conceituar o fenômeno urbano, seja a partir da experiência cotidiana, da representação dos habitantes, * Disponível em: http://www.nuestro.cl/chilectra/capitulo2.htm 100 da densidade de interação ou da aceleração das mensagens emitidas nesse espaço físico. Essas aproximações respondem a alguns aspectos, mas não a todos. Talvez a junção desses critérios poderia desvelar a noção de cidade, ainda assim, segundo García Canclini, a resposta obtida seria insuficiente. O pesquisador se baseia no fato de que, ao longo dos tempos, as cidades têm surgido umas sobre as outras, de forma que para explicar a cidade num determinado espaço de tempo seria necessário primeiramente identificar as cidades que existem sob a cidade do tempo presente. Sendo assim, o que deveria interessar para definir o urbano seria explicar “[...] como se dá a multiculturalidade, a coexistência de múltiples culturas num espaço que ainda é denominado urbano” (GARCÍA CANCLINI,1999:77). Para o ensaísta García Canclini, além da multiculturalidade que caracteriza as cidades hispano-americanas, há também a multietnicidade que surge da coexistência de grupos étnicos diferentes, decorrência das migrações internas direcionadas às cidades e das externas, como as eurpéias e as africanas. Para ilustrar a multiculturalidade urbana, García Canclini (1999:87) cita o caso da Cidade do México, onde identifica três cidades pré-existentes sob a capital mexicana da atualidade: “a histórico territorial, a cidade industrial e a cidade informacional ou comunicacional”. A pluriculturalidade de que nos fala García Canclini pode ser resumida na tensão que existe entre as tradições que ainda persistem, somadas a uma modernidade que não acaba de chegar. Este conjunto de variantes que compõem a cidade moderna é a denominada “cidade videoclipe”, ou seja, “a 101 cidade que faz coexistir em ritmo acelerado uma montagem efervescente de culturas de distintas épocas” (García Canclini, 1999:88). O ensaísta argentino enfatiza que a interação do homem com a cidade não se resume a uma simples experiência física, mas à relação imaginária que resulta da passagem deste pelo espaço urbano. De maneira que, ao transitar pela cidade, o indivíduo vai tecendo suposições sobre as coisas e os seres que o rodeiam, uma vez que de acordo com García Canclini (1999:89) “Grande parte do que nos ocorre é imaginário, porque não surge de uma interação real. Toda interação tem uma cota de imaginário [...]”, sobretudo as interações propostas pelo espaço urbano. Observa-se que García Canclini enuncia um novo elemento para se entender a cidade como um todo: o imaginário. Acrescenta também que as cidades possuem um patrimônio visível - elementos materiais - e um patrimônio invisível – lendas, mitos, imagens [...]. O patrimônio invisível ou intangível, de acordo com García Canclini (1999:93): [...] tem configurado um imaginário múltiplo, que não todos compartilhamos da mesma maneira, do qual selecionamos fragmentos de relatos, e os combinamos em nosso grupo, em nossa própria pessoa, para construir uma visão que nos deixe um pouco mais tranqüilos e localizados na cidade. A preservação desses patrimônios é de grande importância porque configuram signos de identidade e de memória para cada grupo social. A significação desses patrimônios será diferente para cada habitante e sua interpretação dependerá das relações sociais em que esteja inserido, proporcionando um sentido à vida urbana. Considerando que esses patrimônios têm sido produzidos pela sociedade através da história, cabe neste 102 momento refletir sobre como a ação do homem tem modificado o meio ambiente que possibilitou o surgimento das cidades. 3. Configuração do espaço citadino O mundo se cria e se recria a partir das relações que o homem mantém com a natureza e da maneira como ele se constrói enquanto indivíduo. Nesse processo ele não só constrói o mundo, mas também um modo de entendê-lo e explicá-lo enquanto possibilidade aberta de transformação. Ana Fani A. Carlos∗ Através da história da humanidade constata-se que o homem sempre interagiu com o meio ambiente em que esteve inserido. No início, o homem usufruía da terra extraindo dela somente o necessário para sua sobrevivência, uma atitude passiva e dependente que foi mudando conforme suas necessidades. Quando o homem deixa de ser um simples coletor e passa a desenvolver a agricultura, deixa de ser nômade e começa a mudar sua relação com o meio ambiente. As modificações experimentadas pelo homem influem diretamente no meio que habita, modificando-o também. A professora Ana Fanni Carlos (2003:32) aborda esse tema da seguinte maneira: [...] o espaço geográfico é o produto, num dado momento, do estado da sociedade, portanto, um produto histórico; é resultado da atividade de uma série de gerações que através de seu trabalho acumulado tem agido sobre ele, modificando-o, transformando-o, humanizando-o, tornando-o um produto cada vez mais distanciado do meio natural. ∗ CARLOS (2003) p.28. 103 O espaço urbano, então, é o resultado da ação da sociedade sobre o meio ambiente e este, ao ser modificado pela mão do homem, passa a constituir o espaço como produto social, um espaço que se caracteriza por permanecer em constante processo de transformação. Dessa forma, a cidade pode ser considerada um espaço humano, não somente porque o homem o habita, mas principalmente por que é ele quem o produz. A definição de cidade, contida no dicionário Houaiss (2001:714), pelo seu teor merece ser discutida: Aglomeração humana de certa importância, localizada numa área geográfica circunscrita e que tem numerosas casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou atividades culturais, mercantis, industriais, financeiras e a outras não relacionadas com a exploração direta do solo. Conforme o referente, o espaço urbano está constituído por elementos materiais destinados à moradia e ao desenvolvimento de diversas atividades. Deve-se acrescentar a essa definição que esses elementos materiais são produzidos pela ação do homem sobre uma determinada área geográfica. De maneira que a observação da paisagem de uma cidade revelar-nos-á a ação do homem ao longo da história e, através do olhar, poder-se-á enxergar o patrimônio que nos proporcionará informações sobre o passado, sobre o presente e até sobre o futuro, se considerarmos as modificações em andamento do espaço observado. A vida humana se desenvolve num espaço determinado: seu país, sua cidade, seu bairro, sua casa ou seu quarto, dentre outros espaços, nos quais o indivíduo se reafirma ou se nega. Assim também, os elementos que configuram esses espaços podem variar de momento a momento, numa oscilação que 104 pode levar o indivíduo à perda da estabilidade ou, ao contrário, ao encontro desta. Neruda apresenta em sua obra espaços variados no que se refere à representação das cidades estudadas. Há espaços abertos: paisagens rurais e portuárias onde encontramos imagens do mar, do horizonte, de bosques, das colinas de Valparaíso ou das montanhas do sul. Há também espaços fechados, denominação aqui empregada para referir-se às imagens que traduzem o olhar do poeta para a cidade de Santiago: ruas cravadas de casas e prédios. Observa-se em Neruda a preferência pelos espaços abertos, característica que revela sua admiração pelas belezas naturais do mundo das quais ele quer ser porta-voz. Desta admiração resulta uma oscilação permanente entre os amplos cenários das cidades de Temuco e Valparaíso e do labirinto da cidade de Santiago. Outra característica manifestada na obra nerudiana é o culto a fenômenos naturais próprios do espaço primigênio, como por exemplo, a chuva austral. Percebe-se uma intensa conexão do poeta com esse fenômeno atmosférico, conexão que o afastamento não anulou. A necessidade de reviver certas visões e sensações levou o poeta chileno a recriar, em suas moradas urbanas e portuárias, os espaços, os materiais e as sensações experimentadas na infância. Para este fim, construiu suas residências em ambientes com características similares às da paisagem austral. Contudo, a ausência da paisagem do sul, juntamente com seus elementos materiais e fenômenos naturais, não representaram uma perda ou inexistência para o poeta, mas o afastamento momentâneo de um grande e desejado reencontro. Esse desejo de reviver o ambiente primigênio é, segundo Simone Weil (1979:353), um 105 sentimento inerente ao ser humano, pois “[...] não temos outra vida, outra seiva a não ser os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana não há outra mais vital que o passado”. Pode-se deduzir que os espaços abertos, ricos em visões, odores e cores, são para Neruda símbolos de felicidade, segurança e plenitude, enquanto que os espaços limitados, de concreto, carentes de odores e cores naturais, remetem ao espaço urbano de Santiago. Neruda através de sua poesia nos apresenta sua particular concepção da urbe e do campo, uma aglomeração de imagens antagônicas que dialogam nos versos de seus poemas. 4. Fundação das cidades chilenas A maior empresa de criação de cidades desenvolvida por um povoado, uma nação ou um império em toda a história, foi a realizada pela Espanha na América a partir de 1492, que ‘encheu um continente de cidades traçadas reticularmente, com uma concepção não igualada pela metrópole’∗. As primeiras cidades da América Latina de que se tem testemunho datam da época pre-hispânica. Cidades construídas em meio da natureza sem representar uma ameaça para o sistema ambiental que as circundava, organizações sociais que já apresentavam um espaço público organizado e uma estrutura urbana muito desenvolvida. Exemplos representativos dessas ∗ Catálogo de exposición Madrid, CEHOPU, 1989, p.13. [Trad. da autora] 106 construções citadinas são as cidades pré-colombianas que constituíam os impérios maia, inca e asteca. O desenvolvimento tecnológico apresentado pelas cidades pré-hispânicas, assim como o cotidiano de seus habitantes, foram registrados pelo pesquisador Luis Vitale (1983:41) com as seguintes palavras: Em cada cidade aborígine havia muitas árvores, plantas, pastos, lagoas, riachos e outros componentes autótrofos que proporcionavam energia própria. A cidade indígena tinha entrada e saída próprias de energia. Esse tipo de cidade constituía uma unidade indissolúvel com o campo. A maioria dos habitantes da urbe se dedicava às tarefas agrícolas. Os indígenas se auto-abasteciam; não tinham necessidade de importar os alimentos essenciais, como se faz hoje em dia nas cidades modernas [...] O fato de que as cidades fossem o lugar de depósito da produção agrária mostra a íntima conexão entre a cidade e campo. [Trad. da autora] Os europeus que chegaram à América do Sul entre os séculos XVI e XVII organizaram, em sucessivas expedições por terra, a repartição de reinos e encomendas, assim como a fundação de cidades sob o controle da Espanha. A força expansiva da ocupação espanhola nos territórios americanos respondeu a um processo paralelo de colonização e implantação de uma rede urbana. Na intenção de povoar o território americano, numerosas fundações espanholas aproveitaram os assentamentos indígenas pré-existentes implantando um plano de desenvolvimento que não considerava as condições culturais desses povos pré-hispânicos. A ocupação e o domínio europeus revelados no ato fundador do território latino-americano são considerados por José Luis Romero (2004:93) como um ato político, pois, Os fatos repetiram-se muitas vezes de maneira semelhante. Um pequeno exército de espanhóis ou portugueses mandado por alguém que possuía uma autoridade formalmente inquestionável, e em geral acompanhado de um certo número de indígenas, chegava a 107 determinado lugar e, por escolha prévia mais ou menos cuidadosa do terreno, instalava-se nele com a intenção de que um grupo permanecesse definitivamente ali. Era um ato político que significava ao propósito – apoiado na força – de ocupar a terra e afirmar o direito dos conquistadores. A fundação das cidades na América Latina era regida por normas específicas ditadas nas Ordenanzas de Felipe II e de Carlos V. Dessa maneira, o modelo clássico da cidade hispano-americana responde ao traçado em forma de tabuleiro de xadrez tipicamente européia estruturada da seguinte maneira: uma praça central da qual se originavam as ruas na forma de rede ortogonal. Ao redor da praça eram construídos os prédios mais importantes e, finalmente eram distribuídos os casarões, como pode ser observado até hoje na maioria das cidades latino-americanas. A modo de ilustração se reproduz a Ordenanza de Carlos V datada em 1523: E quando fizerem a planta do lugar, dividam-na por suas praças, ruas e solares a cordel e régua, começando da praça maior, e tirando a partir dela as ruas até as portas e caminhos principais, e deixando tanto espaço aberto que ainda que a população aumente consideravelmente, se possa sempre prosseguir e dilatar da mesma maneira. (In: CEHOPU, 1989) [Trad. da autora] As primeiras fundações citadinas ocorridas em terras americanas foram as chamadas “cidades-fortalezas” (Romero, 2004:80), as quais tinham a função de fortes. Nelas os colonizadores se protegiam dos ataques indígenas e dos próprios europeus na disputa de terras. Portanto até finais do século XVI os fortes foram as primeiras fundações erguidas em território americano, como pode ser constatado no registro feito por Don Pedro de Valdivia20 no ano de 20 Pedro de Valdivia fundador de cinco importantes cidades chilenas: Santiago, Concepción, La Imperial, Valdivia e Villarica. 108 1545 e reproduzido por José Luis Romero (2004:80) em América Latina: as cidades e as idéias, Ordenei que se fizesse um muro de um estado e meio de altura, formando um quadrilátero de mil seiscentos pés, que levou duzentos mil tijolos e uma vara de cumprimento por um palmo de altura, feitos pelas próprias mãos dos vassalos V.M., e eu com eles e com nossas armas às costas, trabalhamos desde o começo até que se acabou, sem hora de descanso, e quando havia ataque de índios nele se abrigavam as crianças e os equipamentos, e ali estava a provisão que tínhamos armazenado, e os peões ficavam na defesa, e os que estavam a cavalo saíamos a percorrer os campos e lutar com os índios, e defender nossos plantios. Mais tarde, na luta contra os índios surgem as “cidades de fronteira” (Romero, 2004:81), que serviam para delimitar os territórios pertencentes aos indígenas. Nesse processo de conquista, quando os espanhóis faziam esforços para se estabelecer no território latino-americano, a fundação de cidades cumpriu um papel fundamental, pois eram o centro do domínio espanhol numa determinada região e constituíam locais de concentração de onde partiam grupos de conquistadores para dominar outros territórios. As cidades transformaram-se, então, no símbolo da estabilidade e da permanência espanhola em território americano. Além da cidade-fortaleza e das cidades de fronteira, surgiu também a chamada “cidade-porto” (Romero, 2004:81), território que inicialmente tinha como única função ser ponto de escala para o abastecimento de embarcações. Com o tempo estes redutos foram ganhando importância, chegando a desenvolver um papel fundamental no comércio marítimo com a metrópole. A crescente concentração de serviços oferecidos nesses portos estimulou o desenvolvimento de uma estrutura citadina que foi fortalecendo-se com o progressivo estabelecimento de instituições como: 109 [...] o contingente militar de defesa, as indústrias navais de recuperação, os grupos mercantis, os escritórios administrativos governamentais e, naturalmente, toda a população subsidiária que um centro dessa natureza sempre atrai (Romero, 2004:81). As cidades-portos devido a sua localização e prosperidade alcançada desenvolveram uma infra-estrutura diferenciada: edificação de castelos ou fortalezas e muralhas de proteção contra os ataques de piratas que viam nessas cidades fontes de riqueza. Cidades-portos como Buenos Aires, La Habana, Valparaíso ou Rio de Janeiro, atingiram uma intensa vida cosmopolita graças ao desenvolvimento comercial que beneficiou tanto o mercado interno quanto o mercado externo de seus respectivos países. A intensa atividade portuária e marítima dessas cidades propiciou também um processo modernizador mais intenso e rápido se comparadas com outras cidades latino-americanas. Contudo, o povoamento dos centros urbanos, na maior parte das cidades na América Hispânica, foi um processo lento, razão pela qual até meados do século XX a maior concentração de habitantes estava na área rural e não na urbana, como afirma Alan Gilbert (1997:43) em La ciudad latinoamericana: Até pouco tempo atrás uma alta porcentagem de pessoas vivia no campo. Somente a Argentina, o Chile, Cuba e o Uruguai tinham uma maioria de população urbana em 1950 e, em 1960 menos da metade dos latino-americanos viviam nas cidades. [Trad. da autora] As cidades latino-americanas através dos tempos têm vivenciado processos de desenvolvimento díspares a pesar de pertencer a um mesmo continente e de compartilhar experiências históricas semelhantes. 110 5. Caracterização do povo chileno Ao desprender-se América da Monarquia Espanhola, tem-se encontrado semelhante o Império Romano, quando aquela enorme massa caiu espalhada em meio do antigo mundo. Cada fragmento formou então uma nação independente segundo sua situação ou seus interesses; mas com a diferença de que aqueles membros voltavam a restabelecer suas primeiras associações. Nós nem sequer conservamos os vestígios do que foi noutro tempo, não somos europeus, nem indianos, mas uma espécie média entre os aborígens e os espanhóis. Americanos por nascimento e europeus por direito, encontramo-nos no conflito de disputar aos naturais os títulos de posse e de nos manter no país que nos viu nascer, contra a oposição dos invasores, deste jeito, nosso caso é o mais extraordinário e complicado [...] Discurso de Angostura, 1819. Simón Bolivar*. Simón Bolívar no discurso de Angostura21 proferido em 15 de fevereiro de 1819 e publicado no Correo del Orinoco22, fez pública suas inquietações e as dos povos americanos que passavam pelo processo de luta pela independência: Somos índios ou europeus? Que povos eram aqueles que se libertavam? De acordo com Bolivar o povo americano não é nem europeu nem índio, senão uma nova cultura, resultado da união das duas anteriores: “[...] não somos europeus, nem indianos, mas uma espécie média entre os aborígens e os espanhóis”. Mistura difícil de definir, já que os europeus que chegaram à América eram também o resultado da miscigenação com outros povos como enfatizou o libertador da América em seu discurso: BOLIVAR (1819). Capital da província de Guyana, Venezuela. 22 O Correo del Orinoco foi um periódico criado por Simón Bolivar para defender a causa da independência, circulou na Venezuela durante a Guerra da independência. O Discurso de Angostura foi publicado nos números 19, 20, 21 y 22 del 20 de fevereiro ao 13 de março de 1819. * 21 111 [...] Tenhamos presente que nosso povo não é o europeu, nem o americano do norte, mas um composto da África e da América, que uma emanação da Europa, posto que até a Espanha, deixa de ser Europa por seu sangue africano, por suas instituições e por seu caráter. É impossível afirmar com propriedade a que família humana nós pertencemos. A maior parte do indígena tem-se aniquilado, o europeu é uma mistura do americano com o africano, e esse a mescla do índio com o europeu. Nascidos todos de seio de uma mesma mãe, nossos pais, diferentes na origem e no sangue, são estrangeiros, e todos deferem visivelmente na epiderme [...] [Trad. da autora]. Após trezentos anos de domínio europeu (1500-1800), os povos que começaram a conquistar suas independências ficaram perplexos ao se deparar com a pergunta para a qual não encontravam uma resposta conclusiva: Quem somos? Em busca de uma resposta que defina o povo americano, o sociólogo, antropólogo e etnólogo brasileiro Darcy Ribeiro (2007:77), em seu estudo As Américas e a civilização (1969), parte do raciocínio bolivariano e postula o seguinte: Diante de milhões de indígenas e de outros tantos milhões de negros, novamente se transfigurou [o europeu], mais se amorenando e mais se aculturando, e desse modo, enriquecendo seu patrimônio biológico e cultural, mas resistindo à desintegração para impor sua língua e seu perfil cultural básico às novas etnias que faria nascer. Para Darcy Ribeiro, os latino-americanos são hoje resultado das múltiplas culturas concentradas na figura do europeu que somadas à cultura própria constituem um povo que se configurou sob a forte imposição de uma civilização que resitindo à sua própria desintegração quis perpetuar-se pela força. No esforço de compreender a realidade americana Ribeiro faz uma extensa e intensa análise antropológica sobre o período de formação das 112 etnias nacionais analisando cuidadosamente desde suas origens na Europa até o produto miscigenado da colonização das Américas. Para tal emprendimento Ribeiro apresentou três grandes matrizes para a formação étnica e cultural da América Latina, a saber: os povos-testemunho, os povos novos, os povos transplantados e os povos emergentes. De acordo com o antropólogo brasileiro os povos-testemunho ou indoamericanos, estão constituídos por grupos humanos que mantêm a herança pré-colombiana dos astecas, maias e incas (sul do México, Guatemala, Equador, Peru e Bolívia). Civilizações que resistiram ao impacto invasor permanecendo num estado de subjugação que resultou numa forte europeização cultural. Já os povos-testemunho, nas palavras de Ribeiro (2007:79), são: [...] resultantes modernos da ação traumatizadora daquela expansão [européia] e de seus esforços de reconstituição étnica como sociedades nacionais modernas. Reintegradas em sua independência, não voltaram a ser o que eram, porque se haviam transfigurado profundamente [...] Os povos novos ou neo-americanos nos que se incluem habitantes da Venezuela, da Colômbia, das Guianas, do Brasil, do Chile, da América Central, do Caribe e do Paraguai, constituem um grupo formado por matrizes culturais, raciais e lingüísticas muito diferentes entre si. Foram estruturados sob a escravatura e a geração de produtos tropicais ou para o mercado mineiro visando somente o lucro para a metrópole. Esse grupo está representado “pelos povos americanos plasmados nos últimos séculos como subproduto da expansão européia pela fusão de matrizes indígenas, negras e européias” (RIBEIRO, 2007:78). 113 Por sua vez, os povos transplantados ou euro-americanos são aqueles nos que predomina a incorporação de elementos europeios cosmopolitas sobre os originários, através das migrações transcontinentais (Uruguai, Argentina na América do sul, Canadá e os Estados Unidos na América do Norte) que submergiram os anteriores núcleos indígenas e mestiços. A caracterização de Darcy Ribeiro (2007:85) para este grupo foi a seguinte: [...] surgiram como colônias de povoamento dedicadas a atividades granjeiras, artesanais e de pequeno comércio. Todos eles enfrentaram longos períodos de penúria enquanto se ocupavam em implantar bases sobre o deserto [...] Não puderam ter universidades, nem templos, nem palácios suntuosos; mas alfabetizaram toda sua população [...]. Finalmente, a denominação povos emergentes faz referência às nações novas da África e da Ásia que ascendem da condição tribal à nacional, categoria, que conforme Ribeiro, não se deu na América. Segundo a caracterização anterior, os chilenos pertencem ao grupo dos povos neo-americanos que resultaram dos denominados “processos de sucessão ecológica” apontados por Ribeiro no estudo América Latina: a pátria grande (1986). No entender do autor podem-se identificar três fases prévias à formação desses povos novos. Primeiramente a população indígena originária da América teria sido substituída no decorrer da dominação colonial pelo contingente branco, negro e mestiço. Num segundo momento a economia original comunitária teria dado lugar a “uma economia traslocada de comunidades famélicas que produzem eficientissimamente o que não comem, nem usam, para (RIBEIRO,1986:90). enriquecer A terceira seus etapa amos ibéricos aconteceu após ou o crioulos” período de independência quando o molde colonial se fragmentou dividindo-se em 114 nacionalidades diferentes. Ribeiro (1986:90) explica o resultado final desse processo da seguinte maneira: Os crioulos mais abonados que sempre se quiseram identificar, em vão, com os metropolitanos ibéricos, de repente se aperceberam que eram outra coisa, talvez até coisa melhor. Rapidamente se diferenciaram, assumindo novas identidades étnicas, orgulhosos delas. Uns passaram a ser e a chamar-se brasileiros (cortadores de pau-tinta), outros argentinos (gente prateada), cubanos (das cubas de açúcar), outros ainda quiseram ser, elegantemente equatorianos (pelo paralelo solar); quando não onomasticamente, bolivianos (de Bolívar); colombianos (de Colombo); mas todos americanos (de Vespucio, o usurpador), e neolatinos. O conjunto dos povos novos, dentre os quais se inclui o Chile, no desejo de se impor e de mostrar suas diferenças com os outros povos irmãos iniciaram um conflito que se extende até os dias de hoje, mas sem deixar de sentir-se latino-americanos. 5.1 Os chilenos: um povo novo España entró hasta el Sur del Mundo. Agobiados Exploraron la nieve los altos españoles. El Bío-Bío, grave río, Le dijo a España:”Detente”. El bosque de maitenes cuyos hilos verdes cuelgan como temblor de lluvia dijo a España: “No sigas". El alerce, titán de las fronteras silenciosas, dijo en trueno su palabra. Pero hasta el fondo de la patria mía, puno y puñal, el invasor llegaba [...] Canto Genral, 1950*. O primeiro europeu a pisar, por acaso, em terra chilena foi Fernão de Magalhães, navegador português que a serviço da coroa espanhola explorava os mares do sul à procura de uma passagem que, de acordo com Américo Vespucio, levaria às Índias. Falava-se de “uma passagem no sul que permitia * NERUDA (1999) p.485. 115 chegar ‘até a outra parte do mundo’ sem virar o Cabo de Buena Esperanza” (SUBERCASEAUX, 2005:39) [Trad. da autora]. A passagem tão procurada foi encontrada pelo navegador português em 22 de novembro de 1520 e foi batizada com o nome de seu descobridor, Estrecho de Magallanes. Em sua passagem pelo Estreito do extremo sul do continente americano, Magalhães encontrou terras ignoradas que, apesar do clima frio e da localização nos confins do mundo, estavam habitadas. Devido às grandes pegadas deixadas pelos indígenas locais, o navegador português batizou essa região com o nome de Patagonia: Por causa de sua estatura, aumentada por suas longas túnicas de couro de guanaco e suas cabeleiras despenteadas, assim como as grandes pegadas que deixavam seus pés calçados com rústicas sandálias, foram chamados de patagones (FRÍAS VALENZUELA, 2000:7). [Trad. da autora] Como o objetivo era chegar à terra das especiarias, Magalhães seguiu caminho. Na travessia, em direção ao sul do Estreito, os navegadores observaram uma ilha com grande quantidade de fogueiras, e deram-lhe o nome de Tierra del Fuego. Ao consumar a passagem do Estreito, os exploradores se depararam com um oceano imenso que chamaram de Pacífico. Sem querer, Magallanes havia chegado ao território que mais tarde seria Chile. Somente quinze anos depois, em 1535, duas expedições tentaram a conquista do Valle de Chile. A primeira, liderada pelo espanhol Diego de 116 Almagro, fracassou. Almagro e seus homens alcançaram o território chileno descendo pela cordilheira dos Andes onde encontraram “[...] vales fecundos e amplos, aptos para estabelecer-se em trabalhos agrícolas e levar uma vida tranqüila”23 (Encina & Castedo, 2004:109), contrariando a expectativa dos exploradores que esperavam encontrar grandes quantidades de ouro. “Descubrimiento de Chile por Diego de Almagro”24 Pedro Subercaseaux Salón de Honor do antigo Congreso Nacional de Chile 23 Os textos de ENCINA&CASTEDO e de BENAVIDEZ, citados neste capítulo, foram traduzidos pela autora desta tese. 24 Disponível em: www.redchilena.com/Pintura/PedroSubercaseaux 117 Os espanhóis não contavam com a severa travessia que teriam que enfrentar na cordilheira dos Andes, fato lembrado por Neruda no poema “La tierra combatiente” (NERUDA, 1999:467), versos que cantam à força da natureza que caiu sobre a comitiva de Almagro impedindo-os de continuar a profanação da terra chilena: Primero resistió la tierra. La nieve araucana quemó como una hoguera la blacura y el paso de los invasores. Caían de frío los dedos, las manos, los pies de Almagro y las garras que devoraron y sepultaron monarquías eran en la nieve un punto de carne helada, eran silencio [..] Y la muerte del Sur desgranó el galope de los Almagros, hasta que volvió su caballo hacia el Perú donde esperaba el descubridor rechazado, en el camino, con un hacha. Os espanhóis que conseguiram atravessar a cordilheira tiveram que enfrentar a resistência do povo araucano25 com o qual se confrontaram numa árdua luta. Foi assim, que os exploradores “Intimidados pela ferocidade de seus novos inimigos e pelas penalidades de uma expedição empreendida em pleno inverno [...] não tardaram em convencer Almagro da necessidade de voltar rapidamente” (Encina&Castedo, 2004:21), deixando definitivamente o território chileno em 1536. O termo araucano, denominação dada pelos espanhóis aos picunches, vem do vocábulo auca, voz quíchua que quer dizer inimigo. In: MILLAR (1972) p. 49. 25 118 Para Neruda a derrota da expedição de Almagro foi a ação resultante da somatória de duas forças: a da terra e a do homem, unidas para proteger a pátria invadida (NERUDA, 1999:469): […] Patria, nave de nieve, follaje endurecido: allí naciste, cuando el hombre tuyo pidió a la tierra su estandarte y cuando tierra y aire y piedra y lluvia, hoja , raíz, perfume, aullido, cubrieron como un manto al hijo, lo amaron y lo defendieron. Así nació la patria unánime: la unidad antes del combate. A segunda tentativa de conquista do território chileno foi liderada por Pedro de Valdivia, militar espanhol que, em 1540, ao comando de duzentos espanhóis e de um numeroso exército peruano, decidiu ingressar no território chileno e fundou vários assentamentos. Primeiramente, Valdivia fundou o centro urbano do Reino de Chile, Santiago de Nueva Extremadura, em 12 de fevereiro de 1541. Posteriormente, em 1550, Valdivia inicia uma expedição ao sul do Chile confrontando-se com os indígenas mapuches, fato que originaria a denominada Guerra de Arauco, enfrentamento bélico que se estenderia por três séculos. Somente em 1641 foi estabelecido um limite entre o governo colonial e as tribos indígenas às margens do rio Bío-bío, região que passaria a ser conhecida como La Frontera. Apesar da dificuldade imposta pelo grupo araucano, Valdivia conseguiu fundar, nesse território austral, as cidades de Concepción em 1550, La Imperial, Valdivia e Villarrica em 1552, e Arauco em 1553. 119 “Fundación de Santiago”26 Óleo de Pedro Lira, 1898 As imagens emanadas da epopéia nerudiana traduzem a força destruidora com que o conquistador voltou para dilacerar o território austral (NERUDA, 1999:470): Pero volvieron. (Pedro se llamaba) Valdivia, el capitán intruso, cortó mi tierra con la espada entre ladrones: “Esto es tuyo, esto es tuyo, Valdés, Montero esto es tuyo, Inés, este sitio es el cabildo”. [...] Entonces Valdivia, el verdugo, atacó a fuego y a muerte, así empezó la sangre, la sangre de tres siglos, la sangre océano, la sangre atmósfera que cubrió mi tierra y el tiempo inmenso, como ninguna guerra. 26 Disponível em: www.igm.cl 120 Os versos nerudianos, em tom de protesto, apresentam um sujeito lírico que denuncia a crueldade do invasor movido pela ganância de dominação da terra americana. 5.2 Agua de temu: um território de pioneiros Temuco, corazón de agua, patrimonio del digital: antaño tu casa arbórea fueron cuna y campana de mi canto y fortaleza de mi soledad. Neruda, 1969* Á chegada dos espanhóis ao Chile, as populações indígenas que falavam a língua mapuche se distribuíam geograficamente da seguinte maneira: “os picunches, entre o Aconcagua e o el Bío-bío; os mapuches, entre o Bío-bío e o Toltén, e os huilliches, entre o Toltén e a região de Chiloé” (Encina&Castedo, 2004:14). Dos três grupos indígenas citados, os picunches ou araucanos, que constituíam o grupo mais numeroso e mais vigoroso, enfrentaram ferozmente os espanhóis escapando do destino trágico das outras duas agrupações indígenas, as quais sucumbiram ao domínio espanhol. Como conseqüência da longa resistência indígena nasceu a denominada região de La Frontera: faixa de terra localizada entre os rios Bío-bío e Toltén, entre a VIII e a IX região do Chile. Este território foi chamado * NERUDA (1993b) p.344. 121 la Frontera por ser a última linha de defesa da Capitanía General de Chile27 nas terras do povo Mapuche28. Em fins do século XIX surgiu uma pequena cidade que foi batizada como Temuco, capital da IX região da Araucanía. A nova cidade era um conjunto de casas de madeira e ruas de barro que ficavam a maior parte do ano sob as incessantes chuvas austrais. Constituíam a paisagem de Temuco grandes florestas, vulcões, rios e mares. Eram freqüentes as inundações, os tremores e os incêndios que devastavam a nova cidade, mas num piscar de olhos surgiam novas casas de madeira fresca e cheirosa. Temuco, em idioma Mapuche (mapudungun), quer dizer agua de temu. O temu é uma planta medicinal usada pelos nativos para curar suas doenças. Esta cidade foi fundada em 24 de fevereiro de 1881 como cidade-fortaleza: Nascida como conseqüência de uma tarefa militar, Temuco teve em seus inícios as características de um acampamento e um ano após seu nascimento, já se insinuaram as ruas que hoje configuvam o agitado centro da capital regional. O variado e forte grupo de homens e mulheres que teve a tarefa de levantar essa cidade, nunca imaginou o vertiginoso crescimento de Temuco, o que já era possível visualizar nos primeiros anos (In: http://es.wikipedia.org/wiki/Temuco). [Trad. da autora] A população que habitava a cidade de Temuco, nas primeiras décadas do século XX, estava constituída na sua maioria por colonos e comunidades indígenas. Neruda (2000:12) descreve sua cidade com as seguintes palavras: 27 Capitanía General de Chile também conhecido como El Reino de Chile, foi um território pertencente ao Império Espanhol entre 1541 e 1818, ano em que obteve sua independência. Sua capital era a cidade de Santiago de Nueva Extremadura hoje Santiago do Chile. 28 Com o nome Mapuche se denominam as agrupações indígenas que habitavam o território chileno à chegada dos européus. Estes grupos se localizavam entre o Aconcagua e a região de Chiloé, ocupando a maior parte do território chileno. 122 Temuco es una ciudad pionera, de esas ciudades sin pasado, pero con ferreterías. Como los indios no saben leer, las ferreterías ostentan sus notables emblemas en las calles: un inmenso serrucho, una olla gigantesca, un candado ciclópeo, una cuchara antártica. Más allá las zapaterías, una bota colosal […] Al empuje de los conquistadores españoles, después de trescientos años de lucha, los araucanos se replegaron hacia esas regiones frías […] La naturaleza allí me daba una especie de embriaguez. Me atraían los pájaros, los escarabajos, los huevos de perdiz. Temuco é a localidade onde se encontra o coração do grupo étnico chileno: os araucanos, guerreiros, que ao se relacionarem com os espanhóis deram origem a um novo povo, como enfatizado pelo pesquisador e professor Darcy Ribeiro (2007:334): [...] um Povo-Novo, fruto da mestiçagem do espanhol com os indígenas. Sua matriz é a índia araucana, apresada e prenhada pelo espanhol. Os mestiços originados destes cruzamentos, absorvendo por sua vez, mais sangue indígena pelo casamento mestiçoindígena, é que plasmaram o patrimônio genético fundamental do povo chileno. [...]. Conforme Ribeiro a resistência do povo araucano à dominação européia foi a mais persistente e violenta das acontecidadas na América, uma atuação bárbara tanto por parte dos indígenas quanto dos espanhóis. Hoje a cidade de Temuco é um importante centro administrativo, comercial, universitário e cultural. Uma das características deste território é a forte presença da cultura mapuche, estima-se que vinte e cinco por cento da população descende desse povo indígena. Há também nessa região uma numerosa colônia de imigrantes alemães. A cidade de Temuco é considerada atualmente uma das cidades chilenas mais importantes e progressistas. Sua moderna infra-estrutura com interessante arquitetura contemporânea e grandes centros comerciais a 123 definem como a região mais importante do setor centro-sul, que com o tempo tem-se transformado numa cidade moderna. Fatos importantes ocorridos nessa cidade são significativos: a chegada da primeira Linha de Telégrafos em 1866; a primeira Locomotiva em 1875; a inauguração do primeiro hospital em 22 de novembro de 1885; o primeiro jornal Iris em 17 de setembro de 1865, que foi muito difundido, mas como poucas pessoas sabiam ler, sua circulação acabou em 28 de dezembro de 1872. No início de 1894 surgem dois jornais, El Comercio e El Liberal, posteriormente é criado o jornal La Prensa. Por fim, cabe destacar que em Temuco se encontra o Liceu em que Neruda cursou todo o Ensino Fundamental e Médio, atualmente chamado Liceo Pablo Neruda. 5.3 A conquista do mítico Valle de Chile Nuestro territorio es una espada de piedra y nieve abandonado en la costa más lejana del planeta. Los chilenos hemos sentido, no el sonido del aire en las palmeras, ni hemos oído caer las frutas pesadas y maduras en la siesta del trópico; hemos vivido conquistando nuestra propia extensión, limpiando la costa endurecida que nos tocó habitar, y levantando en nuestras manos el fulgor de nuestra dura patria. Discurso proferido no Anfiteatro Bolívar Pablo Neruda, 1941∗. A cidade Santiago del Nuevo Extremo foi fundada em 12 de fevereiro de 1541 no vale do rio Mapocho aos pés do Cerro Santa Lucía: pequeno morro localizado no coração da nova cidade. Os povos aborígines chamavam o morro ∗ Tierra Nueva, nº 9-10, México D.F. mayo-agosto de 1941. In: NERUDA (2001) p. 472. 124 de Huelén, que em mapudungún significa dor ou tristeza, seu nome atual provem do dia em que Pedro de Valdivia se apoderou do morro, 13 de dezembro, dia de Santa Luzia. A cidade recebeu o nome Santiago del Nuevo Extremo em homenagem ao apóstolo Santiago, padroeiro da Espanha, e à região de Extremadura, terra de Pedro de Valdivia. O traçado que a cidade de Santiago apresenta hoje foi realizado pelo alarife Pedro de Gamboa quem desenhou a planta da futura cidade em quarteirões e ruas traçadas por cordel. O alarife designou o quarteirão do centro para a Plaza de Armas e destinou lugares para a casa do governador e para a igreja. Distribuiu também os solares entre seu pessoal e deu inicio à edificação. Cumpridos os primeiros dez anos de sua fundação o aspecto de Santiago não configurava ainda uma cidade: A urbe era um pouco maior que a Praça de Armas. A praça era um terreno quadrado, cortado por um canal. No lado norte estavam as casas do rei, prédio de adobe e palha, com o Cabildo, a fundição real, a tesouraria e o cárcere (ENCINA&CASTEDO,2004:37). A fundação de Santiago foi o primeiro fato importante no processo de colonização do Chile, já que foi o local de onde saíram as expedições que iniciaram o reconhecimento e ocupação de novos territórios. 125 Plano da fundação de Santiago del Nuevo Extremo, 154129 Arquivo Fotográfico da Biblioteca Nacional de Chile Ao longo de sua existência, Santiago tem sido destruída e reconstruída várias vezes: a seis meses de sua fundação foi arrasada pelos mapuches e os terremotos de 1647 e de 1730 somente deixaram em pé um par de prédios. Foram estes desastrosos acontecimentos que, em conjunto com a consolidação da cidade como capital do país, contribuíram para sua remodelação. A partir do período da Colônia (1600) até nossos dias, os governantes têm-se preocupado em realizar obras urbanas de importância como: A Casa Colorada (1769), o Puente de Calicanto (1780), a Casa de la Moneda (1805), a Alameda de Las Delicias (1820), o Cementerio General, a transformação do Cerro Santa Lucía num passeio (1872), o prédio do Congreso Nacional (1875) e a canalização do rio Mapocho, as quais têm 29 Disponível em: www.memoriachilena.cl 126 contribuído para transformar Santiago numa cidade com um rico passado e um futuro promissor. Santiago do Chile, a maior urbe do país, formou-se a partir da expansão dos diferentes bairros satélites que antigamente eram núcleos periféricos, os quais pouco a pouco foram expandindo-se e configurando a grande Santiago. Dessa maneira, esta metrópole se converteu no centro nevrálgico do país, concentrando a maior atividade econômica, administrativa, cultural, comercial, industrial e política do Chile. 5.4 Valle del Paraíso: um assentamento à beira do Pacífico A história do porto de Valparaíso começou em 1536, com a chegada dos primeiros europeus ao mando de Juan de Saavedra, capitão espanhol auxiliar de Diego de Almagro. À bordo da nave Santiaguillo o capitão Saavedra atracou na enseada de Quintil. Foi esse marinheiro espanhol quem batizou o porto chileno com o nome de “Valle del Paraíso ou Valparaíso” (Nuño, 2003: 119). Os primeiros habitantes de Quintil, que significa paus queimados, eram indígenas changos30. No ano de 1544, Pedro de Valdivia proclamou Valparaíso 30 O termo Chango aparece documentado por primeira vez em 1659, segundo alguns cronistas e viajantes do século XVII. Com esse nome são denominadas as sociedades pescadoras do extremo norte do Chile, (Bittman, 1977-1984; Hidalgo, 1981). A categoria de Chango com o passar do tempo foi compreendida num sentido étnico, geo-espacial e produtivo. 127 porto oficial do Reino de Chile e principal porto de abastecimento. Curiosamente, esta cidade-porto que se transformou no pólo comercial mais importante do país nunca foi fundada. Grande parte dos assentamentos pré-hispânicos estabeleceram-se no interior do território americano, já os recursos marítimos foram foco de interesse de pequenas colônias de pescadores aborígenes que se estabeleceram ao longo do litoral chileno. Esta primeira etapa do povoamento litorâneo chileno não constituiu uma ocupação significativa posto que “Os grupos litorâneos não construíram aldeias nem vivendas definitivas limitaramse a levantar estruturas com ossos de baleias e cachalotes, que costumavam revestir com peles de lobo marinho” (BENAVIDES,1988:15). A visão que se tem ao observar a cidade de Valparaíso desde o mar é um conjunto de pitorescas construções superpostas umas às outras, moradas incrustradas nos morros sobre um litoral qua apresenta a forma de ferradura, e configurando um verdadeiro anfiteatro defronte ao mar. A cidade de Valparaíso constitui uma exceção no contexto dos portos. É uma cidade que cresceu muito rapidamente e sem planejamento pelo que não apresenta o rigor geométrico de tabuleiro em seu desenho espacial. Acreditase, de acordo com Benavides (1988:59), que a falta de planejamento urbano se deve a “sua dinâmica de crescimento, que não podia se deter para fazer uma ordem urbana general” ou à “incapacidade das possibilidades do desenho urbano da época [...]”. 128 Cidade e porto de Valparaíso31 Plano realizado pelo Tenente Coronel D. Carlos Wood em 1854. Nos primeiros meses do ano de 1802 Valpararaíso obteve seu Brasão de Armas e o título de “A muito leal e ilustre cidade de San Antonio de Puerto Claro” (BENAVIDES, 1988:26), nomeação indicada pela Coroa Espanhola. Contudo, os assentamentos litorâneos somente receberam um respaldo institucional a partir da Independência, em 1810, diferente do povoamento das zonas interiores do território chileno que vinham crescendo rapidamente a partir da época da ocupação espanhola, constituindo: ”[...] um emaranhado de cidades, casebres e fazendas” (BENAVIDES, 1988:26). Em 1817 o porto de Valparaíso recebeu um grande número de navios estrangeiros, houve maior intercâmbio comercial internacional e uma significativa mudança no ritmo de vida de seus habitantes, até então acostumados à parsimônia colonial. Em poucos meses a populacão portuária se viu inserida no agitado dia-a-dia do embarque e desembarque de 31 BENAVIDES (1988) p.61 129 mercadorias. A intensificação do movimento comercial não trouxe somente mudanças no ritmo de vida, trouxe também significativas transformações na estrutura urbana da cidade. Entre os anos de 1832 e 1833 foi edificado o prédio da Aduana, destinado às transações alfandegárias. Era uma construção de estilo colonial com um grande terreno em sua frente, a denominada Plaza de la Intendencia. Depois do terremoto de 1906 se construiu no mesmo terreno do prédio da alfândega, um edifício de estilo neoclássico que se transformou em bem público da Intendência e residencia presidêncial. A antiga Plaza de la Aduana passou a chamar-se Plaza Sotomayor, nome que se mantém até hoje. Plaza de la Intendencia (1900) 32 28 Coleção fotográfica do jornal El Mercurio de Valparaíso. 130 Até 1848 existia uma única rua entre a praia e os morros de Valparaíso. Nesse ano se construiu a praça municipal Francisco de Echaurren, nome de um dos mais importantes intendentes de Valparaíso. Nesse mesmo ano foi construída, com pranchas de madeira, a chamada rua de La Planchada, atual rua Teniente Serrano Montaner, onde se desenvolveu o centro comercial mais importante de Valparaíso. Para a implementação das modificações citadas foi necessário cavar os morros e remover a terra para abrir passagem e dessa maneira nivelar a cidade e criar o centro urbano ou plan, como é chamado até hoje. Escavações, nivelamentos e construções ocuparam o setor que compreendia a beira do mar frente à primitiva enseada natural da baía, surgia assim “[...] em metade do século XIX o grande espaço portuário de Valparaíso” (BENAVIDES, 1988:60). Somente nas primeiras décadas do século XX, após cem anos de governo independente, o Chile assegurou a construção orgânica de seu território marítimo, dando início à etapa fundacional das cidades-portos, da mesma forma que o século XIX o foi para as cidades do interior. Plaza Francisco Echaurren (1900)33 33 Coleção fotográfica do jornal El Mercurio de Valparaíso. 131 Entre os anos 1810 e 1854 a população de Valparaíso aumentou de 5.000 para 55.000 pessoas, transformando-a numa cidade portuária, ainda que “[...] sem instalações técnicas adequadas, com embarcadouros e cais insuficientes, estava bem provida de depósitos e de armazéns privados regulamentados, para as mercadorias em trânsito” (BENAVIDES, 1988:26), contudo Valparaíso era uma cidade cosmopolita com mais de 35.000 residentes estrangeiros. Há que se destacar também a presença decisiva das ferrovias no crescimento das cidades-porto no que se refere a sua ocupação e povoamento litorâneo, além de sua influência urbanística e arquitetônica, como consta no estudo Ciudades y arquitectura portuaria (1998): Na segunda metade do instalações ferroviárias portuária, com belas destruídas na maioria (BENAVIDES, 1988:29). século XIX, junto às instalações navais, as formavam parte da elite da arquitetura e originais estações, lamentavelmente das vezes por causa dos terremotos No século XIX, o porto de Valparaíso era a escala obrigatória para a navegação entre os oceanos Pacífico e Atlântico, fato que possibilitou a chegada de importantes grupos de imigrantes chilenos e estrangeiros, principalmente europeus, que viram em Valparaíso a possibilidade de progresso e de uma vida tranqüila, condições que permitiram o desenvolvimento harmônico da cidade. 132 Malecón de Valparaíso, março de 190034 Com um comércio atrativo, Valparaíso nutriu-se das principais correntes culturais da época. Em poucos anos passou de uma humilde aldeia de pescadores para uma importante cidade, cheia de casas comerciais, bancos, importadoras, agências alfandegárias, hotéis, teatros e importantes bairros residenciais. Cabe destacar também a realização de obras significativas: a construção ferroviária, a instalação de telégrafos, iluminação pública, água potável e tratamento de esgoto. Foi a cidade onde se criou o jornal El Mercurio de Valparaíso (1827), sendo atualmente o jornal de língua espanhola mais antigo do mundo. Em 1848 criou-se a Bolsa de Valores de Valparaíso, a mais antiga da América Latina, e fundou-se também o Cuerpo de Bomberos de Valparaíso, o mais antigo do Chile. 34 Coleção fotográfica do jornal El Mercurio de Valparaíso 133 Rua Esmeralda, centro de Valparaíso, março de 190035 A abertura do Canal de Panamá, em 1914, trouxe uma significativa decadência. Contudo, Valparaíso soube crescer em outros âmbitos, destacando-se por sua peculiar arquitetura que inspira artistas de diversas tendências Atualmente Valparaíso é sede de quatro universidades tradicionais. De uma delas, Universidade Católica de Valparaíso, nasceu a UCV Televisão, primeira emissora da televisão chilena e, no mês de julho do ano 2004, a cidade de Valparaíso foi reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. 35 Coleção fotográfica do jornal El Mercurio de Valparaíso. 134 3ª PARTE O OLHAR E A MEMÓRIA NO PROCESSO IMAGÉTICO NERUDIANO “La morada siguiente” [...] La verdad tiene rostro: de agua y madera son sus ojos, de nieve son sus dientes: sonrie al sol celeste y a la lluvia: hay que buscarla: el cuerpo de la tierra se desliza entre un amanecer de infancia, lejos [...] y entre ir y venir se va la vida escondiendo los pies y la mirada. Por eso hay que pararse, de repente, oler la piedra, tocar la madera atravesar la escarcha: establecer por fin nuestra evidencia: existir sin razones ni sentido en esta desnudez de la mañana que ya la tarde vestirá de negro. Geografía Infructuosa (1972)* * NERUDA (1977) p.112-113. 135 1. A palavra poética e a imagem citadina em Neruda A poesia pode nos fazer ver o mundo sob um novo aspecto, ou fazer descobrir aspectos até então desconhecidos desse mundo; pode chamar nossa atenção sobre os sentimentos sem nome e mais profundos em que raramente penetramos. T.S. Eliot* O processo imagético na obra de Pablo Neruda se constrói através da criação de imagens forjadas do resgate das experiências de vida e guardadas na memória. Trata-se também de um questionamento existencial do poeta com base no olhar crítico sobre o momento histórico e pessoal. Neste processo criativo o mundo imagético de Neruda tem uma forte referência aos elementos da natureza de Temuco, cenário cotidiano de sua infância e adolescência, constituintes da paisagem que permaneceu em sua memória e se cristalizou em sua obra como, na denominação de Saúl Yurkievich (1997:178), “viveiro de suas associações”, conforme se destacada a seguir: A natureza do sul do Chile se fixa indelevelmente na imaginação do poeta para construir seu embasamento primordial; [...] viveiro de suas associações, a orientadora e alimentadora de suas visões. [Trad. da autora] Se no poema as palavras abandonam seu sentido denotativo e lógico, sugerindo elementos imaginários, então, pode-se afirmar que a essência da imagem poética é conotativa. Logo, a imagem poética implica em riqueza e multiplicidade, significados onde o poema cria sua própria lógica e revela uma * Elliot, T.S. In: Antônio, Severino (2002) p.31. 136 verdade estética, que se aproxima do real. Conforme observou Octavio Paz (1996:38), “O poema não diz o que é e sim o que poderia ser”, já que a imagem poética tem uma maneira própria de expressar pensamentos e de traduzir em palavras o mundo sensível. Portanto, para desvelar a mensagem poética deve-se estar receptivo à multiplicidade de significados captados pelo olhar do poeta. A imagem que resulta desse olhar não será a realidade propriamente dita, mas a representação simbólica dessa realidade. De forma que, quando se fala de uma poesia existencialista, como no caso da poesia nerudiana, o mundo imagético do poeta carrega as marcas das vivências, experiências e lembranças do autor. Nesse caso o poema abordará, por meio do sujeito lírico, o mundo que o rodeia e expressará de modo simbólico como esse mundo é visto poeticamente. Neruda em sua obra estabelece relações entre imagens do cotidiano rural, urbano e portuário. Essas relações revelam identidades regionais pertencentes ao povo chileno das que o próprio Neruda participou intensamente em diversos momentos de sua vida. As imagens armazenadas na mente do indivíduo, ao longo de sua existência, são responsáveis pela configuração da memória individual. Neruda, ao se encontrar num espaço desconhecido – Santiago – projeta seu olhar para o passado na procura de referenciais familiares, estabelecendo assim conexões temporais, que explicam o presente. Desta interação temporal – presente/passado – surgem sentimentos de rejeição, identificação e assimilação entre o sujeito lírico e os diferentes territórios por ele habitados, que se manifestarão no mundo imagético do poema. Octavio Paz (2003:154) 137 sintetiza em poucas linhas essas constatações quando escreve: “A experiência poética é revelação de nossa condição original. E essa criação se resume sempre numa criação: a de nós mesmos”. [Trad. da autora] Pode-se afirmar, então, que a revelação que flui do poema nerudiano é a visão particular do observador-poeta que ao se transformar em re-criador do real dará vida à imagem simbólica dessa realidade no momento em que o sujeito lírico se revele ao leitor através da palavra. É oportuno neste momento citar a pesquisadora Mariluci Guberman (2006:101) que faz referência à construção da palavra poética e do mundo imagético nerudiano, [...] Neruda é um mago da linguagem, utiliza-se dos vocábulos do dicionário e lhes imprime outras cores: a linguagem simbólica arrebata a linguagem referencial. Este processo se efetua devido à atuação das imagens poéticas em suas composições: os elementos da realidade adquirem um novo tom no fazer literário de Neruda. A criação nerudiana pode ser entendida como uma poesia diáfana e objetiva que a partir de poucas palavras tem a capacidade de aproximar ambientes e situações através da condensação imagética. Em Neruda encontramos um poeta, um leitor do mundo, com um olhar sensível, que capta as pequenas grandes coisas do cotidiano e logra transformar em poesia as coisas mais simples. Neruda, um poeta observador e meticuloso, cantou e encantou com a sua linguagem simples: representou, refletiu, recriou o mundo com a palavra, mas não leu apenas o mundo à sua volta, leu também dentro dele, o mundo interior que existe em cada um de nós, e através de imagens traduziu esse universo maravilhoso de lembranças guardadas na alma. Esses dois mundos, o interior e o exterior, encontram-se na poesia nerudiana, fonte 138 das palavras que brotam do poema configurando uma nova realidade. Neruda (2000:71), sobre a palavra, ferramenta da sua obra, dizia: [...] Amo tanto las palabras... Las inesperadas… Vocablos amados… Brillan como piedras de colores, saltan como platinados peces, son espuma, hilo, metal, rocío… Persigo algunas palabras… Son tan hermosas que las quiero poner todas en mi poema…. De acordo com Volodia Teiltemboim, “Neruda tinha o critério do rei Midas, convertia em oro o que tocava fazendo poesia dos temas prosaicos, os temas indignos que não tinham direito de entrar na casa das musas, ele fazia entrar tudo” (VERA, 2004) [Trad. da autora]. O poeta chileno não tinha limites em seu fazer poético. 2. O Tempo: ponte entre a memória e o espaço habitado Ayer es un árbol de largas ramazones, y a su sombra estoy tendido, recordando. De pronto contemplo largas caravanas de caminantes que, llegados como yo a este sendero, con los ojos dormidos en el recuerdo, se cantan canciones y recuerdan. Y algo me dice que han cambiado para detenerse, que han hablado para callarse, que han abierto los atónitos ojos ante la fiesta de las estrellas para cerrarlos y recordar… Tendido en este nuevo camino, con los ávidos ojos florecidos de lejanía, trato en vano de atajar el río del tiempo que tremola sobre mis actitudes. Pero el agua que logro recoger queda aprisionada en los ocultos estanques de mi corazón en que mañana habrán de sumergirse mis viejas manos solitarias…. La lucha por el recuerdo Pablo Neruda∗. ∗ NERUDA (2003) p.20. 139 Neste estudo serão abordados questionamentos relativos à influência do tempo sobre o indivíduo nas diversas manifestações de seu ciclo vital. Abordarse-á o conceito de tempo como construção pessoal e coletiva. Portanto, os questionamentos serão enunciados a partir do tempo vivenciado e do espaço habitado, onde a construção temporal terá referência na experiência e nos afetos inerentes ao homem. Na obra de Pablo Neruda, aqui estudada, podem-se identificar duas fases temporais. A primeira fase é caracterizada pela marcante integração homem-natureza configurando o cotidiano do ‘tempo passado’, seu mundo primigênio e harmônico. Já a segunda fase fica estabelecida no momento em que deixa a província de Temuco para morar em Santiago e logo em Valparaíso. Ao se afastar dos elementos que compunham seu espaço primigênio, o jovem poeta perde sua unidade com o mundo e dentro de si mesmo: “Tendido en este nuevo camino, con los ávidos ojos florecidos de lejanía, trato en vano de atajar el río del tiempo que tremola sobre mis actitudes”, palavras que revelam um esforço por parar o tempo presente e recobrar o tempo passado, “Ayer es un árbol de largas ramazones, y a su sombra estoy tendido, recordando”. Nessa segunda fase, a vida urbana santiaguina, Neruda passa a viver em estado de alerta num mundo sem referências. Experimenta também, vivências na cidade portuária de Valparaíso, espaço que o faz voltar a sentir-se um pouco mais próximo do solo materno. O binômio espaço-tempo em que se desenvolve a vida de cada indivíduo é uma equação particular e intransferível, ainda que rodeado por uma multidão, a vivência espaço-temporal é única a cada ser. A dimensão temporal que opera a memória está intimamente relacionada com as etapas da vida do 140 indivíduo: infância, juventude, maturidade. Assim também, a memória se fixa nos fatos significativos destas idades: mudanças de casa, de país, de cidade, mortes, nascimentos, etc. Este tempo biográfico limitado pelos marcos das experiências pessoais é mais rico em lembranças na primeira idade. Em paralelo ao tempo biográfico atua o tempo cronológico ou social. Neste os eventos se sucedem uns após os outros, sem repetição nem retorno, de maneira que, na medida em que o tempo cronológico avança, o tempo biográfico vai ficando mais pobre. De acordo com Ecléa Bosi (1994:415), “[...] a infância é larga, quase sem margens“, logo vem o tempo da juventude que proporciona ao indivíduo “uma riquíssima gama de marcas afetivas”, enquanto que a idade madura “se transforma numa sucessão monótona de atividades, empobrecendo o número de acontecimentos novos”. Dessa maneira, a temporalidade pode ser abordada a partir de uma perspectiva objetiva (tempo cronológico) ou de uma perspectiva subjetiva (tempo da memória). Este último concede à dimensão temporal um caráter pessoal, ou seja, uma construção embasada nas experiências e nos afetos de cada indivíduo. Considerando o caráter pessoal do tempo subjetivo, observa-se que ao contrário do tempo cronológico, não poderá ser linear, pois estará sujeito às experiências de vida, característica que dará ao tempo subjetivo um tom intempestivo, revertendo, dessa forma, o tempo entendido como sucessão horizontal de fatos. Um tempo reversível constatado nas palavras do próprio Neruda ao questionar e ratificar sua constante volta às lembranças da infância e adolescência vivenciadas na terra de nascimento, 141 […] quiero expresar y abarcar movimiento, circunstancias, caminos indefinibles, talvez lo inevitable que me hace volver sin cesar en mi vida y en mi poesía hasta estas fronteras de sur lluvioso, a estos grandes ríos natales, al generoso silencio de estas tierras y de estos hombres (NERUDA, 2003:350). ou quando escreve: “Mi vida es uma eterna peregrinación que siempre da vueltas, que siempre retorna al bosque austral, a la selva perdida” (NERUDA,2000:251). Desta ação circular de eterno retorno surge o que Alfredo Bosi (1992:27) denomina tempo reversível: [...] a reiteração dos movimentos, feita dentro do sujeito, faz com que este perceba que o que foi pode voltar; com esta percepção e o sentimento da simultaneidade que a memória produz, nasce a idéia de tempo reversível. Esse tempo reversível encontrado na lírica e na prosa memorialista de Pablo Neruda oferece reflexões tão amplas sobre sua poesia e sua biografia que se tornou imprescindível para a compreensão do seu mundo poético. Em Memorial de Isla Negra (1964), por exemplo, o autor tece poemas sobre sua vida e sua criação literária, uma autobiografia em verso que segue a veta proustiana: uma busca pelo tempo perdido, um tempo que será reencontrado na arte, um auto-retrato feito com palavras. Neruda recria através da memória o universo de sua terra de nascimento impulsionado pela lembrança da paisagem e da atmosfera provinciana que inspiraram seus poemas. Assim, a visão da Araucanía é cristalizada no poema por um sujeito poético que rompe os limites da fronteira espaço-temporal, um poder que só lhe pode ser conferido pela memória. A obra nerudiana construída a partir de um fio autobiográfico pode ser considerada uma crônica de sua vida, recriação embasada na transmutação 142 continua de experiências de vida em substancia literária. Em Memorial de Isla Negra o autor se reinventa afirmando sua identidade de forma implícita, uma correspondência evidente entre autor e sujeito poético. Neste processo criativo o autor direciona o espelho a si mesmo, de maneira a observar no seu reflexo sua existência passada e presente, construindo o texto ao redor de um sujeito introspectivo que contempla os fatos existenciais que serão desvelados através da imagem e materializados na palavra. Ao entender o tempo como “uma série de rupturas” (BACHELARD,1988a:39) pode estabelecer-se que a escrita memorialista nerudiana revela um tempo lacunar e descontinuo, apresenta um sujeito fragmentado que se vai configurando através da soma dos signos da sua memória que superpostos vão reconstruindo o passado a partir do presente. De Memorial de Isla Negra selecionou-se o poema “El niño perdido” (NERUDA, 2004:31-33) onde, através da evocação autobiográfica o autor questiona o presente e as diferentes fases de sua vida, ou como ele mesmo afirmou “... una vida hecha de todas las vidas: las vidas del poeta” (NERUDA,2000:7). O poema apresenta um panorama do que foi sua vida até os sessenta anos de idade, uma seqüência das diferentes encarnações ou “máscaras” que assumiu para repetir, sempre, a felicidade de viver e criar: La lenta infancia de donde como un pasto largo crece el puro pistilo, la madera del hombre. Quién fui? Qué fui? Qué fuimos? [...] La máscara del niño fue cambiando. O poema apresenta um eu múltiplo “Quién fui? Qué fui? Qué fuimos?”, uma memória que busca a identidade ou as identidades que existem dentro do 143 sujeito concebendo o homem como um ser plural. Neruda apresenta um indivíduo polifacético através de uma memória individual que revela diversas “máscaras” que o caracterizam num intento de apresentar-se de forma íntegra: “La máscara del niño fue cambiando [...]”. Cada máscaras representa uma idade ou etapa de vida, através delas o poeta apresenta a multiplicidade de eus que foram configurando sua pessoa. O vate reconstroi sua vida na soma de instantes, ou seja de ações isoladas e não de uma seqüência ininterrupta, logo se pode afirmar que o homem é um ser composto de fragmentos, a partir dos quais pode-se reconstroir a história de cada um. Día a día las horas se amarraron, pero tú ya no fuiste, vino el outro, y el otro tú, y el otro hasta que fuiste, hasta que te sacaste del propio pasajero, del tren, de los vagones de la vida, de la sustitución del caminante. Em “El niño perdido”, Neruda faz uma retrospectiva com o objetivo de explicar o presente, cria uma imagem global a partir dos instantes que configuraram sua existência, instantes que são interpretados à distancia dos fatos com um olhar maduro que dará a essas vivência um tom renovado, já que, [...] a memória não tira o poeta do mundo atual, mas o aprofunda mais enraizadamente nele; a recordação do que foi não é evasão senão uma maneira, mais rica, mais dramática, mais essencialmente luminosa, de penetrar nas dimensões mais profundas da atualidade. O passado se atualiza: se faz hoje, mas sem abolir o hoje. (RODRÍGUEZ MONEGAL,1977:418). [Trad. da autora] Em Memorial Neruda realizou uma caminhada desde suas origens até o seu presente, uma crónica atualizadora e revitalizadora do que tinha sido sua passagem pela terra até esse momento. 144 . 3. As imagens primordiais e sua relação com o espaço citadino Que tensão de infâncias deve estar de reserva no fundo do nosso ser para que a imagem de um poeta nos faça reviver subitamente as nossas lembranças, reimaginar nossas imagens a partir de palavras bem reunidas! Porque a imagem de um poeta é uma imagem falada, e não uma imagem que os nossos olhos vêem. Um traço de imagem falada basta para nos fazer ler o poema como eco de um passado dasaparecido. Gaston Bachelard*. A identificação das imagens primordiais nerudianas será realizada à luz de Gilles Deleuze, que em sua obra Proust e os signos identificou quatro tipos de signos: os mundanos, os amorosos, os materiais e os signos da arte. Neste estudo serão abordados os signos materiais ou essenciais que remetem ao mundo das impressões ou das qualidades visíveis. Estes signos, também chamados de sensíveis, de acordo com Deleuze, uma vez experimentados proporcionam uma estranha alegria. Em Neruda podemos identificar elementos materiais que aparecem reiteradas vezes nos seus escritos dedicados às cidades estudadas: madeira, chuva, vento, terra, árvores, sinos, casa, raízes, rios, dentre outros. Elementos relacionados com sua origem, arquétipos que o remetem ao espaço sulista de sua infância e adolescência de Temuco, e que voltam a surgir no presente urbano e portuário do poeta. A constante reincidência das imagens primordiais na obra Pablo Neruda se deve, como explica Bachelard (1988b:119), a que “Cada arquétipo é uma abertura para o mundo, um convite ao mundo [...] A * BACHELARD (1988b) p. 110. 145 água da criança, o fogo da criança, as árvores da criança, as flores primaveris da criança [...]” permanecem vivos e sempre estão a reclamar um poema. A obra nerudiana abordada neste estudo remete a três cidades chilenas: Temuco, cidade rural que na época do poeta ainda estava em processo de colonização; Santiago, capital de Chile em plena expansão urbana na segunda década do século XX e Valparaíso, um dos portos mais importantes do Chile. As relações estabelecidas entre o sujeito poético e os espaços mencionados revelam uma identificação total com o território do sul, uma rejeição à capital e uma aceitação imediata com a região portuária, resultando desta interação um diálogo ou sua negação entre o espaço observado e o sujeito poético. Serão objeto de reflexão as imagens que surgem das vivências diretas do poeta ao habitar esses espaços, assim como suas experiências primigênias resgatadas pela memória. O tempo histórico abordado abrange as primeiras sete décadas do século XX. O questionamento sobre estes espaços será feito a partir da análise da palavra e da imagem poética que revelará as modificações e experiências do ser provinciano de Temuco nos novos territórios por ele habitados, tendo sempre como referência a região sul para com Santiago e Valparaíso. 3.1 Temuco: a paisagem primigênia [...] se há algo que inevitavelmente se foi, há, entretanto, alguma coisa que fica. O que fica das pegadas no chão da memória? Fica o que significa [...] ou o que significa passa a ficar? 146 Guilles Deleuze∗. Ao compreender o significado dos arquétipos segundo o raciocínio desenvolvido por Gastón Bachelard (1988b:120) como, [...] reservas de entusiasmo que nos ajudam a acreditar no mundo, a amar o mundo, a criar o nosso mundo [...] O arquétipo está ali, imutável, imóvel sob a memória, imóvel sob os sonhos. E, quando se faz reviver, pelos sonhos, o poder do arquétipo da infância, todos os grandes arquétipos das potências paternas, das potencias maternas retomam a sua ação [...] Tudo o que acolhe a infância tem uma virtude de origem. E os arquétipos permaneceram sempre como origens de imagens poderosas. e uma vez que o olhar retrospectivo é uma constante na obra de Pablo Neruda, é possível interpretar, através da identificação de suas imagens primordiais ou arquétipos, o mundo imagético manifestadao no canto às cidades que configuram a tríade citadina aqui abordada – Temuco, Santiago, Valparaíso. Em Neruda a rememoração pode ser compreendida como o desejo de preservar as vivências que constituem a base de sua identidade, uma tentativa de “encontrar o tempo perdido e fixá-lo para sempre, penetrando mais profundamente na atualidade” (JOZEF, 1993:38). Chegar-se-á dessa maneira, à dedução de Deleuze de que das experiências da vida somente “Fica o que significa”, ou seja, os fatos e elementos que causaram uma impressão no indivíduo. Em Neruda isto se constata através de uma escrita reincidente nos motivos e paisagens primigênias, já que, como afirma Gaston Bachelard em A poética do devaneio (1988b:119), Nos nossos devaneios voltados para a infância, todos os arquétipos que ligam o homem ao mundo, que estabelecem um acordo poético ∗ Guilles Delleze. In: BRANCO (1994) p.11-12. 147 entre o homem e o universo, todos esses arquétipos são, de certa forma, revivificados. Pode-se deduzir, então, que o “acordo poético” dos arquétipos é a força de síntese que possui a poesia para expressar a existência humana. Num primeiro estágio, o olhar retrospectivo acontece em Neruda como mecanismo de defesa para amenizar o presente adverso na capital chilena, como registrado no poema “Aromos rubios en los campos de Loncoche” de Crepusculario (1977:46-47): Yo soy una palabra de este paisaje muerto, soy el corazón de este cielo vacío; cuando voy por los campos, con el alma en el viento, mis venas continúan el rumor de los ríos. A dónde vas ahora? — Sobre el cielo la greda del crepúsculo, para los dedos de la noche. No alumbrarán estrellas… A mis ojos se enredan aromos rubios en los campos de Loncoche36. Desses versos emerge a imagem de uma paisagem estática e sem vida coroada por um céu sem estrelas, ambiente que faz com que o eu lírico volte automaticamente à paisagem viva e cheia de movimento da região da Araucanía, “cuando voy por los campos, con el alma en el / viento, / mis venas continúan el rumor de los ríos”. O sujeito lírico experimenta através do olhar retrospectivo a cor, o cheiro e a textura dos milenares “aromos37 rubios en los campos de Loncoche”, uma maneira de respirar o passado, a melancolia de uma infância habituada ao cheiro da chuva, dos bosques, enfim, da natureza. 36 Loncoche em mapuche significa “cabeça de homem importante”, é uma cidade do sul do Chile localizada na região da Araucanía. 37 Árvore de galhos espinhosos e flores amarelas muito cheirosas, que podem chegar a medir até dezessete metros de altura. In: LAROUSSE (1997) p.95. 148 Este mecanismo de defesa é explicado por Bachelard (1988b:97,112), da seguinte maneira: Nossa adesão à beleza primeira foi tão forte que, se o devaneio nos transporta às nossas mais caras lembranças, o mundo atual parece totalmente descolorido [...]. A Infância vê o Mundo ilustrado, o Mundo com suas cores primeiras, suas cores verdadeiras. O grande outrora que revivemos ao sonhar nossas lembranças de infância é o mundo da primeira vez. Todos os verões de nossa infância testemunham o ‘eterno verão’. Num segundo momento, o resgate da memória serve de referência para explicar o sentimento de identificação e complementação que significou para Neruda (2000:73) interagir com o espaço portuário de Valparaíso, En el punto más desordenado de nuestra juventud nos metíamos de pronto, siempre de madrugada, siempre sin haber dormido, siempre sin un centavo en los bolsillos, en un vagón de tercera clase. Éramos poetas o pintores de poco más o poco menos de veinte años, provistos de una valiosa carga de locura irreflexiva que quería emplearse, extenderse, estallar. La estrella de Valparaíso nos llamaba con su pulso magnético. Constata-se então, que em Neruda as vivências significativas da infância e da adolescência constituem o “poço de seu ser”38, ou seja, o reservatório que contém suas raízes identitárias, suas referências culturais e pessoais. Portanto, é a identificação das imagens primordiais presentes nos textos citadinos o que possibilitará a interpretação do mundo imagético resultante da rememoração. Um dos signos materiais que surgem com freqüência nos versos nerudianos revela-se na imagem da ferrovia, meio de transporte que sirviu de nexo entre as diferentes cidades que o poeta percorreu nas primeiras décadas 38 Termo empregado por Bachelard para referir-se ao reservatório da memória que vai registrando as experiências e os elementos da primeira idade. Estas lembranças ficam armazenadas no fundo do ser prontas para ser resgatadas e revividas. In: BACHELARD (1988b) p.110. 149 do século XX. Meio de transporte que desde o século XIX foi o símbolo do progresso e da prosperidade que a revolução industrial trouxe ao mundo. No Chile a ferrovia como idéia coletiva se desenvolveu historicamente como a coluna vertebral da nação produto da industrialização. Este meio de transporte teve grande importância tanto nas cidades quanto nas províncias, onde a população se organizava ao redor de suas estações ferroviárias sem diferenciar classes sociais. Na cidade as famílias privilegiadas viam na estação um lugar de encontro e distração e as mães de proles numerosas levavam seus filhos à estação para passear. Na província era um acontecimento a chegada dos familiares vindos de Santiago, as despedidas depois de um verão de férias no campo. Hoje ramais ferroviários sem uso constituem peças de museu com seus trilhos enferrujados misturados à grama, são ruínas de um passado de intensa atividade. Em seu auge as linhas ferroviárias foram símbolos das viagens, época em que o itinerário era tão importante quanto o destino, já que a prazerosa viagem de trem permitia ao passageiro admirar através das janelas a sucessão interminável de paisagens, como o confirma Neruda (2000b:39-40) ao relatar sua primeira viagem de Temuco a Santiago: Provisto de un baúl de hojalata, con el indispensable traje de poeta, delgadísimo y afilado como un cuchillo, entré en la tercera clase del tren nocturno que tardaba un día y una noche interminables en llegar a santiago […] Entre tanto el tren pasaba, de los campos con robles y araucarias y las casas de madera mojada, a los álamos del centro de Chile, a las polvorientas construcciones de adobe. Muchas veces hice aquel viaje de ida y vuelta entre la capital y la provincia, pero siempre me sentí ahogar cuando salía de los grandes bosques, de la madera maternal […]. 150 Em seu relato o jovem poeta registra o significado afetivo do sul, observa-se também a presença de alguns dos elementos que configuram seu mundo primigênio: as árvores e a casa materna, ao tempo que declara a dificuldade de deixar para trás seu universo de “campos con robles y araucarias y las casas de madera mojada” e ter que penetrar nas “polvorientas construcciones de adobe” da capital. As ferrovias faziam parte da paisagem cotidiana do jovem Neftali desde sua infância. Seu pai era ferroviário e dirigia um trem lastrero em Temuco, às vezes Neftalí tinha a sorte de poder acompanhar seu pai nas viagens até os povoados vizinhos, ocasiões em que o jovem poeta entrava em contato direto com a natureza e aproveitava para fazer suas explorações: “La naturaleza allí me daba una especie de embriaguez. Me atraían los pájaros, los escarabajos, los huevos de perdiz” (NERUDA,2000:13), foi assim, que a natureza do sul do Chile entrou para sempre na vida e obra de Pablo Neruda. O trem, que sempre foi uma imagem significativa na infância de Neruda, se tornou também o elo entre as cidades de Temuco, Santiago e Valparaíso. Cabe destacar também que a casa ocupa na obra de Neruda um lugar de destaque porque nela o poeta materializou as imagens que constituem sua identidade primigênia. Se nos versos nerudianos os signos sensíveis que configuram seu mundo primeiro são revelados pela palavra poética, em suas casas essas imagens se materializam configurando uma poesia que se revela nas formas e nos objetos amados. Dessa maneira, as casas nerudianas se apresentam como espaços reveladores de formas caprichosas cujos cômodos decorados com objetos de estimação são verdadeiros poemas geradores de 151 felicidade ao seu morador-reconstrutor. Conforme Gaston Bachelard (2003: 3435): [...] existe para cada um de nós uma casa onírica, uma casa de lembrança-sonho, perdida na sombra de um além do passado verdadeiro [...] Habitar oniricamente a casa natal é mais que habitála pela lembrança; é viver na casa desaparecida tal como ali sonhamos um dia. Ao observar as moradas de Neruda percebe-se que a casa não é um espaço imutável nem estático, pelo contrário, as propriedades adquiridas e reconstruídas pelo poeta permaneceram em constante crescimento, tranformação e aperfeiçoamento. O fato de que o poeta chileno nunca tenha dado por terminadas suas casas, aprimorando-as eternamente, criando novas habitações ou acrescentando detalhes caprichosos, reflete, talvez, a imagem fixada em sua memória das casas temucanas. Construções sempre incompletas e em constante transformação, cena lembrada por Neruda (2000:15) em suas Memórias: Las casas nuestras tenían, pues, algo de campamento. O de empresas descubridoras. Al entrar se veían barrica, aperos, monturas, y objetos indescriptibles. Quedan siempre habitaciones sin terminar, escaleras inconclusas. Se hablaba toda la vida de de continuar la construcción. Da casa materna localizada no centro da cidade de Parral onde os pais de Neruda viveram até seu nascimento ou do lar dos avós no sítio Belén onde viveu até os dois anos de idade, nada ficou na memória do poeta chileno. A descrição feita no texto supracitado corresponde à segunda morada de Neruda localizada na rua Lautaro nº 146 a poucos metros da Estación de Ferrocarriles de Temuco, e foi nessa morada onde escreveu seus primeiros poemas. 152 Foi o próprio Neruda que se encarregou de procurar os materiais para a reconstrução de suas casas. Participou dos projetos arquitectônicos e foi uma preocupação constante a seleção e aquisição de objetos para compor os interiores de suas moradas. No Chile Neruda adquiriu cinco propriedades: Michoacán, La chascona e La Manquel, em Santiago; la casa de Isla Negra e La Sebastiana em Valparaíso. Todas elas propriedades com construções simples ou sem acabar que foram sendo reconstruídas pouco-a-pouco até tomar as formas e o estilo que as caracterizaria. Das cinco propriedades, três foram conservadas como museus: La chascona, La Sebastiana e Isla Negra, testemunhos da criatividade e da maneira de habitar de Pablo Neruda. Casas que foram objeto de poemas e nomes muito representativos, que revelam o profundo amor que Neruda depositou nelas. Nas casas de Pablo Neruda persiste uma constante incansável: o empenho de recriar nelas – tanto interior quanto exteriormente – as moradas e a natureza sulista que o cercaram na infância e na adolescência. Podem-se destacar de Michoacán e de La Chascona os grandes pátios interiores que comunicavam os inúmeros comodos das casas. Os pátios interiores das casas temucanas intercomunicavam várias casas familiares. Neruda (2000:14) descreveu sua casa provinciana com as seguintes palavras: Es difícil dar una idea de una casa como la mía, casa típica de la frontera, hace sesenta años. En primer lugar los domicilios familiares se intercomunicaban. Por el fondo de los patios, Los Reyes y los Ortegas, los Candia y los Moson se intercambiaban herramientas o libros, tortas de cumpleaños, ungüentos para fricciones, paraguas, mesas, sillas. 153 Neruda revelou seu apego às casas onde morou, assim como dos objetos que as decoravam: restos de naufragios, objetos trazidos do mundo todo e especialmente do saudoso Temuco. As residências de Neruda revelam o modo de ser e de habitar, elas contêm a imagem do mundo nerudiano, a alma do poeta. 3.2 Santiago de Chile: um mar desconhecido De la pensión de la calle Maruri me retiré como un molusco que sale de su concha. Me despedí de aquel caparazón para conocer el mar, es decir, el mundo. El mar desconocido eran las calles de Santiago, apenas entrevistas mientras caminaba entre la vieja escuela universitaria y la despoblada habitación de la pensión de familia. Pablo Neruda*. Neste momento se procederá à apresentação de alguns textos nerudianos – lírica e prosa – que fazem patente a crítica à vida que assume o homem citadino, assim como a presença da paisagem provinciana na urbe santiaguina. Sabendo que as ruas de Santiago eram, de acordo com o próprio Neruda, “un mar desconocido”, cheio de mistérios e perigos ao qual se aventurou desprovido de qualquer proteção, “Me despedí de aquel caparazón para conocer el mar”, para enfrentar as adversidades com seu único instrumento de defesa, as palavras. Foi valendo-se delas que escreveu, sob um olhar crítico, um discurso poético que retrata a vida urbana através do qual faz possível uma aproximação à realidade citadina chilena do 1900. * NERUDA (2000) p. 41. 154 Começar-se-á com a leitura de dois textos nerudianos publicados na revista Claridad sob o título de “Glosas de la Ciudad I”. Textos que saíram à luz em agosto de 1921, somente três meses após a chegada de Neruda à capital. No primeiro texto o poeta registra sua visão da massa urbana, Ciudad. Los brazos caen a los lados, como aspas cansadas. Son muchos. Van juntos, las anchas espaldas, las miradas humildes, los trajes deshechos, todo es común, todo es carne de un solo cuerpo, todo es energía rota de un solo cuerpo miserable que parece llevan la tierra entera. ¿Por qué estos hombres que van juntos, tocándose las espaldas robustas, no llevan los vigorosos brazos levantados, no levantan hacia el sol la cabeza? ¿Por qué, si van juntos y tienen hambre, no hacen temblar los pavimentos de piedra de la ciudad, las gradas blancas de las iglesias, con el peso sombrío de sus pisadas hambrientas, hasta que la ciudad se quede inmóvil, escuchando el rumor enorme de las pisadas que treparían hasta cegar el fuego de las fábricas, hasta encender el fuego de los incendios? ¿Por qué estos hombres no levantan los brazos siquiera? (NERUDA, 2001:252). No texto supracitado, o poeta apresenta uma multidão de seres que avança com o olhar fixo no chão, sem ouvir nem sentir o que se passa ao seu redor. Não há diferença entre os indivíduos, todos parecem iguais: “miradas humildes, los trajes deshechos, todo es común, todo es carne de un solo cuerpo”. Seres fortes e vigorosos, mas tristes e passivos, homens sem expressão que não lutam por seus direitos e se submetem à exploração trabalhista. Ante esta cena o jovem poeta interroga: “¿Por qué, si van juntos y tienen hambre, no hacen temblar los pavimentos de piedra de la ciudad [...] ¿Por qué estos hombres no levantan los brazos siquiera?”, um sujeito poético que expressa sua inconformidade ante a atitude alienada do homem urbano. Se no primeiro texto Neruda (2001:254), apresenta sua visão da massa urbana, já no seguinte, dirige seu inconformismo a um individuo em particular, um “tú” que lhe é familiar, e lhe diz: 155 Empleado Es claro no lo sabes, pero conozco tu vida, entera. Así, sin que me oculten las alegrías raras o los disgustos de todos los días. Sé tu vida febril: de la cama a la calle, de ahí al trabajo. El trabajo es oscuro, torpe matador. Después el almuerzo, rápido. Y al trabajo otra vez. Después la comida, el cuerpo extenuado y la noche que te hace dormir. Ayer, mañana, pasado, sucedió y sucederá lo mismo. La misma vida, es decir, lo que tú llamas vida […] Nosotros lo llamamos explotación, capital, abuso. Los diarios que tú lees, en el tranvía, apurado lo llaman orden, derecho, patria, etc. Tal vez te halles débil. No. Aquí estamos nosotros, nosotros que ya no estamos solos, que somos iguales a ti; y como tú explotados y doloridos pero rebeldes […] Hay que decirlo. Por que no sólo el que no obra como piensa, piensa incompletamente. También el que no lo dice… No escrito lido, a crítica ao comportamento do sujeito citadino submisso é clara e direta. Neruda chama à atenção para que este homem acorde do comportamento mecânico e proteste contra a rotina do trabalho exploratório ao que está submetido, “Ayer, mañana, pasado, sucedió y sucederá lo mismo. La misma vida, es decir, lo que tú llamas vida”. Termina incentivando-o a alçar a voz e o lembra de que não está sozinho nessa luta, “Aquí estamos nosotros, nosotros que ya no estamos solos”. Um fato importante a destacar é que a denuncia feita à vida citadina é realizada em tempo presente, ou seja, o poeta forma parte da vida desses indivíduos e ciente disso aproveita a oportunidade de fazer públicas suas reflexões através da revista possibilitando, com isto, que seus leitores tomem consciência da realidade social em que vivem. Mas, não é somente na prosa que Neruda registra suas inquietudes, em poemas como “Caballero solo” (NERUDA,1958:69-70) de Residencia en la Tierra, também deixa constancia seus questionamentos, Los jóvenes homosexuales y las muchachas amorosas, y las largas viudas que sufren el delirante insomnio, y las jóvenes señoras preñadas hace treinta horas, y los roncos gatos que cruzan mi jardín en tinieblas, 156 como un collar de palpitantes ostras sexuales rodean mi residencia solitaria, como enemigos establecidos contra mi alma, como conspiradores en traje de dormitorio que cambiaran largos besos espesos por consigna. […] seguramente, eternamente me rodea este gran bosque respiratorio y enredado con grandes flores como bocas y dentaduras y negras raíces en forma de uñas y zapatos. Nos versos citados, observa-se um sujeito lírico sufocado por comportamentos vazios que não fazem parte de seu universo, tipos humanos que o aprisionam, uma aglomeração de elementos e situações que o sufocam. O poeta associa a massa humana a um grande bosque, mas não se trata dos bosques do sul, cheios de árvores de folhas verdes, madeira fresca e cheirosa, nem das raízes que testemunham o passo do tempo. O bosque urbano é composto de “bocas y dentaduras y negras raíces en forma de uñas y zapatos”, uma representação metonímica do homem moderno que se encontra fragmentado, cuja cena bem poderia compor uma tela cubista. Além de remeter ao cubismo, a imagem que emerge destes versos faz lembrar da célebre frase popularizada por Marshall Berman “tudo que é sólido desmancha no ar”, frase que sintetiza o conceito de modernidade como o “turbilhão” que engole o homem mantendo-o num permanente estado de desintegração. O cotidiano dos bairros santiaguinos sob o olhar nerudiano [...] a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. * CALVINO (1990) p.14-15 157 Ítalo Calvino* As cidades não existem somente como espaço físico, há uma construção citadina edificada com palavras, uma construção que dá forma ao cotidiano urbano através da literatura, possibilitando novas perspectivas para a interpretação da cultura e da identidade do habitante urbano. As cidades têm sido registradas pela escrita desde sua fundação, como no caso da cidade de Santiago do Chile, que permite o rastreamento de uma escrita que remonta à época de sua fundação, no tempo em que ainda era Santiago de Nueva Extremadura, época em que seu fundador, Pedro de Valdivia, escrevia ao Imperador Carlos V dizendo: […] No mês de abril do ano de mil e quinhentos e trinta e nove me deu o Marquês os suprimentos e cheguei a este vale do Mapocho em finais do ano de 1540. Logo procurei falar com os caciques da terra [...] acreditando ser-mos quantidade de cristãos, vieram os mais pacíficos e nos serviram bem por cinco ou seis meses e fizeram isso para não perder seus alimentos que tinham no campo, e nesse tempo fizeram nossas casas de madeira e palha com o traçado que lhes entreguei, no lugar onde fundei esta cidade de Santiago del Nuevo Extremo, em nome de V. M., no dito vale, como cheguei em 24 de fevereiro de 1541. [Trad. da autora] La Serena, 4 de setembro de 1545. As inúmeras cartas escritas por Valdivia deixaram testemunho do processo fundador da cidade de Santiago, assim como do cotidiano de seus habitantes “[...] e todos cavávamos, arávamos e semeávamos ao mesmo tempo, e estávamos sempre armados e os cavalos com sela [...]” (Valdivia,1545), documentos que demarcam o início da reconstrução do espaço e do cotidiano citadino através da linguagem. 158 Ao reconhecer que a existência da urbe pode ser reconstruída pelas vozes do passado, considerar-se-ão também a prosa e poesia citadina de Pablo Neruda como signos culturais possíveis de serem reinterpretados hoje, um tempo histórico distante e alheio ao poeta. Com isto afirma-se que as respostas estão dentro dos muros da cidade, saber olhar é saber ler os signos que ela nos oferece, já que o sentido da cidade está dentro dela mesma como o enfatiza Ítalo Calvino (1990:18), O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso [...] Como é realmente a cidade sobre esse carregado invólucro de símbolos, o que contém e o que esconde, ao se sair de Tamara é impossível saber. Neruda não apresenta em seus poemas uma visão total das coisas ou situações, ele lança mão de particularidades, de fragmentos que, no seu conjunto, constituirão o seu espaço imagético. O lírico chileno, ao transferir para o poema a sua vivência pessoal, está, ao mesmo tempo, transferindo as tendências de uma época e de um momento histórico. Seu eu poético tem um valor representativo da realidade de que faz parte, suas vivências têm uma significação social, ou seja, representam a coletividade de seu tempo. Neruda, através dos poemas dedicados à cidade de Santiago, apresenta sua particular visão da paisagem e do cotidiano urbano. As imagens citadinas que fluem desses poemas revelam, a partir de fragmentos, um mundo imagético construído metonimicamente, isto é, o todo pela parte. Cada um dos bairros que constituem a capital chilena são como pequenas aldeias, mundos independentes onde seus habitantes parecem ter esquecido que formam parte de um conjunto maior. Dos inúmeros bairros que 159 configuram a cidade de Santiago cinco destacam-se por sua importância e peculiaridade: San Diego, Estación Mapocho, Estación Central, San Pablo e Recoleta, todos eles com características próprias, como observado por Benjamín Subercaseaux (2005:121) na obra Chile o una loca geografía: San Diego é o bairro dos que ganham a vida no pequeno comércio. San Pablo é o bairro onde se arruína o comércio numa vida pequena. A Estación Central é a mescla de transações de primeira mão dos produtos que chegam do sul e da exploração do provinciano que vem para o norte. [Trad. da autora] Em “Oda a la calle San Diego” Neruda (1993a:415-419) canta a rua principal do bairro, San Diego, um dos bairros mais característicos e populares da capital chilena. Nesse poema Pablo Neruda retoma os questionamentos estéticos apresentados anos antes reafirmando seu interesse pelas coisas terrenas, pelo cotidiano do ser humano, mantendo um enfoque existencialista. Nessa nova etapa iniciada com Odas Elementales (1954), o poeta chileno procurou na realidade a essência das coisas. A partir desse momento, ao dar uma maior atenção à cidade, o espaço urbano passou a ser o palco onde se desenvolvia o dia-a-dia observado e vivenciado pelo escritor. O vate transformou em discurso poético os sinais emitidos pelo mundo santiaguino onde o flanêur nerudiano “lê o espaço público, metonimicamente representado pela rua, como realidade vivida e dinâmica” (GOMES,1994:112). Observa-se na ode citada, um sujeito lírico atento, revelador da dicotomia campo/cidade onde os elementos do campo vão aflorando a partir 160 dos elementos urbanos. Já na primeira estrofe fica claro que a temática do poema abordará esses dois ambientes antagônicos: Por la calle San Diego el aire de Santiago viaja ao Sur majestuoso [...] Cabe destacar que a poesia nerudiana dedicada ao espaço rural apresenta um bucolismo renovado que não se atém a uma simples descrição do entorno natural, mas uma forma de bucólico que remete às condições sociais e cotidianas da vida rural. De acordo com Raymond Williams o significado original de bucólico sofreu uma grande transformação, já que não apresenta somente uma atenção “voltada para a beleza natural, porém trata-se agora da natureza da observação, e não a do simples camponês que trabalha” (WILLIAMS,1989:36). Na ode estudada Neruda se define como “el cronista errante de la calle San Diego”, cronista que lê a cidade metonimicamente a partir de um segmento de Santiago como registrado nos versos a seguir destacados: No viaja en tren el aire. Va paso a paso mirando primero las ventanas, luego los ríos, más tarde los volcanes. Pero, largamente, en la esquina de la calle Alameda mira un café pequeño que parece un autobús cargado de viajeros[...] 161 Soy el cronista errante de la calle San Diego […] Do poema surgem imagens de elementos cotidianos da paisagem de Santiago, elementos que o vate chileno encontra numa só rua. O poetacronista, que à semelhança do flanêur baudelairiano perambula pela cidade de forma dinâmica, observa cada detalhe, cada pedaço desse labirinto de cimento em que se encontra inserido criando imagens quase aéreas da cidade. Contudo, esta poesia que se completa através da soma de fragmentos pode ser considerada a expressão do traço desintegrador da época vivenciada. Uma aglomeração de objetos isolados e desvinculados de seu todo, uma maneira de traduzir em imagens o espírito fragmentado do homem moderno. No poema analisado, Neruda nos apresenta janelas, rios, vulcões, ônibus, selos, utensílios, pernas, braços, etc. Elementos arrancados de lugares diversos e que navegam por um tumultuado rio de versos. Esses versos traduzem o modo de ser da realidade santiaguenha na particular visão do poeta chileno, […] Más lejos venden lo imaginario, lo inimaginable, útiles espantosos, incógnitos bragueros, endurecidas flores de ortopedia, piernas que piden cuerpos, gomas enlazadoras como brazos de bestias submarinas. […] De noche, la calle San Diego sigue por la ciudad, la luz la llena. Luego, el silencio desliza con ella su navio. 162 Nesta ode a vida cotidiana é identificada com o rio que corre sem parar, um constante desfazer e refazer, o eterno renascer de cada dia. Um tempo circular presente não somente no mundo físico, mas também na experiência psíquica do homem urbano. Observa-se também que o ritmo santiaguino varia de acordo com as diversas fases do dia e da noite. Embora o ambiente urbano seja o grande motivo da ode, o espaço e as características do mundo rural, estão presentes. Na cidade grande o novo dia é anunciado pelo som do sino: Algunos pasos más: una campana que despierta, Es el día que llega ruidoso, en autobús desvencijado, cobrando su tarifa matutina por ver el cielo azul solo un minuto, apenas un minuto antes de que las tiendas, los sonidos, nos traguen y trituren en el largo intestino de la calle. Mas, não é o doce som dos sinos que tocavam diariamente no sul, como lembrado por Eulogio Suárez (2004:327): “Aqueles povoados de fundação recente, suas ruas apenas desenhadas, levantadas suas casas, estalavam seus radiantes sinos. Tudo se comunicava naquelas aldeias do Sul do Chile aos golpes do doce metal”39. Na cidade grande o novo dia é anunciado pelo sino barulhento do "autobús desvencijado, cobrando su tarifa matutina”. Neruda em seu canto à cidade nos apresenta um ambiente ameaçador e monstruoso. Para ele a rua é um “largo intestino triturador” que aprisiona. A angústia que atormenta o eu lírico é amenizada pelo resgate das sensações e 39 Trad. da autora 163 das lembranças da terra de nascimento. O cheiro, o rio, o vento e o frio de outrora tornam mais amena sua permanência no labirinto de concreto: La calle corre ahora hacia arriba, hacia mañana: una ola venida del fondo de mi pueblo en este río popular recibió sus afluentes de toda la extensión del territorio. A estratégia utilizada por Neruda para integrar de forma harmônica os dois ambientes antagônicos [campo e cidade] foi a superposição de campos semânticos, ou seja, o vocabulário que procede da natureza é empregado para expressar de forma metafórica a paisagem urbana, onde o movimento citadino é comparado com “una ola” e com um “río”, referindo-se assim à massa humana que circula pelas ruas. O mar e os rios, assim como os sinos, são elementos da paisagem primigênia de Neruda que simbolizam suas raízes sulistas. Contudo, não só os espaços hostis são destacados pelo lírico em “Oda a la calle San Diego”, há também ambientes citadinos que parecem dar-lhe conforto, como uma livraria que é comparada com uma “bodega verde” o com “una nación lluviosa”. Livraria que contém obras com imagens de “luna llena, jazmines de archipiélagos: / reinos de nieve” um espaço que remete o ambiente fresco e acolhedor do sul: […] 164 En el número 134, la librería Araya. El antiguo librero es una piedra, parece el presidente de una república desmantelada, de una bodega verde, de una nación lluviosa. Los libros se acumulan. Terribles páginas que amedrontan al cazador de leones. Hay geografías de cuatrocientos tomos: en los primeros hay luna llena, jazmines de archipiélagos: los últimos volúmenes son sólo soledades: reinos de nieve, susurrantes renos [...] Assim, diante da ausência do espaço rural, Neruda acudirá à sua memória primigênia para textualizar seu vínculo com a terra de nascimento, um vínculo verbal que lhe permite reencontrar-se num território metaforicamente recuperado. Definir Neruda como um “observador urbano” é apropriado por sua capacidade de penetrar nas realidades física e simbólica da cidade e traduzir em palavras as imagens e vivências do mundo real para o mundo poético. Neruda consegue ouvir o som da cidade, sentir suas dores, suas alegrias e transporta esses sentimentos para o poema, posto que (RAMA,1985:53): As cidades desenvolveram uma linguagem mediante duas redes superpostas: a física, que o visitante comum percorre até perder-se na sua multiplicidade e fragmentação, a simbólica que a ordena e interpreta [...] Há um labirinto das ruas que só a aventura pessoal pode penetrar e um labirinto dos signos que só a inteligência raciocinante pode decifrar, encontrando sua ordem. A representação poética da realidade nerudiana não surge do nada ou de uma inspiração celeste, pelo contrário, é o resultado da soma de 165 experiências do passado e do presente do poeta. Assim, o poema pode ser um caminho que leva a um tipo de conhecimento sobre a realidade, já que o próprio Neruda (2000b:72) declarou: […] Nos vemos indefectiblemente condenados a la realidad y al realismo, es decir, a tomar una conciencia directa de lo que nos rodea y de los caminos de la transformación […] si suprimimos la realidad nos vemos de pronto rodeados de un terreno imposible, de un tembladeral de hojas, de barro, de nubes, en que se hunden nuestros pies y se ahoga una incomunicación opresiva. Conforme as palabras de Benjamín Subercaseaux (2005:121), San Diego é “o bairro dos que ganhan a vida no pequeno comércio” característica que não escapou à observação do poeta: […] En el siguiente número de la calle venden pobres juguetes, y desde puertas próximas la carne asada inunda las narices […] Más allá venden catres de bronce deslumbrante, camas descomunales [...] O realismo apresentado em “Oda a la calle San Diego” pode ser observado na maneira como o eu lírico se integra ao cotidiano que o rodeia, um observador sensível que capta e recebe as mensagens externas e não como um ser que nela se busca. O sujeito lírico se deixa absorver pela rua e tudo o que ele sonha ou imagina é proporcionado por essa realidade. Seu sentimento é coletivo quando escreve: […] 166 una ola venida del fondo de mi pueblo en este río popular recibió sus afluentes de roda la extensión del territorio. […] sólo un minuto, apenas un minuto antes de que las tiendas, los sonidos, nos traguen y trituren en el largo intestino de la calle. Os versos acima citados revelam um sujeito inserido na multidão quando diz “nos traguen y trituren”, não há distanciamento com os habitantes da cidade. O poeta chileno apresenta uma nova maneira de enxergar a realidade urbana se comparado com o flanêure baudelairiano que circulava pela cidade sem se misturar à massa humana, como o afirmou Walter Benjamin (1989:50) no texto Paris do Segundo Império: Na Paris de Baudelaire [...] havia o transeunte, que se enfiava na multidão, mas havia também o flanêure, que precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade. Ocioso, caminha como uma personalidade [...]. Enquanto que do convívio diário do cronista nerudiano com o homem citadino surge um sentimento de fraternidade e cumplicidade, o poeta sente a cidade e se inclui nela sem privilégios. Porque como o mesmo Neruda (2003:390) registrou: “El poeta no es un ‘pequeño dios’”, o poeta não é um ser superior aos outros, ao contrário, é um homem comum e somente consciente disso é que sua voz chegará a ser universal. De acordo com o anteriormente exposto, entende-se que a temática da cidade em Neruda representa uma proposta de redescobrimento das 167 realidades visíveis, um fazer poeticamente conseqüente com a maneira de ser e pensar do poeta chileno, uma busca pelo entendimento humano. Para Neruda a labor do poeta não se limita a cantar a rosa, a exaltar o amor ou a nostalgia: fazer poesia é isso e muito mais. Neruda (2003:392-393) cantou também “las ásperas tareas humanas”, a impureza da realidade, porque somente dessa maneira “[…] la poesía no habrá cantado en vano”. Rua San Diego, maio de 192040 Arquivo Fotográfico Chilectra 40 Disponível em: http://www.nuestro.cl/chilectra/capitulo3.htm# 168 3.3 Valparaíso: a cidade mais amada ¡La noche de Valparaíso!... Un punto del planeta se iluminó, diminuto, en el vacío. Palpitaron las luciérnagas y comenzó a arder entre las montañas una herradura de oro. La verdad es luego la inmensa noche despoblada desplegó colosales figuras que multiplicaban la luz. Aldebarán tembló con su pulso remoto, Casiopea colgó su vestidura en las puertas del cielo, mientras sobre la esperma nocturna de la Vía Láctea rodaba el silencioso carro de la Cruz Austral. Entonces, Sagitario, enarbolante y peludo, dejó caer algo, un diamante de sus patas perdidas, una pulga de su pellejo distante. Había nacido Valparaíso, encendido y rumoroso, espumoso y meretricio. El vagabundo de Valparaíso∗ Pablo Neruda. Os versos nerudianos dedicados á cidade de Valparaíso, surgem reiteradas vezes e nas mais diferentes etapas da obra do lírico chileno. Neruda possuía o dom de criar poesia das coisas mais simples e cotidianas. Cantou à vida, à natureza, ao povo, ao amor, aos oceanos... Para ele tudo era poesia. Chamado de poeta de América e de poeta del pueblo, sempre escreveu sobre sua terra natal, mesmo estando em outros continentes, era sua terra americana o principal motivo de sua inspiração. Neruda dedica em suas memórias, Confieso que he vivido, um apartado a Valparaíso. Nele relata sua juventude aventureira no transcurso da qual sentiu por diversas vezes o “llamado inexplicable de La estrella de Valparaíso” (Neruda, 2000:73). Para o jovem escritor essa cidade “abre sus puertas al infinito mar, a los gritos de las calles, a los ojos de los niños” (Neruda, 2000:73). Confessa que sempre fez viagens fantásticas a esse porto ainda que estivesse a quilômetros de distância de seu litoral. Valparaíso é a cidade na ∗ NERUDA (2000) p.81. 169 que se fundou o primeiro jornal chileno, o primeiro time de futebol, a primeira bolsa de valores e o primeiro corpo de bombeiros. Valparaíso na poesia nerudiana, assim, como outras cidades chilenas, adquire um significado decisivo para o desenvolvimento de sua vida e sua obra. Neruda amou profundamente a desordenada geografia chilena, amou suas cidades, as do norte e as do sul, mas indiscutivelmente, uma de suas prediletas foi Valparaíso. Para Neruda, Valparaíso não é somente sinônimo de belezas naturais, história e aventuras juvenis. É também a lembrança do porto seguro que o acolheu nos momentos difíceis. Valparaíso é a cidade de suas alegrias e de suas dores, a cidade que constantemente se contorce como “una ballena herida” (Neruda, 2000:79). Terra à que regressou inúmeras vezes por causa do magnetismo inexplicável que esse porto possui. Em Valparaíso Neruda construiu uma de suas três residências na terra La Sebastiana: sua casa portuária, erguida na colina Florida desde onde se pode admirar em todo seu esplendor o imenso e nostálgico Pacífico. Em suas memórias o poeta narra o nascimento de Valparaíso, um nascimento cósmico: “[...] Sagitario, enarbolante y peludo, dejó caer algo, un diamante de sus patas perdidas […] Había nacido Valparaíso, encendido y rumoroso, espumoso y meretricio” (Neruda, 2000b: 83). O vate fala também da época em que de Valparaíso se partia para o mundo e ao mesmo tempo era o porto pelo qual o mundo inteiro passava, assim a “oxidada herradura del Centauro” (Neruda,2000:83) se encheu de vida e esplendor. No ano do centenário do nascimento de Pablo Neruda, 2004, a cidade de Valparaíso foi reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. 170 Um reconhecimento que o poeta já tinha registrado fazia cinqüenta anos nos versos que dedicou à Joya del Pacífico. O porto constituído por quarenta e uma colinas, as que foram visitadas inumeráveis vezes pelo poeta. O porto de Valparaíso não foi esquecido pelo poeta nem no dia em que recebeu o Premio Nobel de Literatura. Em 21 de outubro de 1971 na Suécia, a milhares de quilômetros do litoral chileno numa entrevista com motivo do Premio Nobel, o poeta del pueblo disse: “Pienso aquí, con emoción, junto a Matilde, en las escaleras de Valparaíso, que me han dicho, están embanderadas en este instante” (Vial, 2003). É difícil explicar o por qué dessa união de Neruda com Valparaíso, mas é um fato que em várias épocas de sua vida esse porto esteve presente em sua poesia. Fato que pode ser constatado nos versos de “El fugitivo” de Canto General (1950); “Oda a Valparaíso” de Odas Elementales (1954); “Cuándo de Chile” de Las uvas y el viento (1954), “Al mismo Puerto” de Plenos Poderes (1962); “El puerto puerto…” de El mar y las campanas (1973), dentre outros poemas. Na poesia nerudiana predomina o autobiográfico, seus versos sempre remetem à suas andanças pelo mundo, por sua terra natal, registram episódios de sua vida, amores, tristezas, alegrias. Uma poesia que reflete uma forma de ser, uma particular visão de mundo. Para ilustrar a decorrência de Valparaíso nos versos nerudianos podem citar-se, por exemplo, alguns poemas de Canto General, clássico da literatura hispano-americana, obra que Neruda terminou de escrever quando ainda era perseguido pela policia chilena em 1948. Durante o período em que Neruda fora obrigado a viver como clandestino em seu próprio país destacam-se a 171 seguir alguns versos do poema X de “El fugitivo (1948)” (Neruda,1999:703704): Otra vez, otra noche, fui más lejos. toda la cordillera de la costa, el ancho margen hacia el mar Pacífico, y luego entre las calles torcidas, calleja y callejón, Valparaíso. Entré en una casa de marineros […] En mi día solitario el mar se alejaba: miraba entonces la llama vital de los cerros, cada casa colgando, el latido de Valparaíso[…] todo eso envolvía mi cuerpo como un nuevo traje terrestre […] A clandestinidade durou pouco mais de um ano, período em que o poeta foi obrigado a ter de ir de cidade em cidade à procura de alguém que o acolhese, mudando de casa quase que diariamente. Muitas pessoas queriam ajudar ao poeta del pueblo, pessoas desconhecidas e solidárias (NERUDA,1999:708709): VI Ventana de los cerros! Valparaíso, estaño frío, roto en un grito y otro de piedras populares! Mira conmigo desde mi escondite el puerto gris tachonado de barcas, agua lunar apenas movediza, inmóviles, depósitos del hierro. Sobre El fugitivo Neruda (2000:467) afirmou, “es la historia de la persecución ordenada por González Videla”. O poeta não somente narrou a decepção provocada pela mentira e a ganância, refere-se também de forma especial a uma família portuária que o acolheu: “Entre los sitios conmovedores que me albergaron, recuerdo una casa de dos habitaciones, perdida entre los cerros pobres de Valparaíso” (NERUDA,2000:230). Somente no dia 24 de 172 fevereiro de 1949 conseguiu sair do país atravessando a cordilheira. Em “El fugitivo” Neruda registrou, também, sua gratidão e seu amor pela cidade que o protegeu num momento tão difícil, versos que refletem com grande emotividade o sentir que esse pedaço de terra provocou no poeta (NERUDA,1999:711-712): IX […] Te declaro mi amor, Valparaíso, y volveré a vivir tu encrucijada, cuando tú y yo seamos libres de nuevo, tú en tu trono de mar y viento, yo en mis húmedas tierras filosofales. Veremos cómo surge la libertad entre el mar y la nieve. […] tus manos de portuaria me dieron el abrazo que mi alma te pidió en la hora nocturna y te recuerdo reinando en el brillo de fuego azul que tu reino salpica. No hay otra como tú sobre la arena, Albacora del Sur, reina del agua. No ano de1952, período de seu desterro na Itália, Neruda começou a escrever Las uvas y el viento, livro que tem como motivo central seus amigos, os povoados e as cidades queridas, um livro em que predomina, como em tantos outros, o autobiográfico. Neruda declarou em suas Memórias sua especial preferência por esse livro: “La verdad es que tengo predilección por Las uvas y el viento, tal vez por ser mi libro más incomprendido, o porque a través de sus páginas yo eché a andar por el mundo. Tiene polvo de caminos y agua de ríos” (2000:384). No ano de 1954, publicou Odas Elementales. Em essa obra o poeta apresenta versos curtos e independentes, frases soltas e sílabas isoladas, onde cada verso pode entender-se como uma definição, um fato, objeto ou 173 pensamento determinado. Em “Oda a Valparaíso” (1993a:192-195) observa-se a animação do inanimado, uma personificação latente em cada verso: Valparaíso, qué disparate eres, qué loco, puerto loco, qué cabeza con cerros, desgrenada, no acabas de peinarte, nunca tuviste tiempo de vestirte, siempre te sorprendió la vida, […] O poeta utiliza uma linguagem simples, uma poesia para todos através da palavra clara. Versos breves e fracionados, espaços em branco, um conjunto de grande expressividade porque, ao fracionar o verso, Neruda dá às palavras seu valor verdadeiro. Cria um mundo novo com elementos cotidianos onde as palavras e as imagens vão sendo sugeridas, desenhadas verso a verso, Pronto, Valparaíso, marinero, te olvidas de las lágrimas, vuelves a colgar tus moradas, a pintar puertas verdes, ventanas amarillas todo lo transformas en nave, eres la remendada proa de un pequeño veleroso navio. 174 Neruda iguala este porto a uma embarcação que aparenta ser fraca, mas que possui a força da Fênix, renascendo uma e outra vez dos ataques da natureza, das cinzas. Ao mesmo tempo, o poeta canta ao valor da população portuária: […]el rocío de los mares, el beso del ancho mar colérico que con toda su fuerza golpeándose en tu piedra no pudo derribarte, porque en tu pecho austral están tatuadas la lucha, la esperanza, la solidariedad y la alegría como anclas que resisten a las olas de la tierra. Plenos Poderes (1962) é um livro breve em que são freqüentes as lembranças e as indagações. Uma reflexão sobre a vida, a morte e o dever do poeta. Uma vez mais, em suas divagações, surge a Joya del Pacífico. Os versos de “Al mismo puerto” apresentam uma atmosfera renovadora, brincalhona e alegre (NERUDA,1999a:1008-1010): ..olor a puerto loco tiene Valparaíso olor a sombra a estrella a escama de la luna y a cola de pescado… Em El mar y las campanas (1973), o poeta que subiu e percorreu as inúmeras colinas portuárias até chegar ao cume, no poema “El puerto puerto...” cantou às colinas castigadas pelo vento e pelo mar, uma terra que se aferra ao 175 solo, terra domada pela ação da natureza, assim como sua Araucanía (NERUDA, 2004:110), El puerto, puerto de Valparaíso mal vestido de tierra me ha contado: no sabe navegar vendaval, terremoto, ola marina todas las fuerzas le pegan en sus narices rotas. […] Puerto puerto que no puede salir a su destino abierto en la distancia y aúlla solo como un tren de invierno hacia la soledad, hacia el mar implacable. Neruda ao referir-se a esses morros registrou: Yo no puedo andar en tantos sitios. Valparaíso necesita un nuevo monstruo marino, un octopiernas, que alcance a recorrerlo. Yo aprovecho su inmensidad, su íntima inmensidad, pero no logro abarcarlo en su diestra multicolor, en su germinación siniestra, en su altura o su abismo (Neruda, 2000:84). Em 1970, Neruda foi condecorado filho Ilustre de Valparaíso. Um reconhecimento das autoridades e do povo portenho para com o homem-poeta que se preocupou em incentivar a preservação dessa cidade. Em discursos, conferências, ou ao rememorá-la desde terras distantes, sempre expressou seu desejo de protegê-la, tanto dos ataques da natureza quanto dos ataques da modernização. Neruda propunha a criação de organismos que preservassem sua arquitetura, suas belezas e riquezas. Constata-se então o amor de Neruda por Valparaíso e sua particular visão desse pedaço de terra. Mas não devemos esquecer que pela poesia de Neruda passa Chile inteiro, com suas montanhas nevadas, mares e desertos. Em segundo lugar, destaco ainda, que o elemento autobiográfico é um fator 176 fundamental em sua poesia porque, como ele mesmo afirmou, “de tanto amar y andar salen los libros” (NERUDA,1999a:1162), talvez resida em esta afirmação a compreensão para as seguintes palavras de Neruda (2000:84) sobre Valparaíso: […] estos cerros tienen nombres profundos. Viajar entre estos nombres es un viaje que no termina, porque el viaje de Valparaíso no termina ni en la tierra, ni en la palabra. Vistas dos morros de Valparaíso41 41 Disponíveis em: www.panoramio.com 177 4ª PARTE PARA UMA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL CHILENA La expresión del hombre que marca la tierra y el pasado de los demás hombres con su huella, está impregnada de una historia común en que lo diverso se ha unido como una totalidad o bien se ha actuado en conjunto o pensado y sufrido con un solo sentimiento. No puede comprenderse la formación de la identidad nacional sin tomar en cuenta el lugar donde la experiencia surge y se desarrolla. Es allí donde se produce la primera experiencia que le dará al individuo características propias dentro de la mentalidad común. Allí se determinará la base de su experiencia personal. Cada lugar en sí es un conjunto de historia vivida y no es el mismo resultado la identidad que deriva de nacer en un puerto como Valparaíso e en una capital como Santiago, ni del hecho de ser patrón de fundo o inquilino. Luis Mizón* * MIZÓN (2001) p. 66 178 1. Identidade cultural e consciência nacional O ‘identitário’ tem a ver com valorar conscientemente o pertencimento a uma história comum, a uma mesma maneira de viver o mundo. Definitivamente, refere-se a um patrimônio cultural compartilhado, composto por elementos tangíveis e intangíveis. Exemplo desses últimos são os valores, os ritos e as tradições. Jorge Larrain*. A palavra identidade automaticamente remete à capacidade de tornar uma pessoa reconhecível, sem a possibilidade de ser confundida com outra, mas, por outro lado, pode-se relacionar a identidade às características comuns de um grupo humano em oposição a outros grupos humanos. Esta ambivalência constitui um dos aspectos mais significativos do conceito de identidade. Para o sociólogo chileno Jorge Larraín (2003a:32), o conceito de identidade é: “[...] um processo de construção em que os indivíduos definem a si mesmos em estreita interação com outras pessoas [...] é a capacidade de considerar-se como objeto e nesse processo ir construindo uma narrativa sobre si mesmo”. Pode-se afirmar, então, que a identidade não é fixa e que está em permanente transformação o que implica na afirmação de particularidades, diferenças e relações do indivíduo para com os outros. Conforme Larraín, o conceito de identidade está intimamente ligado ao conceito de cultura: por um lado, a cultura é a criação e o intercâmbio de expressões simbólicas e significativas decorrentes da comunicação entre os LARRAÍN (2003b) Os textos de Jorge Larraín citados neste capítulo foram traduzidos pela autora desta Tese. * 179 indivíduos; por outro lado, a identidade é a maneira como essas formas simbólicas são assimiladas na interação do indivíduo com os outros. A cultura de acordo com Larraín é o [...] padrão de significados incorporados em formas simbólicas, incluindo ali expressões lingüísticas, ações e objetos significativos, através dos quais os indivíduos se comunicam e compartem experiências (LARRAÍN, 2003:31). Constata-se, então, que tanto a cultura quanto a identidade são construções simbólicas em que a primeira é uma estrutura de significados através da qual os indivíduos se comunicam, e a segunda é um discurso sobre si mesmo construído pela interação com o outro mediante esse padrão de significados culturais. Entende-se com isto que a “identidade nacional” consolida-se na existência da “identidade cultural”, a qual é resultado de fatores históricos, científicos e religiosos, e que os fatores básicos da nacionalidade42 são provenientes das raízes evolutivas como origem, formação, ambiente, situação geográfica, povo e cultura. Porém, para haver identidade nacional é necessário que a sociedade assimile a idéia de ser um corpo étnico-político diferenciado, isto é, a consciência de nação. Dada à heterogeneidade regional e às diferenças inerentes a todo grupo humano, o somatório dos valores culturais será caraterizável por um traço que permitirá a definição de um perfil multidimensional hegemônico baseado no homem, no território, nas instituições, na língua, nos costumes, nas religiões e na história desse grupo entendido com nação. 42 Entende-se por nacionalidade o direito à utodeterminação de todo grupo social com uma origem, uma história e um modo de vida e de pensamento comum, que habita um território determinado. 180 Benedict Anderson (2008:32-34), em Comunidades Imaginadas define a nação como: “uma comunidade política imaginada — e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”, e esclarece a seguir: Ela é imaginada [a nação] porque mesmo os membros das mais minúsculas das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles [...] limitada porque mesmo a maior delas, que agregue, digamos, um bilhão de habitantes, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações [...] soberana porque o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina [...] comunidade porque, independente da desigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é concebida como uma camaradagem horizontal. Conforme a explanação de Benedict Anderson, cada cidadão concebe a imagem de uma comunidade sobre a qual se criam fronteiras, ainda que estas não existam, porque os indivíduos não se percebem como pertencentes a uma nacionalidade única e massiva. Anderson, em seu estudo, aponta três bases históricas para a concepção da nação imaginada, a saber: a comunidade religiosa, o reino dinástico e as percepções temporais. De acordo com o professor britânico, a comunidade religiosa concentrava seu poder em poucas pessoas bilíngües, que ao transmitir para a população textos escritos em línguas sagradas, se tranformavam em mediadores entre o céu e a terra. Com as Grandes Navegações, a Europa mudou sua visão de mundo e ampliou seu universo cultural e geográfico, assim como a descoberta de outras crenças. O declínio da dominação religiosa levou ao declínio das linguagens sagradas devido em parte à vernacularização no século XVI, fenômeno que passou dominar o Ocidente no século XVII, de tal maneira que as línguas sagradas passaram a ter um papel secundário. Os reinos dinásticos, por sua vez, foram 181 perdendo sua legitimidade, acabando com a crença de que as sociedades eram naturalmente organizadas ao redor de um monarca central que possuía o poder divino, enquanto explica Benedict Anderson (2008:48): Na concepção moderna, a soberania do estado opera de forma integral, terminante e homogênea sobre cada centímetro quadrado de um território legalmente demarcado. Mas, no imaginário mais antigo, onde os Estados eram definidos por centros, as fronteiras eram porosas e indistintas, e as soberanias se esvaeciam imperceptivelmente uma dentro da outra. Anderson chama a atenção para o fato de que não foi simplesmente o esvaecimento das comunidades religiosas e dinásticas o que fez surgir as “comunidades imaginadas das nações”, como se tivessem sido uma simples substituição. O autor (ANDERSON, 2008:52) enfatiza que “Por sob o declínio das comunidades, línguas e linguagens sagradas estava ocorrendo uma transformação fundamental nos modos de apreender o mundo, a qual, mais do que qualquer outra coisa, possibilitou ‘pensar’ a nação”. Benedict Anderson propõe a observação das representações visuais desenvolvidas pelas comunidades sagradas para chegar à compreensão da nova “percepção temporal” experimentada pela sociedade. O autor acredita que grande parte das motivações que provocaram a mudança na concepção temporal se deve ao surgimento do romance e do jornal, formas de “criação imaginária” que emergeram na Europa do século XVIII, já que no entendimento de Anderson (2008:55), “[...] essas formas proporcionaram meios técnicos para ‘re-presentar’ o tipo de comunidade imaginada correspondente à nação”. A intensa ação da imprensa ampliou o mercado de livros e criou uma infinidade de campos de 182 comunicação, fato que permitiu a consciência da existência de outros povos, outras linguagens e, consequentemente, de outras “nações”. 2. Formação das nacionalidades na América Hispânica A formação da América Latina decorrente da expansão marítima e comercial européia resultou num cruzamento de povos de origens e de raças diferentes. A imposição da cultura européia fez com que se passasse a imitar o modelo estrangeiro com tal intensidade, que se vivia em função da história e da cultura estrangeira, como se o povo americano não tivesse uma própria. Mais tarde a tensão entre o nacional e o internacional fez surgir a necessidade de legitimar as culturas americanas, tarefa que os intelectiuais latino-americanos têm desenvolvido com afinco, reafirmando as diferenças mediante enfoques diversos. Ao longo do século XIX a maior parte dos países da América Hispânica travou as denominadas “guerras de la independencia”. Como decorrência desses conflitos começou a forjar-se nas sociedades americanas o sentimento de nação. Segundo o pesquisador André Trouche essa tomada de consciência nacional estava intimanente ligada ao desenvolvimento literário hispanoamericano, uma vez que “[...] o fenômeno de substituição do modelo colonial por uma nova experiência política de nações independentes causa impacto formidable no desenvolvimento do processo literário” (TROUCHE, 2006:67). 183 Trouche acrescenta também que o século XIX deve ser considerado “um momento decisivo para a construção do projeto criador hispano-americano”. Nos primeiros vinte e cinco anos do século XIX, época em que se desenvolveu o processo de independência hispano-americano, além de ser decisivo para o projeto literário, foi de vital importância para o desenvolvimento das cidades dessas nações emergentes. De acordo com o raciocínio de Trouche, as cidades hispano-americanas entraram num processo de “hiperurbanização”, o que exigiu a implantação de serviços financeiros e comerciais, além da produção de bens primários, mas, sobretudo se viveu a urgência de “[...] constituir um aparelho de Estado”, assim como de criar as condições necessárias para que essas cidades suportassem as “[...] ondas migratórias européias que se encaminharam para a zona temperada da América (Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai)” (TROUCHE, 2006:68). No decorrer do século XX, os intelectuais da América Latina têm-se dedicado à tarefa de compreender e explicar o país e os seus habitantes. Na procura por uma suposta identidade nacional não basta afirmar as diferenças, é preciso mostrar quais os traços identitários. Enfim, buscar no contexto cultural o lugar próprio para se enfrentar o desafio de nos diferenciarmos do outro histórico, e assim assinalarmos a nossa identidade diante das diversidades internas. Assim, tentar-se-á um esboço para a configuração da identidade nacional através das cidades chilenas em que Neruda viveu. Abordar-se-á o papel do território geográfico na formação e permanência da identidade de um grupo de indivíduos. Destacar-se-á a importância do território físico compartilhado, seja natural (paragens do sul do Chile) ou elaborado 184 (construções urbanas de Santiago e Valparaíso), que servirá de base para a reflexão sobre identidade nacional. O ambiente cotidiano, o território físico, aspectos ambientais – clima, localização, limites geográficos – conjuntamente com o componente simbólico e algumas aproximações históricas às cidades destacadas serão as diretrizes que guiarão o estudo aqui proposto. Na procura por uma identidade nacional, o território físico terá um papel fundamental, na medida em que o sentimento de “pertencer” a uma região concreta determina o “destino” do indivíduo. O afastamento desse lugar de bem querer vai significar a perda de seu passado físico, ou seja, perda de seus referentes cotidianos, ambientais e seus vínculos emocionais de lugar tão importantes quanto os vínculos que se estabelecem com os diferentes grupos sociais com os que o indivíduo interage. A relação entre identidade e pertencimento é abordada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2005:1718), quando escreve o seguinte: [...] o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não tem a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’. Em outras palavras, a idéia de ter ‘uma identidade’ não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa’. Esse depósito cognitivo fica armazenado no inconsciente do indivíduo e só virá à tona no momento em que não encontre no novo espaço o seu passado físico. Neruda, em sua chegada a Santiago não identifica mais as imagens que constituíam sua identidade de lugar, adquirindo um olhar de 185 estrangeiro43 porque “[...] aquele que não é do lugar, que acabou de chegar, é capaz de ver aquilo que os que lá estão não podem mais perceber” (PEIXOTO,1988: 363). Enquanto percebe o que os outros não vêem, esse estrangeiro procura em sua memória as imagens que lhe são familiares, ou seja, seu passado físico. Da mesma maneira será observada a experiência de Neruda em Valparaíso, lugar que visitava constantemente junto a seus companheiros de juventude, poetas e pintores de não mais de vinte anos. O ambiente portuário, diferente de Santiago, inspirou no jovem escritor sentimentos de liberdade, alegria e êxtase. Em “El vagabundo de Valparaíso”, Neruda (2000:73) registrou sua visão sobre o porto: Valparaíso está muy cerca de Santiago [...] Sin embargo, algo infinitamente indefinible distancia Valparaíso de Santiago. Santiago es una ciudad prisionera, cercada por sus muros de nieve. Valparaíso, en cambio, abre sus puertas al infinito mar, a los gritos de las calles, a los ojos de los niños. Como constatado, Santiago e Valparaíso apesar de serem duas cidades tão próximas não apresentam características comuns no que se refere à paisagem, nem ao povo que as habita. Valparaíso representou para Neruda (2000:75) uma re-aproximação a sua terra de nascimento, a Araucanía desejada: De repente sentí una influencia extraña y arrebatadora que me invadía. Era una fragancia montañosa, un olor a pradera, a vegetaciones que habían crecido con mi infancia y que yo había olvidado en el fragor de mi vida ciudadana. Me sentí reconciliado con 43 Termo utilizado por Nelson Brissac Peixoto no texto “O olhar do estrangeiro”. In: NOVAES (1988) p. 361-365. 186 el sueño, envuelto por el arrullo de la tierra maternal […] Yo he vivido entre estos cerros aromáticos y heridos. Ao partir da premissa de que existe uma diversidade da cultura regional, que ultrapassa as fronteiras políticas entre países e até entre os limites internos de cada nação, Jorge Larrain (1996:207), ao desenvolver seu estudo Identidad, razón y modernidad en América Latina, constatou que: A maioria das sociedades latino-americanas não está culturalmente unificada e, apesar de algumas formas centrais de integração e sínteses que sem dúvida existem, as diferenças culturais são ainda muito importantes. Desta forma, se propõe a observação das características culturais, históricas e geográficas dos espaços abordados visando confirmar as possíveis diferenças identitárias entre cada território, o que resultará numa autonomia regional. A realização deste exame crítico objetiva detectar comportamentos, valores e hábitos comuns aos habitantes de cada um desses espaços, para estabelecer traços identitários compartidos ou não pelos habitantes de Temuco, Santiago e Valparaíso. 187 3. O sentimento nativista na configuração da identidade nacional chilena Yo he tenido el sentimiento de la historia, que es un poco la conciencia del pueblo. En Temuco se desarrolló la mayor batalla de la Araucanía. Los conquistadores españoles buscaban oro, oro, oro. Pero con los indios araucanos no pudieron lograrlo, no sólo porque eran pobres sino porque ningún pueblo indio de América resistió tan ferozmente a los españoles. Es un hecho que se ha olvidado demasiado. Pablo Neruda, 1971∗. Toda nação tem seus mitos fundacionais. Os de Chile estão nas epopéias da conquista de uma terra abrupta, movediça, isolada e povoada de indígenas guerreiros. Na geografia literária, há um Chile imaginário, construído por novelistas e poetas inspirados pela fascinação que emana das singularidades desse país, localizado num espaço geográfico peculiar nos confins do mundo, com climas e ecossistemas diversos, paragens, vulcões, geleiras e, desertos. A primeira incitação poderosa na procura das origens do Chile foi a Guerra de Arauco, e a ressonância mundial que alcançou com La Araucana45, obra publicada em três partes (1569,1578 e 1589), um dos ápices da poesia épica universal. Temos também o Arauco Domado (1596), poema épico de ∗ NERUDA In: TEITELBOIM (2003) p. 25. Poema épico de Alonso de Ercilla y Zúñiga (1534-1594) baseado no conflito da Guerra de Arauco, publicado em 1569. Narra as lutas das tropas espanholas contra os indomáveis indígenas araucanos do Chile, que defenderam sua liberdade e suas terras com grande valentia oferecendo suas vidas. A obra deve seu título a uma donzela que intercedeu por Ercilla para que não fosse executado. Em sua honra, o poeta teria intitulado o poema La Araucana, em gênero feminino. 45 188 Pedro de Oña46 (1570-1643), primeiro livro em versos de autor americano. O Chile, que os aventureiros espanhóis começaram a conquistar e a colonizar, era um território de guerreiros, com terras virgens e inexploradas. Para chegar até o vale central tinha-se que passar a prova de atravessar o deserto mais árido do mundo, Atacama. Ao sul estavam os mapuches que resistiram aos incas e, mais tarde, aos espanhóis. Ainda hoje o povo mapuche reivindica seus direitos em defesa de sua cultura e idiossincrasia. O Chile então se transformou em fronteira de guerra. O poema épico La Araucana tematizou o mito da nacionalidade chilena que se forja no choque dos povos guerreiros, como retratado nos seguintes versos do Canto I, estrofe 6 (ERCILLA y ZÚÑIGA,1982:12), Chile, fértil provincia y señalada en la región Antártica famosa, de remotas naciones respetada por fuerte, principal y poderosa; la gente que produce es tan granada, tan soberbia, gallarda y belicosa, que no ha sido por rey jamás regida ni a extranjero dominio sometida [...] Esta obra tem sido equiparada às épicas da Idade Média como o confirmam as palavras do professor chileno Roque Esteban Scarpa (1982:5), Prêmio Nacional de Literatura em 1980: O Chile tem a honra, graças a Alonso de Ercilla y Zúñiga, de ser a única nação posterior à Idade Média cujo nascimento é cantado num poema épico como o foram na Espanha com o “Poema del Cid”, na França com “La Chanson de Roland” ou na Alemanha com “Los Nibelungos”. [Trad. da autora] 46 Pedro de Oña, chileno: ” escreveu no Peru (1596) o poema intitulado ‘Arauco Domado’ que exalta a participação de Hurtado de Mendoza na conquista do Chile, pois Ercilla não o menciona em sua obra”. In: MILLAR (1972) p. 96. [Trad. da autora] 189 A Guerra de Arauco, narrada por diferentes cronistas no período colonial, refere-se à guerra entre espanhóis e araucanos que durou trezentos anos. Com o passar do tempo esses enfrentamentos se tornaram esporádicos predominando as relações fronteiriças entre os araucanos e os criollos47 hispânicos. Esse mito tem construído boa parte da identidade chilena que, nessa região austral começou a forjar-se da mistura dos habitantes oriundos do território, com os soldados, campesinos e comerciantes espanhóis, que chegaram a conquistar o país a partir do século XVI. No período colonial a maior parte dos espanhóis provinha das regiões de Castilla e Andalucía. No século XVIII começou a chegar uma corrente de imigrantes vascos, também espanhóis, que se dedicaram preferencialmente ao comércio. Ao interagir com os latifundiários castellanos deram origem à chamada aristocracia castellanavasca, que teria grande importância na organização da República no decorrer do século XIX. A cultura chilena, mestiça desde sua origem, fixou-se principalmente no Norte Chico, Chile Central e Chiloé. Somente no século XIX outras áreas do território começaram a ser ocupadas pela população chilena. Nessa tarefa de povoar, colonizar e gerar riquezas nas áreas do território antes despovoadas, incorporaram-se novos imigrantes vindos de variados pontos do mundo. Na segunda metade do século XIX, o governo do Chile organizou a colonização da Región de los Lagos (atual X Região) com colonos alemães que ocuparam as zonas rurais dedicando-se especialmente às atividades agropecuárias e suas indústrias derivadas. Logo, se integrou à região da Frontera (atual IX Região), a que foi povoada por colonos alemães, suíços, 47 Termo com que se denomina aos descendentes dos europeus nascidos no Novo Mundo. In: FUENTES (1997) p. 246. 190 franceses e italianos. Cabe destacar também um significativo número de ingleses instalados especialmente em Valparaíso, visto que estes grupos de imigrantes ocuparam espaços muito pouco povoados anteriormente. Estes mantiveram seus costumes e exerceram grande influência cultural nos territórios que ocuparam. A partir de meados e fins do século XIX, várias levas migratórias diversificaram a cultura e a população chilena. Destacam-se dentre elas a chegada de chineses a Tarapacá e de croatas a Magallanes e Antofagasta. Também a Punta Arenas chegam alguns imigrantes hindus. No século XX, italianos do Piemonte, espanhóis e judeus da Rússia e Europa Central se instalaram nas diversas cidades do Chile Central. Grupos de imigrantes sírios, libaneses e palestinos chegaram a todos os centros urbanos estabelecidos até então no Chile. Diferente da colonização das regiões do sul, esses imigrantes integraram-se aos espaços urbanos e dedicaram-se especialmente ao comércio e à industria. Como constatado, o Chile possui uma diversidade cultural significativa. Compreender a cultura chilena envolve compreender essas diversidades. Conseqüentemente, no Chile, como em outros países americanos, nasce uma nova sociedade da união dos povos que cruzaram oceanos com os povos já estabelecidos na América. Assim, podemos dizer que a espécie humana tem estado sempre em movimento, procurando novas terras e novos espaços e que num desses espaços nasceu o Chile, que desde 1818 é um país independente. Na procura por uma concepção de identidade nacional do povo chileno seguir-se-á a abordagem adotada pelo professor Bernardo Subercaseaux (1999:153) que define o conceito de identidade como a: 191 [...] mescla de tradições, línguas, costumes, circunstâncias históricas compartilhadas, enfim tudo aquilo que configura os modos de ser e de caráter de um povo e que constituem uma realidade operante [...] uma concepção de identidade que admite os dois componentes: uma mediação imaginária e discursiva, mas também a mediação extradiscursiva, ou seja, um referente que pode ser constatado e delineado empírica e historicamente. [Trad. da autora] Entende-se, neste estudo, “mediação imaginária e discursiva” como um processo permanente de construção e reconstrução da comunidade imaginada, as alterações ocorridas não levariam a uma perda da identidade, mas, ao contrário, a uma mudança e enriquecimento das culturas. A investigação da complexa trama de eventos e idiossincrasias da cultura hispano-americana, neste caso, a chilena, trata-se de uma tarefa da qual se têm ocupado muitos escritores. Em Pablo Neruda, um poeta que se propôs não somente se referir à peculiaridade física do continente latinoamericano, mas também a observar as consonâncias que caracterizam os seus conterrâneos, pode-se verificar que ele concebe a literatura também como um registro das inquietações humanas e das incertezas do amanhã: o ser humano possui uma identidade que transcende o espaço geográfico e o tempo. Algumas pessoas fazem de suas vidas uma trajetória inspiradora, cheia de significados. Temos assim, em Pablo Neruda, um desses autores que através de sua obra nos leva a um exercício de reflexão sobre a identidade não só dos chilenos, como também acerca da identidade de qualquer ser humano, quando olhamos para elementos comuns ao Homem ao longo da História. A afirmação anterior pode ser corroborada nas palavras de Julio Cortázar (1984:89) quando reconhece que: Na obra de escritores como Neruda [...] o leitor encontrou mais do que poemas [...]. Encontrou signos indicadores, perguntas mais do que respostas, porém perguntas que colocavam o dedo no mais 192 desnudo de nossas realidades e de nossas debilidades; encontrou marcas da identidade que procuramos [...]. [Trad. da autora] Como já foi observado no transcurso deste estudo, o discurso poético citadino do poeta chileno parte do processo de deslocamento de um território, Temuco, para outros que o distanciam criticamente do primeiro, Santiago e Valparaíso. Cada uma destas cidades é reinterpretada subjetivamente pelo escritor a partir de dois ângulos, o do habitante e o do estrangeiro. O poeta desenvolve um olhar crítico em movimento contínuo que relaciona, distancia ou aproxima esses lugares. Neruda vê os territórios de Santiago e Valparaíso em relação a Temuco, cidades que são confrontandas num primeiro momento, mais depois passarão a ser suas cidades também. As cidades se atualizam no momento em que o poeta as conhece e as confronta com as que já fazem parte da sua memória, e desse encontro do presente com o passado se forjará a imagem do futuro, por que como afirma Iliá Ehrenburg48 (1990:15), O escritor não escreve um livro porque precisa ganhar a vida. Um escritor escreve um livro porque se sente impelido a comunicar para os outros alguma coisa muito sua, porque “lhe dói” por dentro seu livro, porque tem visto seres, fatos, sentimentos que não pode deixar de descrever. Assim é como nascem os livros, cheios de paixão e ainda que esses livros tenham defeitos artísticos, invariavelmente comovem seus leitores. [Trad. da autora] De acordo com a afirmação de Ehrenburg toda obra de arte está ligada à identidade, seja do indivíduo, seja do povo em que se insere. Dessa maneira, ao tentar estabelecer uma identidade de manifestações santiaguenhas, Iliá Ehrenburg (1891-1967) é um dos mais conhecidos escritores soviéticos. Muito jovem foi preso por fazer propaganda bolchevique em Moscou. Em 1909 emigrou para Paris. 48 193 portuárias e temucanas através da literatura, especificamente nos versos nerudianos, estaremos concordando com Fernando Aínsa (1976:33) quando afirma: “São os livros os que fazem o povo e não o contrário [...]”. Assim, a cidade em Neruda, é a cidade real, a dos mapas, do mundo, a cidade onde o indivíduo viaja, trabalha, ama, morre. A cidade dos encontros e desencontros. Por isto o espaço da escrita nerudiana será muito significativo já que não apresenta lugares inventados, mas sim territórios geográficos reais e vivenciados, a partir dos quais o escritor construirá o sujeito citadino. Um olhar mais próximo da realidade concreta onde cada vivência faz desdobrar outra vivência, de maneira a formar uma rede sem fronteiras que unirá a memória e o hoje, ou seja, passado e presente num só instante, um tempo unitário e não único que resgata o real cotidiano do indivíduo que habita esses lugares, de acordo com Rosalba Campra (1987:66): [...] a abolição das fronteiras entre o mundo visível e o mundo invisível, entre a vigília e o sonho, a vida e sonho, a vida e a morte, o desejo e seu objeto, a realidade e a palavra que a nomeia; e tudo isso apresentado com as conotações de uma prazeiroza recuperação da realidade. [Trad. da autora] Dessa maneira, a partir dos binômios: província / urbe ou passado / presente pôde-se constatar que o poeta, através da imagem resultante dessa interseção constrói simbolicamente aquele homem que, ante a modernidade, se choca perante as rápidas transformações, perde sua identidade cultural, questiona sua existência, sentindo-se estranho em sua própria terra. Começaremos por examinar a construção da identidade na região da Araucanía a partir da história desse território e do imaginário poético nerudiano nos versos dedicados ao sul chileno. Ao refletir sobre a identidade em nível 194 regional, levanta-se a premissa de que existem diferenças culturais entre as diversas regiões ou territórios de um país, ou seja, que as características identitárias compartidas por uma comunidade ocorrem dentro de um espaço determinado, independentemente de classe, profissão ou grau de escolaridade. Os poemas nerudianos dedicados à região sul do Chile constituem um aporte à historia regional singularidade chilena, como também um resgate apaixonado da do sujeito sulista. Neruda aproxima seu olhar à realidade concreta, não escreve somente desde a abstração que o passar do tempo possa provocar, mas a partir de sua própria experiência de vida. 4. O processo migratório como “rito de passagem” É o próprio fato de viver que exige as passagens sucessivas de uma sociedade especial a outra e, de uma situação social a outra, de tal modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas, tendo por término e começo conjuntos da mesma natureza, a saber, nascimento, puberdade social, casamento [...]. Arnold van Gennep∗. O etnólogo Arnold van Gennep (1873-1957) escreveu em 1909 o livro Les Rites de Passage, no qual o indivíduo, ao longo da vida realiza a passagem de inúmeras fronteiras que demarcam as idades ou eventos da existência humana; por exemplo, ocorre a passagem da infância para a juventude e desta para a vida adulta. Há também eventos na vida do indivíduo que podem ser considerados como marcos a serem ultrapassados: batizados, casamentos, formaturas, etc. O indivíduo ao superar estes marcos simbólicos ∗ GENNEP (1977) p. 26. 195 passa pelo que Gennep denominou “ritos de passagem”, e é através deles que o homem toma consciência das mudanças em sua vida. Para ilustrar em que consistem os denominados “ritos de passagem” o autor comparou as sociedades indígenas a uma casa dividida em vários corredores e quartos isolados uns dos outros. Dentro dessa casa pessoas e grupos circulavam pelos quartos, mas para se passar de um quarto para outro, eram necessárias certas formalidades ou cerimônias. Desta forma, percebe-se que além de representar uma transição particular para o indivíduo, os “ritos de passagem” representam igualmente a progressiva aceitação e participação em determinado grupo social. Trata-se de um processo simultaneamente de cunho particular e coletivo. O rito se define, como explica Roberto Da Matta (1977:11), da seguinte maneira: [...] aquilo que está aquém e além da repetição das coisas “reais” e “concretas” do mundo rotineiro. Pois o rito igualmente sugere e insinua a esperança de todos os homens na sua inesgotável vontade de passar e ficar, de esconder e mostrar, de controlar e liberar, nesta constante transformação do mundo e de si mesmo que está inscrita no verbo viver em sociedade. Através de exemplos recolhidos em civilizações muito diversas, Gennep colocava em evidência a similaridade profunda das manifestações que se referem aos ciclos de vida do indivíduo, ao ciclo familiar, à passagem do tempo, aos ciclos das estações, dos dias, das tarefas. Segundo Gennep (1977:26), em qualquer tipo de sociedade a vida individual [...] consiste em passar sucessivamente de uma idade a outra e de uma ocupação a outra. Nos lugares em que as idades são separadas, e também as ocupações, estas idades, esta passagem é acompanhada por atos especiais, que, por exemplo, constituem para 196 nossos ofícios a aprendizagem, e que entre os semicivilizados consistem em cerimônias [...]. Os “ritos de passagem”, então, conferem sentido às transições entre estágios sucessivos da vida dos indivíduos, demarcam um antes e um depois configurando rupturas com o quotidiano. Portanto, para os indivíduos, como para os grupos, afirma Gennep (1977:157-158), [...] viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de estado e de forma, morrer e renascer. É agir e depois parar, esperar e repousar, para recomeçar em seguida a agir, porém de modo diferente. E sempre há novos limiares a atravessar [...]. O etnólogo identificou, na seqüência que compõe a passagem desses ritos, três fases: separação, margem e agregação. De acordo com essas fases, num primeiro estágio o indivíduo será ‘separado’ do curso normal da vida e do grupo ao qual pertence e, conseqüentemente, perderá seu equilíbrio e passará a levar uma existência à ‘margem’. Finalmente, uma vez consumada a passagem, será reintegrado à vida normal da comunidade, ocorrendo a ‘agregação’ e recobrando com isto o equilíbrio que o leva a assumir sua nova condição. O referido autor designou também essas três fases pelos termos prélimiar, limiar49 e pós-limiar. Deste modo, conferiu uma posição central à condição de ‘margem’ (limiar) deixando nas posições periféricas aquilo que a antecede e que a sucede (pré-e pós-limiar). Assim, a fase da margem adquire grande importância já que passa a ser a interseção entre os universos. De 49 O termo limiar indica o começo ou início de alguma coisa, fase que designa no estudo de Gennep o momento anterior à passagem total dos ritos. 197 acordo com esse raciocínio, a ‘margem’ constitui uma zona fronteiriça ou neutra uma vez que “flutua entre dois mundos” (GENNEP, 1977:36). As fronteiras a serem transpostas podem estar definidas por marcos naturais como rochedos, árvores, rios, ou por construções humanas, especialmente implantadas com essa intenção: postes, pórticos ou muros. De modo semelhante, a passagem a todas as escalas do espaço, ao país, a um território, uma cidade, uma aldeia ou uma casa constituem obstáculos a serem transpostos. A margem – a zona neutra definidora do limite, isto é, a zona limiar – corresponderá então à porta dos muros da cidade, do bairro, da casa. De maneira que o indivíduo imerso numa profunda e prolongada limiaridade ou fronteira mudará o comportamento e se retemperará por meio do trabalho árduo e extenuante que representa a busca da inserção no novo espaço ou estado ao qual ingressa. De acordo com o anterior, o indivíduo durante o processo de passagem, experimentará a ‘separação’, a seguir, vivenciará a ‘margem’ para finalmente concluir a passagem vivenciando a ‘agregação’ a esse novo universo, situação ou condição. Deve-se ter em conta também que o grau de duração de cada uma dessas três fases não é equivalente. Pode acontecer que uma delas seja bem desenvolvida, chegando a constituir uma etapa autônoma. O estudo da poesia citadina de Pablo Neruda possibilitou identificar na literatura um processo análogo ao apontado por Gennep. Trata-se de uma cartografia simbólica revelada através da palavra poética resultante dos deslocamentos territoriais de Neruda, os quais eram constantes. O estudo até agora desenvolvido permite afirmar que assim como ocorrem os ‘ritos de passagem’ na existência humana, na obra literária se verifica o ‘rito de 198 passagem’ do real histórico para o real simbólico, processo no qual também é possível observar as três fases anteriormente apontadas por Gennep: a separação, a margem e a agregação. O processo criativo nerudiano, no que se refere ao rito de pasagem, permite identificar três elementos: o corpo que escreve, o corpo-viajante50 e o corpus da escritura. No processo de escritura, o corpo que escreve materializa um outro corpo que se afasta de seu criador e se transforma numa entidade autônoma e diferente: o corpus da escritura. Mas esse novo corpus, enquanto representação material da palavra fica sempre submetido à sistematização e à organização do corpo que escreve. Em Neruda a passagem do corpo que escreve para o corpus da escritura está mediado pelo denominado corpo-viajante, o qual se desdobra originando um corpo simbólico revelado em palavras e imagens que se materializam no corpus da escritura51. Na referida fase da ‘separação’ o corpo que escreve realiza a interação entre os aspectos emanados do real histórico e do real simbólico, enquanto, o corpo-viajante situado na ‘margem’ se debate entre o que vê, o que sente e o que imagina. A permanência na zona limiar originará o surgimento de um sujeito lírico fronteiriço localizado entre o universo rural e o universo urbano, processo que pode ser ilustrado da seguinte maneira: Corpo-viajante denominação empregada pelo professor Rogério Lima para fazer referência à relação entre o texto literário e a leitura sobre a metáfora da viagem. Tema abordado em seu ensaio “Corpos-letrados, corpos-viajantes, corpos-eléctricos”. In: COUTINHO (2007) pp.136142. 50 51 O trânsito do corpo no real histórico para o corpo no real simbólico foi desenvolvido pela pesquisadora e professora Mariluci Guberman em sua obra, publicada no Brasil e na Espanha (GUBERMAN, 1997: 97-101). 199 Corpo que escreve Corpo-viajante Corpus da escritura Real histórico Imaginação Real simbólico pré-limiar limiar pós-limiar separação margem agregação Espaço primigênio: rural Espaço conflitante: urbano Espaço simbólico: Identidade cultural primeira Perda das referências de lugar Incorporação de novas Olhar de estrangeiro experiências Sujeito fronteiriço Sujeito integrado Elementos telúricos Sentimento de pertencimento O pesquisador Luiz Edmundo Bouças (2007:208), ao estudar o sentido da viagem na obra do escritor brasileiro João do Rio constatou que o escritor revela através de suas crônicas: “[...] um olhar que não procura apenas a novidade, no sentido aventureiro da viagem, mas o olhar que pretende ratificar no real o contorno do imaginário [...]”. Analogamente se cumpre o trânsito do real histórico do corpo que escreve para o real simbólico do corpus da escritura, processo criativo que permitirá ao leitor perceber a partir do texto poético o sentido da viagem na obra nerudiana como será apresentado a seguir. 4.1 O corpo-viajante do poeta peregrino Hombre para la penumbra necesito, Mujer para penumbra, En esta media tierra estoy vencido: yo necesito la luz más oscura: sé que otros pueblan la sombra indeclinable, 200 que la extienden como si fuera alfombra y de otros es la luz, el alfabeto. Yo no descanso en esta latitud: acabo de llegar: quiero seguir el viaje. “El viajero" Pablo Neruda, 1968*. Na literatura hispano-americana a viagem esteve sempre presente, conforme afirma a pesquisadora chilena Ana Pizarro (2006:45): “Os viajantes foram nossos ‘descobridores’: portugueses, espanhóis, holandeses, ingleses e franceses, que deixaram suas cartas suas crônicas, seus relatórios, suas memórias”, e acrescenta, “Os viajantes com destino à América dos séculos XVII e XVIII inspiraram-se por sua vez, em outros viajantes: as leituras de Marco Polo, Pigaffetta, Bougainville impulsionaram seus imaginários”. A viagem é sem dúvida uma experiência transformadora. Depois dela o viajante nunca volta a ser o mesmo. Portanto, cada viagem pode ser compreendida como um processo iniciático em direção ao novo, ao desconhecido, posto que, ainda que o indivíduo viaje a um lugar conhecido, seu olhar nunca será o mesmo. Neruda, por sua vez, realizou a primeira viagem com apenas dois anos de idade, experiência rememorada tardiamente no poema “Primer Viaje” (Neruda 1993a:1023-1024), publicado em 1964: No sé cuándo llegamos a Temuco. Fue impreciso nacer y fue tardío * NERUDA (1993b) p.310-311. 201 nacer de veras, lento, y palpar, conocer, odiar, amar, todo esto tiene flor y tiene espinas. Del pecho polvoriento de mi patria me llevaron sin habla hasta la lluvia de la Araucanía. Las tablas de la casa olían a bosque, a selva pura. Desde entonces mi amor fue maderero y lo que toco se convierte en bosque. [...] Del hacha y la lluvia fue creciendo la ciudad maderera recién cortada como nueva estrella con gotas de resina, y el serrucho y la sierra se amaban noche y dia cantando, trabajando, y ese sonido agudo de cigarra levantando un lamento en la obstinada soledad, regresa al proprio canto mío: mi corazón sigue cortando el bosque, cantando con las sierras en la lluvia, moliendo frío y aserrín y aroma. Estes versos revelam o significado primordial que teve a primeira viagem para Neruda. Relembrar a primeira travessia, do alto de seus sessenta52 anos de idade, foi voltar às suas origens, à cidade primigênia, Temuco. Ir para essa nova cidade significou um renascer53, porque a nova terra e a nova família trouxeram uma nova vida, como o próprio Neruda escreveu, “Fue impreciso nacer y fue tardío / nacer de veras”. Renascer numa cidade que estava “nascendo” 54 foi também um fato marcante, pois a cidade e o seu novo habitante [Neruda] foram crescendo juntos, “Del hacha y la lluvia fue creciendo / la ciudad maderera / recién cortada”. Do encontro desses dois corpos cheios de vida surgiu um elo que se 52 O poema “Primer viaje” faz parte da obra Memorial de Isla Negra publicada em 1964. Neruda quiz publicar a obra nesse ano para comemorar seu aniversário de número sessenta. 53 A mãe de Neruda morreu dois meses após seu nascimento. 54 A cidade de Temuco foi fundada em 1881, por tanto, à chegada de Neruda no ano de 1906 a cidade contava com apenas vinte e cinco anos. 202 fortaleceu com o passar do tempo e, apesar do afastamento decorrente das viagens, permaneceu vivo na alma e nos versos do poeta: “Desde entonces mi amor / fue maderero / y lo que toco se convierte en bosque [...] mi corazón sigue cortando el bosque, / cantando con las sierras en la lluvia, / moliendo frío y aserrín y aroma”. Cabe chamar a atenção para a relação que se estabeleceu entre a cidade da infância e a vida adulta do sujeito poético nerudiano. Este nexo fica evidente pela ação de deslocamento, pela viagem, já que é através dela – seja no tempo ou no espaço – que o sujeito lírico se transporta até sua terra de origem. Constata-se também uma “memória de viagem” e uma identificação com o retorno, fato que Neruda confirmou poeticamente quando escreveu “mi única travesía es un regreso” (NERUDA, 2004b:34-35): Yo soy el hombre de tantos regresos que forman un racimo traicionado, de nuevo, adiós, por un temible viaje en que voy sin llegar a parte alguna: mi única travesía es un regreso. A viagem para Temuco pode ser considerada a “viagem iniciática nerudiana”, a primeira de muitas realizadas ao longo de 69 anos de vida. Enquanto morou em Temuco o jovem escritor realizou inúmeras peregrinações pela região da Araucanía, sempre a bordo do trem dirigido por seu pai, aventuras que ficaram registradas em suas Memórias: [...] El tren recorría un trozo de aquella provincia fría desde Temuco hasta Carahue. Cruzaba inmensas extensiones deshabitadas, sin cultivos, cruzaba los bosques vírgenes, sonaba como un terremoto por túneles y puentes [...] Cada estación tenía un nombre más hermoso, casi todos heredados de las antiguas posesiones araucanas [...] Labranza era la primera estación, Boroa y Ranquilco la seguían. Nombres con aroma de plantas salvajes, y a mí me 203 cautivaban con sus sílabas [...] Y luego llegaba a la ciudad fluvial. El tren daba sus pitasos más alegres, oscurecía el campo y la estación ferroviaria con inmensos penachos de humo de carbón, y se olía ya el curso ancho, celeste y tranquilo, del río Imperial que se acercaba al océano [...] De esto hace ya muchos años, pero esa comunión, esa revelación, ese pacto con el espacio han continuado existiendo en mi vida (NERUDA, 2000:20-26). O texto anterior confirma a forte ligação de Neruda com seu espaço primigênio, elo forjado do perambular pelo próprio território, ação que lhe proporcionou o sentimento de pertencer a uma determinada região, sentimento que Neruda denominou no texto supracitado como “pacto con el espacio”. Após a denominada viagem iniciática, Neruda realizou inúmeras travessias pela região da Araucanía, aprofundando em cada percurso seu conhecimento sobre a flora, a fauna e a geografia desse território. Uma dessas travessias foi repetida ano após ano durante a infância e adolescência do escritor. Trata-se dos verões em Bajo Imperial, também conhecido como Puerto Saavedra. Foi nessa localidade que o poeta pela primeira vez viu e ouviu o mar, “el trueno marino”, como o poeta denominou a imensidão azul. Desse primeiro contato com o oceano o vate recorda: [...] quedé sobrecogido. Allí, entre dos grandes cerros (el Huilque y el Maule) se desarrollaba la furia del gran mar. No sólo eran las inmensas olas nevadas que se levantaban a muchos metros sobre nuestras cabezas, sino su estruendo de corazón colosal, la palpitación del universo” (NERUDA, 2000:23). Aquela era a paisagem que lhe oferecia Bajo Imperial, um pequeno povoado com apenas uma fileira de casas defronte a um rio. Assim como Temuco, Bajo Imperial exerceu um efeito nostálgico que acompanhou o poeta ao longo de sua vida. As viagens da infância e adolescência realizadas pela 204 Araucanía ofereceram os componentes telúricos que marcaram a criação literária de Pablo Neruda: elementos sentidos e admirados pelo pequeno viajante, e valorizados pelo viajante adulto em suas peregrinações pelo mundo. As saudosas viagens da primeira idade foram temas de inúmeras poesias nerudianas. Podem-se citar, por exemplo, versos de “El tren nocturno” (NERUDA, 1993a:1047) transcritos a seguir: Oh largo Tren Nocturno, muchas veces desde el sur hacia el norte, entre ponchos mojados, cereales, bolas tiesas de barro, [...] Tal vez comencé entonces la página terrestre, aprendí los kilómetros del humo la extensión del silencio. Pasábamos Lautaro, robles, trigales, tierra de luz sonora y agua victoriosa: [..] Dentre as travessias nerudianas, sua saída de Temuco aos dezessete anos para morar na capital, Santiago, representou um divisor de águas em sua vida. Viagem feita também de trem e dada a conhecer pelo autor com as seguintes palavras: “[...] entré en la tercera clase del tren nocturno que tardaba un día y una noche interminables en llegar a Santiago” (NERUDA, 2000: 40). Além de relatar o tempo que tardava o trem em chegar à capital, o poeta acrescentou a visão e as sensações experimentadas nessa sua primeira viagem para fora de Temuco, uma experiência de grande repercussão em sua prosa e poesia. Textos nos quais se constata o contraponto entre o corpo da cidade urbana e o corpo da cidade rural, oposição resultante da observação 205 feita através das janelas do trem, imagens que passavam diante dos olhos desse corpo viajante como se fosse um filme: “Entre tanto el tren pasaba, de los campos con robles y araucarias y las casas de madera mojada, a los álamos del centro de Chile, a las polvorientas construcciones de adobe”. Observa-se que a capital adquire uma conotação negativa, um cenário sem vida, enquanto que a área rural proporcionava uma paisagem vigorosa. Percebe-se também um Neruda perdido, sem referências, ao chegar à cidade grande: Muchas veces hice aquel viaje de ida y vuelta entre la capital y la provincia, pero siempre me sentí ahogar cuando salía de los grandes bosques, de la madera maternal. Las casa de adobe, las ciudades con pasado, me parecían llenas de telarañas y silencio (NERUDA, 2000:40). Já em seu discurso dedicado à província o vate termina reforçando suas raízes sulistas quando escreve: “Hasta ahora sigo siendo un poeta de la interperie, de la selva fría que perdí desde entonces” (NERUDA, 2000:40). Após a primeira viagem à capital, Neruda realizou sucessivas peregrinações entre Santiago a Valparaíso, alternando-as com regressos fugazes ao sul. O doloroso afastamento de sua terra de crescimento pode ser acompanhado nos versos de “El tren nocturno”, meio de transporte que tanto o enraizou em seu território primigênio, quanto o afastou e o levou para a cidade moderna, onde se deparou com uma paisagem austera: [...] Ay, pequeño estudiante, ibas cambiando de tren y de planeta, entrabas en poblaciones pálidas de adobes, 206 polvo amarillo y uvas. A la llegada ferroviaria, caras en el sitio de los centauros, no amarraban caballos sino coches, primeros automóviles. Se suavizaba el mundo y cuando miré hacia atrás, llovía, se perdia mi infancia. [...] Do poema supracitado se depreende a dor do sujeito lírico ao perceber que o meio de transporte que fortalecera os laços com sua terra primigênia também cortava suas raízes sulistas. O poema segue assim: Entró el tren fragoso en Santiago de Chile, capital, y ya perdí los árboles, bajaban las valijas rostros pálidos, y vi por primera vez las manos del cinismo: entre en la multitud que ganaba o perdía, me acosté en una cama que no aprendió a esperarme, fatigado dormí como la leña, y cuando desperté sentí un dolor de lluvia: algo me separaba de mi sangre y al salir asustado por la calle supe, porque sangraba, que me habían cortado las raíces No ano de 1927, Neruda inicia suas viagens de navio ao exterior. A primeira foi ao Oriente, uma expriência que trouxe muita solidão e sofrimento como registrado nos versos de “El viajero” (NERUDA,1999:812) escrito no mesmo ano da viagem: Y salí por los mares a los puertos. El mundo entre las grúas y las bodegas de la orilla sórdida mostró en su grieta chusmas y mendigos, compañías de hambrientos espectrales en el costado de los barcos. Países 207 recostados, resecos, en la arena, trajes talares, mantos fulgurantes salían del desierto, armados como escorpiones, guardando el agujero del petróleo, en la polvorienta red de los calcinados poderíos [...] A partir de então o sujeito nerudiano experimenta sensações novas provocadas pela visão de paisagens e situações nunca antes experimentadas, a começar pelo tipo de viagem, não mais por terra e, sim, por mar. As estações de belos nomes com perfume de flores selvagens deram lugar à paisagem suja dos portos com “las grúas / y las bodegas de la orilla sórdida / mostró en su grieta chusmas y mendigos”. Após a volta do Oriente em 1932, as viagens tanto nacionais quanto internacionais continuaram a ser uma constante na vida do poeta. Através dos textos acima selecionados, o corpo viajante revelou que da experiência da viagem resultaram duas vertentes muito significativas: por um lado, percorrer regiões que fazem parte do cotidiano do indivíduo e interiorizarse no conhecimento do corpo da cidade que o acolheu na primeira idade proporcionou um sentimento de pertencimento e identificação com o território e por outro lado, perambular e se interiorizar em regiões desconhecidas proporcionou ao corpo viajante a consciência da singularidade da sua região primigênia. Conforme constatou-se, Pablo Neruda tinha predileção pelas viagens, especialmente pelas longas travessias nas quais aproveitava o tempo para escrever. Amava sua pátria, mas ao viajar pelo mundo ia se apaixonando por outras culturas e outros povos. Dedicou poemas a cada um dos lugares que conheceu, mas, às vezes, preferia viajar sem mover-se de sua casa, sem abandonar o seu país, sem afastar-se das coisas que amava. Emir Rodríguez 208 Monegal percebeu essa característica nerudiana quando certeiramente o batizou de “Viajero inmóvil”, porque sem dúvida, a maior viagem do poeta foi a que realizou para dentro de si mesmo, às profundezas de sua infância, de sua juventude, de suas paixões, de suas raízes. Logo, a experiência da viagem apresentada nos escritos nerudianos pode ser interpretada como uma forma de conhecimento do outro e de reconhecimento de si mesmo. Pode-se dizer também que Neruda tinha a vocação de viajante, pois como ele mesmo enfatizou: Yo no descanso / en esta latitud:/ acabo de llegar:/ quiero seguir el viaje. Partindo desta premissa, os significados da viagem no processo migratório nerudiano serão analisados a seguir. 4.2 A migração de Temuco para Santiago O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber quase que a totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios de que faz parte naturalmente. Simone Weill, 1943.* Como exposto anteriormente, à primeira viagem, involuntária, realizada por Neruda aos dois anos de idade, entre Parral e Temuco, seguiram-se * WEILL (1979) p.347. 209 sucessivos deslocamentos dentro da região da Araucanía. Mas, a partir dos dezessete anos de idade, a vida do poeta foi sendo marcada por viagens além desses limites e provocaram mudanças e questionamentos existenciais no jovem escritor. Afastar-se do ceio familiar, da paisagem rural, assim como da cultura e dos costumes sulistas, que constituíam seu universo para penetrar na capital política e econômica de seu país, significou uma experiência difícil e conflituosa que se prolongou por vários anos. O sentimento de perda experimentado por Neruda ao ver-se privado dos elementos que constituíam sua identidade foi mais intenso por se tratar de uma transição entre dois espaços totalmente antagônicos. Ainda que o deslocamento tenha acontecido dentro do próprio país, as diferenças regionais existentes no Chile atingiram nele um grau considerável devido a seu forte “enraizamento” com sua cidade de origem, já que, como explica Benjamín Subercaseaux (2005:125), “Una ciudad es un conjunto de modalidades propias, intransferibles, que revisten al hombre en sus relaciones con los demás; es algo sujeto al suelo y a su geografia”. Da mesma forma, os fatores externos a uma determinada cultura constituem elementos fundamentais nas relações humanas como o destaca Simone Weill (1979:347), ao afirmar que, “As trocas de influências entre meios muito diferentes não são menos indispensáveis das que o enraizamento no ambiente natural”, mas as influências exteriores só poderão passar a formar parte do indivíduo depois de serem “digeridas”, processo que não se dá instantaneamente. Em 1921, época em que Neruda partiu, a cidade de Temuco era ainda um território sem marcas de urbanização, uma paisagem de florestas virgens 210 no meio da qual estava sua casa “[...] la casa sin ciudad, apenas protegida / por reses y manzanos” como registrado pelo próprio poeta no poema “La frontera (1904)” de Canto Genera (Neruda,1999:801-808), […] Mi infancia recorrió las estaciones: entre los rieles, los castillos de madera reciente, la casa sin ciudad, apenas protegida por reses y manzanos de perfume indecible, fui yo, delgado niño cuya pálida forma se impregnaba de bosques vacíos y bodegas. Por outro lado, na cidade de Santiago já se vivia o denominado “fenômeno urbano” 55 : característica compartida pelas cidades povoadas por uma multidão de seres que vêm de todos os cantos de um país. Uma multidão que tem por característica básica a individualidade, a experiência da destruição dos laços comunitários e a vivência da dissolução das referências sócioculturais que orientavam o cotidiano dos indivíduos. Assim também, Santiago nos últimos anos do século XIX já desenhava uma cultura metropolitana que segundo Carlos Fuentes (1997:303), […] o melhor exemplo de êxito de uma sociedade burguesa na América Latina se encontrava no Chile. O Chile, controlando o comércio do Pacífico através de Valparaíso, viu o nascimento de grandes fortunas e, junto com elas, a criação de instituições políticas únicas no continente americano. [Trad. de autora] No século XX as cidades manifestaram-se como o centro do poder e do progresso no Chile atraindo uma enorme população. Contudo a procura por melhores expectativas de trabalho mudou de forma drástica seus modos de vida. Os que sairam da província com um forte apego à terra tiveram que 55 Emprega-se “fenômeno urbano” na acepção de Octavio Velho. VELHO (1987) p.7. 211 adaptar-se a um novo sistema de vida onde o indivíduo se vê forçado a assumir um ritmo acelerado. Esses fatores determinaram contrastes profundos entre a vida rural e a urbana, aspecto destacado por Neruda no texto “Glosas de la ciudad I” publicado no nº 29 da revista Claridad datada em 13 de agosto de 1921, somente três meses após sua chegada à capital: […] Sé tu vida febril: de la cama a la calle, de ahí al trabajo. El trabajo es oscuro, torpe, matador. Después almuerzo rápido. Y al trabajo otra vez. Después la comida, el cuerpo extenuado y la noche que te hace dormir. Ayer, mañana, pasado, sucedió y sucederá lo mismo (Neruda, 2001:353). Dois meses depois, no nº 36 da revista citada, Neruda (2001:257) publicou “Glosas de la provincia”: La vida, la vida es cosa lenta. Por eso hay que pensar desde luego, en dejar que pase sin saber que pasa […] Cuando comienza a caer la lluvia hay que tener una casa y un tejado y un brasero. Después, si llega el tiempo bueno, que haya una arboleda grande donde descansar. Nos textos selecionados observa-se o contraste entre os ritmos de vida da província e da cidade grande, fenômeno que segundo Georg Simmel (1987:14) decorre dos seguintes fatos: A metrópole extrai do homem, enquanto a criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a vida rural extrai. Nesta, o ritmo da vida e do conjunto sensorial de imagens mentais flui mais lentamente, de modo mais habitual e mais uniforme. é precisamente nesta conexão que o caráter sofisticado da vida psíquica metropolitana se torna compreensível – enquanto oposição à vida da pequena cidade, que descansa mais sobre relacionamentos profundamente sentidos e emocionais. O forte enraizamento demonstrado por Neruda com a província de origem e as diferenças apontadas entre os territórios em questão são as 212 causas principais de seu conflito identitário. O fenômeno experimentado por Neruda pode encontrar explicação no estudo realizado pelo professor chileno Carlos Amtmann (1997:8-9) sobre a identidade regional: O núcleo de cada cultura é sua identidade, entendido como a maneira particular de ser, a própria e singular modulação das variantes universais da cultura no eixo do tempo e na dimensão do espaço […] A identidade supõe um sentimento de pertencer que é anterior ao auto-reconhecimento do grupo e que expressa a valorização dos elementos que configuram a própria cultura: hábitos, costumes, crenças […]. [Trad. da autora] Traçadas as principais características dos territórios abordados será retomado o tema dos ‘ritos de passagem’, isto é, os processos de transição que atingem o indivíduo na sua passagem de uma condição a outra, de um mundo social a outro, ou de um território a outro. Sendo assim, pode-se estabelecer que a fase de ‘separação’ se declarou iniciada no momento em que Neruda se afastou da região da Araucanía e se dirigiu a Santiago, mas na transição o poeta não atingiu emocionalmente seu destino final, ficando na interseção dos dois universos, ou seja, na fase limiar. De maneira que enquanto se encontrou no estágio de ‘trânsito’ sua permanência na fase limiar se prolongou, e somente foi ultrapassada no momento em que ocorreu a ‘integração’ ao ‘outro universo’, já que é preciso passar para permanecer. Um transitante que retorna à condição de origem não cumpre a passagem, correndo o risco, portanto, de se ver eternamente mergulhado no limbo ou fronteira. Ao chegar a Santiago Neruda se deparou com um mosaico de contrastes, movimento e barulho, características das cidades em pleno desenvolvimento, bondes de formas e cores variadas que transitavam num vai-vem interminável. O centro de Santiago poderia ser qualquer cidade européia. Nela se observavam prédios e casas velhas transformadas em elegantes lojas, mas ao 213 afastar-se do centro de luxo, surgiam construções menos elegantes distribuídas aos lados do rio Mapocho: de um lado surgia um conglomerado de casas, depósitos e sórdidos bares, do outro lado do rio, velhos bairros residenciais que assombram por sua miséria. Também a capital chilena albergava uma infinidade de parques que se conservam até hoje: Parque Forestal, Cousiño e Quinta Normal, para nomear alguns. Santiago, um caleidoscópio de paisagens e atrações diversas: o centro com suas lojas e prédios, os velhos bairros residenciais, o arrabal à beira do Mapocho e seus parques, juntamente com seus habitantes constituia um modo único de ser. As experiências vividas por Neruda em Santiago foram registradas pelo poeta assim que chegou à capital, prova disto é que em seu primeiro livro, Crepusculario, datado de 1923, há uma série de poemas alusivos a sua vida na capital chilena, conforme constatado em “Mi alma es un ‘carrucel’ vacío en el crepúsculo” (NERUDA,1999a:137-138) do capítulo “Los crepúsculos de Maruri”: AQUÍ ESTOY CON mi pobre cuerpo frente al crepúsculo que entinta de oros rojos el cielo de la tarde: mientras entre la niebla los árboles obscuros se libertan y salen a danzar por las calles. Yo no sé por qué estoy aquí, ni cuando vine ni por qué la luz roja del Sol lo llena todo: me basta con sentir frente a mi cuerpo triste la inmensidad de un cielo de luz teñido de oro, la inmensa rojedad de un sol que ya no existe, el inmenso cadáver de una tierra ya muerta, y frente a las astrales luminarias que tiñen el cielo, la inmensidad de mi alma bajo la tarde inmensa. Nesses versos Neruda apresenta a visão triste e confusa de sua rua santiaguenha. Uma rua sem vida que não produz nada “el inmenso cadáver de una tierra ya muerta”, onde as árvores são prisioneiras e aproveitam-se da 214 escuridão da noite para se libertar, “mientras entre la niebla los árboles obscuros/se libertan y salen a danzar por las calles”. O sujeito poético com o corpo estático, a alma vazia e um turbilhão de sentimentos agitando sua mente contempla a cena, como “...un carrucel vacío en el crepúsculo”. Maruri era o nome da rua em que ficava a pensão onde Neruda se hospedou ao chegar a Santiago em março de 1921. Foi nessa rua que o poeta se inspirou para escrever os poemas de Crepusculario. Em Confieso que he vivido Neruda (2000:40 e 64) registrou esse momento: Venía recomendado a una casa de pensión de la calle Maruri, 513 [...] En la calle nombrada me sentaba yo al balcón a mirar la agonía de cada tarde, el cielo embanderado de verde y carmín, la desolación de los techos suburbanos amenazados por el incendio del cielo. En la calle Maruri, 513, terminé de escribir mi primer libro […] El capítulo central de mi libro se llama “Los crepúsculos de Maruri”. Nadie me ha preguntado nunca qué es eso de Maruri. Talvez muy pocos sepan que se trata apenas de la humilde calle visitada por los más extraordinarios crepúsculos. Enquanto na província o jovem enfrentava a força da natureza, o frio, as chuvas, na cidade moderna teve de lutar contra os próprios homens, a solidão e o anonimato, hostilidades que lhe provocaram uma profunda angústia, “Barrio sin luz”. ¿Se va la poesía de las cosas o no la puede condensar mi vida? Ayer —mirando el último crepúsculo— yo era un manchón de musgo entre unas ruinas. Las ciudades -hollines y venganzas-, la cochinada gris de los suburbios, la oficina que encorva las espaldas, el jefe de ojos turbios. […] Lejos... la bruma de las olvidanzas —humos espesos, tajamares rotos—, y el campo, ¡el campo verde!, en que jadean los bueyes y los hombres sudorosos. 215 Y aquí estoy yo, brotando entre las ruinas, mordiendo solo todas las tristezas, como si el llanto fuera una semilla y yo el único surco de la tierra. No poema “Barrios sin luz” (NERUDA,1999:125-126) parte constitutiva da primeira obra, o vate apresenta motivos do sul e da cidade em modernização. Seus versos são fortes registros da diferença entre o espaço agreste e a urbe. Enquanto a cidadezinha de Temuco oferece uma vida pacata, tranqüila e belezas naturais, “y el campo, ¡el campo verde!, en que jadean / los bueyes sudorosos”, o ambiente moderno metropolitano adquire uma conotação negativa, “Las ciudades -hollines y venganzas-,/ la cochinada gris de los suburbios, / la oficina que encorva las espaldas…” contrapondo-se à visão idílica da província. Fato que confirma a seguinte afirmativa de Kevin Lynch (1997:149): “A criação da imagem ambiental é um processo bilateral entre observador e observado. O que ele vê é baseado na forma exterior, mas o modo como ele interpreta e organiza isso, e como dirige sua atenção, afeta por sua vez aquilo que ele vê”. Do distanciamento de sua terra de origem surge o desejo do reencontro com a natureza que o albergou na sua vida anterior. Nos primeiros meses na capital chilena, enquanto não volta às suas raízes temucanas a saudade do ambiente da infância vai sendo registrada em seu fazer poético. Sentimentos revelados através de imagens em confronto entre a vida simples e segura no campo e as bruscas transformações urbanísticas acontecidas em Santiago a partir de 1900. Á margem da vida urbana, Neruda se recolhe em seu quarto de pensão num processo de ensimesmamento marcado pela solidão e sobre tudo pelo 216 trabalho árduo, uma atitude que pode ser considerada como uma fuga da realidade, La vida de aquellos años en la pensión de estudiantes era de un hambre completa. Escribí mucho más que hasta entonces, pero comí mucho menos […] Yo defendí mis costumbres provincianas trabajando en mi habitación, escribiendo varios poemas al día y tomando interminables tazas de té, que me preparaba yo mismo (NERUDA, 2000:42-43). A experiência vivenciada pelo jovem poeta provinciano que chegou a Santiago à procura de novos horizontes, foi lembrada anos mais tarde pelo próprio Neruda, em 23 de abril de 1969, num encontro de poesia na Facultad de Arquitectura y Urbanismo de la Universidad de Chile onde era o convidado de honra, […] En 1921, por las calles aún circulaban tranvías tirados por caballos y conductoras que cobraban los boletos e iban vestidas con unas faldas inmensas, que les llegaban hasta los pies. Yo venía de la provincia dispuesto no a conquistar la capital sino entregado de pies y manos para que la capital me conquistara y me introdujera en su inmenso vientre, en donde se digieren los presupuestos, las ideas, las vidas y casi todas las luchas en nuestro país (NERUDA, 2004:7) Desta citação constata-se que o tempo não apagou da memória do poeta as imagens da época de adaptação (margem) à capital, visto que passados quarenta e oito anos Neruda é capaz de recriar com detalhes as movimentadas ruas santiaguinas, e, ainda, o motivo de sua migração. Entre 1921 e 1927 a vida na cidade será, para Neruda, tema e contexto da sua produção poética. O poeta escreveu sobre suas experiências imediatas 217 como constatado nos poemas de Residencia en la Tierra (1933), onde a questão das cidades adquire grande força e passa a configurar a temática central da sua criação literária. 218 4.3 O caráter fronteiriço do sujeito citadino […] pertenezco a un pedazo de pobre tierra austral hacia la Araucanía, han venido mis actos desde los más distantes relojes, como si aquella tierra boscosa y perpetuamente en lluvia tuviera un secreto mío que no conozco, que no conozco y que debo saber, y que busco perdidamente, ciegamente, examinando largos ríos, vegetaciones inconcebibles, montones de madera, mares del Sur, hundiéndome en la botánica y en la lluvia, sin llegar a esa privilegiada espuma que las olas depositan y rompen, sin llegar a ese metro de tierra especial, sin tocar mi verdadera arena […] mi conexión interminable con una determinada vida, región y muerte. La copa de sangre∗ Pablo Neruda,1943. A constatação de que na passagem da província para a capital Neruda não atinge emocionalmente seu destino final, permanecendo num longo estado de transição (limiar), permite apontar para o surgimento de um ‘sujeito fronteiriço’ situado entre o universo provinciano e o universo urbano. Em Neruda, o conceito de fronteiriço não alude somente a uma demarcação territorial entre duas regiões que são política e culturalmente distintas, mas também a delimitações temporais, já que em sua permanência na cidade o poeta se transforma num corpo que experimenta o lugar e estabelece uma relação crítica frente a ele: descreve-o poeticamente e desenvolve uma mobilidade temporal da cidade à província. Este estado fronteiriço demonstra uma posição intermediária em indivíduos que ao se deslocarem dentro do próprio país se sentem à margem de sua própria cultura. Em Neruda a noção de fronteira é uma problemática recorrente na temática das cidades, onde o fronteiriço tem relação com o espaço geográfico ∗ NERUDA (2003) p.149-150 219 (campo, metrópole e porto), com o espaço temporal (presente e passado) e com o espaço cultural, no que se refere às diferenças identitárias regionais de um mesmo país. Por isto, é importante abordar a análise da superação de fronteiras no que diz respeito às questões de ordem geográfica e cultural, mas sobre tudo às formulações subjetivas decorrentes dos processos interpessoais. Como pôde observar-se ao longo deste estudo, o território, em quanto suporte material e entorno ambiental, constitui una categoría fundante e distintiva no processo de construção da identidade. Neruda destaca através de seu discurso poético a importância da terra primigênia na construção da identidade individual e coletiva do homem. Constata-se também que o espaço físico, onde se desenvolve o cotidiano do individuo é rico em significantes e sinais, elementos que penetram no inconsciente de seus habitantes e determinam, com o passar do tempo, sua forma de ser e de entender o mundo. A influência do território primigênio na configuração da identidade foi abordada pelo doutor Fidel Sepúlveda (1996:45) com as seguintes palavras: O território se revela na imagem da mãe terra. Ela é um segundo útero que nutre o habitante. Desde suas cores, linhas, ritmos, formas, molda as paisagens interiores do homem. Desde os ruídos e sons do entorno aguça seu ouvido para atender as vozes de seu ser. Os odores, os sabores dos frutos e frutas transferem para ele a energia de suas raízes. O contato da pele do homem com a pele da terra modela sua natureza autóctone. [Trad. da autora] Pode-se afirmar, então, que território que alberga o indivíduo na sua primeira idade tem uma importância matrialcal e distintiva no processo de construcción da identidad individual e cultural do homem. 220 CONCLUSÃO A realização desta Tese possibilitou, num primeiro momento, evidenciar aspectos importantes da obra de Pablo Neruda. Os diferentes ciclos nerudianos delataram uma exigência criadora que constitui um dos fatores da originalidade deste autor. Constatou-se também que os câmbios na estética nerudiana não resultaram de idéias pré-concebidas, mas de um impulso natural provocado pelos diferentes ambientes e acontecimentos que envolveram o poeta ao longo de sua trajetória. Também foi possível desvelar, através da leitura dos textos de Neruda, uma escrita autobiográfica que perpassa toda sua obra, ora com a presença de lembranças isoladas, ora com uma clara tendência à organização sistemática das vivências, em tom confessional. Ainda na primeira etapa o estudo revelou um Neruda amante dos livros. O vate cultivou um mundo literário diversificado e amplo, foi um leitor e colecionador de clássicos e também um admirador das letras de seu tempo. Num segundo momento, na necessidade de compreender a cidade como um todo foram abordados os esclarecedores estudos de Ángel Rama e Néstor García Canclini. Textos que levaram ao entendimento de que a construção citadina abrange mais do que um espaço geográfico habitado e seus patrimônios visíveis, posto que existe um patrimônio invisível constituído inclusive pela palavra escrita, que permite a reconstrução da paisagem e do cotidiano urbano através dos ecos do passado e remete às origens do espaço urbano. No decorrer da história esses registros têm-se cristalizado tanto na 221 prosa quanto na poesia, configurando um espaço simbólico que torna possível sua interpretação num tempo histórico distante e alheio ao do autor. Dentro desse contexto se desenvolveu a análise das passagens do texto nerudiano – prosa e poesia – dedicadas às cidades chilenas em que o poeta morou: Temuco, Santiago e Valparaíso, tendo como base de estudo os espaços habitados, a memória primordial, a identidade nacional, a imagem poética e o olhar citadino. Num terceiro momento o estudo abordou o processo imagético nerudiano, análise reveladora da presença de espaços variados no que se refere à representação das cidades estudadas. A escrita nerudiana revelou espaços abertos: rurais e portuários. Foi possível o encontro com o mar, o horizonte, o bosque austral, com as colinas de Valparaíso e com as montanhas do sul do Chile, assim como a presença de espaços fechados que remetem à paisagem de Santiago. Através dessas análises ficou constatada a preferência do poeta pelos espaços abertos e reafirmaram, com isto, sua admiração pelas belezas naturais, preferência que o levou a viver numa oscilação permanente entre a província e a cidade grande. Outra característica manifestada na obra nerudiana é o culto aos fenômenos naturais próprios do espaço primigênio. A necessidade de reviver certas visões e sensações levou o vate a recriar em suas moradas os espaços, os materiais e as sensações experimentadas na infância, evidenciando um forte enraizamento com a cidade de Temuco. No quarto momento desta pesquisa observaram-se as características culturais, históricas e geográficas dos espaços abordados com o objetivo de confirmar as possíveis diferenças identitárias entre cada território, o que 222 resultou na configuração de uma autonomia regional. A realização desse exame visou detectar comportamentos, hábitos e valores comuns aos habitantes de cada um desses espaços, para com isso estabelecer traços identitários compartilhados ou não pelos habitantes de Temuco, Santiago e Valparaíso. Essa análise confirmou a premissa de que existem diferenças culturais entre as diferentes regiões de um país, posto que as características identitárias compartilhadas por uma comunidade ocorrem dentro de limites determinados. Neste estágio foi fundamental o aporte teórico dos textos de Benedict Anderson. A seguir o estudo abordou a importância da viagem como experiência desencadeadora do denominado “rito de passagem”. Reflexão que levou à compreensão de que o território, enquanto suporte material e entorno ambiental, constitui uma característica fundacional e distintiva no processo de construção da identidade, de tal maneira que as análises se encaminharam para a confirmação da hipótese de que o fio condutor da poesia citadina nerudiana está constituído pela reincidência de determinados signos sensíveis ou arquétipos primigênios. Os textos nerudianos revelaram também um espaço literário marcado pelas referências recorrentes sobre o tempo, a memória, a identidade e a história. Os lugares e objetos abordados pelo poeta traduziram uma leitura do mundo, onde a permanência da natureza ajuda a manter a noção de identidade com os lugares por ele habitados. Assim também, os processos migratórios nerudianos revelaram um corpo viajante que concebe a existência de um sujeito fronteiriço situado entre o universo provinciano e o universo urbano, possibilitando a constatação de que as experiências do autor apresentam duas linhas fundamentais: uma 223 afetiva e outra reflexiva onde a segunda se desenvolve a partir da primeira, ficando a reflexão subordinada à emoção. Um exercício poético a partir das experiências de vida, um passeio que vai desembocar num confronto de imagens urbanas e rurais, onde o espaço urbano será o gerador do desejo dos lugares de outrora, revelando um memorial de fatos e experiências. O estudo sobre o processo criativo nerudiano, no que se refere ao rito de pasagem, permitiu identificar três elementos: o corpo que escreve, o corpoviajante e o corpus da escritura. As reflexões desenvolvidas levaram ao entendimento de que a passagem do corpo que escreve para o corpus da escritura está mediado pelo denominado corpo-viajante, o qual se desdobra originando um corpo simbólico revelado em palavras e imagens que se materializam no corpus da escritura. Na referida fase da ‘separação’ o corpo que escreve realiza a interação entre os aspectos emanados do real histórico e do real simbólico, enquanto, o corpo-viajante situado na ‘margem’ se debate entre o que vê, o que sente e o que imagina. Conclui-se, então, que o espaço físico onde se desenvolve o cotidiano do indivíduo é rico em significantes e sinais, elementos que penetram no inconsciente de seus habitantes e determinam, com o passar do tempo, sua forma de ser e de entender o mundo. Constatação que leva a afirmar que o território que albergou o indivíduo em sua idade primeira tem uma importancia matriarcal e distintiva no processo de construção da identidade cultural do homem. Como decorrência do explanado anteriormente destacou-se que tanto a poesia quanto a prosa nerudiana seguem com fidelidade sua trajetória de vida, suas vivências e seu olhar sobre o cotidiano expressam amor pelos lugares 224 onde viveu. Inúmeros são os testemunhos em que o poeta chileno expressou seu enraizamento vital com a selva austral, território de chuvas, árvores, rios e raízes, fato que permite estabelecer que a obra nerudiana é auto-referencial, onde verso e prosa estão determinados por um fio autobiográfico constante. No decorrer do estudo, percebeu-se que as novas idéias e questionamentos estéticos, que invadiram Neruda a partir de sua residência na cidade grande, não implicaram somente uma mudança de conceitos, mas uma transformação interna, que resultou em novas formas de pensar e, conseqüentemente, de representar, criando uma voz comprometida com o homem, com o mundo e com a memória. 225 BIBLIOGRAFIA • OBRA DE PABLO NERUDA 1923 Crepusculario.6ª ed. 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