Texto nº 1 - FLICK, Uwe, (2005) - Métodos Qualitativos na Investigação Científica, Lisboa, Monitor, pp. 1-13 1 A INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA: IMPORTÂNCIA, HISTÓRIA, CARACTERÍSTICAS A investigação qualitativa vai-se firmando no campo das Ciências Sociais e da Psicologia. Dispõe hoje de uma grande variedade de métodos, cada um dos quais parte de premissas diferentes e prossegue diferentes objetivos. Cada um deles tem por base uma ideia específica do seu objeto. Mas os métodos qualitativos não podem ser encarados como independentes do processo de investigação e da questão a estudar. De facto, estão diretamente enraizados no processo de investigação, pelo que serão melhor descritos e compreendidos na ótica desse processo. É por isso que a apresentação dos diferentes passos do processo de investigação qualitativa constitui a perspetiva central deste livro: os procedimentos fundamentais de colheita e interpretação dos dados e de estabelecimento e apresentação dos resultados serão enquadrados numa perspetiva de processo. O leitor terá, assim, a visão panorâmica da investigação qualitativa, das alternativas metodológicas concretas e das suas aplicações, limites e finalidades, o que o habilitará a escolher a estratégia metodológica mais apropriada às questões e problemas da sua pesquisa. 1.1 - IMPORTÂNCIA DA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA A investigação qualitativa é particularmente importante para o estudo das relações sociais, dada a pluralidade dos universos de vida. Esta pluralidade traduz-se em expressões-chave como a “nova obscuridade” (Habermas 1996), a crescente “individualização dos modos de vida e padrões biográficos” (Beck 1992) e a dissolução das “velhas” desigualdades sociais no seio da nova diversidade dos ambientes, subculturas, estilos e modos de viver (Hradil 1992). Esta pluralidade exige uma nova sensibilidade para o estudo empírico das questões. Os defensores do pós-modernismo têm argumentado que a época das grandes narrativas e teorias está ultrapassada; o que agora se exige são narrativas limitadas no tempo, no espaço e na situação. Faca a multiplicidade dos estilos de vida e dos padrões de interpretação na sociedade moderna e pós-moderna, ganha hoje nova importância e novas aplicações a frase de Herbert Blumer: “A posição de partida do cientista social e do psicólogo é sempre a mesma, na prática: a falta de familiaridade com o que esta a acontecer na dimensão da vida escolhida para o estudo” (1969, p.33). A acelerada mudança social e a consequente diversidade dos universos de vida confrontam cada vez mais os cientistas com novos contextos sociais e novas perspetivas. Estas são para eles ma novidade tao grande que as metodologias dedutivas tradicionais – derivar dos modelos teóricos as questões e hipóteses da investigação e submetê-las ao teste dos resultados empíricos – fracassam na diferenciação dos assuntos. A investigação é, por isso, cada vez mais forcada a recorrer a estratégias indutivas: em vez de partir das teorias para o teste empírico, o que se exige são “conceitos sensibilizadores” para abordar os contextos sociais que se quer estudar. Ao contrário, porem, de um mal-entendido generalizado, estes contextos sensibilizadores são influenciados pelo conhecimento teórico existente. Mas neste caso as teorias resultam os estudos empíricos. O conhecimento e a prática são estudados na qualidade de conhecimento e pratica locais (Geertz 1983). A investigação em Psicologia, em particular, é frequentemente acusada de irrelevante para a vida quotidiana, por não se dedicar suficientemente a uma descrição exata dos factos relativos a um caso (Dörner 1983). O estudo dos significados subjetivos e da experiencia e pratica quotidianas é tao fundamental como a analise das narrativas (Bruner 1991; Sarbin 1996) e discursos (Harré 1998). 1.2 - OS LIMITES DA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA: UM PONTO DE PARTIDA Tradicionalmente, a Psicologia e as Ciências Sociais tomaram como modelo a exatidão das Ciências da Natureza, dando atenção especial ao desenvolvimento de métodos quantitativos e padronizados. Foram definidos princípios orientadores da investigação e do seu planeamento, tendo em vista os seguintes objetivos: isolar claramente causas e efeitos, operacionalizar adequadamente as relações teóricas, medir e quantificar os fenómenos, conceber planos de investigação que permitam a generalização dos resultados, formular leis gerais. São escolhidas, por exemplo, amostras aleatórias da população, para garantir a sua representatividade; as proposições gerais são formuladas com a maior independência possível em relação aos casos concretos que se estudaram; os fenómenos observados são classificados em termos de frequência e distribuição. As situações em que os fenómenos e as relações estudadas ocorrem são controladas até ao limite do possível, a fim de determinar com o máximo de clareza as relações causais e a sua validade. Os estudos são desenhados por forma a excluir, na medida do possível, a influência do investigador (entrevistador, observador, etc.). Estas medidas deveriam assegurar a objetividade do estudo, já que são em larga medida eliminadas tanto a visão subjetiva do investigador como as dos sujeitos do estudo. Foram formulados padrões gerais obrigatórios para a realização e avaliação da pesquisa empírica nas Ciências Sociais; e procedimentos como a construção de questionários, a elaboração dos planos de pesquisa, a análise estatística dos dados, ganharam um refinamento crescente. Durante muito tempo, a investigação psicológica usou quase exclusivamente planos experimentais, que produziram grande quantidade de dados e resultados, os quais serviram para testar e demonstrar relações psicológicas entre variáveis, e as suas condições de validade. Pelas razoes acima referidas, a investigação social empírica baseou-se durante um longo período em inquéritos padronizados, com o objetivo de documentar e analisar a frequência e distribuição dos fenómenos sociais na população – certas atitudes, por exemplo. Os padrões e procedimentos da investigação quantitativa eram cada vez menos examinados em profundidade, para esclarecer em relação a que objetos e problemas eram ou não apropriados. Quando se avaliam globalmente as pesquisas feitas e orientadas para aqueles objetivos, os resultados revelam-se bastantes negativos. Existe um grande desencanto em relação aos ideais de objetividade: já há algum tempo que Max Weber (1919) proclamou como tarefa da Ciência a “desmistificação do mundo”. Mais recentemente, Bonss e Hartmann (1985) propuseram a crescente desmistificação da Ciência, dos seus métodos e das suas descobertas. No caso das Ciências Sociais, o baixo nível de aplicabilidade e de articulação dos resultados é considerado um indicador disso mesmo. As descobertas da investigação social, conseguiram penetrar menos do que se pensava – e sobretudo de maneira muito diferente –nos contextos da política e do quotidiano. A “investigação utilitária” (Beck e Bonss 1989) demonstrou que as descobertas científicas não são transferidas para a prática politica e institucional tanto quanto era de esperar. Quando são aproveitadas, são obviamente reinterpretadas e utilizadas de forma parcelar. A Ciência deixou de produzir “verdades absolutas”, prontas a ser adotadas acriticamente: oferece, antes, meios de interpretação limitados, com um alcance maior que as teorias do dia-a-dia, e que podem ser flexivelmente utilizadas na prática (1989, p.31). Tornou-se igualmente evidente que os resultados das Ciências Sociais raramente são percebidos e utilizados no dia-a-dia, porque, no intuito de cumprir as exigências metodológicas, as pesquisas e os seus resultados estão frequentemente muito longe das preocupações e problemas quotidianos. Por outro lado, as analises, da prática da investigação mostraram que grande parte dos ideais de objetividade almejados não podem ser cumpridos. Mau grado todos os controles metodológicos, a investigação e os seus resultados são inevitavelmente influenciados pelos interesses e bases sociais e culturais dos que nela participam. Estes fatores influenciam a formulação das questões e hipóteses da investigação, assim como a interpretação dos dados e das relações. Finalmente, a desmistificação proposta por Bonss e Hartmann tem consequências para a forma de conhecimento que a Psicologia e as Ciências Socias podem propor-se atingir e, principalmente, são capazes de produzir: “Aceitando a desmistificação dos ideais objetivistas, não mais se pode partir irrefletidamente da noção de que há afirmações objetivamente verdadeiras. O que nos resta é a possibilidade de afirmações relacionadas com os sujeitos e as situações, que tem de ser estabelecidas por um conceito de conhecimento sociologicamente articulado” (1985, p. 21). A sólida fundamentação empírica destas afirmações relativas a situações e sujeitos é um objetivo que se pode atingir com a investigação qualitativa. 1.3 - TRAÇOS ESSENCIAIS DA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA As ideias centrais orientadoras da investigação qualitativa são diferentes das da investigação quantitativa. Os seus traços essenciais (Caixa 1.1) são a correta escolha de métodos e teorias apropriados; o reconhecimento e análise de diferentes perspetivas; a reflexão do investigador sobre a investigação, como parte do processo de produção do saber; a variedade dos métodos e perspetivas. Adequação dos métodos e teorias No seu influente trabalho sobre a investigação empírica, Bortz 51984, pp15-16) sugere, por exemplo, que se deve controlar o “ajustamento das ideias à investigação” e escolher apenas aquelas que podem ser estudadas empiricamente. Para ele, as seguintes ideias são expressamente alheias aquele desiderato: As ideias para investigação... com conteúdo filosófico (por exemplo,... o significado da vida) e as investigações que lidam com conceitos imprecisos... o estudo de pessoas em situações de exceção (por exemplo, o problema psicológico dos anões)... Finalmente, o estudo do peso causal de fatores isolados, que na verdade só são efetivos em combinação com outros fatores de influência. É óbvio que tem sentido ponderar se uma questão a investigar pode ou não ser empiricamente estudada (veja-se o Capitulo 5); mas, para Bortz, o critério que determina o objetivo da investigação é a possibilidade de os métodos disponíveis (mais do que isso, aceites) poderem ser utilizados no estudo. Podem encontrar-se pessoas e situações excecionais, mas podem não ser em número suficiente para constituir uma amostra que justifique um estudo quantitativo e a generalização dos resultados. Que a maior parte dos fenómenos não pode de facto ser explicada isoladamente é um resultado da complexidade do real e dos próprios fenómenos. Se todos os estudos empíricos fossem planeados exclusivamente em obediência ao modelo rígido das relações de causa e efeito, todos os objetos complexos teriam de ser excluídos. É esta a primeira solução para o problema da análise de causas com múltiplas facetas, aduzidas por Bortz. A segunda solução é incluir as condições do contexto nos planos de pesquisa quantitativa complexa por exemplo, análises modo nível: Saldern 1986) e explicar os modelos complexos nos planos estatistico e empirico. A necessária abstração metodológica torna mais difícil a reintrodução dos resultados nas situações quotidianas estudadas. Mas desta maneira não se resolve o problema fundamental – a investigação só consegue colocar em evidencia o que já esta contido no modelo de realidade subjacente. A terceira via para resolver o problema é a sugerida pela investigação qualitativa: adotar métodos tao abertos que se ajustem à complexidade do objeto estudado. Neste caso é o objeto a estudar, e não o contrário, o fator determinante da escolha do método. Os objetos não são reduzidos a simples variáveis, são estudados na sua complexidade e inteireza, integrados no seu contexto quotidiano. Os campos de estudo não são situações artificiais de laboratório, mas interações e praticas dos sujeitos na vida quotidiana. É assim, particularmente, que as pessoas e situações excecionais são frequentemente estudadas (veja-se o Capitulo 7). Para estarem à altura da diversidade da vida quotidiana, os métodos são caracterizados pela abertura face aos seus objetos de estudo, abertura assegurada de diferentes maneiras (vejam-se os Capítulos 8 a 17). Mais do que testar teorias já bem conhecidas (teorias anteriormente formuladas, por exemplo), o objetivo da investigação é descobrir teorias novas, empiricamente enraizadas. De igual modo, a validade do estudo é estabelecida com referência ao objeto estudado, não obedecendo exclusivamente a critérios académicos abstratos, como na investigação quantitativa. Em vez disso, a investigação qualitativa tem como critérios centrais a fundamentação dos resultados obtidos no material empírico, e uma escolha e aplicação de métodos adequados ao objeto de estudo. A relevância dos resultados obtidos e a reflexão sobre os procedimentos são critérios adicionais (veja-se o Capitulo 18). As perspetivas dos participantes na sua diversidade As doenças mentais oferecem-nos a ocasião de explicitar uma outra dimensão da investigação qualitativa. Os estudos epidemiológicos mostraram a frequência da esquizofrenia na população e, além disso, o modo como a sua distribuição varia: distúrbios mentais graves como a esquizofrenia têm uma ocorrência muito maior nas classes sociais mais baixas que nas mais favorecidas. Essa correlação foi descoberta nos anos 50 por Hollingshead e Redlich (1958) e repetidamente confirmadas desde então. Mas o sentido da correlação não pode ser clarificado: são as condições das classes sociais que favorecem a ocorrência e a irrupção das doenças mentais ou são as pessoas com problemas mentais que se deixam resvalar para as classes sociais mais baixas (veja-se Keupp 1982)? Estes dados também não dizem nada sobre o que significa viver com uma doença mental. Não só não clarificam o significado de doença mental (ou de saúde) para aqueles a quem diz respeito, como não captam a diversidade das perspetivas da doença, no seu contexto. Qual é o significado da esquizofrenia para o paciente e para os seus familiares? Como lidam no contexto da sua vida com a doença as diferentes pessoas envolvidas? O que é que no decurso da vida do paciente levou ao surto da doença, e o que é que q transformou em doença cronica? Qual foi a influência das diferentes instituições que cuidaram do paciente ao longo da sua vida? A que ideias, objetivos e rotinas obedeceram no tratamento do caso? Numa questão como a da doença mental, a investigação qualitativa concentra-se neste tipo de questões (para uma visão de conjunto, consulte-se Flick 1995b). Ela parte dos significados individuais e sociais do objeto, e evidencia a diversidade das perspetivas sobre ele (do paciente, dos familiares e dos técnicos); estuda as práticas e o saber dos participantes; e analisa as interações sobre a doença mental e os modos de a enfrentar num determinado espaço. As inter-relações são descritas no contexto específico do caso e explicadas em relação a ele. A investigação qualitativa considera que existem no campo pontos de vista e práticas diferentes, devidas a diferentes perspetivas dos sujeitos e dos seus enquadramentos sociais. Reflexão do investigador sobre a investigação Ao contrário da investigação quantitativa, os métodos qualitativos encaram a interação do investigador com o campo e os seus membros como parte explícita da produção do saber, em lugar de a excluírem a todo o custo, como variável interveniente. A subjetividade do investigador e dos sujeitos estudados faz parte do processo de investigação. As reflexões do investigador sobre as suas ações e observações no terreno, as suas impressões, irritações, sentimentos, etc., constituem dados de pleno direito, fazendo parte da interpretação e ficando documentados no diário da investigação e nos protocolos do contexto (veja-se o Capítulo 14). Variedade de abordagens e métodos na investigação qualitativa A investigação qualitativa não se baseia numa conceção teórica e metodológica unitária. A sua prática e as suas análises são caracterizadas por diversas abordagens teóricas e respetivos métodos. As opiniões de cada sujeito são o ponto de partida; uma segunda linha de investigação estuda a construção e desenvolvimento das interações, enquanto a terceira procura reconstituir as estruturas do espaço social e o significado latente das práticas (para mais pormenores, veja-se o próximo capítulo. Esta variedade de perspetivas resulta de diferentes linhas de evolução na historia da investigação qualitativa, as quais se desenvolveram parcialmente em paralelo, parcialmente de forma sequencial. 1.4 - HISTÓRIA DA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA Nesta obra apenas poderemos delinear um breve e rápido panorama da história da investigação qualitativa, embora os métodos qualitativos tenham larga tradição na Psicologia e nas Ciências Sociais. Na Psicologia, Wilhelm Wundt (1900-1920) usou métodos de descrição e compreensão (verstehen) na sua Psicologia Popular, em simultâneo com métodos experimentais na Psicologia Geral. Mais ou menos na mesma altura, irrompeu na Sociologia alemã a polemica entre uma conceção de tendência monográfica na ciência, orientada para a inferência e os estudos de caso, e uma perspetiva empírica e estatística (Bonss 1982, p.106). Durante muito tempo, até aos anos 40, os métodos biográficos e os estudos de caso e os métodos descritivos constituíram a espinha dorsal da Sociologia americana, um facto demonstrado pela importância do estudo de Thomas Zaniecky. O Camponês Polaco na Europa e na América(1918-20) e mais genericamente pela influência da Escola de Sociologia de Chicago. No entanto, à medida que ambas as ciências se firmavam, as abordagens “duras”, experimentais, padronizadas e quantificadas, foram-se afirmando face às estratégias “maleáveis”, compreensivas, abertas e qualitativo-descritivas. Foi preciso esperar pelos anos 60 para a crítica da investigação social padronizada e quantitativa se tornar de novo saliente na Sociologia americana (Cicourel 1964; Glaser e Strauss 1967). Esta crítica chegou nos anos 70 ao debate científico alemão, e acabou por conduzir ao renascimento da investigação qualitativa nas Ciências Sociais e também, com algum atraso, na Psicologia (Jüttermann 1985). Os desenvolvimentos e debates nos EUA e na Alemanha não só aconteceram em épocas distintas, como são pautados por diferentes fases. Desenvolvimentos no espaço da língua alemã Na Alemanha, foi Jürgen Habermas (1967) o primeiro a reconhecer que “se estava a desenvolver na Sociologia americana uma tradição e um debate diferentes” em termos de pesquisa, associado a nomes como Goffman, Garfinkel e Cicourel. Após a tradução da Metodologia Critica de Cicourel (1964), varias foram as coletâneas que incluíram o contributo dos debates americanos (Arbeitsgruppe Bielefelder Soziologen 1973; Bühl 1972; Gerds 1979; Hopf e Weingarten 1979; Steinert 1973; Weingarten et al. 1976). Elas disponibilizaram para o debate em língua alemã textos fundamentais da Etnometodologia e do Interacionismo Simbólico. No mesmo período, o modelo do processo de pesquisa criado por Glaser e Strauss (1967) despertou considerável atenção (por exemplo em Hoffmann-Riem 1980; Hopf e Weingarten 1979; Kleining 1982). O debate é motivado pelo desejo de tratar o objeto da investigação de uma forma mais ajustada do que a exequível na investigação quantitativa, como demonstra a defesa do “princípio de abertura” por Hoffmann-Riem. Kleining (1982, p.233) arguiu que é imprescindível considerar a compreensão do objeto uma questão previa ate ao fim da investigação, porque só no final desta o objeto se manifesta nas suas verdadeiras cores. De igual modo, o debate acerca da “Sociologia naturalista” (Schatzmann e Strauss 1973) e dos seus métodos é orientado por uma hipótese similar, inicialmente implícita, mas tornada explicita mais tarde: praticar o princípio da abertura e as regras que Kleining propõe (por exemplo, adiar qualquer formulação teórica do objeto da investigação) poupa ao investigador o erro de criar um objeto de estudo resultante apenas dos métodos utilizados para o estudar. Pelo contrário, torna-se possível captar, em primeira mão, a vida quotidiana, e voltar a fazê-lo, tal qual ela se manifesta em cada caso (Grathof 1978, citado em Hoffmann-Riem 1980, p. 362, que termina o seu artigo com esta citação). No final dos anos 70, iniciou-se na Alemanha um debate amplo e mais original, menos confinado a traduções de textos americanos: incidiu sobre a entrevista e suas aplicações (Hopf 1978; Kohli 1978) a sua interpretação (Mühlefeld et al. 1981) e questões metodológicas (Kleining 1982), e estimulou uma extensa investigação (veja-se Flick et al. 1985; 2002, para uma revisão). A questão típica deste período foi formulada por Küchler (1980): deverá “esta tendência ser encarada como simples moda ou como um novo começo?” No início dos anos 80, surgiram e foram amplamente discutidos dois métodos originais que se revelaram cruciais no impulsionar deste desenvolvimento: a entrevista narrativa de Schütze (1977; veja-se também Riemann e Schütze 1987) e a hermenêutica objetiva de Oevermann et al. (1979). Os dois métodos já não eram uma importação de realizações americanas, como era o caso da observação participante ou da entrevista orientada por guião ou da entrevista focalizada (vejase Hopf 1978); e ambos estimularam uma extensa prática de investigação (principalmente na pesquisa biográfica: para uma revisão veja-se Bertaux 1981, Kohli e Robert 1984; Krüger e Marotzki 1994, para as entrevistas). A influência destas metodologias sobre a discussão global dos métodos qualitativos é pelo menos tão importante como os resultados que permitiram obter. Em meados dos anos 80, as questões da validade e da generalização dos resultados dos métodos qualitativos atraíram ampla atenção (veja-se por exemplo Flick, 1987; Gerhardt 1985; Legewie 1987), discutindo-se ao mesmo tempo as questões a elas associadas, como a apresentação e a transparência dos resultados. O volume e principalmente a natureza não estruturada dos dados exigiram também na investigação qualitativa a utilização do computador (Fielding e Lee, 1981; Kelle 1985, 2002; Richards e Richards 1998; Weitzman e Miles, 1995). Finalmente, publicaram-se os primeiros manuais ou introduções resultantes dos debates realizados no espaço linguístico alemão (por exemplo, Bohnsack 1999; Lamneck, 1988, 1989; Spöhring, 1989). O debate nos Estados Unidos da América Denzin e Lincoln (2002b, pp. 12-18) enumeram fases diferentes das apresentadas acima para o espaço de língua alemã. Definem “sete momentos na investigação qualitativa”. O período tradicional estende-se desde o começo do século vinte até à Segunda Guerra Mundial. Está relacionado com a investigação de Malinowski (1916), na Etnografia, e com a Escola de Chicago, na Sociologia. Durante este período, a investigação qualitativa estava interessada no outro, no estranho, no estrangeiro, e na sua descrição e interpretação mais ou menos objetivas. As culturas estrangeiras eram o objetivo da Etnografia; o da Sociologia eram os situados nas franjas marginais, os excluídos da própria sociedade. A fase modernista dura até aos anos 70, sendo marcada pela tentativa de formalização da investigação qualitativa. Foram-se publicando nos Estados Unidos cada vez mais manuais com este objetivo, e esta atitude na investigação ainda hoje perdura na obra de Glaser e Strauss (1967), Strauss (1987) e Strauss e Corbin (1990), assim como em Miles e Huberman (1994). Os acontecimentos ocorridos até meados dos anos 80 são caracterizados pela Confusão dos géneros (Geertz 1983). Coexistem lado a lado vários modelos teóricos e explicações dos objetos e métodos que os investigadores podem escolher, contrapor uns aos outros ou combinar: o interacionismo simbólico, a etnometodologia, a fenomenologia, a semiótica, ou o feminismo são alguns destes “paradigmas alternativos” (veja-se também Guba 1990; Jacob 1987). A meio da década de 80, a crise da representação, debatida até então na inteligência artificial (Winograd e Flores, 1986) e na etnografia (Clifford e Marcus 1986) tem um impacto global sobre a investigação qualitativa, transformando o processo de apresentação do conhecimento e dos resultados numa componente substancial do processo de investigação. E este processo atrai per se mais atenção. A investigação qualitativa torna-se um processo contínuo de construção de versões da realidade. A versão apresentada por um sujeito numa entrevista pode não corresponder à versão dada a outro investigador numa outra questão da investigação. O investigador que interpreta esta entrevista e a apresenta como parte dos seus resultados produz uma nova versão do conjunto. Diferentes leitores do livro, artigo ou relatório, fazem interpretações diferentes da versão do investigador; e isso conduz a emergência de novas versões do acontecimento. Desempenham nisto um papel importante os interesses particulares trazidos para a leitura deste caso. Neste contexto, a avaliação da investigação e dos seus resultados, tornase um tema central nas interrogações metodológicas: está ligada ao problema de saber se os critérios tradicionais continuam válidos ou se é necessário procurar critérios alternativos na investigação qualitativa. A situação atual é descrita por Denzin e Lincoln como quinto momento: as narrativas substituíram as teorias ou então são as teorias que são lidas como narrativas. Mas agora ouvimos falar do fim das grandes narrativas –como acontece no pós-modernismo em geral: a tónica desloca-se para as narrativas e teorias que se ajustam às situações e problemas específicos, históricos e localmente delimitados. O que caracteriza a situação atual - sexto momento – é a escrita pós-experimental que liga as questões da investigação qualitativa às políticas democráticas; e o sétimo momento é o futuro da investigação qualitativa. Comparando as duas linhas de desenvolvimento (Quadro 1.1), encontra-se na Alemanha uma crescente consolidação metodológica, complementada pela concentração nas questões de procedimentos, numa crescente prática de investigação. Nos Estados Unidos, por outro lado, os desenvolvimentos recentes são caracterizados pela tendência a questionar de novo ou mais a fundo as aparentes certezas oferecidas pelos diversos métodos: são vincados o papel da apresentação no processo de pesquisa, a crise da representação, a relatividade do material apresentado; e isso secundarizou nitidamente as tentativas de formalizar e canonizar os métodos. A aplicação “correta” dos procedimentos de entrevista ou da interpretação tem menos peso que as “práticas e políticas de interpretação” (Denzin 2000). Desta forma, a investigação qualitativa transforma-se – ou vincula-se ainda mais fortemente – numa atitude específica, baseada na abertura e na reflexão do investigador. 1.5 - A APRESENTAÇÃO PROCESSUAL, UMA LINHA ORIENTADORA NO CAMPO DOS MÉTODOS QUALITATIVOS Propósitos da apresentação nesta obra No período histórico delineado, apareceram variados métodos, que se caracterizam por diferentes metas e pontos de partida. Diferem entre si no entendimento do objeto de estudo, e cada um deles dá o seu contributo particular para o debate global sobre a investigação qualitativa e o seu desenvolvimento futuro. Em lugar de se discutirem isoladamente os métodos qualitativos, parece melhor debatê-los no quadro do processo de investigação, assente em três bases: a experiência resultante da sua aplicação a estudos empíricos; a experiencia do seu ensino a estudantes; a experiência do treino de investigadores nos projetos em curso. Esta obra pretende fazer essa apresentação processual. Primeiro dá uma visão de conjunto, para fundamentar a seleção de métodos específicos de coleta e interpretação dos dados. Em segundo lugar, esta visão de conjunto permite verificar em que medida um determinado método se ajusta às outras componentes do processo de investigação: em que medida o método de interpretação escolhido (Capítulo 17) se ajusta ao método de coleta de dados (Capítulos 11 e 13) e ao processo de pesquisa planeado (Capítulo 4) ou à estratégia seguida na amostragem (Capítulo 7). Para aprofundar estas considerações e para a aplicação dos vários métodos, é necessário consultar os textos originais; por isso, no final de cada capítulo apresentam-se sugestões de leitura e referências das obras mais importantes. O procedimento seguido na apresentação O ponto de partida da apresentação, nesta obra, é a ideia de que, antes de mais, a investigação qualitativa trabalha sobre textos. Os métodos de coleta da informação – entrevistas ou observações – produzem dados que são transformados em textos, por meio da sua transcrição e registo. Os métodos de interpretação têm estes textos como ponto de partida. Vias diferentes aproximam-nos ou afastam-nos dos textos situados no núcleo da investigação. O processo de investigação qualitativa, pode ser muito sumariamente representado como um caminhar da teoria para o texto e deste de novo para a teoria. A intersecção dos dois caminhos traduz-se na coleta de dados verbais ou visuais e na sua interpretação, no âmbito de um determinado plano de pesquisa. No caminho da teoria para o texto, há uma posição teórica implícita em cada método que se aplica. Podem distinguir-se diversas posições teóricas que tradicionalmente, mas também mais recentemente, determinaram o campo da investigação qualitativa; mas todas apresentam alguns traços comuns (Capítulo 2). Um deles afirma que, além de utilizar textos como material empírico, a investigação qualitativa ocupa-se das construções da realidade e das suas próprias, mas particularmente aquelas com que se depara no terreno ou nos sujeitos estudados. O Capítulo 3 ilustra com mais pormenor estas construções do texto e da realidade. Antes de chegar pela primeira vez ao material empírico, uma certa forma de entender o processo de investigação – como linear ou interligado (Capítulo 4) – é transformado em plano de pesquisa. É igualmente formulada a questão da investigação (Capítulo 5) e procura-se encontrar uma resposta para o problema do acesso ao terreno e aos sujeitos a incluir no estudo (Capítulo 6). É utilizada uma estratégia específica de amostragem de casos ou de grupos (Capítulo 7). A investigação qualitativa trata fundamentalmente de dois tipos de dados: verbais, coligidos em entrevistas semiestruturadas (Capítulo 8) ou narrativas (Capítulo 9). Por vezes utilizam-se grupos em vez de indivíduos (debates e entrevistas de grupo, grupos focalizados e narrativas conjuntas: Capítulo 10). No Capítulo 11, comparam-se as alternativas metodológicas de coleta de dados verbais, e são apresentados critérios para a escolha segura de um método determinado. Como segundo grande conjunto, os dados visuais resultam da aplicação de vários métodos de observação, desde a observação participante até à etnografia e à análise de fotografias e filmes (Capítulo 12). Estes dados são de novo comparados, com base nos critérios utilizados para a escolha de um método específico e para avaliação dessa escolha (Capítulo 13). No passo seguinte, transformam-se os dados verbais e visuais em texto, pelo seu registo e transcrição. A investigação inicia então a segunda parte da jornada do texto à teoria. Registar os dados não é só fazer o seu registo neutral. É um passo essencial na construção da realidade (Capítulo 14). A interpretação dos dados é orientada quer para a codificação e categorização (Capítulo 15) quer para a análise das estruturas sequenciais do texto (Capítulo 16). A comparação dos principais métodos utilizados nas duas estratégias de interpretação dos textos fornece uma indicação útil para decidir que método específico utilizar (Capítulo 17). O enraizamento da investigação qualitativa (Capítulo 18) implica o investigador em questões como o estabelecimento da validade e da adequação do processo de pesquisa e dos dados produzidos. A alternativa é aplicar os critérios tradicionais (viabilidade, fiabilidade), ou elaborar novos critérios. Foi nesse contexto que os modos de redação da investigação qualitativa – suas estratégias e resultados – mereceram grande atenção (Capítulo 19). Na parte final desta obra discutem-se as perspetivas atuais e futuras da investigação qualitativa. Torna-se cada vez mais importante o uso de computadores (Capítulo 20). A forma de conjugar a investigação qualitativa e quantitativa continua a ser um problema à procura de uma solução adequada Capítulo 21). Além dos critérios, a questão da qualidade da investigação qualitativa (Capítulo 22) relaciona-se com a indicação ou utilização de conceitos e estratégias de gestão da qualidade e da avaliação e processos, como novos caminhos para a fundamentação da investigação qualitativa. 1.6 - A INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA NOS FINAIS DA MODERNIDADE No início desta introdução, foram referidas algumas alterações de potenciais objetos da investigação qualitativa, para colocar em evidência a importância desta. Adicionalmente, a maior necessidade de nos orientarmos para a investigação qualitativa pode ser derivada de diagnósticos recentes das ciências, em geral. Na discussão dos “agentes ocultos da modernidade”, Toulmin (1990) explica em pormenor porque razões considera disfuncionais as ciências modernas. E como caminhos para a Filosofia e a ciência em geral e, portanto, para a investigação funcional empírica, enumera quatro tendências: O regresso à oralidade, que se manifesta na tendência a formular teorias e a realizar estudos empíricos, na Filosofia, na Linguística, na Literatura e nas Ciências Sociais, nas narrativas, na linguagem e na comunicação. No regresso ao particular, manifesto na formulação de teorias e na condução de estudos empíricos, orientados “não só para questões universais e abstratas, mas para tratar de problemas concretos, específicos, que não surgem de forma geral, mas ocorrem em tipos específicos de situações” (1990, p. 190). O regresso ao local, que encontra a sua expressão no reencontro com o estudo dos sistemas de conhecimento, práticas e experiências, no contexto das tradições (locais) e modos de viver em que se enraízam, em vez de assumir e procurar testar a sua validade universal. O regresso ao conceito de oportunidade, presente na necessidade de situar os problemas estudados, e as soluções a propor, no seu contexto histórico ou temporal, descrevendo-os nesse contexto e explicando-os com base nele. A investigação qualitativa está vocacionada para a análise de casos concretos, nas suas particularidade de tempo e de espaço, partindo das manifestações e atividades das pessoas nos seus contextos próprios. A investigação qualitativa pode, por isso, definir caminhos para a Psicologia e as Ciências Sociais, dando expressão concreta às tendências enunciadas por Toulmin, transformando-as em programas de pesquisa, mas mantendo a necessária flexibilidade, em relação aos seus objetos e atividades. Como construções à escala humana, os nossos procedimentos intelectuais e sociais só farão o que nos é necessário no futuro, se tivermos o cuidado de evitar uma estabilidade excessiva e os mantivermos preparados para se adaptarem a funções e situações imprevistas ou mesmo imprevisíveis (1990, p.186). Nas páginas que se seguem serão delineadas sugestões e métodos concretos para a utilização deste tipo de programas de pesquisa.