A EVOLUÇÃO DA CONSCIÊNCIA NO SISTEMA DE OUSPENSKY Por JULIANA CORRÊA CURITIBA 2007 1. INTRODUÇÃO Na psicologia transpessoal, fala-se de evolução como algo a ser percorrido pelo homem que busca uma unidade, uma completude e uma resposta às questões que a ciência não pode responder. Mas a compreensão geral quanto ao que enfrenta e descobre o indivíduo durante seu processo de transformação é bastante imprecisa, divergente e vaga. As características das fases de tal processo de autodesenvolvimento, denominado por Jung de processo de individuação, são totalmente nebulosas e pouco exatas na literatura cujo enfoque é a espiritualidade. Assim, na maioria das vezes não existe uma idéia clara sobre que caminho o homem deve percorrer e o que deve fazer de concreto para de fato se transformar. A proliferação de uma diversidade de pseudo-teorias, técnicas e terapias alternativas no mercado de produtos denominados místicos e de auto-ajuda é o reflexo de uma grande desordem e desconhecimento, e da concomitante falta de um sistema mais estruturado no qual o indivíduo possa se apoiar. As centenas de recursos tais como religiões, guias espirituais, livros, vivências, etc. até hoje não produziram um sistema comparativo orientador no sentido do auto-desenvolvimento, e entre os sistemas religiosos ou iniciáticos dificilmente encontra-se um paralelo que aponte uma equivalência de propósitos. Cada sistema ou doutrina encerra-se num vocabulário próprio que geralmente não dá margem a análises sobre sua validade. Assim, um sistema não-religioso que inclua o objetivo das religiões em geral, ao apontar claramente o que deve ser transformado em todo indivíduo poderia esclarecer qual é a chave e a direção da verdadeira transformação pessoal. Quais seriam, portanto, de forma mais explícita e organizada, as etapas percorridas durante essa transformação? O que se deve esperar desse caminho e que outras teorias apontam aspectos semelhantes? Para responder a essas perguntas, será sistematizado e analisado o sistema de P. D. Ouspensky, que apontou com muita exatidão onde deve o homem iniciar seu 1 trabalho de evolução da consciência, e aonde pode esse homem almejar chegar como indivíduo integral. Tal sistematização será pontuada com recortes de outras teorias e sistemas com objetivo de comparação. De acordo com o conceito de consciência de Ouspensky, serão definidas as 7 diferentes categorias de evolução possível ao homem e as características dos homens em cada uma delas, estabelecendo-se alguns paralelos entre as mesmas em outros sistemas. Serão sistematizados os obstáculos que, de acordo com Ouspensky, impedem o homem de desenvolver sua consciência, demonstrando-se a existência dos mesmos também em outras teorias. Descreveremos o método postulado por Ouspensky para a transformação da consciência, citando-se o vocabulário que seria utilizado por Jung para o mesmo processo. A busca pela espiritualidade e auto-transformação é algo cada vez mais presente na psique coletiva, seja ela consciente ou não. Mesmo que realizada de forma consciente, entretanto, tal busca é tão subjetiva ou intuitiva, que devemos nos perguntar se todos os buscadores estariam percorrendo caminhos equivalentes e alcançando objetivos semelhantes. Pois mesmo que os caminhos não sejam idênticos em sua metodologia, há de se crer que os resultados sejam os mesmos, ou seja, que indivíduos diferentes, trilhando caminhos diferentes, alcancem resultados concretos equivalentes. Ouspensky delineou um sistema que organiza os estágios de desenvolvimento que a consciência percorre durante a evolução. Cada etapa possui características próprias e prevê obstáculos específicos, os quais devem ser profundamente conhecidos a fim de que possam ser identificados e trabalhados dentro de cada um. Conhecer o sistema de Ouspensky significa, dessa forma, reconhecer-se a si próprio em determinado estágio de desenvolvimento e identificar o que efetivamente deve ser feito para avançar em direção ao próximo estágio. É essencial conhecer as metas a serem atingidas quando se pretende percorrer determinado caminho, e o sistema de Ouspensky é uma ferramenta bastante elucidativa e detalhada, que pode ser de grande auxílio àqueles efetivamente envolvidos no processo de autotransformação. 2 A escolha deste tema tem necessariamente uma relação com cada indivíduo na medida em que ele queira situar-se no que diz respeito a quem é, e à sua própria evolução espiritual. Este questionamento – saber quem somos nós - é simultaneamente o mais existencial e subjetivo de qualquer ser em evolução. Os tópicos abordados proporcionam, portanto, não apenas o conhecimento de quem somos e de onde estamos na escala de evolução, como também o de quem podemos vir a ser. As principais fontes de pesquisa a serem consultadas serão os dois livros de Ouspensky “Psicologia da Evolução Possível ao Homem” e “O Quarto Caminho”, através dos quais será feita a investigação do sistema do autor. Alguns livros de outros autores também serão utilizados para possibilitar as comparações entre o sistema de Ouspensky e demais doutrinas, religiões, teorias ou sistemas. 2. A CLASSIFICAÇÃO DOS HOMENS Embora P. D. Ouspensky tenha sido o principal divulgador do sistema denominado “Quarto Caminho”, este foi originalmente desenvolvido por G. I. Gurdjieff no início do século passado. Devido ao fato de as fontes de pesquisa terem Ouspensky como autor, entretanto, o sistema será associado a ele neste trabalho. Para o sistema de Ouspensky, o homem pode ser dividido em 7 categorias, e em cada uma delas sua consciência terá características específicas, as quais foram devidamente descritas pelo autor. 2.1 OS HOMENS Nº 1, 2 E 3 Uma das principais características dos homens nº 1, 2 e 3 é o fato de terem “eus” divididos que não se conhecem entre si, ou seja, são homens que não possuem uma unidade e sua consciência é fragmentada, e nesse sentido, não têm uma vontade propriamente dita, pois essa é apenas a resultante de desejos contraditórios. Além disso, uma das principais características das pessoas nessa etapa é o sono. Os homens nº 1, 2 e 3 dormem, pois a consciência de que fala o autor não é a da vigília, na qual as atividades são desenvolvidas mecanicamente, mas a de um auto- 3 domínio e conhecimento que quase ninguém poderia afirmar ter. A prova disso é a impossibilidade geral de se manter consciente por mais de um minuto. Um homem nessas categorias que diga a si mesmo, por exemplo, “eu sou X e estou aqui nesse momento”, poderá fazê-lo por muito pouco tempo, podendo estar consciente de uma única coisa (ele mesmo) por no máximo 2 minutos, e este é o limite de sua consciência. A ilusão de que se tem consciência deve-se à memória e aos pensamentos, que são apenas processos mecânicos de que se dispõe. Quando uma pessoa vai a um lugar familiar, por exemplo, pode posteriormente considerar que esteve consciente naquele momento, porque age, pensa, observa, e sabe que tais ações aconteceram. Mas dificilmente terá estado consciente de si mesma e o fato de não lembrar de todos os detalhes é uma prova disso, pois as pessoas só lembram dos momentos em que estiveram conscientes. A consciência de si geralmente ocorre apenas nos momentos significativos da vida do indivíduo, quando ele esteve realmente presente, como por exemplo, na ocasião do nascimento de um filho, uma cerimônia importante, um evento incomum, um acidente, etc. No entanto, a consciência de si nesses momentos existe devido a fatores externos, e não a uma iniciativa interior do homem. Dos quatro estados de consciência possíveis ao homem, que são o sono, o estado de vigília, a consciência de si e a consciência objetiva, os homens nº 1, 2 e 3 na maior parte do tempo só utilizam os dois primeiros, que por sinal são muito semelhantes. O homem crê estar no terceiro estado, de consciência de si, mas na verdade pode estar nesse estado apenas por alguns momentos: Na vida comum o homem nada sabe da “consciência objetiva” e não pode ter nenhuma experiência dessa ordem. O homem se atribui o terceiro estado de consciência, ou “consciência de si”, e crê possuí-lo, embora, na realidade, só seja consciente de si mesmo por lampejos, aliás muito raros; e, mesmo nesses momentos, é pouco provável que reconheça esse estado, dado que ignora o que implicaria o fato de realmente possuí-lo. (OUSPENSKY: 2000, p. 15) Conforme mencionado anteriormente, os momentos em que os homens desta categoria estão conscientes de si, são geralmente aqueles que envolvem uma situação de perigo, estados de intensa emoção ou situações novas e inesperadas. Mais raramente, ocorre em momentos simples onde nada particular acontece. 4 Voluntariamente, porém, o homem não tem nenhum controle sobre os momentos de consciência, ele é uma máquina controlada por influências externas. E pelo fato de não haver estudado a si próprio, não sabe distinguir entre si e tais influências. De acordo com o sistema de Ouspensky, existem quatro centros funcionando simultaneamente em cada indivíduo: o centro motor, o instintivo, o emocional e o intelectual. O homem nº 1 é o homem físico, e assim seu principal enfoque é nos dois primeiros centros, instintivo e motor. No nº 2 prevalece o centro emocional, e no nº 3 o intelectual. Assim, todas as pessoas nascem em uma das 3 categorias referidas, das 7 existentes, e nelas permanecem durante toda a vida, pois proporcionalmente, apenas pouquíssimas chegam a se tornar homens nº 4. As categorias 1, 2 e 3 não se referem a níveis diferentes de consciência, mas apenas a tipos diferentes de homens que pertencem a essas categorias. Portanto, todos os homens n º 1, 2 e 3 pertencem ao primeiro dos 4 estados de consciência possíveis ao homem. Na vida comum, só encontramos essas três categorias de homens. Cada um de nós, cada um daqueles que conhecemos é um homem nº 1, um homem nº 2 ou um homem nº 3. Há categorias superiores de homens, mas nenhum de nós pertence, desde o nascimento, a essas categorias superiores. (OUSPENSKY: 2000, p. 37) O surgimento do homem nº 4 acontece unicamente quando ele desenvolveu em si características inexistentes nos homens 1, 2 ou 3. Essas características surgem apenas a partir de um intenso trabalho sobre si próprio, que consiste tanto na tentativa de se estar consciente de si, quanto de eliminar os obstáculos à aquisição da consciência (ambos a serem descritos adiante). Enquanto o homem não inicia esse trabalho, encontra-se totalmente à mercê de influências das quais nem sequer pode se dar conta. Essas influências externas, citadas pelo autor, provam que o homem é uma máquina, e não tem qualquer auto-domínio. Elas também foram verificadas por Jung e muitos outros pensadores da psicologia, principalmente aqueles que reconheceram a existência do inconsciente. O homem da massa é um joguete das forças inconscientes que o dominam sem ele saber. Para Jung, o que o homem 5 pode controlar conscientemente é tão somente uma ínfima parte de si mesmo, sendo a liberdade que acredita ter apenas ilusão: O “livre-arbítrio” constitui um sério problema, não somente do ponto de vista filosófico, como também do ponto de vista prático, pois raramente encontramos pessoas que não sejam ampla ou mesmo prevalentemente dominadas por suas inclinações, seus hábitos, impulsos, preconceitos, ressentimentos e toda espécie de complexos. (JUNG: 1983, p. 85) A integração dos “eus” múltiplos e contraditórios também é a meta do processo de individuação tal como descrito por Jung. No sistema de Ouspensky, isso ocorrerá totalmente apenas no homem nº 5. Sobre essa integração, ou o processo de tornarse homem, Jung escreveu: “Trata-se de uma reflexão sobre si mesmo, da concentração daquilo que se acha disperso e cujas partes nunca foram colocadas adequadamente numa relação de reciprocidade...” (JUNG: 1983, p. 267) A cisão da personalidade – um dado clássico da maioria dos sistemas de psicologia - é uma das principais características do homem comum. Para a psicologia, os conflitos se formaram devido ao processo cultural pelo qual passou o homem: para sua “domesticação”, seus instintos tiveram de ser progressivamente reprimidos. É claro que isso não ocorreu de forma harmônica, e as conseqüências dessa tentativa frustrada de aculturação são diariamente observadas nas notícias que revelam a tragédia e barbárie humanas. Dessa cisão inicial desenvolve-se uma série de personalidades múltiplas dissociadas, cada qual com sua memória e características individuais. Embora Jung veja o processo de integração dos opostos como um fenômeno relativamente raro, afirma ser esse o objetivo da psicologia: A Psicologia culmina necessariamente no processo de desenvolvimento que é peculiar à psique e consiste na integração dos conteúdos capazes de se tornarem conscientes. Isto significa que o ser humano psíquico se torna um todo, e este fato traz conseqüências notáveis para a consciência do eu... (JUNG: 1984, p. 228) Vemos, assim, que tanto o estado inicialmente desorganizado do homem quanto seu objetivo de organização – com tudo o que isso implica - é um aspecto comum entre o sistema de Ouspensky e a psicologia de Jung. Ambos os autores se baseiam 6 nesse mesmo princípio que permeia o que comumente se denomina Caminho espiritual, na psicologia transpessoal. 2.2 O HOMEM Nº 4 Nessa categoria, o homem difere dos demais pelo conhecimento que já adquiriu a respeito de si mesmo, pela compreensão da situação em que se encontra e pelo fato de já haver adquirido um centro de gravidade permanente. Significa isso que, a idéia de adquirir unidade ou de desenvolvimento, tornou-se a mais importante em sua vida. Para falar mais do centro de gravidade ou magnético adquirido pelo homem nº 4, deve-se primeiramente compreender o que o autor diz sobre as influências A, B e C. As influências A são os interesses da vida, tais como posses, carreira, reconhecimento, desejos, entretenimento, etc. A maioria das pessoas vive sob controle direto dessas influências, que são puramente mecânicas e inconscientes. As influências B, embora conscientes na origem - pois foram criadas pelas escolas com o propósito de servir à evolução - podem tanto ajudar o homem como se tornar novas influências A. Trata-se do interesse pela religião, filosofia, ciência e artes em geral. Uma das diferenças entre as influências A e B, pode ser a de que aquela é sempre egoísta, no sentido em que espera determinado retorno, e a última é geralmente não-egoísta. Assim, se um homem acumular em si o suficiente de influências B, isso será um primeiro passo para formar seu centro magnético, que tornará possível o reconhecimento de uma escola, quando pela primeira vez entrar em contato com alguma, que representará a influência C em sua vida. As escolas, às quais se refere o autor, não são aquelas em que se obtém o conhecimento comum. Trata-se de organizações a serviço do homem para que ele se torne diferente. Segundo Ouspensky, ninguém pode trabalhar sozinho, sem uma escola, e mesmo um grupo de pessoas não chegará a parte alguma, pois elas não saberiam aonde ir nem o que fazer: ... para compreender por que as escolas são necessárias devemos compreender que o conhecimento que vem de homens de mente superior só pode ser transmitido a um número muito limitado de pessoas simultaneamente e que é necessária a 7 observância de toda uma série de condições definidas, sem as quais o conhecimento não pode ser transmitido corretamente. (OUSPENSKY: 1957 p. 95) A influência C, portanto, é uma influência de escola, que também pode ser despertada através do encontro com indivíduos em contato com essa mesma influência. As influências C diferem das demais pelo fato de serem conscientes, ao invés de acidentais ou inconscientes como as influências A. As influências B, embora conscientes na origem, são mecânicas ou acidentais em sua atuação. Assim, o reconhecimento das influências C possui requisitos sem os quais estas não existirão: “Se não tiver absorvido primeiramente bastante influência B e, por isso, não tiver um centro magnético, ou, se esse centro magnético for equivocado ou fraco demais, um homem não reconhecerá a influência C.” (OUSPENSKY: 1957, p. 90). Assim, o homem nº 4 é necessariamente fruto de uma escola. As escolas, por sua vez, não são necessárias à maioria das pessoas, mas somente àquelas que se deram conta de que o conhecimento comum não é suficiente, e perceberam que sozinhas, mesmo sendo disciplinadas e tenazes, não puderam resolver os problemas que as rodeiam e descobrir o caminho certo. Podemos estabelecer um paralelo entre as influências A, B e C e a hierarquia das necessidades, de Maslow (1970). Segundo ele, é preciso trabalhar as necessidade fisiológicas, de segurança, sociais e de auto-estima (influências A) antes de se investir na auto-realização (influências C). A teoria de Maslow não possui, entretanto, um correspondente às influências B, mas percebe-se novamente que a necessidade de se transcender as influências A – as ilusões da matéria, como diriam os orientais - é um pré-requisito à evolução da consciência. O homem nº 4 já possui um centro magnético permanente formado, começa a desenvolver seu conhecimento e capacidade de observação, trabalha conscientemente em seu próprio desenvolvimento e começa a ter alguma escolha ou controle sobre as leis do acidente. Nesse grau de consciência, ainda não está totalmente desperto, mas no que Ouspensky denomina de “sono desperto”, visto que apenas começou a desenvolver seu potencial humano. O ato de se ter uma atitude crítica para com as próprias impressões, pensamentos mais bem 8 coordenados e ações mais disciplinadas, também é um indicativo desse estado de consciência. Tornar-se homem nº 4 significa, por assim dizer, tomar nas próprias mãos a responsabilidade do processo de individuação, que do contrário seria lento e sujeito a cair no esquecimento das tribulações diárias. Algumas iniciações religiosas possuem o mesmo propósito ao colocar o discípulo em contato com símbolos que o fazem iniciar a jornada. A análise também ocorre de forma a impulsionar o caminho da evolução: O processo de transformação do inconsciente que se opera durante a análise é o análogo natural das iniciações religiosas levadas a efeito de forma artificial mas que, em princípio, se diferenciam do processo natural, por anteciparem a evolução natural e por substituírem a produção dos símbolos por símbolos escolhidos de propósito e fixados por tradição, como acontece, por exemplo, nos Exercícios de Inácio de Loyola ou nas meditações da ioga budista ou tântrica. (JUNG: 1983, p. 528) Vemos assim que os diversos sistemas, cada qual com sua simbologia própria, induz o homem ao mesmo processo de auto-transformação, cujo objetivo principal será sempre levá-lo à unidade. Podemos considerar as diversas linhas budistas e os diversos tipos de ioga, como diferentes tipos de escola, assim como qualquer doutrina ou ordem que incentive seus iniciados ou praticantes a uma conduta condizente com o que é proposto. Seria arriscado, entretanto, considerar as religiões como escolas, da maneira definidas por Ouspensky, pois não se tem naquelas uma certeza de desenvolvimento. Em algumas religiões, o indivíduo pode facilmente se tornar passivo em relação a toda “graça” recebida, o que é incompatível com a teoria de Ouspensky, em que o esforço consciente é a chave de todo desenvolvimento possível. 2.3 O HOMEM Nº 5 Existe uma grande diferença entre os homens nº 4 e 5, posto que este último já adquiriu a unidade e a consciência de si, ou seja, ele já não é mais dividido e tornouse objetivo em relação a si mesmo. Nesse estado ele pode conhecer todas as verdades a seu próprio respeito. Além disso, possui numerosas funções ausentes no 9 homem comum, e nele já trabalha o centro emocional superior, enquanto os homens abaixo dele funcionam com centros inferiores. Os centros superiores funcionam a uma velocidade superior à dos inferiores, de modo que não podemos compreendê-los apenas com o intelecto. Nos demais homens, os princípios emocional e intelectual encontram-se divididos, enquanto que nos centros superiores essa divisão desaparece. O centro emocional superior já não usa palavras, pois estas são, comparativamente, uma forma muito primitiva de entendimento. O centro intelectual superior é ainda mais rápido, e nem mesmo usa formas alegóricas, mas simbólicas de pensamento. Os homens das categorias 1, 2, 3 e até mesmo 4, também possuem esses centros, mas não a capacidade de usálos: Tudo isso está em nós, mas não podemos usá-lo, porque trabalhamos com uma máquina muito vagarosa. Os centros superiores não chegam a nós; é grande demais o intervalo entre eles e os centros comuns. A diferença de velocidade é tão grande que os centros comuns não ouvem os superiores. Estes têm muitas funções importantes que não conhecemos, porém não podemos utilizá-las como cérebros; são excessivamente rápidas e nós somos por demais sonolentos. Assim, se conseguimos uma ligação com o centro intelectual superior, isso simplesmente deixa um espaço em branco. (OUSPENSKY: 1957, p. 221) Os estudos de Ken Wilber podem confirmar o fato de existirem categorias de pensamento superiores àquelas postuladas por Piaget. Segundo ele, o desenvolvimento não termina no estágio do pensamento operacional formal, o qual Wilber denomina “mente formal reflexiva” (1999). Além desse estágio, existe uma estrutura cognitiva denominada “visão-lógica”, cuja existência foi observada por muitos outros pesquisadores. Trata-se de uma mente cujo modelo de visão panorâmico é capaz de conectar e sintetizar idéias de forma bastante diferenciada. E ainda acima dessa estrutura existem os níveis transpessoais de desenvolvimento: psíquico, causal e sutil, nos quais o indivíduo é capaz de transcender a própria mente. Embora seja difícil equiparar, de maneira exata, tais níveis com o centro intelectual superior descrito por Ouspensky, podemos constatar que, em mais de um sistema, a evolução certamente inclui processos cognitivos superiores àqueles comumente descritos e conhecidos pela mente comum, e mesmo pela psicologia comum. 10 O homem nº 5 é o homem unificado, e na psicologia analítica, a unificação dos conteúdos opostos na consciência e inconsciente é a via régia do processo de individuação. Trata-se do esforço na direção de unificar todas as forças contraditórias dentro de si-mesmo, o qual pode vir finalmente a ser concluído e o resultado é também o homem unificado: A reflexão sobre si mesmo, ou (o que é a mesma coisa) o impulso para a individuação, recolhe o múltiplo e o disperso, erguendo-se até a forma primígena do uno, do homem primordial. Com isso se elimina a existência isolada, isto é, o fechamento do indivíduo em torno do seu eu, amplia-se o círculo da consciência e, com a conscientização dos paradoxos, esgotam-se as fontes de conflitos. (JUNG: 1983, p. 268) Em seu Psicologia do Esotérico, OSHO (1991) também nos fala da unificação que deve ocorrer nos 5 primeiros corpos, em termos de uma cristalização do ego, para que o indivíduo alcance a unidade. No quinto corpo todos os eus conflitantes atingem a paz e o silêncio, pois eles se cristalizam num único eu: “A pessoa está sem qualquer centro até o quinto – fragmentada em diferentes partes. Somente para o quinto corpo há um centro: uma unicidade.” (OSHO: 1991; p. 112) Ao passo que Ouspensky nos adverte quanto à possibilidade de se tornar homem nº 5 sem ser homem nº 4, Osho nos adverte quanto a alcançar o quinto corpo sem haver trabalhado os anteriores: Há pessoas que alcançaram o quinto sem passar pelo quarto. Uma pessoa que tem muitas riquezas alcançou o quinto; ela cristalizou de uma certa forma. Mas a cristalização está no quinto corpo. Se os quatro corpos inferiores não estão em concordância com ela, então a cristalização torna-se uma doença. (OSHO: 1991; p. 115) Ainda outro indicativo de que os eus fragmentados devem dar lugar ao Eu Superior e unificado está no “Segredo da Flor de Ouro” (1996), um livro esotérico Chinês que foi extensivamente analisado por Jung. Nele é descrita a oposição entre o senhor celeste (equivalente ao Eu Superior) e o coração, que num estado indiferenciado inicial, usurpa seu poder. Pelo método proposto nos ensinamentos do livro, um dos objetivos finais é também a submissão dos eus fragmentados ao Eu Superior: “Quando a soberania está centrada e em ordem, todos os heróis subversivos se 11 apresentam com as lanças de ponta para baixo, a fim de receber ordens” (WILHELM: 1996, p. 101). 2.4 OS HOMENS Nº 6 E 7 Há muito pouco a ser falado sobre os homens nº 6 e 7. Entretanto, uma vez que no sistema descrito por Osho há 7 corpos e uma equivalência do homem nº 5 com a cristalização do quinto corpo, podemos pensar numa semelhança entre o homem nº 6 e o alcance do sexto corpo. Para atingi-lo, é preciso uma dissolução ou abandono daquele ego cristalizado e unificado do quinto corpo. Toda a espécie de divisão desaparece, até mesmo a divisão do eu e do não-eu: “O sexto é o domínio do perfume, perfume cósmico. Nenhuma flor, nenhum centro. Você pode dizer que tudo tornou-se um centro, o que agora não há centro. Apenas um sentimento difuso está ali”. (OSHO: 1991; p. 113). Para Ouspensky, o homem nº 6 já funciona com o centro intelectual superior, e isso lhe confere um número maior de faculdades e poderes, muito além do entendimento do homem comum. Sobre o homem nº 7, Ouspensky relata o seguinte: O homem nº 7 é um homem que alcançou tudo o que um homem pode alcançar. Tem um eu permanente e uma vontade livre. Pode controlar, em si mesmo, todos os estados de consciência e doravante não poderá perder absolutamente nada do que adquiriu. (OUSPENSKY: 2000, p. 38) Portanto, com exceção do homem nº 7, os homens podem perder tudo o que adquiriram, caso não prossigam no caminho da ascensão, isto é, podem regredir e voltar a se tornar homens nº 1, 2 ou 3. Embora Ouspensky nada exponha a respeito da dissolução do ego, ou do eu, isso é um acontecimento comumente descrito por outros pesquisadores da consciência. Ao descrever as patologias transpessoais, Wilber alerta quanto às dificuldades enfrentadas nesse estágio. Quando o ego já se encontra cristalizado, deve enfrentar o que ele descreve como “Integração-Identificação”, que significa deixar o ego ou eu (aqui denominado self) ao identificar-se com o Ser, a Forma Divina, ou qualquer representação desse arquétipo. Porém, isso pode não ocorrer de forma satisfatória: “... identificar-se com e como Presença ou Percepção Arquetípica exige a morte do 12 self mental-psíquico. Em vez de sofrer essa humilhação, o self se contrai em seu próprio ser separado, fraturando, assim, a identidade arquetípica anterior e superior.” (WILBER: 1999; p. 84). A morte do ego ou do eu, é para Osho o equivalente a deixar o sexto corpo, e ocorre se o discípulo não se identificar com a cristalização do ego: “Acontece instantaneamente. Só uma coisa deve ser lembrada: você não deve se apegar ao sexto. O apego o impedirá de se mover para o sétimo.” (OSHO: 1991; p. 120). 3. OBSTÁCULOS DO HOMEM COMUM À AQUISIÇÃO DA CONSCIÊNCIA Para o desenvolvimento da consciência, o sistema de Ouspensky prevê a eliminação de diversas características na personalidade do homem, sem o que torna-se impossível evoluir. O método para se conseguir a transformação será tratado adiante, pois primeiramente serão descritos os homens nº 1, 2 e 3, naqueles aspectos considerados como obstáculos à transformação, já que o trabalho de resolução de tais obstáculos representa não só um requisito mas uma grande parte dessa transformação. 3.1 A MENTIRA E A IMAGINAÇÃO Conforme esclarecido anteriormente, no homem não existe um eu permanente, ou seja, o homem se constitui de sentimentos, sensações e pensamentos contraditórios, embora possa haver grupos de eus semelhantes entre si. A ilusão de que o homem tem uma unidade é criada pelo corpo físico, pelo fato de se ter um nome, e por hábitos mecânicos recebidos por influência ou educação: “Tendo sempre as mesmas sensações físicas, ouvindo sempre ser chamado pelo mesmo nome e, encontrando em si hábitos e inclinações que sempre conheceu, (o homem) imagina permanecer o mesmo.” (OUSPENSKY: 2000, p. 10) A mentira é um dos aspectos negativos do homem a ser vencido caso ele deseje um dia chegar à unidade. Aqui, não se trata das mentiras contadas conscientemente quando se tenta dissimular, deturpar ou enganar, mas sim a mentira que o indivíduo não sabe que conta diariamente. Como exemplo, embora o homem saiba muito pouco ou nada sobre Deus, a vida futura, o universo, a evolução, a origem da vida, 13 etc. ele fala de tais assuntos com a naturalidade de quem conhece profundamente tais assuntos. Para Ouspensky, fingir conhecer a verdade é mentir. Existe uma determinada semelhança entre os conceitos de mentira para Ouspensky e um aspecto da projeção para Jung. Em tempos mais antigos, o homem projetava nos deuses tudo aquilo que não podia ou não tinha o hábito de ver em si. Os deuses do Olimpo são um exemplo disso. A maior parte da psique, naquela época, se situava fora, em objetos humanos ou não humanos. Porém, segundo Jung, ainda podemos observar esse fenômenos nos primitivos contemporâneos. Mas onde existe esse estado projetivo, não há lugar para a consciência. Com o iluminismo e a ciência, uma boa parte das projeções teve de ser retirada. Contudo essa foi apenas uma primeira parte da retirada das projeções: Embora a ciência moderna tenha refinado suas projeções, a ponto de torná-las quase irreconhecíveis, elas ainda pululam na vida diária, nos jornais, nos livros, nos boatos e nas intrigas banais no seio da sociedade. Onde há uma lacuna, onde falta o verdadeiro saber, ainda hoje o espaço é preenchido com projeções. (JUNG: 1983; p. 82) A mentira ou projeção também abrange aquilo que não se pode ver em si mesmo. Trata-se de uma outra forma de inconsciência. Ao ignorarmos a existência de conteúdos de nossa própria psique, projetamo-los no outro: “Continuamos quase certos de saber o que os outros pensam ou qual é o seu verdadeiro caráter. Estamos convencidos de que certas pessoas possuem todos os defeitos que não encontramos em nós mesmos, ou de que se entregam a todos os vícios que naturalmente nunca seriam os nossos” (JUNG: 1983; p. 82). O homem também pode mentir a respeito de si próprio ao afirmar que se comporta de determinada forma, no momento em que está inconsciente dos demais eus (ou da sombra), que se comportam de maneira oposta ao que a consciência admite. O simples fato de o indivíduo ser fragmentado assegura muitas mentiras, pois ele não pode se dar conta de todos os eus contraditórios ao mesmo tempo. O homem não pode distinguir entre o que é real – relacionado à sua essência, e o que é imaginário – ligado a sua personalidade. Ouspensky critica a psicologia tradicional pelo fato de ela tomar como certo, por exemplo, a personalidade em todos os seus aspectos, pois o que dessa forma a psicologia faz é se aprofundar nas mentiras que o homem 14 sustenta. Na maioria das pessoas, é difícil identificar o que lhe é real – ligado à essência e portanto inato – do que é falso – a personalidade adquirida em sua vida, pois tudo se encontra nele mesclado: A essência é seu bem próprio, o que é dele. A personalidade é o que não é dele. A essência não pode perder-se, não pode ser modificada nem degradada tão rapidamente como a personalidade. A personalidade pode ser modificada quase por completo com uma mudança de circunstâncias; pode perder-se ou deteriorar-se facilmente. (OUSPENSKY: 2000, p. 30) Como pode, portanto, o homem cuja personalidade é dominante, fazer afirmações a seu próprio respeito, se tudo o que venha a dizer será apenas a voz de algum eu fragmentado? A mentira, portanto, também é resultante do fato de o homem comum não possuir um eu permanente (o que será adquirido apenas pelo homem nº 5). Uma outra característica negativa que descreve Ouspensky é a imaginação. Pela imaginação o homem se torna preso a uma predisposição inconsciente de criar ou selecionar realidades fictícias. O homem passa a acreditar naquilo que imagina, por prazer ou medo, e isso pode se tornar algo extremamente destrutivo. Ele também pode simplesmente ter devaneios comuns, que também são classificados como imaginação pelo autor. Mas em todos os casos, não tem controle sobre o que imagina, sendo isso o que diferencia o termo daquilo que se entende por “imaginação” no entendimento comum. Um dos aspectos da imaginação é o de que, por não estar em contato com a essência e não saber quem é, o indivíduo passa a imaginar-se. Ele também pode imaginar estados, possibilidades e poderes inexistentes. O fato é que esquece de que imagina e passa a se comportar como se tudo isso existisse. Percebe-se, assim, uma ligação entre a imaginação, a mentira e a projeção. 3.2 AS EMOÇÕES NEGATIVAS Outro obstáculo inerente ao homem da massa é a expressão das emoções negativas, tais como cólera, suspeita, medo, contrariedade, irritabilidade, aborrecimento, desconfiança, ciúme, compaixão de si mesmo, etc. Embora usualmente aceitas até mesmo como algo natural ou necessário, e freqüentemente 15 tidas como expressões de “sinceridade”, Ouspensky as considera como “...simples sinal de debilidade no homem, sinal de mau caráter e de impotência de guardar para si seus próprios agravos. “ (OUSPENSKY: 2000, p.35) As emoções negativas são difíceis de serem observadas, pois são manifestações mecânicas (ou inconscientes, para a psicologia) e sua aparição tão rápida e familiar é muitas vezes imperceptível. São mais rápidas do que o pensamento, daí ser difícil detectá-las a tempo. É quase impossível notá-las, até o momento que se faz esforços conscientes para resistir sua expressão. É possível detê-las porque não fazem parte da essência do ser, o homem nasce sem elas e por algum motivo as aprende, principalmente na infância. Umas das coisas mais difíceis de perceber, no entanto, é o fato de as emoções negativas, quase sem exceção, serem (inconscientemente) um prazer àqueles que as cultivam, sendo que algumas pessoas tiram delas todos os seus prazeres. Além de serem prejudiciais, uma vez que consomem energia e criam ilusões desagradáveis, as emoções negativas são totalmente inúteis, segundo o autor, pois não nos fazem descobrir coisas novas, podendo até mesmo destruir a saúde física. Ao serem expressas, as emoções negativas também se tornam mais fortes, obtendo cada vez mais controle sobre o indivíduo: Destruí-las é um trabalho muito difícil; mas devemos compreender que, enquanto existirem as emoções negativas, nenhum desenvolvimento será possível, porque o desenvolvimento significa o desenvolvimento de tudo que há no homem. Assim, se estamos tentando criar consciência, devemos, ao mesmo tempo, lutar contra as emoções negativas, porque ou as mantemos ou nos desenvolvemos; não podemos ter as duas coisas.(OUSPENSKY: 1957 p. 79) A perda da energia com a expressão das emoções negativas faz com que não haja energia suficiente para o desenvolvimento da consciência. A energia que se obtém pode ser convertida em vontade. Jung também reconheceu a importância desse aspecto ao estudar a energia psíquica: “A vontade implica uma certa quantidade de energia que fica livremente à disposição da consciência. Deve haver tal quantidade disponível de libido (=energia), do contrário não haveria possibilidade de modificação das funções, pois estas últimas estariam ligadas aos instintos”. (JUNG: 1984; p. 189) 16 Uma das funções da análise junguiana é a investigação dos complexos afetivos, a fim de dissolvê-los. Os complexos afetivos podem se traduzir em emoções negativas, da forma como descritas por Ouspensky. Eles também contribuem para a fragmentação dos múltiplos eus, ou seja, são obstáculos à aquisição de uma consciência unificada, posto que cada um deles é autônomo e exerce sua própria influência na personalidade. Segundo Jung, são incompatíveis com as disposições habituais da consciência, e comportam-se como um corpo estranho. Assim como para Ouspensky as emoções negativas podem ser vencidas através do esforço da vontade, para Jung os complexos podem ser transformados: “Com algum esforço de vontade, pode-se, em geral, reprimir o complexo, mas é impossível negar sua existência...” (JUNG: 1984, p. 99). A inconsciência (ou mecanicidade) a respeito dos complexos pode lhes fornecer uma liberdade ainda maior. 3.3 A IDENTIFICAÇÃO E A CONSIDERAÇÃO Todas as emoções negativas são provenientes da falsa personalidade, que lhes servem como uma espécie de órgão para expressá-las, desfrutá-las e produzi-las. Pode-se perceber, portanto, que alguns obstáculos são interdependentes, sustentando-se entre si. Um exemplo disso é que manifestações como a mentira, a imaginação e a expressão das emoções negativas exigem a identificação, que também é um grande obstáculo para o desenvolvimento pessoal. A identificação absorve o homem na maior parte das coisas que faz, e no estado identificado ele é incapaz de considerar parcialmente o objeto de sua identificação. “O Homem ‘identifica-se’ com tudo: com o que diz, com o que sabe, com o que crê, com o que deseja, com o que não deseja, com o que o atrai ou com o que o repele.” (OUSPENSKY: 2000, p. 36). A principal identificação do homem, contudo, é com a idéia imaginária que tem de si. Ele diz “assim sou eu”, quando apenas imagina sê-lo. Também identifica-se com as mentiras descritas acima, do contrário ninguém acreditaria nelas. A identificação exige uma espécie de apego pelas coisas e idéias, especialmente quando surge um elemento emocional, sendo que as emoções negativas não podem existir sem identificação. A identificação com as emoções negativas é um dos 17 maiores motivos para estas existirem, e para Jung, tem o mesmo caráter da possessão: ... a inconsciência do complexo ajuda a assimilar inclusive o eu, resultado daí uma modificação momentânea e inconsciente da personalidade, chamada, identificação com o complexo. Na Idade Média, este conceito completamente moderno tinha outro nome: chamava-se possessão. (JUNG: 1984, p. 101) Portanto, o poder das emoções negativas pode ser diminuído através da luta contra a identificação. As emoções negativas mais perigosas não são as mesmas para todas as pessoas, pois são aquelas com as quais o homem está mais identificado. Outro fator que mantém o homem em estado de sono, bastante parecido com a identificação, é a consideração interna. Ocorre quando o homem identifica-se com as pessoas, preocupando-se constantemente com o que as pessoas pensam sobre ele, se o tratam satisfatoriamente, se o admiram, etc. Em algumas pessoas, esse estado pode se tornar uma obsessão que não deixa muito espaço a outras coisas, pois o indivíduo é tomado de muitas preocupações, dúvidas e suspeitas. Para Ouspensky, existe a consideração externa e a consideração interna, sendo que esta é negativa, e aquela deve ser cultivada. A consideração externa envolve um estado de consciência das necessidades das demais pessoas, sem se deixar de notá-las. É uma atitude que envolve ter atenção e pensar antes de agir - pois o importante é que as coisas não devem acontecer mecanicamente, sem pensar sendo também uma luta contra a identificação. Para ter consideração externa, devese sempre compreender o ponto de vista do outro, e agir de acordo com ele. Já a consideração interna “é o sentimento de que os outros não nos prestam suficiente atenção, não nos levam em conta; é sentir-se sempre lesado, mal pago.” (OUSPENSKY: 1957 p. 129). É também o desejo de ser notado, assim como o de não sê-lo. Percebe-se que nos sistemas cuja meta é a evolução há um incentivo para que o indivíduo retire a atenção de si próprio, e concentre-a no outro. Nos processos cognitivos da criança, isso ocorre de forma natural: à medida que ela cresce, decresce o egocentrismo original que permeia todo seu pensamento. Ken Wilber estudou os detalhes dessa (des)construção interna, e provou que ela existe tanto na 18 criança, quanto no adulto, pois existem estágios posteriores àqueles que Piaget pesquisou. Da mesma forma, Wilber também concluiu que, no decorrer de toda a evolução da consciência, existe a tendência imperativa de abandonar-se o narcisismo inicial até as últimas conseqüências, que seria o abandono do ego: “We need only recall that increasing development involves precisely the capacity to transcend one’s isolated and subjective point of view, and thus to find higher and wider perspectives and identities.” 1(WILBER: 1995; p. 256) Podemos perceber que a consideração interna é notadamente um egocentrismo digno de ser abandonado em prol da consideração externa, sendo isso um aspecto importante para a evolução da consciência. 3.4 OS AMORTECEDORES Existe uma espécie de dispositivo nas pessoas que as impedem de enxergar as contradições dentro delas mesmas. Na psicologia tradicional são as chamadas resistências ou defesas, e Ouspensky as denominou amortecedores: Os amortecedores são arranjos especiais, ou, se preferem, excrescências especiais, que nos impedem de perceber a verdade sobre nós mesmos e as outras coisas. Os amortecedores nos dividem numa espécie de compartimentos à prova de pensamento. Podemos ter muitos desejos, intenções, propósitos contraditórios e não percebemos que são contraditórios, porque os amortecedores ficam entre eles e nos impedem de olhar de um compartimento para outro. (OUSPENSKY: 1957 p. 149). Os amortecedores ajudam as pessoas a fingirem a si mesmas, mas elas não têm consciência disso, pois se o tivessem, tornar-se-iam doentes mentais, e disto vem a única vantagem dos amortecedores. Eles contribuem para que o indivíduo se mantenha dormindo, mas não é aconselhável destruí-los antes de se estar preparado. Se fosse possível conhecer tudo a respeito de si próprio, isso seria insuportável. Os amortecedores são dispositivos colocados entre os vagões ferroviários para impedir os entrechoques. Da mesma forma, neste sistema ele isola grupos de “eus” e personalidades a fim de que não entrem em conflito. 1 Precisamos apenas nos recordar de que um crescente desenvolvimento envolve precisamente a capacidade de transcender o ponto de vista isolado e subjetivo, e assim encontrar perspectivas e identidades superiores e mais amplas. 19 A psicanálise possui um termo equivalente, denominado resistência. Segundo Freud (1980) a resistência é uma força psíquica inconsciente que tem a função de eliminar da consciência as idéias dolorosas, ao mesmo tempo que impede seu retorno à memória. As idéias são excluídas da consciência por serem “capazes de despertar os afetos de vergonha, de auto-censura e de dor física e o sentimento de ser prejudicado” (1980). É necessária uma elaboração e análise profunda dessas motivações inconscientes. O método descrito a seguir é a principal ferramenta para se eliminar os amortecedores. 4. O MÉTODO DE DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA DE OUSPENSKY De acordo com o sistema de Ouspensky, ainda que exista uma chance de desenvolvimento para o homem comum isolado, esta é relativamente pequena. Para que a transformação ocorra, ele deve encontrar uma “escola”. Como vimos, para que ele possa reconhecer uma escola, deve estar relativamente livre das influências A, relativas a interesses como saúde, segurança, conforto, fortuna, prazeres, distrações, vaidade, orgulho, reputação, etc., e deve ter cultivado as influências B, aquelas relacionadas à filosofia, arte, ciência, etc., até certo ponto. Se isso acontecer, os resultados das impressões que elas produzirem haverão de se aglomerar e crescer nele, ocupando um espaço cada vez mais importante em sua vida e seu espírito. A partir do momento em que as influências B tiverem adquirido bastante força, o homem desenvolve em si um centro magnético, que canaliza seus interesses em determinada direção e ajuda-o a se manter nela. Este é o primeiro requisito, geralmente não-expresso, de uma escola. Se o homem não possuir o centro magnético, ou se este for muito contaminado pelas influências A, ele não terá interesse pela escola ou a criticará assim que surgirem as primeiras dificuldades no trabalho de escola. Além disso, as influências C, ou seja, os ensinamentos da escola, só podem ser assimilados por indivíduos devidamente preparados. A partir do momento em que o indivíduo integra uma escola, verá que ela possui três linhas de trabalho, que devem ser realizadas simultaneamente. A primeira linha é o estudo de si, e quem trabalha nessa linha faz isso para si mesmo. A segunda é o 20 trabalho com as pessoas pertencentes à escola, mas não apenas com elas como para elas. Isso torna o trabalho particularmente difícil para certas pessoas. Na terceira linha o trabalho é para a escola, e para tal é preciso compreender suas metas e necessidades. O presente trabalho relaciona-se ao que pode ser feito pelo homem na primeira linha de trabalho, seja numa escola ou sozinho, mesmo que suas chances de progresso nesse último caso sejam menores. Assim, descreveremos aquilo que o homem pode fazer efetivamente em relação a si, partindo da hipótese de que nunca tenha participado de um trabalho de escola. Conforme discutido anteriormente, o homem deve tentar eliminar os obstáculos que contribuem para que permaneça em estado fragmentado. As principais ferramentas que pode auxiliá-lo são a observação e a lembrança de si mesmo. Como vimos anteriormente, o homem não consegue estar consciente de si a todo momento. Entretanto, deve tentar praticar essa auto-consciência, que é a observação de si mesmo, sempre que possível. É sua ferramenta mais importante para combater os obstáculos ao desenvolvimento, que são as emoções negativas, a identificação, a consideração, etc. Embora a observação e lembrança de si mesmo pareçam simples num primeiro momento, não se deve subestimar a incapacidade que se tem de fazer isto continuamente. No início, é preciso que se aplique todas as forças mentais, utilizando o pensamento para movimentar-se nessa direção, o que seria mais um estudo de como lembrar-se de si mesmo verdadeiramente. Por exemplo, realizam-se algumas atividades simples pensando... “estou andando, estou comendo, etc.” Quando se realiza determinada atividade, deve-se ter em mente dois vetores. Um deles dirige-se para a atividade, e o outro para si mesmo. Perdê-los de vista é perder a consciência, então deve-se mantê-los durante o maior tempo possível e retomá-los assim que caiam no esquecimento – algo muito freqüente no início. Mais tarde a consciência existirá mesmo sem o pensamento. Ouspensky comenta: “...no começo, temos na verdade que usar essa energia mental, porque é a única controlável que temos” (OUSPENSKY: 1957, p. 43). 21 A lembrança de si mesmo é o principal método inicial do estudo de si mesmo, e em tudo deve estar sendo aplicada no sentido de eliminar os obstáculos tratados anteriormente. Os esforços em direção à lembrança de si nunca se perdem: Algo se acumula e, num dado momento, quando, no estado habitual, deveríamos estar inteiramente identificados e mergulhados nas coisas, descobrimos que podemos nos pôr de parte e exercer controle sobre nós. Nunca sabemos quando isso ocorrerá nem como será. Só devemos fazer o que podemos – observar-nos, estudar e, sobretudo, tentar nos lembrar de nós mesmos; então, num dado momento, veremos os resultados.” (OUSPENSKY: 1957, p.62) Trata-se, portanto, de um método bastante objetivo de trabalho. E os resultados serão sempre proporcionais aos esforços de cada indivíduo. Aplicando-se a lembrança de si, deve-se exercer um controle sobre a identificação com as emoções negativas, por exemplo, para que num determinado prazo seja possível eliminar essas que são a principal forma de se perder energia. Todos os demais obstáculos podem ser combatidos através desse método. Ouspensky também fala que, juntamente com essa ferramenta, deve ser realizado um estudo de si mesmo, que não é senão o chamado auto-conhecimento, tão valorizado pelos demais pesquisadores da consciência. Com a lembrança e o estudo de si mesmo pode-se chegar a formas mais adequadas de eliminar-se os principais obstáculos à aquisição da consciência, que são as emoções negativas, a identificação, a consideração, a mentira, os amortecedores e o sono. Para vencer todos esses obstáculos deve-se inicialmente erguer uma força que os possa contrapor. A observação e lembrança de si depende, principalmente no início, de uma vontade consciente, que Jung define como “soma de energia à disposição da consciência” (JUNG: 1991, p. 451), daí a necessidade de evitar-se o desperdício energético com os obstáculos mencionados anteriormente. Existe inicialmente uma oposição entre a vontade consciente e os obstáculos a serem vencidos. Entretanto, também de acordo com Jung, para libertar-se dessa oposição, a vontade deve fundamentar-se num espaço intermediário, isto é, no Self, que é uma instância além dos eus fragmentados. Com a observação e lembrança de si mesmo levada a cabo, a morada da consciência será o Self, um lugar onde nada é perturbado, um lugar ou 22 estado de ser tão extensivamente relatado pelos sábios e pesquisadores, que já custaria muito duvidar de sua existência: Continue a observar e descobrirá que há um lugar em si onde você está tranqüilo, calmo, e nada o pode perturbar, mas é difícil achar o caminho que leva a ele. Mas, se fizer isso várias vezes, será capaz de se lembrar de alguns dos passos e, por meio deles, poderá chegar lá novamente. Só que não pode fazê-lo após uma única experiência, pois não se lembrará do caminho. Esse lugar tranqüilo não é uma metáfora, é uma coisa muito real.” (OUSPENSKY: 1957; p. 131) Portanto, com a união de todos os opostos, os eus unificados, será possível conhecer não apenas a calmaria de todas as vozes em prol de uma realidade única, como todos os demais mistérios que essa realidade encerra. 5. CONCLUSÃO O movimento de auto-transformação, embora repleto de particularidades nos diferentes indivíduos, possui tanto uma meta quanto um percurso que pode ser delineado e categorizado para um melhor entendimento de todo o processo. Assim, não há como afirmar ser inexistente uma objetividade relativa a esse processo. Embora muitas características não possam ser controladas e dependam inteiramente de processos internos imprevisíveis no homem – como por exemplo, o modo como as influências A, B e C atuam nele – a maioria dessas características é passível de avaliação e do que poderíamos chamar de um “diagnóstico” (por um profissional experiente). Pois através do sistema de Ouspensky, com os devidos critérios, pode-se medir a fase evolutiva em que o homem se encontra, assim como o grau com que os obstáculos ao desenvolvimento atuam sobre ele. As demais teorias e sistemas trazem informações que fundamentam, ampliam e aprofundam as compreensões extraídas de Ouspensky, de modo que é possível ter uma noção ainda mais clara e segura sobre o que constitui a evolução do ser humano. Existe uma grande lacuna na literatura da psicologia transpessoal em relação a trabalhos semelhantes ao de Ouspensky que analisem, incluam e comparem ainda mais os diferentes tipos de sistemas evolutivos. A ampliação do presente trabalho 23 pode preencher essa necessidade teórica e também vir a ser uma ferramenta prática de avaliação e auto-avaliação por indivíduos em condições de empreendê-la. 7. REFERÊNCIAS FREUD, S. Estudos sobre a histeria. Rio de Janeiro: Imago, 1980. JUNG, C.G. A Dinâmica do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1984. ____. Psicologia da Religião Oriental e Ocidental. Petrópolis: Vozes, 1983. ____ Tipos Psicológicos. Petrópolis: Ed. Vozes, 1991. MASLOW, A. H. Motivation and Personality. Nova York: Harper & Row, 1970. OUSPENSKY, P.D. Psicologia da Evolução Possível ao Homem. São Paulo: Pensamento, 2000. ____. O Quarto Caminho. São Paulo: Ed. Pensamento, 1998. WILBER, K. Transformações da Consciência. São Paulo: Cultrix, 1999. ____. Sex, Ecology, Spirituality. Boston e Londres: Shambhala, 1995. WILHELM, R. O Segredo da Flor de Ouro. Petrópolis: Vozes, 1996.