ANAIS DO SIMPÓSIO DE PESQUISA EM MÚSICA 2005 Universidade Federal do Paraná Reitor Carlos Augusto Moreira Júnior Vice-Reitora Maria Tarcisa Silva Bega Diretor do Setor de Ciências Humanas, letras e Artes José Borges Neto Chefe do Departamento de Artes Maurício Dottori Coordenadora do Curso de Música Beatriz Ilari ii UFPR | Departamento de Artes Norton Dudeque, Álvaro Carlini e Rogério Budasz Organizadores Anais do Simpósio de Pesquisa em Música 2005 Editora DeArtes | UFPR Curitiba | 2005 iii Comitê organizador do evento Prof. Dr. Álvaro Carlini (coordenador) Prof. Dr. Norton Dudeque Prof. Dr. Rogério Budasz Realização Departamento de Artes da UFPR Apoio Fundação Araucária UFPR Simpósio de Pesquisa em Música (1.:2005:Curitiba) Simpósio de Pesquisa em Música: Anais/Organização Norton Dudeque, Álvaro Carlini e Rogério Budasz - Curitiba: DeArtes-UFPR, 2005. 290p; - (Anais dos Simpósios de Pesquisa em Música 2005: v1) Realizado em 4 e 5 de novembro de 2005 no Departamento de Artes da UFPR ISBN: 85–98826–05–7 1-Musicologia-Congressos-Brasil.2-Música-Pesquisa.3-Música Popular Brasileira.4Música-Composição.5-Música-Análise. I.Dudeque, Norton, Álvaro Carlini, Rogério Budasz. II.Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná. CDD:780.01 iv |sumário| ix Apresentação x Programação 1 Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC) 9 A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa no estudo das manifestações musicais oriundas da música popular Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo (UNIRIO) 15 Revisitando a Teoria de Síntese Sonora por Modulação de Freqüência Anselmo Guerra de Almeida (UFG) 29 Por que resgatar o fandango? Cintia B. Ferrero, Alberto T. Ikeda, (UNESP) 37 Musicalidade Clínica em Musicoterapia: construções a partir da Teoria da Complexidade Clara Márcia de Freitas Piazzetta & Leomara Craveiro de Sá (UFG) 50 A rabeca do fandango paranaense: a busca de uma origem utilizando o violino como parâmetro Guilherme G. B. Romanelli (UFPR) 60 Alceo Bocchino: Sonatina para piano – uma abordagem analítica-estrutural Josely Maria Machado Bark (UNICAMP) 72 Ouvinte Modelo e Ouvinte Real: uma proposta de aproximação com a teoria do Leitor Modelo Judson Gonçalves de Lima (UFPR) 82 A musicologia histórica: herança e perspectivas Juliana Noronha Dutra (UNESP) 94 Música eletroacústica e um novo escutar musical Maria Cristina Dignart (UFG), Anselmo Guerra de Almeida (UFG) 105 Fatores do desempenho e realização interdisciplinares Maria Bernardete Castelan Póvoas (UDESC) 118 Iamurikuma: Música, Mito e Ritual Maria Ignez Cruz Mello (UDESC) músico-instrumental. Relações v 131 Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia de Pierre Schaeffer Rael Bertarelli Gimenes Toffolo, André Luiz Gonçalves de Oliveira 146 Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 Renato Kutner e Emerson De Biaggi 159 O limiar da Pós-Modernidade na obra de Gilberto Mendes Rita de Cássia Domingues dos Santos (USP) 174 Educação Musical e Pedagogia Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC) 186 Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda segundo o modelo de Luiz Tatit Carlos G. González (UFPR) 197 A musicoterapia como auxílio físico-psicológico a portadores do HIV Cristiano Steenbock (FAP) 210 A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense Lílian Nakao Nakahodo (UFPR) 219 Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC), Maiara Felippe Moraes (UDESC) 231 Congadas da Lapa: as músicas de um folguedo na educação musical Márcio Horning (UFPR) 245 Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva Marcus Vinícius Marvila das Neves (UFES) 257 O desenvolvimento histórico da “música instrumental”, o jazz brasileiro Marina Beraldo Bastos (UDESC); Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC) 268 resumos de pôsteres 268 Desconstruindo o “ursozinho de algodão” de Villa-Lobos Marcos Mesquita (Universidade de Karlsruhe) 268 Cognição musical como enacção e algumas possibilidades de implicações metodológicas em educação musical André Luiz Gonçalves de Oliveira; Sabrina L. Schulz; Patrícia Mertzig (UEM) 268 A organização do discurso musical em Psappha, de Iannis Xenakis Arthur Rinaldi; Edson Zampronha (UNESP) 269 Investigações acerca da música de hoje Caio Manoel Nocko (PUC–PR) 269 A influência positivista na música paranaense Charlene Neotti Gouveia Machado (UFPR) vi 270 A influência da mensagem subliminar na música Cristiano Steenbock (FAP–PR) 270 Música e comunicação Cristine Roberta Piassetta Xavier (Secretaria de Educação da PMC) 271 Algumas informações de interesse para o estudo da música paulista no século XVIII em “Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo” Dalton Martins Soares; Paulo Augusto Castagna (UNESP) 271 Relações dialógicas entre o sacro e o secular Elisabeth Seraphim Prosser (EMBAP–UFPR) 271 Introdução à música microtonal Felipe de Almeida Ribeiro (UFPR) 271 Tecnologias de gravação e fazer musical: algumas reflexões Frederico Alberto Barbosa Macedo (UDESC) 272 Música, linguagem e a evolução da comunicação humana: uma tentativa de testar empiricamente modelos de evolução da comunicação humana com base nas vocalizações de bebês de até 12 meses de idade João Pedro Troncoso Caserta (UFPR) 273 Uma nova visão sobre o aquecimento e desaquecimento vocal Karissa Laiz Nuñez (FAP) 273 O Hip-Hop: suas oficínas e apresentações Kleber Tiago Gregorio (UFPR) 273 Música e nação-cosmos: o legado de uma utopia brasileira Luciana Rodrigues Gifoni; Alberto T. Ikeda (UNESP) 274 Uma concepção de relação entre arte e vida sob a ótica da filosofia de Friedrich Nietzsche Marcel Sluminsky; Fernando Nicknich (UFPR) 274 Representações numéricas de tempo como geradores de timbre: o Calendário Maia como algoritmo musical Marcelo C. Velho Birck; Anselmo G. de Almeida (UFG) 275 A encruzilhada musical: vivendo entre o sagrado e o profano Miguel Locondo de Laet (MozarteumSP) 275 Formação de professores e educação musical; traçando um perfil Mônica Zewe Uriarte; Paulo Chiesa (UFPR) 275 A audição em quatro propostas de educação musical Patrícia Mertzig; André Luiz G. de Oliveira (UEM) vii 276 Significação Musical: sons que vibram enquanto materialidade sonora e na construção de significados e sentidos Patrícia Wazlawick; Glauber Benetti Carvalho (FAP) 277 Um estudo técnico-pianístico do Mikrokosmos de Béla Bartók segundo a abordagem de Cláudio Richerme (1996) Sabrina Laurelee Schulz; André Luiz G. de Oliveira (UEM) 277 Educação musical nas séries iniciais na perspectiva de professores generalistas Sérgio F. de Figueiredo; Vanilda Macedo Godoy (UDESC) 278 Aspectos do idioma pianístico de Heitor Villa-Lobos na peça Choros n. 5 - Alma Brasileira Tarcísio Gomes Filho; Mauricy Matos Martin ( UNICAMP) viii |apresentação| A publicação dos Anais do Simpósio de Pesquisa em Música 2005 (SIMPEMUS2005) é motivo de orgulho para todos aqueles envolvidos direta ou indiretamente na organização deste evento, ocorrido entre 4 e 5 de novembro de 2005, no Departamento de Artes (DeArtes) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Os Anais do SIMPEMUS2005 reúnem 16 artigos completos de docentes e pós-graduandos, 7 artigos completos de alunos de cursos relacionados à área da música de diversas instituições acadêmicas brasileiras: UFPR, EMBAP, FAP-PR, UEM-PR, PUC-PR, UFG, UDESC, UNIRIO, UNICAMP, UNESP, Mozarteum-SP, USP, UFES. Todos os resumos de artigos apresentados para o SIMPEMUS2005 estão publicados nesses anais, totalizando 47 inscrições ao evento. Os assuntos abordados nos trabalhos ora publicados são bastante variados: desde música eletroacústica até estudos sobre o fadango paranaense, passando por análises de obras de Alceo Bocchino, de Cyro Pereira ou as de Gilberto Mendes. São assuntos oriundos de pesquisas relevantes no estudo acadêmico da música brasileira. Agradeço aos meus colegas de UFPR, os professores Norton Dudeque e Rogério Budasz– membros da comissão organizadora do SIMPEMUS2005, aos alunos e ao pessoal da secretaria do DeArtes pela dedicação e empenho na realização do evento. Agradeço também o apoio e o financiamento concedido pela Fundação Araucária para a realização do SIMPEMUS2005. Prof. Dr. Álvaro Carlini Coordenador, Departamento de Artes/UFPR Curitiba, novembro de 2005 ix | programação | Sexta-feira, 4 de novembro de 2005 8h inscrições 9h abertura 9:30h –10:00h Anselmo Guerra de Almeida (UFG) Revisitando a Teoria de Síntese Sonora por Modulação de Freqüência 10:00h–10:30h Maria Bernardete Castelan Póvoas (UDESC) Fatores do desempenho e realização músico-instrumental. Relações interdisciplinares 10:30h–11:00h Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo (UNIRIO) A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa no estudo das manifestações musicais oriundas da música popular 11:00h–11:30h Cintia Bisconsin Ferrero; Alberto Ikeda (UNESP) Por que resgatar o fandango? 11:30h–12:00h Renato Kutner; Emerson de Biaggi (UNICAMP) Cyro Pereira e a Brasiliana n.2 12h - 14h recesso 14:00h–14:30h Josely Maria Machado Bark (UNICAMP) Alceo Bocchino: Sonatina para piano – uma abordagem analíticaestrutural 14:30h–15:00h Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC) Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena 15:00h–15:30h Guilherme Gabriel Ballande Romanelli (UFPR) A rabeca do fandango paranaense: a busca de uma origem utilizando o violino como parâmetro 15:30h–16:00h recesso 16:00h–16:30h Juliana Noronha Dutra; Alberto T. Ikeda (UNESP) A musicologia histórica: herança e perspectivas 16:30h–17:00h Judson Gonçalves de Lima (UFPR) Ouvinte modelo: uma proposta de aproximação com a teoria do leitor modelo 17:00h–19:30h recesso 19:30h–21:00h Palestra com o etnomusicólogo canadense Francis Corpataux x sábado, 5 de novembro de 2005 9:00h–9:20h Marina Beraldo Bastos; Acacio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC) O desenvolvimento histórico da “música instrumental”, o “jazz brasileiro” 9:20h–9:40h Cristiano Steenbock (FAP) A musicoterapia como auxílio físico-psicológico a portadores do HIV 9:40h–10:00h Maiara Felippe Moraes; Acacio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC) Aspectos da Etnomusicologia, Musicologia e Música Popular Brasileira 10:00h–10:20h recesso 10:20h–10:40h Marcus Vinícius Marvila das Neves (UFES) Manifesto 1946: "O Banquete" do Grupo Música Viva 10:40h–11:00h Lilian Nakao Nakahodo (UFPR) A influência do folclore regional nos acervos de música paranaense. 11:00h–11:20h Márcio Horning (UFPR) Congadas da Lapa: As musicas de um folguedo na educação musical 11:20h–11:40h Carlos Gustavo G. González (UFPR) Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda, segundo o modelo de Luiz Tatit 12:00h–14:00h recesso 14:00h–14:30h Maria Cristina Dignart; Anselmo Guerra de Almeida (UFG) Musica eletroacústica e um novo escutar musical 14:30h–15:00h Maria Ignez Cruz Mello (UDESC) Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 15:00h –15:30h Rael Bertarelli Gimenes Toffolo; André Luiz Gonçalves de Oliveira (UEM) Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia de Pierre Schaeffer 15:30h–16:00h recesso 16:00h–16:30h Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC) Educação Musical e Pedagogia 16–30h–17:00h Rita de Cássia Domingues dos Santos (ECA-USP) O limiar da Pós-Modernidade na obra de Gilberto Mendes 17:00h–17:30h Clara Márcia de Freitas Piazzetta; Leomara Craveiro de Sá (UFG) Musicalidade Clínica na Musicoterapia: construções a partir da Teoria da Complexidade 17:30h–19:30h recesso 19:30h–21:00h Palestra com o etnomusicólogo canadense Francis Corpataux xi xii Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC) Resumo: Esta comunicação tem como hipótese básica a idéia de que nas músicas instrumentais indígenas pode estar vigente um caráter poético especial que se oculta, para nós, no que tomamos por mera repetitividade. Nesta direção, comentarei o repertório de flautas “sagradas” dos índios Wauja, habitantes do alto Xingu, no Brasil Central, baseando-me em minha tese de doutorado. Discutirei a questão de uma poética musical aplicada aqui à esfera motívica de um repertório instrumental, comentando a aproximação entre plano melódico e fala. Por fim, pretendo sugerir que outras músicas instrumentais indígenas sejam examinadas com atenção especial ao aspecto de sua repetitividade e sua projeção temporal tanto no nível motívico quanto em outros níveis de escala mais larga. Palavras-chave: música indígena, repetição, poética musical. Pode-se notar, nos relatos de viajantes que observaram rituais musicais ameríndios a partir do século XVI, que um dos pontos mais salientados é a convicção sobre a repetitividade das músicas destes povos. Séculos após a invasão da América do Sul pelos europeus, tal interpretação persiste: toma-se, ainda hoje, as músicas indígenas por repetitivas. O fato é que esta qualidade sempre ganha, no discurso do senso comum, um caráter de negativo atribuído a uma falta: a ausência de elaboração, de cultivo, de sofisticação, enfim, a uma pobreza. Pode-se argumentar que o caráter negativo atribuído à repetição na música indígena tem suas raízes em uma visão evolucionista sobre estas sociedades e suas músicas, apontando para um tipo de incapacidade aborígine de controle da forma musical e revelando uma espécie encurtamento de seu pensamento musical que impede sua expansão para além do meramente repetitivo. Naturalmente, o espelho destas idéias é uma concepção da grandiosidade formal da música ocidental. A música européia, em seu desenvolvimento histórico, é entendida como uma evolução que se inicia no canto gregoriano e se estende até o dodecafonismo (Barraud, 1975; Leibowitz, 1975). Como resultante de um geist hegeliano, a música traça este destino monumental, acima das idiossincrasias locais (cf. a idéia de autonomia musical). Diante deste paradigma, a música indígena (bem como boa parte da música popular)1 é compreendida como um estágio primitivo que, congelado no tempo, é repetitivo e pobre. Entretanto, a convicção da repetitividade como característica negativa das músicas ameríndias parece colocar-se em suspensão a julgar pelos resultados de estudos recentes dedicados às músicas indígenas que se propuseram a transcrever e analisar o texto musical de repertórios musicais indígenas (Bastos, 1990; Beaudet, 1997; Mello, 2005a; Montardo, 2002; Piedade, 2004). Para além de uma negatividade, primeiramente é necessário pensar sobre o que é repetição: um tema com amplo interesse filosófico, relacionado à ontologia, pois se trata de compreender a essência do “ser o mesmo”, ser uma cópia de um original que, por sua vez, é. Neste sentido, desde há muito tempo, na filosofia, se discute a questão da repetição de forma entrelaçada à da representação e à da diferença.2 No campo das artes, a repetitividade é tomada como um fator central na produção de sentido estético: de fato, trata-se de um problema da filosofia da arte (ver Kivy, 1993: 329). Além de constituir um problema filosófico, a repetição musical é uma qualidade física do som percebida pela audição e, portanto, entra em jogo também a questão da percepção e da 1 Ver Hamm (1995) e Middleton (1990). Por exemplo, Deleuze discute este ponto desde Platão e Aristóteles, mostrando que a repetição é um poder da diferença, capaz de condensar singularidades, acelerar ou retardar o tempo, alterar o espaço (Deleuze, 1968). Recentemente, o pensamento deste filósofo tem sido bastante aplicado no campo da música (ver Buchanan & Swiboda, 2004; ver também o estudo de Ferraz, 1998, sobre música contemporânea). 2 2 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 cognição, bem como a profundidade das diferenças culturais, a pergunta sobre diferentes formas de ouvir.3 Minha compreensão da repetitividade na música Wauja me leva a pensar que nesta música há uma poética musical que trata da confecção da diferença, dada fundamentalmente do eixo do tempo e da existência. Tratarei aqui da repetição musical como um princípio do pensamento musical que é posto em operação em vários níveis formais e que reflete uma visão de mundo. Música kawoká: uma poética da música instrumental Comentarei aqui aspectos do repertório musical de flautas “sagradas” dos índios Wauja, habitantes do alto Xingu, no Brasil Central, utilizando dados de minha tese de doutorado (Piedade, 2004).4 Estas flautas, chamadas de kawoká, são ligadas a entes invisíveis poderosos e perigosos, sendo executadas somente por homens e não podendo ser vistas por mulheres. É comum, nas sociedades amazônicas e na Melanésia, existir um complexo mítico-ritual com estas características: aerofones interditos à visão para as mulheres; punições terríveis para aquelas que porventura verem os instrumentos; estes instrumentos são relacionados a espíritos perigosos; eles são utilizados em rituais masculinos; há um mito que narra um tempo originário no qual os aerofones pertenceram às mulheres, tendo sido tomados delas pelos homens. A este conjunto de elementos adiciona-se um, ainda que hipoteticamente: a música destes ritos masculinos (aerofônica e instrumental) deve ser ouvida pelas mulheres, que se escondem em seus lares (ver Piedade, 1997, 1999). Este rito é usualmente chamado de ritual de “flautas sagradas”, exibindo, em todos os contextos onde ocorre, profundos nexos com questões da socialidade, da cosmologia e de gênero.5 O discurso dos Wauja sobre a música das flautas kawoká aponta de forma clara o nível motívico como camada principal: nas exegeses nativas sobre as peças musicais, uma pequena alteração no nível motívico era destacada como o fator que fazia com que aquela peça fosse outra, e não a mesma anterior. Minha percepção foi aos poucos se aguçando e, à medida fui aprendendo a ouvir e a tocar estas sutis alterações, compreendi que não se tratava variações fortuitas, mas de princípios de diferenciação que ali eram aplicados. Com as transcrições musicais e análise musicológica, constatei o emprego estável de finas operações de repetição e diferenciação entre motivos e frases musicais: aumentação, diminuição, transposição, inversão, inclusão, exclusão, duplicação, triplicação, compressão, fusão, reiteração, fechamento, comentário e elipse. O emprego sistemático destas operações constitui um jogo que, para além do plano sonoro, aponta para uma sucessão de idéias: trata-se de uma espécie de manipulação artística de estados formais pré-estabelecidos que se assemelha a um procedimento poético, aplicado aqui na esfera motívica da música instrumental. Falar em poética aqui, no contexto de uma música instrumental, faz sentido com a exegese nativa, que afirma que a música de kawoká é uma fala, a fala do ente sobrenatural homônimo: portanto, o texto musical é tomado pelo discurso deste espírito, sua “língua”, uma linguagem que, como a poesia, exibe características estruturais inexistentes na linguagem humana cotidiana. 3 Sobre a repetição musical do ponto de vista psicológico e cognitivo, ver Ockelfort (2004). Sobre diferentes formas de ouvir, ver Mello & Piedade (2005). Note-se que diferentes formas de ouvir estão em jogo no ato da transcrição musical (ver Mello, 2005b). 4 Para poupar este artigo de uma introdução à cultura e pensamento Wauja, remeto o leitor para minha tese para contextualizar o que será dito (Piedade, 2004 – versão on-line disponível em http://www.musa.ufsc.br). 5 Ver o trabalho comparativo entre Amazônia e Melanésia Gregor & Tuzin (2001). Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena 3 Há muitos estudos antropológicos de canções nativas a partir da sua dimensão poética (por exemplo, Firth & Mclean, 1991), mas o que estou chamando de poética musical aqui é algo um pouco diferente: lembrando de que se trata aqui de uma música instrumental, portanto sem poesia. Como na música Kamayurá, o processo de significação musical na música de kawoká é basicamente temático,6 igualmente caracterizando-se por uma “construção de um espaço-tempo memorial, altamente redundante, onde a repetição é o traço fundamental” (Bastos, 1990, p. 519). A construção temática (a idéia musical) e a repetição, em suas várias formas, são os motores do jogo motívico e do processo de significação, operações do pensamento musical que constituem a poética da música kawoká. Esta poética musical se aproxima do sentido dado por Jakobson ao termo “poética”, especialmente no que se refere à questão do paralelismo.7 Lembro que, já no período final do renascimento e durante todo o barroco, a idéia de uma poética musical esteve em voga na Europa,8 e que o que quero dizer com poética recupera esta mesma direção. A questão de fundo é que na poética musical a repetição não é uma redundância (nos termos de uma teoria da informação),9 mas sim um princípio racional originário, presente não apenas nos discursos artísticos, mas também nas filosofias e cosmologias nativas. Quando se faz uma analogia entre música e linguagem, geralmente a poesia ocupa sempre um lugar especial, talvez porque ambas as artes possuam em comum a possibilidade infinita de evocação de certos elementos por outros (Ruwet, s/d). A função poética, que é centralizada na mensagem e que é a função dominante na poesia (cf. Jakobson, 1995), opera de forma correlata na música de kawoká, que é centralizada no texto musical. O estabelecimento de relações de equivalência sobre o eixo sintagmático, resultando na repetição regular de unidades equivalentes, princípio constitutivo da linguagem poética, é igualmente constitutivo do jogo motívico: estas relações de equivalência estão na base das operações de repetição e variação musical. Pode-se dizer que há, na música de kawoká, uma projeção do nível motívico-frásico no plano sintático, ou seja, os motivos e frases são combinados de tal forma que sua repetitividade e variabilidade configuram uma poética. Portanto, o próprio jogo motívico constitui a poética da música de kawoká. Por um lado, o paralelismo envolve o aspecto sônico da linguagem: há aqui um princípio binário de oposição dos níveis de expressão fonêmico, sintático e semântico, por exemplo, nas equivalências sonoras projetadas na seqüência, como as rimas. O paralelismo sonoro envolve a repetição de sintagmas completos da estrutura fônica. Mas, por outro lado, e é o que nos interessa mais aqui, há aquilo que Jakobson chamou de “paralelismo gramatical”, a repetição das estruturas sintáticas. Este autor generalizou este paralelismo gramatical em termos de um paralelismo “canônico” para pensar as variadas formas como este princípio aparece na sintaxe das diversas tradições de arte oral (ver Fox, 1977). Para Jakobson, enquanto a repetição envolve apenas identidade, o paralelismo envolve simultaneamente identidade e diferença (op.cit: 73), daí seu alcance para além da linguagem: o paralelismo está presente na música, dança e cinema, artes que utilizam a repetição, combinação, justaposição de imagens, sons e gestos como recurso expressivo (Jakobson, 1970). Estudos antropológicos sobre as artes verbais têm mostrado a importância do paralelismo nas narrativas poéticas (ver Tedlock, 1983; Hymes, 1981; Sherzer & Woodbury, 1987). Para alguns autores, a linguagem é inerentemente poética ela mesma, pois influencia a imaginação de modo a possibilitar a inovação e a reordenação dos itens culturais e 6 Conforme mostra Bastos, seguindo a categoria ip_, “tema musical” (Bastos, 1999:153). Para uma visão geral da questão do paralelismo em Jakobson, especialmente pelo seu interesse antropológico, ver Fox (1977). 8 Ver o tratado de Burmeister, do início do século XVII (Burmeister, 1993 [1606]). Há uma vasta literatura sobre a retórica musical e sua relação com a teoria dos afetos: ver Chasin (2004), Lópes Cano (2000) e Palisca (1993). 9 Sobre a importância da repetição na música, ver Ruwet (1972). 7 4 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 lingüísticos (Friedrich, 1986). A linguagem ela mesma não é poética: a poética é um modo da linguagem que a deforma segundo recombinações organizadas culturalmente. Esta interferência na seqüencialidade narrativa da fala da linguagem é tal que extrapola e extravasa a própria linguagem, subsistindo naquilo que se pode chamar de “essência da arte”, no “fundamento da música” e, como afirma Lévi-Strauss, no pensamento mítico (principalmente no sentido da bricolagem, cf. Lévi-Strauss, 1989). No âmbito das terras baixas da América do Sul , a região do Alto Xingu é privilegiada nesta área, devido aos estudos da arte verbal de dois povos de língua carib: os Kalapalo (Basso, 1985, 1987, 1995) e os Kuikúro (Franchetto, 1986, 2004).10 Parece-me interessante colocar em diálogo estes estudos e as investigações sobre a música indígena, onde o paralelismo gramático-musical é tão imperativo, e tem sido estudado sob a ótica da musicologia (Coelho, 2003; Bastos, 1990; Piedade, 1997; entre outros). Lembrando que o que importa aqui é o paralelismo gramatical, pode-se dizer que a poética da música kawoká instaura uma relação entre regiões temáticas, que me referi como temas “A” e “B” (ver Piedade, 2004). No tema/região “B” há sempre uma elevação de alturas musicais, uma exploração da região mais aguda das flautas (em termos de performance, a região dos orifícios destapados). Pode-se interpretar a dialética que aqui se instaura a partir das concepções nativas de agudo e grave enquanto longe e perto, levando em conta o estudo de Mello (1999). Esta autora mostra que, diferentemente do nexo ocidental, para o pensamento musical Wauja o som agudo, magatukupai, é entendido como distante (longe), enquanto o grave, autukupai, é entendido como próximo (perto). Neste sentido, a elevação do canto para a região mais aguda “B” é uma tomada de distância em relação ao “A”. Na poética musical kawoká, há um jogo de sair e voltar que, na dimensão espacial, corresponde a ir longe e voltar. As formas como “B” engloba “A” podem expressar, a partir das categorias Wauja, um distante que contêm o próximo.11 O jogo motívico é o paralelismo no plano temático da música de kawoká: as reiterações, espécies de rimas reduzidas, são variações que lembram as estruturas micro-paralelísticas nos versos e estrofes, e os temas “A” e “B” são seções maiores que abrigam a enunciação da proposição inicial e o jogo variacional e transformativo dentro de seus limites, remetendo à idéia de “cenas” (cf. Hymes, 1981), e juntamente com o jogo motívico entre as peças dentro da suíte (que seria o bloco), envolvem um macro-paralelismo musical.12 Quanto à repetição, aqui em sua acepção mais comum, ou seja, de duplicação, noto que estruturas duplicadas são muito comuns em toda a música xinguana, como no repertório da música vocal do ritual de kaumai (mais conhecido como kuarúp), onde dois cantores duplicam seus cantos, ou nos cantos dos entes invisíveis, cujas vozes só podem ser reproduzidas por duas pessoas em estilo alternante (são os gritos dos espíritos). A duplicação de um enunciado, ou seja, sua repetição integral imediata, constitui uma operação que é fundadora da música e da musicalidade tanto quanto da poética (Ruwet, 1972). 10 Estou mencionando aqui apenas algumas obras mais especializadas na temática da arte verbal e estudos das narrativas poéticas nativas. Na etnografia xinguana e das terras baixas da América do Sul em geral, há muitas obras que, em algum momento, investigam estes aspectos. Dentre elas, o estudo das letras dos cantos do Yawari (Bastos & Bastos, 1995), e dos cantos maï marakã dos Araweté (Castro, 1986), e muitas outras. Para um estudo nesta temática voltado para as narrativas xamânicas, aliás, trabalhando a reiteração, repetição e justaposição de imagens nas narrativas xamânicas, ver Cesarino (2003). Para um estudo sobre a conexão da narratividade poética com o mito, ver Langdon (1999). 11 Sobre o nexo espacial das categorias musicais Wauja, ver Mello & Piedade (2005). 12 Ver Franchetto (2004) para a utilização do paralelismo nestas categorias analíticas (cena, bloco, e outras) em sua análise de narrativas kuikúro. Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena 5 Pude observar vários rituais de flautas kawoká entre os Wauja, e tentei mostrar, em minha tese, através da análise do nível motívico destas peças musicais, que há nesta música um pensamento sobre a repetição, a variação e a diferença. Utilizo a noção de “jogo” para falar do jogo dos motivos que se estabelece neste repertório, mas com isto não pretendo apontar para um aspecto de permeabilidade ou indeterminação, mas sim para o caráter regulamentar do jogo, para o sentido das regras do jogo. O jogo dos motivos na música kawoká é uma poética musical que trata da confecção da diferença, dada fundamentalmente do eixo do tempo e da existência, ou seja, na temporalidade. Os diferentes sistemas musicais do mundo resultam não apenas de poéticas diversas, mas de diferentes formas de perceber a temporalidade. O pensamento musical é uma expressão da cosmologia posta em ação na música, revelando concepções fundantes da filosofia nativa no âmbito da temporalidade. Portanto, o sistema musical tem também um caráter existencial, pois reporta a formas de temporalidade concebendo a finitude. Neste sentido, a música kawoká é um exemplo forte de como a temporalidade nativa instaura possibilidades de recortar e recombinar as estruturas temporais de forma poética. Pode-se dizer que a música pronuncia formas da temporalidade, a partir de uma perspectiva espacial. Quando ouvia as flautas kawoká à noite, na aldeia, ouvia os instrumentos investidos de um máximo de significado, não apenas para mim, mas certamente para os Wauja. Para os flautistas, o espírito presentificado, ele mesmo é que estava ali falando, a música é sua fala, kawokagatakoja, “fala do kawoká”. O espírito apapaatai se pronuncia pelo jogo dos motivos, entrecortando o tempo de forma poética. Esta qualidade do som musical, entrelaçado originariamente no contexto do panorama sonoro onde foi concebido e construído, aponta para a importância do que foi chamado de “acustemologia” (ver Feld, 1997). Neste sentido, ouvir uma gravação da música (ex-ótica) é como perceber uma filmagem poética do espaço que revela as formas nativas da temporalidade. Trata-se da experiência de “ouvir como o outro ouve o espaço e expressa o tempo”.13 Para os Wauja, a palavra kãi quer dizer “som”, qualquer fenômeno sonoro. Entretanto, quando se trata dos sons musicais, não se fala kãi, mas sim onaapa, “canção”. O termo pitsana, que traduzi por “música-timbre”, e watanapitsana “música-timbre aerofônica”, expressam músicas entendidas como imagens acústicas de vozes de animais e outros entes. Lembro que pitsana e watanapitsana informam que se trata de música instrumental, que é sempre aerofônica, enquanto onaapa é usado para música instrumental ou vocal. Pitsana e watanapitsana, portanto, são categorias internas de onaapa, a palavra nativa para música, entendendo-se que, para os Wauja, música é canção: o lexema onaapa tem sua raiz no verbo apai, “cantar”. Entretanto, o sentido nativo de cantar não aponta apenas para “entoar canções”, mas para criar um enunciado musical, produzir um discurso musical, pronunciar uma frase musical, uma idéia. O cerne da música de kawoká, aquilo que a torna música, é o “canto” do kawokatopá, o flautista mestre que canta, apai, enquanto que os acompanhantes apenas “sopram”, ejekepei. Pronunciar uma idéia não é apenas um fazer sem fundamento ou conseqüências: uma idéia é uma possibilidade, uma antecipação do pensamento.14 Diante destas descobertas sobre a música de flautas kawoká, que podem ser em grande parte generalizadas para o contexto xinguano, cabe a pergunta: será que nas músicas instrumentais indígenas vige um caráter poético que se oculta no que ouvimos como mera repetitividade? O que se pode dizer da repetição na música ameríndia? 13 Da mesma forma que na música, uma pintura de uma época do passado foi produzida segundo uma visão de mundo ancorada em um contexto de origem (Baxandall, 1991), e, portanto, feita para ser vista por um olhar que já não existe, que nos é apenas aproximável. 14 Estou pensando aqui simultaneamente no conceito de poesia na Poética de Aristóteles, em Dewey (Logic II), para quem idéia, mais do que representação mental, marca uma possibilidade, antecipa o real, e em Attali (1993). 6 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Mello (2005a) mostra que no ritual feminino iamurikumã manifesta-se o mesmo pensamento musical que opera nos rituais masculinos de música instrumental de flautas kawoká: o nível motívico e a fino balanço entre repetição e variação sutil. O ritual de iamurikumã é pan-xinguano e, portanto, pode-se dizer que esta poética musical está vigendo em toda a região, mesmo na música vocal. De fato, Bastos (1990) mostra que há uma estrutura de longo espectro no ritual musical yawari entre os Kamayurá do alto Xingu. A forma musical do ritual, que é um elaborado jogo de inclusão, exclusão e re-seriação de canções, leva vários dias para se concretizar. Esta grande forma exibe os contornos de um pensamento que progride e regride, estendendo e comprimindo o tempo, sendo que a repetição é uma operação fundamental na significação: o yawari é ele mesmo um ritual da memória e do esquecimento. O estudo de Beaudet sobre a música de clarinetes tule dos Waiãpi (Beaudet, 1997), habitantes da região do rio Oiapoque, mostra que há semelhanças desta música com a música kawoká: há motivos marcadores temáticos, diferentes a cada parte da suíte, e motivos marcadores de suíte, que funcionam como assinaturas da suíte (op.cit., pp. 95-116). A acumulação do idêntico é entendida como uma forma estética que, acima de tudo, dá prazer aos sentidos nativos. Para além da música, a estética da repetição se encontra também em outros domínios artísticos, como nos motivos da cestaria. A repetição das estruturas é uma necessidade estética que se manifesta em uma forma musical aberta: acaba-se quando se considera que o que devera ser “dito” já o foi de maneira suficientemente justa. Beaudet mostra que o grau de repetitividade de um repertório musical tem relação com a esfera social onde ele funda: a música no âmbito doméstico se repete menos que aquela no âmbito da identidade tribal Waiãpi, como no caso dos cantos de guerra. Para concluir este artigo: creio que estes estudos colocam em cheque a noção de repetição musical e as idéias sobre uma pobreza estrutural das músicas indígenas. O que fica claro é que, antes de tudo, é preciso aprender a ouvir estas músicas como muito mais atenção musicológica do que se pressupunha normalmente: primeiramente, porque nem sempre o que se entende por repetição de fato o é, e também porque há que se relativizar a própria noção de repetição e de forma musical. Referências bibliográficas ATTALI, Jacques. Noise: the political economy of music. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993. BARRAUD, Henry. Para compreender a música de hoje. São Paulo: Perspectiva, 1975. BASSO, Ellen B. A musical view of the universe: Kalapalo myth and ritual performances. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985. _____. In Favor of Deceit: a study of Tricksters in an Amazonian Society, Tucson: The University of Arizona Press, 1987. _____. The Last Cannibals: a South-American Oral History. Austin: University of Texas Press, 1995. BASTOS, Rafael José de Menezes. “A Festa da Jaguatirica: uma partitura crítico-interpretativa”. 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A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa no estudo das manifestações musicais oriundas da música popular Afonso Claudio Segundo de Figueiredo (UNIRIO) Resumo: A dificuldade na obtenção de informações referentes à história da nossa música popular, assim como dados biográficos dos seus principais personagens se torna um desafio ao pesquisador uma vez que publicações sobre o assunto ainda são fruto de raras iniciativas. Esse quadro se acentua quando estudamos músicos e manifestações musicais que estiverem ausentes de exposição na mídia tradicional, como rádio e televisão. Uma das mais eficientes ferramentas que dispões aqueles que se dedicam a uma pesquisa dessa natureza são as entrevistas com músicos que atuem dentro do universo musical a ser estudado que devem ser conduzidas ou partilhadas com elementos que tenham a confiança dos entrevistados e que sejam capazes de interagir com eles dentro dos jargões específicos da linguagem estudada uma vez que dentro do próprio universo dessas manifestações musicais é comum que toda a herança seja ensinada, e por conseguinte aprendida, dentro das tradições orais. Palavras chave: tradição oral; música popular Recentemente defendi a minha tese de doutorado na área musical de práticas interpretativas com um estudo sobre a improvisação na música instrumental brasileira, mais precisamente a improvisação com influência jazzística. A tese foi dividida em três partes, sendo a primeira uma discussão a respeito do conceito de improvisação sobre o qual eu iria me debruçar; a segunda parte sobre as influências mais presentes, principalmente entre os saxofonistas – uma vez que o saxofone é o meu instrumento; e por último o trabalho se concentraria em aspectos técnicos do desenvolvimento de um vocabulário específico para prática da improvisação melódica dentro das estruturas formais do repertório standard da música instrumental brasileira.1 A parte da pesquisa sobre as influências musicais teve como foco alguns dos proeminentes saxofonistas da cena da música instrumental carioca.2 Como não havia nenhuma bibliografia disponível sobre esses músicos tive de criar o meu próprio material de consulta a partir da transcrição das entrevistas conduzidas por mim com esses artistas. Essas entrevistas foram na verdade a gravação de conversas quase que completamente informais pois todos eles são meus amigos e em nenhum momento pude sentir nenhuma formalidade da parte dos entrevistados, o que contribuiu sensivelmente para a qualidade do material obtido pois os músicos puderam se expressar livremente já que estavam diante de uma pessoa com a qual tinham, além de intimidade, confiança. Eu havia preparado um roteiro com alguns pontos nos quais havia interesse que eram: 1. como o entrevistado havia despertado para a improvisação. 2 . quais eram as maiores influências musicais do entrevistado na área da improvisação. 3. qual a importância da improvisação na música produzida pelo entrevistado. O primeiro a ser entrevistado foi Juarez Araújo, músico nascido no Nordeste que emigrara para o Sudeste do país ainda na época das grandes orquestras de rádio. Durante a entrevista, conduzida após uma apresentação de Juarez no Café Allegro, dentro da loja de discos Modern Sound no Rio de Janeiro, pude notar a emoção com que Araújo falava de sua 1 Standard – entre os músicos de jazz, standard é uma peça que seria parte do repertório básico de todo improvisador. Uma composição que obrigatoriamente “todos” devem saber. 2 Foram conduzidas entrevistas com as saxofonistas Juarez Araújo (1930-2003), Nivaldo Ornellas (1941- ), Widor Santiago (1961- ), Eduardo Neves (1968- ) e Marcelo Martins (1969- ). 10 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 história, uma trajetória rica que possivelmente, ele jamais havia tido a oportunidade de contar. Mesmo não sendo um dos focos da minha pesquisa, deixei ele contar a sua vida musical. Alguns meses depois, Juarez Araújo viria a falecer e a minha entrevista, conduzida para a minha tese, viria a ser o seu último depoimento. Nesse instante, decidi que ampliaria o foco das entrevistas para tentar, mesmo dentro de uma tese sobre as práticas musicais, tentar contar um pouco das vidas e das carreiras destes excelentes músicos. Em suma, uma iniciativa de registrar, antes que se tornasse tarde demais, uma parte da memória musical da minha cidade. Tradição Oral A cultura européia se desenvolveu durante grande período de nossa história se baseando em formas de escrita onde até a escrita musical pode ser incluída. Se hoje estudamos Bach, Mozart, Beethoven e tantos outros mestres é porque a obra construída por eles foi, dentro dos padrões disponíveis a cada um, registrada em forma de partituras que foram passando de geração para geração. Outras culturas não tinham essa linguagem como ponto de comunicação ou registro e as heranças culturais eram transmitidas de outras maneiras, utilizando-se basicamente da via de transmissão oral. Na música da América do Norte, assim como na música da América do Sul, manifestações musicais que não fossem oriundas das tradições européias e, por isso mesmo, também não eram grafadas em forma de partitura, sem que isso significasse dizer que não eram aprendidas pelos mais jovens. Em alguns casos, a música, na visão de alguns, chegou-se a se tornar quase a essência dessa cultura. Ben Sidran (1971) na introdução de seu livro Black Talk defende que nos Estados Unidos “a música não é apenas um reflexo dos valores da cultura negra mas, de uma certa forma, a base sobre a qual essa cultura é construída”(p.XXI).3 A música se tornou a verdadeira forma de arte de uma camada de “novos” americanos impossibilitados de se expressarem de qualquer outra forma. Essa música não só se criou fora das bases tradicionais da música ocidental – partituras, conservatórios, etc – como se transformou em uma forma de arte complexa graças à tradição da cultura oral: Pode-se dizer com certo grau de precisão que a cultura oral foi, por natureza, uma cultura “underground” no contexto cultural da América letrada; onde simplesmente ser negro era razão suficiente para se sentir inconformado. Cada membro da cultura oral, segundo os padrões letrados, era um elemento de desvio, engajado num comportamento que durante a Era do Jazz (“jazz age”) era sem dúvida alguma contrário às normas aceitáveis (Sidran, Black Talk, p. 80).4 O contrabaixista e compositor do jazz Charles Mingus, em sua biografia Beneath the Underdog conta como os negros aprendiam um instrumento durante a primeira metade do século passado: Em Watts, professores itinerantes – nem sempre habilidosos ou bem educados musicalmente – viajavam de porta em porta persuadindo famílias de cor a comprar lições para as suas crianças. O Sr. Arson era um desses. Por alguns 3 Yet I contend that music is not only a reflection of the values of black culture but, to some extent, the basis upon which is built.” (Sidan, Black Talk. p..xxi) 4 It could be said with a certain amount of accuracy that the oral culture was, by nature, an underground culture in the context of literate America; that simply being a Negro in America was grounds for nonconformity. Each member of culture was, in terms of the criteria of the literate culture, a “deviant,’ engaging in behavior that reevaluated as it was during the “Jazz Age” was nonetheless contrary to the accepted form. (Sidan, Black Talk. p.80) A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa 11 trocados que coletava semanalmente de algumas das famílias negras ele pagava as suas contas em uma parte da cidade de Los Angeles só para brancos (Mingus, Beneath the Underdog. p. 14).5 Quando um músico jovem procurava informação fora dos padrões da herança européia ele tinha de recorrer à tradição oral. O próprio Mingus na infância vai estudar na escola violoncelo e depois de se apaixonar pelo jazz muda para o contrabaixo, não sem antes receber conselhos de um “amigo”: Arrume um contrabaixo e nós te colocamos na banda de “swing” do sindicato. Buddy me disse (…) “Isso mesmo! Você é negro. Nunca vai conseguir nada na música clássica não importa como você toque. Se você quiser tocar, tem de tocar um instrumento de negro (Mingus, Beneath the Underdog. p. 41). 6 Mais adiante Mingus vai experimentar a melhor forma de aprender pela tradição oral quando passa as tardes na casa do pianista Art Tatum e assimila o que de avançado se fazia no jazz. Durante muitos anos foi assim no jazz, os músicos aprendiam uns com os outros. A partir da década de setenta começam a aparecer alguns centros universitários nos Estados Unidos que criam um jazz department. Atualmente é raro uma faculdade de música americana que não tenha instituído um departamento exclusivo para o jazz. Mas aqui no Brasil, essa prática, de aprender com colegas mais avançados é uma das mais comuns dentro dos universos das músicas não-eruditas pois há poucas escolas onde o material didático está organizado. Nos grandes centros existem algumas opções mas ainda assim fora das universidades. Há algumas iniciativas em andamento mas ainda são relativamente recentes como pude perceber durante as entrevistas com alguns músicos atuantes no cenário instrumental visto que nenhum deles havia cursado uma faculdade. Todos aprenderam com colegas e na busca de informações sempre que elas se tornavam disponíveis. O saxofonista mineiro Nivaldo Ornellas conta: Eu perguntava para as pessoas sobre harmonia e elas me diziam que estava bom o que estava tocando, mas eu sabia que não estava. Eu achava que elas estavam escondendo o jogo e ficava revoltado. Só anos mais tarde descobri que não era por causa disso, eram eles que também não sabiam coisa nenhuma. Depois disso conheci um cara chamado Marilton, que era bom de harmonia e tratei de colar nele. Comecei pelas musicas dos Beatles, que aprendi todas, eram coisas mais simples e naquela época tinha muito Beatles rolando. Ai comecei a conviver com o Chiquito Braga e eu ficava horas vendo ele tocar, depois conversava com ele sobre improvisação. E me dei conta que era impossível improvisar sem saber harmonia. (Figueiredo, 2005, p. 29). Nivaldo conta uma interessante prática musical que experimentou nesse período: Outras pessoas importantes para mim foram o Valtinho, o Toninho Horta, que já fazia umas coisas muito legais, e o Milton (Nascimento), que tocava bem também, e eu tratei de ficar colado nestes caras. Então comecei a botar em prática. O Valtinho reunia a garotada, fazia uma roda, botava o Milton no 5 In Watts, itinerant teachers – not always skilful or well educated in music themselves – traveled from door to door persuading colored families to buy lessons for their children. Mr. Arson was one of them, out of the few bucks he collected weekly from each of many black families whose money paid his bill in a “white only” section of LA.(Mingus, Beneath the Underdog. p. 14) 6 Go get yourself a bass and we’ll put in our Union swing band. Buddy told my boy. (…) That’s right. You’re black. You will never make it in classical music how good you are. You want to play, you gotta play a Negro instrument. (…) (Mingus, Beneath the Underdog. p. 41) 12 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 meio fazendo harmonia e agente ficava improvisando de boca. Cada um improvisava um chorus. Pegava uma musica fácil, explicava a forma A A B e ficávamos horas fazendo isso, ele tocava uns 200 chorus. Com isso todos nós evoluímos muito. (Idem)7 Outro saxofonista, Widor Santiago conta experiência semelhante “eu e o Nelson (Henriquetrompetista) éramos vizinhos de parede e quando um ouvia o outro estudando batia na parede e íamos estudar juntos” (Figueiredo, 2005, p. 51). E quanto mais músicos formos procurar mais histórias assim ouviremos pois essa música começou a se desenvolver pela tradição oral e ainda continua utilizando desse meio para evoluir. Na verdade podemos e devemos disponibilizar nas nossas instituições de ensino musical práticas oriundas de manifestações musicais não-eruditas pois são conhecimentos que nos cercam e não há motivo para ignora-los e sim para aprendermos com eles e estimularmos o seu desenvolvimento. Todavia, essa forma de contato onde os músicos trocam informações de maneira informal está no cerne da prática dessas músicas e jamais irá, felizmente, desaparecer. Outra forma de transmissão de conhecimento pela tradição oral seriam as aulas particulares que possivelmente dez entre dez músicos populares usufruíram em algum instante da sua formação como ilustra o saxofonista Juarez Araújo: e quando me mudei para outra cidade chamada Araguari, tive a felicidade de conhecer o maestro Guerra Peixe (1914-1993) que me viu tocar em uma orquestra muito boa que lá havia. Fazia sempre muitas perguntas a ele sobre música e ele, ao ver meu interesse, se ofereceu para me dar aulas. (Figueiredo, 2005, p. 24) As aulas particulares são a versão profissionalizada da transmissão do conhecimento pela tradição oral. O interessante é que algumas manifestações apenas dispõe da tradição oral como forma de ensino e aprendizado, ficando à margem de todas as vias institucionalizadas. A discussão sobre os benefícios ou os problemas que trazer manifestações musicais entendidas como populares para dentro de conservatórios ou universidades podem acarretar vai além do proposto nesse trabalho que apenas reflete sobre a tradição oral e sua relação com o conhecimento que se propaga, podemos dizer, quase que de mão em mão. Um dos desafios que posso afirmar, por experiência própria, existem quando a única forma de conhecimento e estudo recai na tradição oral é a falta de registro histórico ou publicações a respeito. Na minha tese de doutorado sobre improvisação havia dificuldade quase total não só de publicações a respeito para comentar como não havia qualquer registro histórico a respeito dos improvisadores. Para se saber algo sobre esses músicos só indo diretamente até eles pois não há nada sobre eles nem em livros nem em revistas especializadas. Por essa razão dediquei um capítulo na tese que seria calcado apenas nas entrevistas. Chamei esse capítulo de Genealogia das Influências pois queria traçar um painel das principais influências para os saxofonistas improvisadores. Mas afinal, não seria a obtenção de material de pesquisa por entrevistas ela própria uma vertente da tradição oral? 7 Toninho Horta (1948-) – guitarrista, violonista e compositor mineiro dos mais influentes na música brasileira. A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa 13 Entrevistas Desde do meu primeiro esboço do projeto que viria a se transformar na minha tese de doutorado concluí que teria de fazer entrevistas para colher dados a respeito dos improvisadores e suas influências pois não havia disponível nenhuma bibliografia a respeito dos músicos, apenas alguns métodos de ensino editados pelo mercado editorial e encartes de CDs. Muitos desses músicos, verdadeiros artistas com grande domínio instrumental estavam à margem de qualquer registro impresso. Haviam, é claro, gravações onde eles mostravam a sua habilidade mas isso apenas despertava mais curiosidade a respeito da formação musical e experiência profissional. Uma vez iniciado o doutorado comecei as entrevistas pelo saxofonista Juarez Araújo, certamente por ele ser o mais velho do grupo selecionado para as entrevistas. Encontrei com Juarez ao final de uma apresentação sua na loja de discos Modern Sound em Copacabana, bairro na Zona Sul do Rio de Janeiro. A conversa fluiu com suavidade e Juarez se emocionou ao contar a sua história e falar das pessoas que haviam sido importantes na sua carreira. Mesmo sendo a história musical de Juarez além do escopo da minha tese, deixei ele discorrer sobre esses fatos pensando inicialmente que esse material seria descartado por mim quando estivesse trabalhando na edição final da entrevista. Infelizmente algumas semanas após o nosso encontro Juarez viria a falecer e a minha entrevista acabaria por ser o seu último depoimento. Por ocasião de um tributo a Juarez fui contatado por uma das organizadoras que me pediu uma copia escrita da entrevista pois havia sido além do último depoimento de Juarez, esse era um onde ele contava a sua vida. Esse fato me fez pensar que possivelmente eu havia, por caminhos do acaso, me deparado com uma questão que talvez fosse maior que a minha tese: a questão histórica. E mesmo a minha tese sendo sobre a prática musical, dentro do área de práticas interpretativas, eu deveria realizar as entrevistas tendo em pauta também a questão documental. Para entrevistar esse músicos eu recorri a um expediente que foi de extrema importância: ser um insider, ou seja, ser também um músico com atuação profissional e portanto, estar em condições de entender os jargões utilizados entre os músicos. Não ser tratado como um estranho ao meio possibilitou um conversa franca onde a confiança do entrevistado foi fundamental para o resultado final. Como obter essa confiança é algo que o pesquisador deve refletir muito antes de começar qualquer entrevista sobre o risco de ser tratado como um repórter ou algo similar. Muitas vezes o entrevistado pode não entender bem sobre o que o pesquisador está trabalhando mas se há confiança do entrevistado o pesquisador pode direcionar a entrevista sem que ocorra incertezas quanto a seus objetivos por parte de quem está sendo entrevistado. As diferenças que existem entre uma entrevista com o intuito de se colher material de pesquisa ou uma entrevista dada a um repórter de jornal ou revista podem não ficar muito claras pois as questões formuladas podem parecer similares e cabe ao pesquisador deixar claro que essa entrevista não será publicada em poucos dias e que respostas como “lanço semana que vem o meu novo CD e conto com os apoios…” não tem relevância. Ainda assim é uma questão delicada pois todo artista está sempre preparado para divulgar o seu trabalho sempre que há um oportunidade, principalmente aqueles que não despertam atenção dos principais meios de comunicação. Não ferir sensibilidades e simultaneamente manter o foco durante a entrevista pode ser a garantia de um resultado satisfatório. 14 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Conclusão As entrevistas fazem uma ponte entre a tradição oral e o estudo teórico pois permitem que se transcreva, edite e avalie o material obtido dentro do universo do assunto a ser pesquisado. Aproximar o mundo acadêmico das práticas musicais que se processam, na maioria das vezes, de forma oral em círculos artísticos distantes ou arredios ao estudo institucionalizado é uma necessidade e talvez, uma função do pesquisador dos tempos atuais quando observamos uma valorização dos processos criativos ditos populares. Contar a história desses músicos que fazem a música não-erudita no nosso país é ajudar a entender a música do nosso tempo que se desenvolve, na maioria dos casos, ainda fora dos centro acadêmicos e em muitas vertentes fora das mídias principais. Essas manifestações culturais que se desenvolveram pela tradição oral possivelmente devem ser abordadas dentro dos mesmos parâmetros para depois, podermos estuda-las em toda a sua complexidade. Referências bibliográficas FIGUEIREDO, Afonso Claudio. “Improvisação no Saxofone: A Prática da Improvisação Melódica na Música Instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do século XX”. Tese de doutorado. UNIRIO, 2005. SIDRAN, Ben. Black Talk. Da Capo Press, New York, USA:, 1991. MINGUS, Charles. Beneath the Underdog. Payback Press, Edinburgh EH1 ITE, 2000 Revisitando a Teoria de Síntese Sonora por Modulação de Freqüência Anselmo Guerra de Almeida (LPqS –UFG) Resumo: Este artigo fundamenta-se na teoria da síntese sonora por modulação de freqüência desenvolvida por John Chowning, partindo do modelamento por dispositivos espectrais descritos por Max Mathews. Apresentamos os modos de configurações FM simples e complexas, com o objetivo de auxiliar no processo de predição espectral – o ponto mais obscuro da técnica FM.. Dois modos de implementação são exemplificados – Csound e MAX-MSP. Palavras-chave: música computacional, métodos de síntese, música e tecnologia, síntese FM. Introdução Utilizando o programa MUSIC V, criado por Max Mathews, John Chowning desenvolveu o que chamou-se Síntese Sonora por Modulação de Freqüência - ou simplesmente: Síntese FM - por meio de configurações específicas dos dispositivos espectrais. Dispositivos espectrais são algoritmos que modelam o funcionamento dos elementos básicos de hardware, que combinados formam os instrumentos musicais construídos para diversos tipos de síntese. Os dispositivos comumente encontrados nas diferentes técnicas são (Mathews et al, 1969): ∑ Oscilador a tabela - gera formas de onda. ∑ Gerador de envoltórias - controla a variação de amplitude de osciladores. ∑ Gerador de ruídos - gera bandas de freqüências (geradores de envoltórias e de ruídos são tipos particulares de oscilador a tabela). ∑ Multiplicador - multiplica as amplitudes de dois sinais. ∑ Somador - acumula um sinal com outros produzidos no mesmo intervalo de tempo. ∑ Filtros digitais - selecionam a passagem de determinadas faixas de freqüências. Na seção seguinte descrevemos a síntese FM, partindo da configuração FM simples, passando pelas diferentes configurações complexas: portadoras paralelas, modulantes independentes; portadoras paralelas, uma modulante; modulantes paralelas e modulantes em série. Em todos os casos são apresentados os conteúdos espectrais gerados, nos parâmetros freqüência e amplitude. Ao final, apontamos caminhos para implementações no contexto da contemporaneidade. Síntese por modulação de freqüência A síntese conhecida como modulação de freqüência - FM - descrita em (Chowning, 1973, 1986) (Roads, 1987), pode ser classificada como uma técnica de distorção, do tipo em que uma freqüência é modulada por outro sinal. Enquanto a síntese aditiva usa um oscilador para cada componente espectral, a técnica de síntese por distorção, também chamada nãolinear, usa um pequeno número de osciladores para criar um espectro com uma grande quantidade de componentes espectrais. Cada técnica de síntese por distorção permite um controle único sobre a complexidade espectral do som. Então, o desenvolvimento temporal do espectro pode ser produzido com relativa facilidade, ainda que de difícil controlabilidade. 16 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Configuração FM simples O instrumento FM básico consiste em dois osciladores senoidais. Um sinal de freqüência constante c (chamada portadora) somado à saida do oscilador modulante com freqüência m, e o resultado é aplicado à entrada de freqüência do oscilador da portadora. Se a amplitude do sinal modulante for zero, não há modulação e a saída do oscilador da portadora será simplesmente uma senóide com freqüência c. Quando a modulação ocorre, o sinal proveniente do oscilador modulante varia a freqüência portadora proporcionalmente à amplitude do sinal do oscilador modulante, como podemos ver representado graficamente na Fig. 2.1: m = freq. moduladora c = freq. portadora d = amplitude da moduladora a = amplitude da portadora I = d/m = índice de modulação. Freqüências: c ± k.m , [k = 0, 1, 2, 3...n onde n = I + 2] Amplitudes: Jk(I) (funções de Bessel) Fig. 2.1 – configuração FM simples No estudo sistemático do espectro produzido por este tipo de configuração encontram-se algumas propriedades relevantes (Chowning, 1973): (i) Os componentes espectrais derivados de c e m seguem o seguinte padrão: c ± km para k = 0, 1, 2, ..., n Quando as componentes estão à esquerda da portadora, são chamadas inferiores, e à direita, superiores. Segundo o mesmo critério, as freqüências podem ser agrupadas em banda superior e banda inferior. Para referir-se a um componente específico de uma banda, usa-se o valor de k, denominado ordem (ver Fig. 2.2). O desvio de pico da freqüência (d) é definido como sendo a máxima quantidade de variação na portadora c que é produzida. O desvio é determinado pelo valor aplicado à entrada de amplitude do oscilador modulante, expresso em termos de Hertz. Revisitando a Teoria de Síntese Sonora 17 A F … c - 3m c - 2m c–m c c+m c + 2m c + 3m … Fig. 2.2 – espectro FM simples no gráfico de amplitude x freqüência. A distribuição de energia entre as componentes espectrais depende em parte da quantidade de desvio d produzida pelo oscilador modulante. Quando d = 0, toda a energia do sinal reside na componente da portadora. Incrementando o desvio, provoca-se o aumento de energia nas laterais às custas da energia que era da portadora. Quanto mais largo o desvio, mais distribuída é a energia entre as bandas laterais e maior número de componentes das bandas laterais terão amplitudes significativas. A amplitude de cada componente espectral é determinada tanto pelo desvio como pela freqüência de modulação. Ao descrever-se matematicamente a amplitude de cada componente, é usual definir o índice de modulação como: I = d/m (ii) O número de bandas laterais significativas para um determinado par c:m com índice de modulação I, é determinado pelo maior inteiro próximo de I+2: c ± km para k = 0, 1, 2, ..., n => n ~ I + 2 A determinação das amplitudes relativas dos componentes de freqüência de uma dada razão c:m é proveniente das funções de Bessel do 1o. tipo de ordem k, relacionada com a k-ésima ordem de freqüência, superior e inferior. Então: g(t) = A(t) { Jo (I(t)).sen(wc.t) +J1(I(t)).[sen(wc+wm)t - sen(wc-wm)t] +J2(I(t)).[sen(wc+2wm)t + sen(wc-2wm)t] +J3(I(t)).[sen(wc+3wm)t - sen(wc-3wm)t]...} onde: wc = 2p.fc wm = 2p.fm Jk(...) é a função de Bessel do 1o. tipo, de ordem k. A amplitude de cada banda lateral depende do índice de modulação como mostra a tabela abaixo: 18 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 k banda inferior banda superior freqüência amplitude freqüência amplitude 1 c-m -J1(I) c+m J1(I) 2 c - 2m +J2(I) c +2 m J2(I) 3 c - 3m -J3(I) c + 3m J3(I) 4 c - 4m +J4(I) c + 4m J4(I) … … … … … Tabela 1 - Bandas laterais da configuração FM simples A amplitude da portadora é igual a Jo(I). Então, o valor absoluto da amplitude da k-ésima banda lateral é dada por Jk(I), onde J é uma função de Bessel de primeira classe, k é a ordem da função e o argumento é o índice de modulação. Quando não há modulação, o índice de modulação é zero e as funções de Bessel de todas as ordens, exceto a da portadora, valem zero. Devido a Jo(0) = 1, espera-se que toda a energia do sinal resida na freqüência portadora. Os gráficos mostram que para se obterem amplitudes significativas em bandas laterais de ordem mais alta, o valor de I deve ser maior. Nota-se que as funções de Bessel indicam que as componentes podem ter amplitudes positivas ou negativas dependendo do valor preciso de I. Quando a amplitude é negativa, significa que a fase é 180 o . A fase de uma componente espectral não tem um efeito audível a não ser que outras componentes de mesma freqüência estejam presentes. Neste caso, a amplitude dessa componente irá somar ou subtrair um do outro, dependendo das respectivas fases. Fig. 2.3 – Funções de Bessel Como se pode observar, a modulação de freqüência produz componentes tanto acima como abaixo da portadora. É inteiramente comum para algumas componentes das bandas laterais possuírem freqüências negativas. Para a visualização do espectro, é conveniente reformatar as componentes, de modo a refletir as freqüências negativas em torno de 0Hz para as suas posições correspondentes no domínio positivo. O ato de reflexão da Revisitando a Teoria de Síntese Sonora 19 componente negativa inverte sua fase, ou seja, é equivalente a uma componente positiva com fase oposta. Exemplo: c = 400 m = 200 d = 400 I = d/m = 2 banda inferior freqüência banda superior amplitude freqüência amplitude 1 c - m = 200 -J1(I) = -0,5767 c + m = 600 J1(I) = 0,5767 2 c - 2m = 0 +J2(I) = +0,3528 c +2 m = 800 J2(I) = 0,3528 3 c - 3m = - 200 -J3(I) = - 0,1289 c + 3m = 1000 J3(I) = 0,1289 4 c - 4m = - 400 +J4(I) = + 0,0339 c + 4m = 1200 J4(I) = 0,0339 Tabela 2 – espectro produzido Colocando no gráfico: Fig. 2.4 – gráfico do espectro produzido Rebatendo as freqüências para o campo positivo, invertendo as fases, combinando com as freqüências existentes: 20 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Fig. 2.5 – espectro ao rebater para a banda superior Outras propriedades: (iii) Se c/m = co/mo , co e mo inteiros primos entre si então a fundamental será: fo = c/co = m/mo. (iv) Se co = 1, então o espectro contém todos os harmônicos de fo. (v) Se mo = m , inteiro > 1, então todo m-ésimo harmônico de fo é ausente. (vi) Quando mo = 1 ou 2 os componentes negativos refletidos irão coincidir com os componentes positivos, sendo então combinados. (vii) Se mo ≠ 1 e 2, nenhuma das freqüências negativas refletidas irá coincidir com uma positiva. (viii) Se c/m for um número irracional, o espectro será inarmônico. (ix) Se co e mo são inteiros grandes e primos entre si, o ouvinte tenderá a perceber o som como inarmônico, porque co e mo irão implicar relações entre harmônicos distantes com uma fundamental grave onde nenhuma função tonal consiga lugar. Por exemplo, o som produzido pela razão5:7 (1:1,4) é próximo produzido pela razão1:÷ 2 (1:1.4142...) : Revisitando a Teoria de Síntese Sonora 21 Fig. 2.6 - Espectros das razões 7:5 e 1:÷2 Com apenas dois osciladores senoidais é possível produzir um espectro com tal riqueza, que raramente é necessário procurar modulação com ondas complexas. De fato, quando uma forma de onda com um grande número de componentes modula outra, o espectro resultante pode ser tão denso que produza um som áspero ou indefinido. Configuração FM complexa Na configuração FM complexa tem-se duas ou mais portadoras e/ou duas ou mais modulantes que podem ser dispostas em série ou paralelo. (Almeida 1992) (i) Onda portadora complexa (i.1) - portadoras paralelas, modulantes independentes: é a forma mais simples de modulação complexa, que consiste na soma dos respectivos espectros. Considera-se a saída de cada portadora como uma configuração FM simples, somando-se o conjunto. (i.2) - portadoras paralelas, uma modulante: aplica-se a mesma freqüência e o mesmo índice de modulação a elas. Comparando-se com a configuração anterior, verifica-se que os dois algoritmos oferecem possibilidades diferentes: enquanto economizam-se operadores, perde-se a opção de ter diferentes índices de modulação. amplitudes 1 2 1 2 Jki(Ii) freqüências n S ci ± ki.mi 1 Jk(I) n S ci ± ki.m 1 3 3 Fig. 2.7 – portadoras paralelas 22 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 (ii) Modulantes paralelas Com a modulação paralela chega-se ao aspecto mais complexo da síntese FM pois, ao se aplicarem duas ou mais modulantes mesma portadora, significa modular com uma onda complexa, resultando numa explosão do número de componentes de freqüência que são produzidos. (ii.1) Quando existem duas modulantes e uma portadora, as componentes de freqüência são dadas pela combinação: c ± k1.m1 ± k2.m2 onde Jk1(I1).Jk2(I2) é o fator de amplitude relativa para k1 = 0, 1, 2,...,n1 onde n1 = I1 + 2 k2 = 0, 1, 2,...,n2 onde n2 = I2 + 2 Enquanto k2 = 0 e k1 percorre de 0 a n e quando k1 = 0 e k2 percorre de 0 a n, as ordens de freqüência concordam com o caso das portadoras paralelas, diferindo nas amplitudes por serem o resultado da multiplicação dos coeficientes de Bessel. Além dessas ordens de freqüência, existem as componentes resultantes de todas as combinações entre k1 e k2. A combinação das freqüências laterais ocorre quando k1 e k2 são diferentes de zero. Quanto maiores os valores de I1 e I2, maior o número de componentes resultantes. (ii.2) Quando tem-se 3 modulantes atuando sobre uma portadora as componentes de freqüência são dadas pela combinação: c ± k1.m1 ± k2.m2 ± k3.m3 onde Jk1(I1).Jk2(I2).Jk3(I3) é o fator de amplitude relativa para k1 = 0, 1, 2,...,n1 onde n1 ~ I1 + 2 k2 = 0, 1, 2,...,n2 onde n2 ~ I2 + 2 k3 = 0, 1, 2,...,n3 onde n3 ~ I3 + 2 A simples inclusão de uma modulante incrementou a complexidade do espectro. Entretanto, se a razão das freqüências for um valor inteiro pequeno, então a complexidade não deve ser aparente dada a existência de muitas componentes em comum. 1 1 2 2 amplitudes Freqüências Jk1(I1).Jk2(I2) c ± k1.m1 ± k2.m2 Jk1(I1).Jk2(I2).Jk3(I3) c ± k1.m1±k2.m2± k3.m3 3 Revisitando a Teoria de Síntese Sonora 1 2 3 n n … P Jki(Ii) 1 23 n c ± S ki.mi 1 Fig. 2.8 - Modulantes em paralelo (iii) Modulantes em série. As expressões que descrevem as amplitudes e freqüências resultantes dos operadores em série são parecidas com as em paralelo, com uma importante diferença: a ordem do primeiro modulador k1 é usada como escala do índice do segundo modulador, I2. (iii.1) Quando existem duas modulantes em série, obtemos as componentes de freqüência pela combinação: c ± k1.m1 ± k2.m2 onde Jk1(I1).Jk2(k2.I2) é o fator de amplitude relativa para k1 = 0, 1, 2,...,n1 k2 = 0, 1, 2,...,n2 onde n1 ~ I1 + 2 onde n2 ~ I2 + 2 (iii.2) Para 3 modulantes em série atuando sobre uma portadora tem-se as componentes de freqüência pela combinação: c ± k1.m1 ± k2.m2 ± k3.m3 onde Jk1(I1).Jk2(k1.I2).Jk3(k1.k2.I3) é o fator de amplitude relativa Para k1 = 0, 1, 2,...,n1 onde n1 ~ I1 + 2 k2 = 0, 1, 2,...,n2 onde n2 ~ I2 + 2 k3 = 0, 1, 2,...,n3 onde n3 ~ I3 + 2 2 1 amplitudes freqüências Jk1(I1).Jk2(k1.I2) c ± k1.m1 ± k2.m2 24 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 3 Jk1(I1).Jk2(k1.I2).Jk3(k1.k2.I3) c ± k1.m1 ± k2.m2 ± k3.m3 2 1 Jk1(I1).Jk2(k1.I2) … Jkn(k1.k2. … .kn1.In) n … n c ± S ki.mi 1 3 2 1 Fig. 2.9 - Modulantes em série Implementação Ao contrário de outros métodos clássicos de síntese, como a síntese aditiva e a síntese subtrativa, a síntese FM teve sua origem no domínio digital. Apresentamos uma breve introdução à implementação desse método em dois ambientes de programação bem distintos: usando o programa Csound e o ambiente de programação MAX-MSP. Implementando síntese FM com Csound Atualmente podemos observar muitos dos fundamentos do MUSIC V traduzidos para o programa Csound, linguagem baseada na linguagem ‘C’, com a qual vamos a seguir apresentar alguns exemplos de implementação (Vercoe 1992). Em sua biblioteca de funções existe uma unidade composta que agrega em uma só função a configuração FM simples. Chama-se foscil. Sua sintaxe é a seguinte: ar foscil xamp, kcps, kcar, kmod, kndx, ifn[, iphs] onde: xamp = amplitude kcps* kcar = freq. portadora kcps * kmod = freq. moduladora kndx = índice de modulação ifn = identificação da função da forma de onda iphs = fase inicial Entretanto, para nossos propósitos, torna-se mais didático usarmos aqui a conexão de unidades básicas de osciladores, método que nos será útil para implementarmos também as configurações complexas. Revisitando a Teoria de Síntese Sonora 25 ; configuração FM simples: amod oscili indice*ifq2, ifq2, 1 ; moduladora a1 oscili iamp, ifq1+amod, 1 ; portadora out a1 Assim como idealizado em MUSIC V, Csound utiliza a metáfora da orquestra para o arquivo textoem que estrutura as funções em forma de intrumentos virtuais, assim como utiliza a metáfora do score para o arquivo texto onde estão registrados numericamente todos os parâmetros musicais. Segundo esse método, todos os parâmetros estão pré-fixados, de tal forma que o programa crie o arquivo sonoro a partir da renderização pelo cruzamento dos arquivos ‘.ORC’ e ‘.SCO’ (extensões que identificam os arquivos ORChestra e o SCOre) gerando o arquivo “.AIF” ou “.WAV”, de acordo com as diversas plataformas em que Csound é oferecido.1 Implementando síntese FM em MAX-MSP Se o nosso objetivo é a performance interativa em tempo real (Almeida 1996, 1997), precisamos de programas específicos, como o ambiente de programação orientada ao objeto MAX-MSP2 (OPCODE 1995). MAX-MSP trabalha tanto com o gerenciamento de mensagens MIDI (IMA 1983) (Loy 1985), como o processamento digital (DSP) em tempo real. Através dos possíveis despositivos de entrada, podemos manipular parâmetros durante uma performance ao vivo. Na Fig. 3.1 temos um exemplo de implementação de um módulo de FM simples. Os patches formados pelas conexões entre funções básicas da biblioteca do MAX-MSP são encapsulados na função “simpleFM~”: Fig. 3.1 – função FM simples em MAX-MSP Por sua vez, “simpleFM~” pode receber em suas entradas os parâmetros de outros patches, como no exemplo da Fig. 3.2, extraído dos tutoriais MAX-MSP: 1 Csound é um programa freeware (www.csounds.com) e, por ser código aberto, conta com desenvolvedores em toda a comunidade acadêmica mundial. Uma introdução aos métodos clássicos de síntese implementados em Csound, incluindo síntese FM pode ser encontrada em (Fishman, 2000), no livro Csound Book. No mesmo livro, encontramos um capítulo específico para SínteseFM (Pinkston, 2000). 2 Diferentemente de Csound, MAX-MSP é um programa comercializado (www.cycling97.com). Entretanto, seu criador Miller Puckette desenvolveu uma versão freeware, chamado Pure Data (PD), disponível em (www.puredata.org), também multiplataforma. 26 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Fig. 3.2 – função interativa” FM synthesis” em MAX-MSP O exemplo acima é uma das inúmeras possibilidades de introduzir parâmetros em uma performance musical, podendo contar com elementos gráficos em tela, tais como knobs, sliders, box numéricos, ou mesmo por meio de dispositivos externos via protocolo MIDI, como teclados e outros controladores (Roads, 1996). De modo geral, tornar um sistema interativo significa dar ao compositor diferentes níveis de acesso, seja no nível timbrístico, no nível de construção de eventos sonoros, ou no nível macro, no planejamento da estratégia composicional. Sob esse ponto de vista, o sistema seria um tipo de assistente musical, cabendo ao compositor a terefa de formular o melhor possível o problema a ser resolvido, e escolher o assistente mais adequado. Um ambiente interativo de composição musical se assemelha a uma caixa de ferramentas. A flexibilidade dessas ferramentas permite aos compositores o domínio dos processos composicionais. Quando estudamos o comportamento do som nos instrumentos musicais, verificamos a grande importância dos aspectos acústicos dinâmicos – as variações temporais de amplitude global, da variação individual das envoltórias nos parciais, das variações de freqüência, da movimentação do som no espaço sonoro. E, na síntese FM temos a oportunidade de realizar essas transformações com gestos relativamente simples. Conclusões O método de síntese por modulação de freqüência causou grande impacto na década de 1970, primeiramente na comunidade acadêmica que trabalhava com computer music, pelo fato de proporcionar uma economia de tempo de processamento nos computadores da época. Afinal, com poucos dispositivos espectrais era possível gerar sons com grande complexidade espectral. Em seguida, surgiu o interesse da indústria, que lançou no mercado os primeiros sintetizadores com base na síntese FM. Se, por um lado, houve o grande mérito em popularizar e tornar economicamente acessível o instrumento sintetizador, por outro, consolidou-se um perfil de usuário dependente dos timbres acessíveis nos presets da máquina. A interface disponível para programação de novos timbres era complicada e limitada a um número restrito de parâmetros. Atualmente, a motivação passa a ser outra. Ao retomarmos os experimentos desenvolvidos em MUSIC V (Mathews et al, 1969), sobretudo os registrados por John Chowning (1973, 1986 e 1969), agora transcritos em Csound (Vercoe, 1992), podemos abordar questões próprias do design timbrístico. Podemos apontar também a exploração da síntese FM em tempo real, ao usarmos, por exemplo, o ambiente MAX-MSP (Puckette e D. Zicarelli, 1990), aproveitando a agilidade computacional proporcionada pelo método e a facilidade de Revisitando a Teoria de Síntese Sonora 27 interação em performance interativa. Apontamos este como o caminho para a continuidade desta pesquisa. Referências bibliográficas Almeida, Anselmo Guerra. “Composição Musical Algoritmica com Árvores de Tempos em Síntese FM”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação do Departamento de Ciência da Computação. Brasília: UnB, 1992. Almeida, Anselmo Guerra. “Methodologies for Design and Evaluation of Interactive Musical Interfaces.” Proceedings of JIC96 Brugge - Joint International Conference (IV Intern. Symp. on Systematic and Comparative Musicology and II Intern. Conf. on Cognitive Musicology), College of Europe: Brugge, Belgium, 1996. Almeida, Anselmo Guerra. “Ambientes Interativos de Composição Musical Assistida por Computador”. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica. São Paulo: PUCSP, 1997. Chowning, J. "The Synthesis of Complex Audio Spectra by Means of Frequency Modulation", Journal of the Audio Engeneering Society 1(7), pp. 326–334, 1973. Chowning, J., D.Bristow. FM Theory & Applications. Yamaha Music Foundation, 1986. Chowning, J. “Frequency Modulation Synthesis of the Singing Voice”. Current Directions in Computer Music Research, MIT Press, pp. 57–64, 1989. Fischman, Rajmil. “A Survey of Classic Synthesis Techniques in Csound” in The Csound Book (editor Richard Boulanger), Cambridge: MIT Press, pp. 223–260, 2000. IMA. MIDI musical instrument digital interface specification 1.0. Los Angeles: International MIDI Association, 1983. Loy, G. “Musicians make a standard: the MIDI phenomenon”. Computer Music Journal 9(4), pp. 8–26, 1985. Mathews, M., J.Miller, F.Moore. The Technology of Computer Music, The MIT Press, Cambridge, Mass, 1969. Pinkston, Russell. “FM Synthesis in Csound” in The Csound Book (editor Richard Boulanger), Cambridge: MIT Press, pp. 261–279, 2000. Puckette, M. e D. Zicarelli. MAX - An Interactive Graphical Programming Environment. Menlo Park: Opcode Systems, 1990. Roads, C. e Strawn J. Foundations of Computer Music. The M.I.T. Press, Mass., third pr. 1987, 1985. ROADS, Curtis. The Computer Music Tutorial. Mass: MIT Press, 1996. Vercoe, B. Csound Manual and Tutorials. Mass: MIT Press, 1992. Anselmo Guerra de Almeida é formado em piano pelo Conservatório Musical de Santos/SP. Concluiu curso de Composição e Regência no Instituto de Artes da UNESP em 1986. Em 1992 concluiu mestrado em Ciência da Computação na Universidade de Brasília, na linha de pesquisa em música computacional. Foi pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em San Diego/EUA no período letivo de 1995/6, como parte de seu projeto de doutorado. Concluiu sua tese na PUCSP, com o título: "Ambientes Interativos de Composição Musical Assistidos por Computador", em julho de 1997. Em setembro do mesmo ano tornou-se professor de Composição e Tecnologia Musical na Escola de Música e Artes Cênicas da UFG. Foi coodenador do Mestrado em Música entre 1999 e 2001. Em 2000 criou os Laboratórios de Pesquisa Sonora da EMAC (LPqS), que coordena até a data atual. É 28 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 atual vice-presidente (www.sbme.com.br). da Sociedade APOIO: FUNAPE – Fundação de Apoio à Pesquisa - UFG Brasileira de Música Eletroacústica Por que resgatar o fandango? Cintia B. Ferrero, Alberto T. Ikeda, (UNESP) Resumo: Neste texto, pretendo refletir sobre alguns aspectos sócio-culturais que envolvem o uso da viola branca no fandango de Iguape e Cananéia, litoral Sul paulista. Mais que buscar respostas a estas questões, busco direções para analisá-las. Tais reflexões partem da leitura e análise de textos de 3 autores: Hal Foster, Néstor García Canclini e José Jorge de Carvalho. Discute-se quais são os interesses envolvidos no “resgate” de uma tradição cultural e a postura de pesquisadores, neste caso, os pesquisadores músicos, diante das comunidades pesquisadas. Palavras-chave: fandango, viola branca, Iguape, Cananéia, cultura caiçara. Introdução O foco da minha pesquisa é a viola branca, instrumento utilizado no fandango do litoral Sul brasileiro. A investigação se constitui do estudo detalhado deste instrumento nas localidades de Iguape e Cananéia, litoral Sul do Estado de São Paulo. A pesquisa se caracteriza, sobretudo, como etnomusicografia, abordando, ainda, aspectos sócio-culturais que envolvem o uso do instrumento no fandango, enfocando-se também elementos técnicomusicais e explorações das possibilidades de execução do instrumento, além daquelas já conhecidas e praticadas na região, gerando um material técnico-bibliográfico acompanhado de CD áudio ilustrativo. A viola branca guarda mais diferenças do que semelhanças com a viola caipira, desde a sua construção e afinação até a técnica de execução. Pouco se sabe sobre ela, pois ao contrário do que acontece com a viola caipira, não encontramos, até o momento, registros de estudos específicos sobre este instrumento peculiar, provavelmente uma reminiscência do séc. XVI. O instrumento é basicamente utilizado no fandango, com a função de acompanhar as canções. A viola branca é citada por alguns autores - como Maynard Araújo e Kilza Setti-, principalmente como instrumento típico encontrado no litoral Sul brasileiro, utilizado no fandango. Roberto Corrêa, violeiro e pesquisador, cita o instrumento em seus dois trabalhos editados sobre viola caipira: No litoral paulista, foram encontradas violas com sete cordas (dois pares e três singelas), nove cordas (quatro pares e uma singela), e dez cordas (cinco pares), todas mantendo as cinco ordens de cordas. (1989, p. 16). A viola que mais se diferencia é a viola beiroa, pois, além do cravelhal normal, com dez cravelhas – onde as cordas são esticadas – apresenta outro pequeno cravelhal, ao lado da caixa de ressonância, em cima do braço, com duas cravelhas. No litoral Sul do Estado de São Paulo e no litoral do Paraná, encontram-se, ainda hoje, violas também com este pequeno cravelhal ao lado da caixa de ressonância, mas com apenas uma cravelha. (2000, p. 22). O artigo de Toninho Macedo (outubro de 1997) foi o primeiro trabalho onde encontramos informações mais específicas sobre o instrumento. Há também em nossa bibliografia trabalhos que tratam, em caráter mais geral, do fandango do litoral Sul. De qualquer maneira, poucos deles se aprofundam em questões técnicas e específicas sobre o instrumento. No litoral Sul do Estado de São Paulo, nas localidades de Iguape e Cananéia, o folguedo chegou à beira do esquecimento. Alguns fatores como a criação de uma reserva ambiental de proteção integral, a influência de grupos religiosos e a busca de novos meios de vida tiveram alguma influência para tal fenômeno. Há cerca de dez ou quinze anos, alguns 30 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 moradores de Iguape se mobilizaram em direção ao resgate da cultura caiçara e do fandango, criando a Escola Caiçara da Juréia: No meio da Mata Atlântica do litoral Sul do Estado de São Paulo, na Estação Ecológica Juréia Itatins (EEJI), foi criada a Escola Caiçara da Juréia. Idealizada por moradores e pela Associação Jovens da Juréia (AJJ) a escola nasce da busca por garantir o direito à educação de crianças, jovens e adultos da região e evitar o abandono de seus locais de origem em busca de estudo e trabalho [...] Nesse sentido, a escola tem reunido moradores e ex-moradores para troca de saberes relacionados à pesca, agricultura, extrativismo, arte, culinária, cura, dança, jeito de falar, música e religião. (Dias, julho/set 2003, p. 12). Diversas questões permeiam o projeto de pesquisa: 1. Como se dá o processo de construção do instrumento? 2. O instrumento é utilizado somente no fandango? 3. Qual sua função no fandango? 4. Quais são as afinações? 5. Quais as técnicas de execução (performance instrumental)? 6. Quais os ritmos do fandango executados na viola? 7. Ela também se apresenta como um instrumento solista ou apenas para acompanhar a canção? 8. Qual o perfil dos construtores e dos instrumentistas (tocadores)? 9. Por que ainda se constrói este instrumento de maneira artesanal? 10. Qual o papel do fandango nessas comunidades? 11. Por que a viola branca não teve a mesma difusão da viola caipira? A construção ainda tradicional da viola, de modo artesanal e com material da própria região: a madeira (a caixeta), cola vegetal etc, é uma das questões mais pertinentes. Chama a atenção de qualquer pesquisador o por quê essas comunidades não abandonaram esta forma artesanal de construir o instrumento e substituí-lo pela viola caipira, já fabricada industrialmente e de fácil acesso. Em 1986 foi criada a Estação Ecológica Juréia-Itatins, caracterizada como Unidade de Conservação de Proteção Integral, que abrange também a região de Iguape. “Trata-se de uma categoria que não permite a existência de moradores e uso no interior de seus limites, sendo seu principal objetivo a preservação da natureza, admitindo-se apenas o uso indireto de seus recursos naturais” (Nunes, 2003, p. VI). Até o momento, não encontrei registros sobre em que medida estas restrições afetaram a construção do instrumento. A caixeta é utilizada na construção dos dois principais instrumentos utilizados no fandango: a viola branca e a rabeca. A partir do momento em que há restrições para o seu manejo, provavelmente a construção é afetada de alguma maneira. Os objetivos mais específicos da pesquisa são: 1 . Fazer um levantamento das causas que levaram ao quase desaparecimento do fandango no litoral Sul paulista, por meio de fontes bibliográficas e documentais existentes e entrevistas com os grupos de fandango da região e associações de preservação da cultura caiçara; Por que resgatar o fandango? 31 2. Analisar os efeitos da criação da Estação Ecológica Juréia-Itatins/SP na prática do fandango e na construção do instrumento; 3. Analisar as transformações que tal tradição sofreu; 4. Fazer um estudo detalhado sobre a viola branca em Iguape e Cananéia, desde sua construção à sua performance e técnicas de execução, tendo em vista a escassez de informações técnicas e científicas sobre o instrumento em nossa bibliografia; 5 . Analisar a performance do instrumento e a partir daí, com o auxílio dos conhecimentos técnicos desta pesquisadora, experimentar algumas técnicas de execução; 6. Fazer um levantamento das ações e projetos realizados até o momento para a manutenção do fandango na região objetivando o levantamento de propostas para a difusão da viola branca. 7. Elaborar um material acompanhado de um CD de áudio ilustrativo (desde que haja condições para tal), contendo informações técnico-musicais. As questões que mais têm incomodado ultimamente são referentes ao interesse, por parte destes moradores, em “resgatar” a cultura caiçara e principalmente a dança do fandango como era dançada antigamente: com os passos e coreografias de cada ritmo (que eles chamam de marcas) e com os tamancos de madeira, utilizados principalmente no sapateado do fandango rufado. Há o envolvimento de instituições em colaboração com as comunidades locais para alavancar projetos que tem por objetivo resgatar a cultura caiçara e suas tradições, como, neste caso, o envolvimento da Universidade de São Paulo (Usp) por meio do Núcleo de Apoio a Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras (NUPAUB). Por um lado, há um trabalho em parceria entre comunidade e pesquisador, onde existe uma troca mútua de saberes e realização de projetos sociais, ambientais, educacionais e culturais. Por outro lado, tal fato torna-se como uma lente de aumento sobre um objeto, atraindo a atenção do poder público e da indústria de entretenimento, que leva o folguedo a festivais e apresentações, além da comercialização de gravações, podendo até distorcer as características do folguedo como função popular , a partir do momento em que ele sobe aos palcos. O que pretendo refletir neste texto é o que move uma comunidade resgatar e manter uma tradição cultural e também, se tal fato, quando atrai interesses políticos e comerciais, não corre o risco de interferir no objeto dando-lhe outro valor artístico e transformando o objeto de tradição cultural popular distorcendo suas funções inerentes à comunidade e ao ambiente de sua procedência. Pretendo também refletir sobre a postura do pesquisador - neste caso o pesquisador músico – diante deste tipo de objeto de pesquisa. Desta forma, busco direções, mais até do que respostas neste momento, às questões sócio-culturais que permeiam a pesquisa. Tais reflexões partem principalmente do texto “The Artist as Ethnographer?”, de Hal Foster e do livro Culturas Híbridas, de Néstor Garcia Canclini. O pesquisador-músico Hal Foster, em seu ensaio, remete ao texto de Walter Benjamin – O autor como produtor – fazendo uma comparação a partir da abordagem de Benjamin sobre a intervenção do artista nos meios de produção artística: Para Benjamin é imprescindível o artista “avançado” intervir, como o trabalhador revolucionário, nos meios de produção artística – para mudar as “técnicas” do meio tradicional, para transformar o “aparato” da cultura burguesa. (Foster, 1995, p. 302, tradução nossa) . 32 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Para o autor, “há hoje um paradigma relacionado com a arte avançada de esquerda: o autor como etnógrafo” (Foster, 1995, p. 302, tradução nossa) . E o que muda é o sujeito da contestação, que passa a ser, segundo Foster, “o cultural e/ou o outro étnico” (Foster, ibid, tradução nossa) : E ainda, apesar desta mudança, suposições básicas com o velho modelo produtivista persiste no novo paradigma quase-antropológico. Primeiro existe a suposição que o lugar da transformação artística é o lugar da transformação política, e mais, que este lugar está sempre localizado noutro lado, no campo do outro: no modelo produtivista, com o outro social, o proletário explorado; no modelo quase-antropológico, com o outro cultural, o póscolonial oprimido, subalterno, ou sub-cultural (1995, p. 302, tradução nossa) . Neste sentido, o autor chama atenção ao “perigo para o artista como etnógrafo, do ‘patrocínio ideológico’” (Foster, 1995, p. 303, tradução nossa): O que quero dizer é mais simples do que parece. Assim como o produtor procurou fixar-se na realidade do proletariado, em parte somente para situarse no lugar do patrão, então o artista quase-antropológico deve hoje procurar trabalhar reunido com comunidades, com os melhores motivos do engajamento político e transgressão institucional, em parte, somente ter este trabalho re-decodificado pelos seus patrocinadores como escape social, desenvolvimento econômico, relações públicas... ou arte. (1995, p. 303, tradução nossa). O que quero reter aqui é o conceito de “artista quase-antropológico”. O autor também trata em seu texto, entre outras coisas, da perda do espaço físico como “o lugar da arte”, como, por exemplo, os museus. Ele atenta também para a utilização dos métodos etnográficos por estes artistas quase-antropólogos. No entanto, transferindo estas reflexões para meu objeto de estudo, questiono se tal fenômeno não poderia também ser notado em trabalhos etnomusicológicos? Quero dizer, o pesquisador, principalmente quando músico – e neste sentido, incluo-me entre eles – não corre o risco de assumir este papel, o do artista quase-antropológico? Certamente desconhecendo as ferramentas da Antropologia, como alerta Foster para a utilização dos métodos etnográficos por esses artistas, parece-me possível traçar uma comparação. Neste caso, pode haver o envolvimento do pesquisador-músico com o objeto pesquisado, e o perigo de interferir numa tradição é iminente. O conhecimento de procedimentos metodológicos das áreas da Antropologia e da Sociologia é fundamental para o pesquisador-músico, que em alguns casos, só passa a ter contato com temas dessas áreas na pós-graduação. Outro ponto a ser levado em consideração são os interesses envolvidos no “resgate” de uma tradição. Há seis anos, em pesquisa de campo sobre o fandango de Iguape, principalmente com a Associação Jovens da Juréia, notava-se por meio de relatos dos moradores e dirigentes da associação, que a necessidade de resgatar o folguedo nascia da carência naquela comunidade de suas raízes culturais e principalmente o abandono da região pelos mais jovens. Atualmente, o envolvimento de instituições externas em projetos da comunidade pode acabar atraindo o interesse do poder público e o da indústria cultural. Há necessidade de identificar até que ponto existe interferência destes interesses externos no resgate do folguedo. José Jorge de Carvalho, em seu texto sobre tradições performáticas afro-brasileiras, alerta para o interesse da indústria de entretenimento no que ele chama de “patrimônio cultural imaterial”, que aqui são as artes performáticas da cultura de tradição popular (música, dança, teatro e autos dramáticos). Carvalho sugere que o pesquisador seja mediador entre comunidade e indústria cultural: Por que resgatar o fandango? 33 Para que esse conflito se resolva, penso que o pesquisador deverá informar à comunidade exatamente todos os acordos e conseqüências de sua inserção na indústria cultural [...] Será necessário um compromisso explícito do pesquisador de tornar-se não apenas porta-voz da fala do grupo para o mercado de espetáculos, mas também de tornar-se um porta-voz para o grupo, de fora para dentro, instruindo os artistas populares sobre as regras e os valores desse mundo plenamente capitalista que agora os solicita e absorve. (2004, p. 75). Portanto, para Carvalho, o pesquisador deve “assumir um compromisso com a devolução, para as comunidades guardiãs de origem, dos materiais, publicações e atos públicos que os pesquisadores venham a realizar na condição de especialistas nas tradições por elas preservadas” (2004, p. 82). No caso da presença do NUPAUB na localidade de Iguape, junto a Associação Jovens da Juréia, nota-se tal contribuição recíproca, como, por exemplo, a implementação e desenvolvimento da Escola Caiçara da Juréia. O objetivo da escola é evitar que os jovens abandonem a região em busca de estudo e trabalho. Há uma valorização dos saberes das populações tradicionais da Juréia e a preservação ambiental. A função popular e seu contexto sócio-cultural Néstor Garcia Canclini questiona o valor da tradição na modernidade. Para Canclini, há a necessidade de ciências nômades, que permitam o estudo por inteiro do objeto cultural. Tal assunto é mencionado por Foster, guardada as proporções. Mas quando ele menciona, por exemplo, que a Antropologia “é a disciplina que toma a cultura como seu objeto, e é este o campo expandido de referência que arte pós-modernista e crítica tem buscado construir como o seu próprio campo” (Foster, 1995, p. 305) , encontramos alguma congruência com o pensamento de Canclini. Para este, o trabalho em conjunto dessas disciplinas (em relação às ciências nômades anteriormente mencionadas) “pode gerar outro modo de conceber a modernização latino-americana e também que esse olhar transdisciplinar sobre os circuitos híbridos tem conseqüências que extrapolam a investigação cultural” (Canclini, 1997, p. 19). Canclini faz uma abordagem pós-moderna sobre arte, focando sempre o hibridismo. Entretanto, alguns aspectos de suas abordagens nos interessam, como, por exemplo, o que determina um objeto ser arte: O que é arte não é apenas uma questão estética: é necessário levar em conta como essa questão vai sendo respondida na intersecção do que fazem os jornalistas e os críticos, os historiadores e os museógrafos, os marchands, os colecionadores e os especuladores. Da mesma forma, o popular não se defini por uma essência a priori, mas pelas estratégias instáveis, diversas, com que os próprios setores subalternos constroem suas posições, e também pelo modo como o folclorista e o antropólogo levam à cena a cultura popular para o museu ou para a academia, os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos para a mídia. (1997, p. 23). O autor ressalta o paradoxo na arte moderna. Segundo ele: [...] o discurso estético deixou de ser a representação do processo criador para tornar-se um recurso complementar destinado a “garantir” a verossimilhança da experiência artística no momento do consumo. (1997, p. 64). Assim como Marcus e Meyers colocam em seu texto introdutório do livro “The trafic in culture – refiguring art and anthropology”, que “a questão central para arte moderna tem sido o relacionamento ou limite entre ‘arte’ e ‘não arte’” (1995, p. 6), Canclini também tenta encontrar este limite no caso latino-americano. 34 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 A questão que quero levantar dentro dessa discussão é o lugar ocupado pelo objeto de arte da tradição popular. O fandango é uma função popular, e esta entendida e praticada dentro de um contexto social. No momento em que é transplantado do seu contexto, perde-se a origem e o sentido de sua função. Há o risco, conforme mencionado no início do texto, de outras influências distorcerem o que é tradição popular, ao torná-la um objeto de consumo da indústria cultural. Para esclarecer melhor, remeto-me uma vez mais ao texto de José Jorge de Carvalho: O pagamento do espetáculo, que sela a compra e a garantia de um tempo de lazer para o consumidor branco, significa retirar o tempo de que o artista popular (quase sempre negro) necessita para exibir sua arte humanizante. O que me leva a refletir que talvez o próprio tempo seja um dos maiores patrimônios culturais intangíveis das comunidades indígenas e afrobrasileiras. Um tipo de patrimônio ameaçado justamente pela compreensão do tempo na indústria cultural do capitalismo contemporâneo. (2004, p. 71). No caso do fandango, como função popular, ele ocorre (ou ocorria!) após os mutirões. Dança-se e toca-se a noite toda, até o dia amanhecer, seguindo quase que uma espécie de ritual. No momento em que é levado ao palco, seja em festivais ou apresentações própria, grande parte da função é “amputada”, já que na indústria do entretenimento, o tempo de duração do espetáculo na maioria das vezes é determinante, de acordo com Carvalho. Outra questão que pretendo discutir, a partir do trabalho de investigação científica, é em que medida a apropriação da tradição popular dessas áreas rurais, por acadêmicos e/ou por comunidades de áreas urbanas, interfere na função popular em si. Tomando a viola caipira como exemplo, pode-se esclarecer um pouco melhor a questão. Houve um momento em que o crescente interesse pelo instrumento por parte de pesquisadores – pesquisadoresmúsicos, como Roberto Corrêa e Paulo Freire, entre outros – fez com que a viola caipira fosse transportada do meio rural para os palcos e escolas de música. Hoje em dia, o instrumento está presente em curso universitário no Estado de São Paulo (USP de Ribeirão Preto, professor Ivan Vilela). Claro que não se pode fazer uma comparação integral com a viola branca e o fandango, já que é possível que eles não sigam o mesmo percurso da viola caipira. Conclusão O que reflito neste texto é o perigo, parafraseando Foster, do pesquisador-músico quaseantropológico. O trabalho de pesquisa etnomusicológica sem o devido respaldo antropológico e/ou sociológico pode acarretar a execução de um trabalho ineficiente e equivocado. Há também o risco, já mencionado, do envolvimento de interesses políticos e comerciais nas comunidades e na tradição cultural popular, levando à deturpação de sua função. Sobre os estudos da cultura popular, Canclini diz o seguinte: [...] grande parte dos estudos folclóricos nasceu na América Latina graças aos mesmos impulsos que os originaram na Europa. De um lado, a necessidade de arraigar a formação de novas nações na identidade de seu passado; de outro, a inclinação romântica de resgatar os sentimentos populares frente ao iluminismo e ao cosmopolitismo liberal. Assim condicionados pelo nacionalismo político e humanismo romântico, não é fácil que os estudos sobre o popular produzam um conhecimento científico. (1997, p. 211). A produção do conhecimento científico sobre cultura de tradição popular depende da postura do pesquisador frente às comunidades pesquisadas, de acordo com Carvalho, além do respaldo antropológico e sociológico que o mesmo precisa ter, de acordo com Foster. No Por que resgatar o fandango? 35 Brasil, quando o pesquisador é músico – intérprete ou bacharel em Composição e Regência, por exemplo -, muitas vezes lhe falta este conhecimento, já que não faz parte de sua formação acadêmica. Neste caso o estudo é redobrado, sendo que o contato com estas áreas do saber acaba ocorrendo somente na pós-graduação e tal formação torna-se imprescindível, principalmente na utilização dos procedimentos metodológicos. O que leva a comunidade da Juréia a resgatar uma tradição que chegou a beira do esquecimento? Não arrisco responder a esta questão neste momento, mas alguns caminhos podem ser apontados a partir de alguns tópicos discutidos neste artigo: 1. A evasão da região: A Estação Ecológica Juréia-Itatins afetou o modo de vida dos moradores daquela localidade. Devido às características da estação ecológica, o manejo daquelas terras pelos moradores foi sensivelmente restringido. Tal fato provocou a evasão de muitos moradores da Juréia, principalmente em busca de novos meios de vida, já que viviam da pesca e da cultura de subsistência. Desta forma, houve uma ruptura na tradição cultural local e na sua transmissão; 2 . A perda de referências culturais pelos mais jovens: Muitos jovens também abandonam a localidade em busca de estudo e emprego, e já não demonstram interesse pelos saberes locais. Entretanto, alguns moradores que permaneceram na região tomaram a iniciativa do resgate da tradição cultural caiçara, tomando como ponto de partida o fandango. Então, a Associação Jovens da Juréia idealizou a escola caiçara, buscando justamente o equilíbrio perdido após a instalação da reserva ecológica: Preservar a biodiversidade da mata e a cultura do povo caiçara é um dos desafios que movimentam o projeto pedagógico da escola. A idéia é oferecer à comunidade uma escola que, além dos conhecimentos valorizados pelo ensino formal, trabalhe com os saberes construídos pelas populações tradicionais da Juréia na estreita relação com a floresta, com rios e mares [...] O modelo adotado para a criação da reserva foi inspirado em modelos norte-americanos que preconizavam a ausência do ser humano na natureza. O que na época foi desconsiderado – a presença das comunidades na mata e seu entorno, suas culturas e conhecimentos sobre a natureza – é, atualmente, avaliado pelos pesquisadores como fundamental para que se efetive a preservação da biodiversidade dos remanescentes de Mata Atlântica do Estado de São Paulo. (Dias, julho/set 2003, pp. 12–13). A contribuição do Núcleo de Apoio a Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras (NUPAUB) tem se mostrado estratégico na realização dos projetos da comunidade. Nota-se o pesquisador como mediador, conforme proposto por Carvalho em seu texto. Todos estes fatores afetam diretamente a viola branca: 1. Sua construção depende da permissão da extração da madeira presente na região; 2. A transmissão da técnica de construção assim como de execução do instrumento é afetada quando não há o interesse por estes saberes pelos mais jovens; Neste sentido, estas questões são pertinentes neste trabalho de pesquisa sobre a viola branca, além de ser quase inexistente informações mais específicas sobre este instrumento, diferente do que ocorre com a viola caipira. Portanto, como mencionado no início, busco com este artigo refletir sobre algumas questões sócio-culturais que permeiam o projeto de pesquisa, mais que respostas fechadas. 36 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Dessa forma, aponto aqui os rumos que deverão tomar tais discussões em meu trabalho de investigação. Referências Bibliográficas ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional: Dança, recreação e música. V2, 2ªed. São Paulo: Melhoramentos, 1967. BITTAR, Nazir. “A Pluralidade do Fandango: Dança, Teatro e Baile”. In: BRITO, Maria de Lourdes da Silva (et. al.). Fandango de Mutirão. 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Disponível na WorldWideWeb: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo. ISSN 0009-6725. Acessado em 23 jul. 2005, 11:56:58. FOSTER, Hal. “The Artist as Ethnographer?” In: Marcus, Georges E. & Myers Fred R (eds). The traffic in culture – refiguring art and anthropology. University of California Press, 1995 (pp. 302–309). MACEDO, Toninho. Um Mundo de Violas e Rabecas. Boletim da Comissão Estadual de Folclore – Governo do Estado de São Paulo, nº1 – Outubro de 1997, em Cultura Caiçara. MARCUS, Georges E. & MEYERS, Fred R. “The traffic in art and culture: an introduction”. MARCUS, Georges E. & MEYERS, Fred R. (eds). The traffic in culture – refiguring art and anthropology. University of California Press, 1995 (pp. 1–51). SETTI, Kilza. Ubatuba: Nos cantos das praias - Estudo do Caiçara Paulista e de sua Produção Musical. São Paulo: Ática, 1985. Cintia B. Ferrero é bacharel em Música, habilitada em Composição e Regência formada pelo Instituto de Artes da Unesp, São Paulo. Teve bolsa CNPq de Iniciação Científica no projeto Gêneros de Música Popular Brasileira: fundamentos técnicoestruturais e histórico-sociais, orientada pelo Prof. Dr. Alberto T. Ikeda. Parte do projeto esteve dedicado a pesquisa de campo sobre a música caiçara praticada no litoral Sul paulista. Foi assistente de gerência da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) por dois anos, mantendo paralelamente atividades como violonista, compositora e professora de violão. No curso 2003/2004 realizou especialização em seu instrumento (violão) em Madri, Espanha, com bolsa da Fundación Carolina. Atualmente, realiza pós-graduação (mestrado) em Música no Instituto de Artes da Unesp, São Paulo, orientada pelo Prof. Dr. Alberto T. Ikeda, com apoio da Fapesp. Musicalidade Clínica em Musicoterapia: construções a partir da Teoria da Complexidade1 Clara Márcia de Freitas Piazzetta & Leomara Craveiro de Sá (UFG) Resumo: Este trabalho apresenta resultados parciais da pesquisa “Musicalidade clínica: uma compreensão da escuta e da produção musical do musicoterapeuta no contexto clínico musicoterápico”. A partir da análise do registro em VHS de seis sessões de musicoterapia realizadas com um único cliente, alguns acontecimentos são discutidos a partir de pressupostos da Teoria da Complexidade, de Edgar Morin (2001) e da Biologia do Conhecer, de Maturana & Varela (2001), que fundamentam a referida pesquisa. O tema em questão privilegia a atuação musical do musicoterapeuta no espaço clínico da Musicoterapia. Palavras-chave: música, Musicoterapia, musicalidade clínica, complexidade. Prelúdio a duas vozes A narração e os trechos de transcrições musicais, apresentados a seguir, retratam fenômenos ocorridos na primeira e na sexta sessões de Musicoterapia desenvolvidas com Marcos,2 um menino de dez anos, portador de distúrbio de conduta com déficit de comunicação. Ele freqüenta a 1ª série de uma escola pública, em um programa de inclusão. Atualmente, não faz uso de medicamentos e conta com atendimentos também em psicopedagogia e psicomotricidade. Marcos entra na sala e segue encostado à parede até perto da bateria que está do lado oposto à porta. Enquanto caminha, sempre olhando extasiado para a sala, eu, sua musicoterapeuta, toco o piano no grave e depois no agudo, em pulsação binária simples (mínimas no grave, colcheias no agudo, soando quase como uma pergunta e resposta) quebrando o silêncio da sala. Ao escutar o som do piano, Marcos faz: Pssiu!!! Pede silêncio sem sair do compasso da minha produção. Ao chegar na bateria, experimenta alguns dos instrumentos logo após eu percutir duas vezes no ‘tambor grande’, como que sugerindo uma pulsação que chamou sua atenção e ele torna a indicar que quer silêncio de minha parte [Fig. 1]. Eu concluo esta busca por interação, ou seja, perturbação3 sonora, com uma sonoridade que ao mesmo tempo cresce na velocidade e diminui na intensidade, criando um clima de expectativa. Fig. 1 Enquanto estou em silêncio, afasto-me do tambor grande, passando pela frente da bateria. Marcos, usando duas baquetas, produz sonoridades intercalando os instrumentos: tom-tom/ pratos; tom-tom/ 1 Trabalho apresentado no Seminário de Pesquisa em Música da UFPR, Curitiba, novembro, 2005. Visando proteger a identidade do cliente, usamos um nome fictício (Marcos). Ele foi atendido no Laboratório de Musicoterapia da UFG, durante a primeira fase de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida pela musicoterapeuta mestranda Clara Márcia Piazzetta, sob supervisão clínica e orientação da Profa. Dra. Leomara Craveiro de Sá. 3 ‘Perturbação’ é um termo usado pela abordagem de Maturana e Varela (2001) A Biologia do Conhecer e refere-se a estados, inter-relacionais que se diferenciam de influências, de ações causas –efeitos e de estímulos – respostas. Perturbar um ser humano, em um determinado momento, depende “não só de características estruturais de sua própria espécie, como de características presentes de uma estrutura dinâmica, flexível e plástica, que tem uma história de interações particular no meio em que o ser em questão vive, de maneira sempre congruente com o ambiente” (Magro, 1999, p. 71). 2 38 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 surdo; tom-tom / chimbal; até que consegue fazer tudo ao mesmo tempo. Não olho para Marcos, mas ele me acompanha e sua expressão facial parece ser de satisfação. Esse momento teve uma duração aproximada de 2’ e 35” (tempo observado no registro da gravação). Na seqüência, Marcos dirige-se ao piano e experimenta as teclas agudas. Digo que vou buscar uma baqueta para mim no armário.Ele volta à bateria sozinho, experimenta o tambor e por último o chimbal [Fig. 2]. O clima de expectativa continua. Fig. 2 Expectativa no ar Quando chego com a baqueta maior, ele diz: “deixa ver”, usando a baqueta no tambor (uma batida no centro e uma na lateral). Eu pergunto: “quer trocar uma das baquetas?” Ele, então, percute no tomtom três colcheias e responde “não”.Volta para o tambor grande e, olhando para mim, faz duas semínimas, duas colcheias e uma semínima, eu o escuto e o imito [Fig. 3]. Já na minha primeira batida, ele olha para minha mão e pára de tocar; eu olho para ele e não paro de tocar;ele aceita este contato que acontece através do olhar e continuamos... ele no tambor e eu na caixa. Ele segue a pulsação com a cabeça e então olha para o carrilhão, aponta com a baqueta e fala para eu tocar no carrilhão. Acelera a célula rítmica. Eu, no carrilhão, faço um pulso rítmico passando para o prato, marcando a pulsação na velocidade sugerida por ele e depois buscando a reverberação que é acompanhada por um movimento de cabeça dele enquanto toca no tambor grande, acompanhando o pulso. Volta-se para o tom tom e eu o convido: vamos lá! Ele levanta a baqueta contra mim, mas eu continuo a contagem: 1,2,3 e... Marcos interrompe a produção fazendo uma pergunta sobre o chimbal, que eu esclareço. Fig. 3 Tocando juntos Nesses aproximados 4’ minutos de atendimento, Marcos já me informou sobre sua capacidade de pulso rítmico e sobre sua possibilidade de escolhas: ‘eu te aceito, não te aceito; pode tocar comigo, não pode tocar comigo; posso ser agressivo; tenho idéias e iniciativas próprias’. De minha parte, percebi que posso escutá-lo, posso perturbá-lo e posso ser perturbada por ele; posso estar ou não musicalmente com ele e, também, que aparentemente ignorei a ameaça da baqueta. Neste início de Musicalidade Clínica em Musicoterapia 39 atendimento, onde estaria Marcos? Como musicalmente ele se mostra? Estaria em seu momento de criação, mantendo um pulso e ainda procurando controlar minha movimentação? Nos momentos seguintes pergunto se ele conhece alguma música, sua resposta foi: “assim oh!” de sua resposta cantamos e tocamos sua ‘primeira melodia’ repetindo a frase proposta por ele intercalada com experimentações na bateria tocando todos os instrumentos que alcançou. O tema apresentado inclui uma formação em semicolcheias, colcheias e semínimas com uma marcação definida, [Fig. 4] uma característica de sua produção musical. Fig. 4 Primeira melodia A conclusão dessa experimentação musical se deu com muita vibração: “EH! EH! Viva!!” levantando os braços e olhando para a câmera, eu vibro junto com ele: “muito bem!”. Na exploração de outros instrumentos da sala, antes de tocar Marcos sempre me perguntava o que era e como tacava, assim, para o xilofone brincamos sobre a célula rítmica inspirada em sua ‘primeira melodia’ [Fig. 5] recorte do tema. Fig. 5 xilofone 1 40 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Para a apresentação das castanholas eu trouxe uma célula melódica [Fig. 6] repetida por Marcos na íntegra e uma terça acima, soando como pergunta e resposta. Até o final de nosso primeiro encontro essa célula foi se transformando [Fig. 6a e 6b] Fig. 6 canção da castanhola Fig. 6a canção da castanhola 1ª variação Fig. 6b canção da castanhola 2ª variação Este foi apenas um pequeno recorte de uma sessão de musicoterapia, logo na fase inicial do tratamento, fase esta reconhecida, por nós, musicoterapeutas, como a etapa da “Testificação Musical”. Aqui, o cliente vai se desvelando através do corporal, do sonoro e do musical, abrindo possibilidades para o estabelecimento do vínculo terapêutico. E seguimos juntos, eu e Marcos, tocando, cantando, dançando, falando, na busca de caminhos que levem a um encontro. Desta forma, “as relações que emergem na musicoterapia,(...) são multifacetadas, podendo se apresentar de formas variadas: relações intra e interpessoais, relações intra e intermusicais, relações sócio-culturais e relações ambientais” (Craveiro de Sá, 2002, p. 62). A análise do processo musicoterápico, desenvolvido no primeiro mês de atendimentos, revela mudanças tanto em Marcos quanto em mim, sua musicoterapeuta. Os mecanismos presentes nessa rede de interações envolvem a complexa relação existente no setting quando nos aproximamos do campo “música em Musicoterapia”. Não se trata apenas de função para a música. Os fenômenos musicais, durante os atendimentos, abrangem toda uma estrutura organizada4 para esse fim, a música em uma relação de ajuda. Isso envolve uma dimensão de produções sonoro-musicais diretamente ligadas às musicalidades do musicoterapeuta e do cliente. E é exatamente sobre essa dimensão relacional “musicoterapeuta — música/musicalidades — cliente” que tratamos neste artigo. 4 No desenvolvimento de cada atendimento, uma rotina de sessão define-se a partir dos objetivos musicoterapêuticos previamente estabelecidos. A organização dos atendimentos de Marcos deu-se em três momentos: 1) o acolhimento, com uma canção surgida de um motivo melódico retirado da primeira sessão, ‘boca de jacaré’; 2) o desenvolvimento da sessão, preservando os momentos de interação musical considerando-se, principalmente, a musicalidade do cliente; 3) uma canção de despedida que indica o retorno ao setting musicoterapêutico na próxima semana. Musicalidade Clínica em Musicoterapia 41 Musicalidade para Blacking (1973) não está apenas nas mãos de especialistas, músicos profissionais, mas é uma capacidade humana para música. Da mesma forma, Zuckerkandl (1973, 1976) apresenta-a como além de habilidades, como uma capacidade humana inata. Todas as pessoas são musicais por natureza e essência, e essa capacidade não está simplesmente voltada para o desenvolvimento artístico-musical, mas como forma de percepção do mundo à sua volta. Musicalidade é constitutivo do ser humano, ou seja, encontra-se no “domínio de nossas interações e relações”, constituindo-se assim, “no domínio de nossas condutas humanas” (Maturana, 2002, p. 109). Os estudos de Mechtild Papousek (1996), Trevarthen (1999), Trevarthen e Dissanayake (2000), focalizam na musicalidade das interações cuidador-bebê a origem das formas relações do ser humano, inclusive, com a música. Os estudos de Trevarthen et all.(1999, 2000) defendem a existência de intrinsic motive formation (IMF)e intrinsic motive pulse nas relações mãe-bebê (apud CROSS, 2000, p. 34, tradução nossa). Desses estudos, originaram os termos protomusicality e communicative musicality (apud Ansdell, 2004, p. 69). Para Mechtild Papousek (1996), este espaço de cuidados e atenções, comunicação mãe-bebê desde a vida intra-uterina, faz-se na “indivisibilidade da música e movimento e pelo fato deles aparecerem envolvendo padrões de comportamento culturais” (apud Cross, 2000, p. 34, tradução nossa). Também “Hannus Papousek tem notado que ‘elementos musicais participativos no processo de comunicação desenvolvem-se muito cedo’, sugerindo que ‘eles preparam o caminho para capacidades lingüísticas antes que os elementos fonéticos apareçam” (apud Cross idem, tradução nossa). Sendo assim, as interações entre mães-bebês constituem-se eficientes pela intenção expressada nos movimentos corporais, tonalidade e melodiosidade da voz cantada ou falada. A construção do domínio relacional do ser humano constitui-se, originalmente, imerso em um universo de musicalidade que potencializa a compreensão do significado no domínio lingüístico. O trabalho musicoterápico desenvolvido por Nordoff - Robbins, também conhecido por “musicoterapia criativa” (Bruscia, 1989), constitui-se pelas “idéias de Rudolf Steiner, o fundador da Antroposofia, pelas idéias de Abraham Maslow, um dos fundadores da Psicologia Humanista” (apud Alvares, 2005, p. 2) e pela concepção de Música defendida pelo filósofo Victor Zuckerkandl (Queiroz, 2003; Aigen 2005). Um dos princípios desta abordagem é que em cada pessoa existe uma Music child e isso denota uma organização das capacidades receptivas, expressivas e cognitivas que podem ser o ponto central da organização da personalidade A criança é estimulada a utilizar estas capacidades com grande envolvimento. Tal envolvimento, de modo responsivo e criativo, leva a funções de identificação, percepção e memória. Segurança, inteligência e determinação são expressas de forma espontânea na medida que a criança se entrega ao processo musical” (Nordoff & Robbins, apud Alvares, 2005, p. 3) Outro princípio é o condition child que representa os aspectos relacionados à sua condição especial ou à sua deficiência. A ampliação da music child leva a mudanças nessa condition child e, com isso, a criança pode encontrar novas possibilidades de ser no mundo e um novo sentido para o self , uma vez que o processo de ‘despertar e expandir o music child está relacionado com o que Maslow (1999) descreve como o processo de auto-atualização, que envolve experienciar a vida de forma plena, fazer escolhas, sentir-se autoconfiante, 42 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 descobrir o próprio potencial e estar aberto a experiências culminantes (peak experience) (Alvares, 2005, p. 3). Como constitutiva do ser humano, a musicalidade encontra-se em nossa estrutura biológica (em nosso sistema nervoso). Pelos estudos da Psicologia da Música, buscou-se mapear áreas cerebrais como responsáveis pela resposta à música. Os estudos mais recentes das Neurociências têm defendido que não existem partes fixas no cérebro responsáveis pela apreciação musical, mas sim toda uma rede de interações neurais se estabelece em contato com a música (Koelsch, Shroger & Gunter, 2002; Tervaniemi et all, 1997; Baeck, 2002). Trazendo estes conceitos apresentados acima (musicalidade como nas estruturas biológicas e estabelecendo-se nas relações humanas) para o setting de musicoterapia, para este atendimento em especial, temos um universo de incertezas com alguns pontos previsíveis. Assim sendo, o que fazer para compreender melhor a produção musical que emerge em uma sessão de musicoterapia? Este não é um questionamento isolado de nossa parte. Barcellos (1999), em seus estudos sobre o “tecido musical”, sugere o modelo Tripartido de Molino para atender às dimensões dessa produção musical, por envolver tanto a obra, como quem a fez (cliente) e, ainda, quem a está escutando (musicoterapeuta e cliente). No momento de um atendimento musicoterápico estamos (musicoterapeuta e cliente) experienciando interações musicais. Assim sendo, para melhor visualização desses momentos musicais, transcrevemos os acontecimentos em forma de partituras. Contudo, transcrever as sonoridades que compartilhamos, usando um modelo tradicional de partitura, foi parcialmente possível. Alguns acontecimentos musicais, se “congelados”, nada significam para a análise musical no contexto musicoterápico (Craveiro de Sá, 2002). Assim, fez-se necessária a descrição, na forma de texto sobre a pauta, de alguns movimentos corporais que acompanhavam as sonoridades. Por outro lado, essa mesma forma de transcrição, colocando-nos como partes de uma obra, em uma mesma grade musical, possibilitou uma visualização das interações e intervenções. Olhar para a produção sonora, agora descrita, coloca-nos, principalmente, diante das recursividades presentes no momento da criação sonora no setting. Considerando a existência de subjetividades nesse fazer musical terapêutico, o que podemos apreender desse sonoro para o desenvolvimento do processo musicoterápico de nosso cliente? A abordagem Nordoff &Robbins traz um importante aspecto envolvendo a formação do musicoterapeuta Nordoff / Robbins. As possibilidades de construções musicais no setting, realizadas pelo musicoterapeuta, são desenvolvidas em uma clinical musicianship5. Esta habilidade se faz pelo uso equilibrado de suas habilidades e intenções musicais com sua sensibilidade, responsabilidade e intervenção clínica (Turry, 2001). É possível, também, uma compreensão da dinâmica das relações musicais e não musicais existentes no fazer musicoterápico a partir da capacidade do musicoterapeuta de perceber os elementos musicais contidos na produção ou reprodução musical de um paciente (altura, intensidade, timbre, 5 Termo sem uma tradução direta para a língua portuguesa. Abrange a formação técnica/musical de um músico profissional treinada para construir sua capacidade de ‘falar música’ ou seja, traduzir para elementos estruturais musicais as percepções clínicas que tem de cada cliente em cada momento dos atendimentos individuais que realiza (Alvares, 2005 curso ministrado na UFG). Musicalidade Clínica em Musicoterapia 43 compasso e todos aqueles que formam o tecido musical) e a habilidade em responder, interagir, mobilizar ou ainda intervir musicalmente na produção do paciente, de forma adequada (Barcellos, 2004, p. 83). Mas o que seria responder de ‘forma adequada’? Na recursividade, presente em nossos momentos musicais, construímos com Marcos o seu processo. Ao construir ‘com’ e não ‘para’ Marcos o processo, permitimos uma correspondência entre nós dois. Pela recursividade, esta correspondência não é acidental “é o resultado necessário dessa história (...) nenhum de nós está aqui por acidente” e estabelecemos uma ‘congruência’. Segundo Maturana (2002)“isso, em si mesmo e em princípio, explica os aspectos mais salientes da conduta adequada. A conduta adequada é a conduta que é congruente com as circunstâncias nas quais ela se realiza” (Maturana, 2002, p. 62). Marcos mostrou-se muito interessado nesta nova experiência de sua vida. Sua musicalidade é fato presente. Considerando que o continente sonoro-musical de uma sessão de musicoterapia é ofertado pelo musicoterapeuta, desde as primeiras notas executadas por mim ao piano, passando pelo acompanhamento das percussões de Marcos até a apresentação de melodias, o objetivo primeiro era compor um espaço sonoro. Pequenas canções inspiradas nas condutas de Marcos, em momentos distintos da sessão, foram usadas como estratégias juntamente com as produções instrumentais, ora imitando-o, ora interrogando-o, algumas vezes concordando com ele, outras tantas discordando dele e com isso buscando a ampliação de sua musicalidade. Traduzir para uma organização sonoro /musical as percepções clínicas que tenho de Marcos durante o atendimento, constituem um grande desafio à minha produção musical. O que realizo tem mais eficiência na relação terapêutica quão mais envolverem esse ambiente de sensações e sentimentos de Marcos. Isso constitui o ‘perfil musical clínico’ do musicoterapeuta (Brandalise, 2001, p. 19). Durante nosso sexto encontro, Marcos estava muito irritado pela ausência da bateria no setting. Recorto trechos de um momento de interação sonoro / musical / corporal / verbal que chamei de ‘dormir e acordar’. Foi uma interação mais prolongada que as anteriores e a célula melódica de nosso primeiro encontro [Fig. 6b] fez - se presente. Aqui, compartilhamos uma brincadeira envolvendo as sonoridades do violão e os movimentos sonoros / corporais de Marcos primeiro me desafiando ao lamber um instrumento musical e depois entregando-se às sonoridades harmônicas do vilão [Fig. 7]. 44 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Musicalidade Clínica em Musicoterapia 45 46 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Fig. 7 Dormir e acordar Pela intensidade das produções musicais diversificadas, presentes desde o primeiro encontro, e pelo cansaço expresso pela musicoterapeuta ao final da primeira sessão, percebemos que estar musicalmente com Marcos é estar musicalmente fragmentada. Nessa sua complexa organização desconexa, a musicoterapeuta, através da ação de sua musicalidade, precisou favorecer a emergência de “fios sonoros” (Barcellos, 1999). Os pequenos, mas significativos momentos de interação musical, apresentados no início deste artigo, tornaram-se pontos de certezas que constituíram amarras sonoras que foram se transformando em uma verdadeira teia sonora. Essa teia, por sua vez, cria um espaço de segurança, confiança e cooperação mútua (Craveiro de Sá, 2002). Coda A melodia sugerida pela musicoterapeuta para as castanholas (boca de jacaré, fig 6; 6a e 6b) usou de elementos rítmicos e intervalares já conhecidos de Marcos: colcheias mais semicolcheias, semínimas e o intervalo de 2ªM. A nota inicial dessa célula melódica foi a mesma da ‘primeira melodia’ de Marcos [Fig. 4], entoada no campo melódico de uma escala pentatônica. A surpreendente aceitação de Marcos para esta melodia é fato. No sexto encontro, a seqüência de acordes que envolveu Marcos e sua musicoterapeuta [Fig. 7] está, também, em um campo pentatônico. Olhando para o aspecto sociológico desta escala, temos que “é a mais universal entre todas [escalas](...) ela corresponde a um movimento ou a um estado de corpo e de espírito. (...) um modo (...) uma estrutura de recorrência sonora ritualizada por um uso.(...) uma escala correspondente ao jogo – estável e instável” (Wisnik, 2001, p. 74). Ao analisar estes atendimentos, e nos depararmos com as formas e as dimensões com que as interações sonoras /musicais / verbais / corporais se deram entre Marcos e sua musicoterapeuta, percebemos que uma mudança de pensamento fazia-se presente. Dessa forma, um pensamento linear, que concebe construções dentro de causas e efeitos, estímulos e respostas, não era possível. O que desvelava-se à nossa frente envolvia uma complexa relação entre a música, o musicoterapeuta e o cliente. Pesquisar a construção destas relações exige então uma metodologia aberta e flexível, uma metodologia qualitativa com uma leitura fenomenológica, onde um caminho não está construído, mas faz-se em cada passo do caminhante (o pesquisador) em seu campo de trabalho. Uma metodologia Musicalidade Clínica em Musicoterapia 47 concebida em prol da compreensão das regras de organização estabelecidas entre as partes a partir de um pensamento sistêmico, um pensamento complexo. Mas, o que é pensamento complexo? Primeiramente é parte da Ciência, é concebido no seio do desenvolvimento científico. Contudo, não deve ser compreendido “como receita, como resposta”, mas sim deve ser considerado “como desafio e como uma motivação para pensar”. Estar na complexidade é estar em contato, não com a ordem e a clareza, mas “a complexidade aparece como uma procura viciosa da obscuridade. Ora, repito o problema da complexidade é, antes de tudo, o esforço para conceber um incontornável desafio que o real lança a nossa mente” (Morin, 1998, p. 176). O paradigma da complexidade apresenta-se como uma continuidade do paradigma da simplicidade, aparece à partida como uma espécie de buraco, de confusão, de dificuldade (...) na visão complexa, quando se chega por vias empírico-racionais às contradições, isto significa não um erro, mas o atingir de uma camada profunda, não pode ser traduzida para a nossa lógica (Morin, 2001, p. 99). Construir alguns princípios para acolher essa mudança paradigmática na Ciência constitui a obra de Edgar Morin, Teoria da Complexidade. Importamos, deste sociólogo da atualidade, alguns princípios que nos ajudam a compreender um pouco mais o fenômeno ‘música na Musicoterapia’, assim como importamos dos biólogos Matura & Varela alguns conceitos da Biologia do Conhecer. Optamos, então, por conceber as formas de interações sonoras / musicais / verbais / corporais entre Marcos e sua musicoterapeuta como um acontecer de ‘acoplamentos estruturais’6 em que nossas musicalidades, ao se tocarem de forma consensual, possibilitaram a construção de caminhos que levaram a transformações. Construímos uma relação dialógica,7 convivendo, de forma harmônica, com a ordem e a desordem, o estável e o instável, com a certeza e a incerteza, a caminho da unidade, a partir das interações musicais consensuais. Dentro de uma recursividade organizacional,8 nossas condutas não foram por mero acaso, uma vez que “os produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores daquilo que os produziu” (Morin, 2001, p. 108). Também, consideramos que não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte (o princípio da forma holográfica), ou seja, a fragmentação musical de Marcos não é apenas uma parte de sua musicalidade e de sua personalidade, mas sua musicalidade e personalidade estão em cada parte fragmentada, oferecendo, ao musicoterapeuta, pistas, pontos a serem costurados. A partir da análise musicoterápica, tomando por base o conceito de “serendipididade”, de Morin (2004), detalhes aparentemente insignificantes, que muitas vezes aparecem nos elementos da música, em ritmos, melodias, timbres, harmonias, gestos e tempos musicais etc., contribuíram para favorecer a reconstrução da história pessoal de Marcos. “A partir 6 Acoplamento estrutural para Maturana & Varela (2001) constituem-se nas “congruências entre a estrutura da unidade e a estrutura do meio que atuam como fontes de perturbações mútuas (domínio das perturbações), desencadeando mutuamente mudanças de estado (domínio das mudanças de estado)” (p. 87) 7 Princípio Dialógico: a Teoria da Complexidade considera a existência de um pensamento que congregue as diferenças, acolha a complementaridade de conceitos aparentemente contrários, que permita a ordem e a desordem, a certeza e a incerteza de forma dialógica “mantendo a dualidade no seio da unidade” (Morin, 2001, pp. 107–109). 8 Princípio da Recursividade Organizacional. 48 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 de” e “nas” experiências musicais, foi possível compor uma nova história, um prelúdio a duas vozes inspirado em nossas musicalidades. Este, apesar de ainda inacabado, traz consigo a força de uma energia transformadora. Referências bibliográficas AIGEN, Kenneth. Music-Centered Music Therapy. USA: Barcelona Publishers, 2005. ALVARES, Thelma. O método Nordoff –Robbins de Musicoterapia –Creative Music Therapy. Texto distribuído no curso ministrado durante o 30º Festival Nacional de Música do Estado de Goiás. Goiânia: 2005 n/p. ANSDELL,Gary & PAVLICEVIC, Marcédès. Community Music Therapy. London: Jessica Kingsley Publishers, 2004, pp. 65– 90. BAECK, Erik. “The neural network of music”. In European Journal of Neurology. London: [s.n.] nº9 ano V,set, 2002. BARCELLOS, Lia Rejane. “Musicalidade Clínica”. In Anais do II Fórum Paranaense de Musicoterapia. Curitiba: AMT-PR. 2000 pp. 49–60. _____. “Musicalidade Clínica”. In Musicoterapia: alguns escritos. Rio de Janeiro: Enelivros, 2004 pp. 67–84. _____. “Mecanismos de Atuação do Musicoterapeuta: Ações, Reações e Inações!”. 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Romanelli (UFPR) Resumo: Discorrendo sobre a rabeca, instrumento típico do fandango, esta comunicação parte do entendimento da constituição deste instrumento, assim como alguns detalhes de seu processo de construção e as formas de execução, para levantar paralelos com o violino tradicional, em especial na forma como se apresentava no período barroco, a fim de estabelecer alguns parâmetros de comparação. A revisão de literatura defronta autores pioneiros no estudo do fandango como Pinto (1992) e Azevedo (1978), com estudos mais atuais de Marchi, Saenger e Corrêa (2002). Finalmente, apresentam-se alguns fundamentos da etnomusicologia, como proposta para a realização de um estudo mais aprofundado sobre a rabeca e o rabequeiro. Palavras-chave: rabeca; violino barroco; fandango paranaense; etnomusicologia Introdução A riqueza cultural brasileira é, em grande parte, decorrente da diversidade de suas origens. Ao incorporar influências artísticas das mais variadas etnias, foi construída uma densa trama musical que se manifesta em diversos gêneros e estilos. Procurar identificar os elementos musicais que fazem parte desta teia multicultural é uma constante busca dos brasileiros para entender a constituição de sua própria identidade. Contribuindo para entender os elementos que constituem o fandango, dança relacionado aos caiçaras dos litorais do Paraná e São Paulo, esta comunicação discorre sobre a origem da rabeca, procurando referenciais nas particularidades do violino do período barroco. Esta aproximação se justifica nas semelhanças entre estes dois instrumentos, que vão desde elementos de construção até modos de execução. A literatura sobre o fandango aborda com freqüência os instrumentos que lhe são característicos: as violas, o adufe e a rabeca. No entanto, no que se refere a este último, as análises são excessivamente superficiais, prendendo-se unicamente em critérios de observação empírica, sem o estabelecimento de relações mais aprofundadas, o que provoca equívocos científicos. Como aspecto agravante, partindo de um conhecimento também raso sobre o violino, muitos autores entendem a rabeca com um instrumento rústico, no sentido pejorativo, que é resultado da falta de conhecimento e de recursos materiais de seus fabricantes, ou seja, simplesmente consideram-na um violino de pouca qualidade que é fruto de cópias mal feitas por construtores ignorantes. Partindo deste panorama, propõe-se neste trabalho uma aproximação com o violino, não como única forma de análise, mas como uma possibilidade de clarificar o entendimento da origem deste instrumento, enfatizando as particularidades que o fazem um instrumento único e digno de ser estudado. O fandango O fandango, para Fernando Corrêa de Azevedo (1978) é o nome genérico de uma festa de caboclos das regiões isoladas dos litorais do Paraná e sul de São Paulo, que ocorre desde o tempo do entrudo (festividade do litoral precursora do carnaval) em que se dançam diversas coreografias denominadas “marcas”. Segundo Marchi e Saenger (2002), esta dança está relacionado ao mutirão (ou pixirão), ocasião em que membros de uma comunidade se reúnem para realizar uma tarefa que exige muita mão de obra. O “pagamento” deste trabalho se dá por meio da oferta de uma festa: o fandango, conforme sua definição apresentada por Leonildo Pereira que vê nesta ocasião o momento em que a família a e comunidade se reúne para “... trabalhar, tocar viola e cantar” (in Marchi, 2002, p. 41). Estes eventos populares são extremamente complexos, pois além de uma reunião coletiva, é nessas ocasiões em que se aprende a executar os instrumentos do fandango por meio da A rabeca do fandango paranaense 51 imitação e da prática: “E foi aonde nós aprendemos, tudo meus irmãos, não teve um que não aprendesse” (Leonildo Pereira in Marchi, 2002). Apresentando características de influência ibérica, esta dança é acompanhada de um conjunto instrumental formado por uma ou duas violas, uma rabeca e um adufe.1 Apesar de fazer parte da indumentária da dança, os tamancos utilizados pelos homens, especialmente em marcas batidas, podem também ser considerados instrumentos do fandango, uma vez que fazem marcações rítmicas que certamente são parte da trama musical da dança, conforme defende Roberto Correia (2002). Ainda de acordo com este autor, no que se refere à viola, é necessário destacar que existem variantes deste instrumento: a meia viola (ou machetão) e o machetinho, ambos menos comuns que a viola propriamente dita e freqüentemente relacionados com instrumentos intermediários para a aprendizagem da viola. A maioria dos pesquisadores que se dedicaram ao estudo do Fandango ressalta o gradativo desaparecimento desta dança que, em muitos lugares, já não expõe suas características tradicionais. Nas comunidades mais próximas a centros urbanos como Antonina e Morretes (no Paraná), o Fandango já desapareceu, pois, tratando-se de uma tradição transmitida apenas pela oralidade, ela sucumbiu juntamente com os seus protagonistas mais antigos. Este fato não acontece da mesma forma em Paranaguá - PR, pois nesta localidade esta dança ainda acontece, mesmo que de duas formas distintas: como experiência parafolclórica,2 no caso do grupo de fandango Mestre Romão e como manifestação tradicional, na Ilha dos Valadares (parte do município de Paranaguá), localidade onde há bailes de fandango sem qualquer fim turístico. Existem também regiões remotas do litoral sudeste de São Paulo e nordeste do Paraná que ainda preservam estas festas tornando-se um campo de estudo importante. Tratando-se de uma região costeira bastante recortada e de difícil acesso rodoviário, as tradições folclóricas puderam atravessar o século XX resistindo em algumas comunidades de pescadores, que se tornam um dos poucos locais onde o fandango pode ser estudado. Mesmo havendo locais que, devido ao seu isolamento, ainda preservam um fandango bastante autêntico, ultimamente, devido à crescente facilidade em acessar meios de comunicação de massa, como a TV e o rádio, existe uma tendência das gerações mais novas se desinteressarem pela dança tradicional concentrando a atenção nas novas tendências artísticas de abrangência nacional ou internacional, presentes nestes veículos de comunicação. Conforme dito anteriormente, o fandango ocorre por ocasião do mutirão, momento em que também se aprende a sua música e suas marcas. Entretanto, como estas reuniões são menos freqüentes diante do êxodo das populações das regiões isoladas, as possibilidades de se aprender o fandango também diminuíram. Os caiçaras tendem a deixar suas casas isoladas para tentar melhores condições de vida e trabalho, aproximando-se de centros urbanos, locais em que o mutirão é raro. Para Juliana Saenger (2002) este efeito pode ser verificado em depoimentos nostálgicos de fandangueiros mais antigos que vêm na urbanização do litoral um dos fatores que dificultam a preservação do fandango. 1 Também denominado adulfe, adulfo, ou adufo, trata-se de uma espécie de pandeiro que pode ou não apresentar platinelas. 2 Este grupo é considerado parafolclórico, pois já há uma descaracterização dos elementos do fandango original, fato provavelmente impulsionado pelo modo performático que grupo se apresenta, distanciando-se da dança com a adoção de roupas padronizadas e coreografias diferenciadas. Esta observação não pretende fazer o julgamento do valor cultural de um grupo parafolclórico, mas apenas diferenciá-lo das manifestações tradicionalmente ligadas à dança como opção de lazer. 52 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Diante de um panorama aparentemente pessimista, percebe-se que ainda há muitas manifestações de música tradicional brasileira que preservam sua autenticidade, apesar da influência dos meios de comunicação de massa. No que se refere ao fandango, novas gerações de fandangueiros e construtores de instrumentos encontraram nesta dança a ocasião de fortalecer a sua identidade cultural, como é o caso de Aorélio Domingues em Paranaguá. Este caiçara é construtor de rabecas e promove regularmente festas de fandango, sem qualquer pretensão turística, mas tendo como estímulo a continuidade de uma tradição que herdou de seus avós. A construção dos instrumentos do fandango Existem várias pesquisas feitas sobre o fandango, mas a maioria se concentra principalmente no levantamento das coreografias e da melodia principal das marcas. Sem desconsiderar a dança, também foram realizados estudos direcionados à música do fandango, abordando seus aspectos melódicos, harmônicos e instrumentais, como expõe Inami Custódio Pinto (1992). No entanto, ainda se faz necessário estudar com mais profundidade o papel que cada músico ocupa como protagonista desta manifestação, além vê-lo como difusor desta sabedoria popular que inclui o manejo e a construção de seu instrumento. De acordo com Roberto Corrêa (2002), a relação com os instrumentos tradicionais do fandango começa desde a infância, sendo uma aprendizagem baseada no desenvolvimento de intimidade com os instrumentos. A habilidade na construção dos instrumentos utilizados no fandango é transmitida oralmente entre as gerações e segue materiais e técnicas particulares e totalmente adaptados a esta região litorânea. Um fenômeno que paradoxalmente dificulta a preservação do fandango é a crescente preocupação ambiental das áreas em que vivem os caiçaras. Tratando-se dos últimos remanescentes da Serra do Mar, região que coincide com a área de manifestação do fandango, foram impostas novas leis ambientais visando a preservação deste ecossistema. Conseqüentemente, estas restrições influenciam diretamente os construtores de instrumentos, que, por exemplo, não podem mais coletar matéria prima para a fabricação de seus instrumentos em seu próprio ambiente de vida no risco de incorrer a um crime ambiental. Sem madeira não há instrumentos, e sem instrumentos não há fandango. Como será visto mais adiante, cada rabeca apresenta características únicas que identificam o seu construtor. O mesmo acontece com todos os outros instrumentos do fandango, pois cada artesão trabalha de acordo com sua memória, e suas possibilidades (que incluem habilidades, matéria prima e ferramentas). A realização de um projeto de construção de instrumentos baseado apenas na observação é uma das características mais marcantes destes construtores. Cada um dá ênfase àquilo que, de alguma forma, considera mais importante. A rabeca e sua origem A rabeca (ou rebeca, como corruptela, Hasse, 1977) é um instrumento de corda friccionada a arco que é mais reconhecido como uma variante popular do violino, instrumento característico da música européia. Possuindo geralmente três cordas (quatro, em alguns casos), a rabeca segue padrões de afinação variados preservando quase sempre um intervalo de quinta justa entre as duas cordas mais agudas. Como se trata de um instrumento de corda friccionada, o arco é parte fundamental do instrumento e pode ser definido como uma “vareta” de madeira que tenciona o elemento que vai friccionar as cordas de forma perpendicular. Este elemento é normalmente feito de crina de cavalo (como no violino A rabeca do fandango paranaense 53 tradicional), fitas formadas pelo miolo do cipó timbopeva, ou ainda de fios de nylon (em substituição aos materiais tradicionais). Este instrumento do fandango do litoral paranaense e paulista é construído em caixeta, uma madeira típica da região que tem qualidades muito particulares (como leveza, maleabilidade e resistência a certas pragas). Para os acessórios que exigem uma dureza maior (como o cavalete, o estandarte e o arco), são utilizadas a canela preta ou o cedro, entre outras madeiras duras. Desta forma, a construção da rabeca depende do conhecimento dos elementos da natureza por parte de seus construtores. A rabeca não é de forma alguma exclusiva do fandango, pois pode ser encontrada em várias partes do Brasil, sempre relacionada com alguma manifestação folclórica, seja dança ou folguedo, ou até mesmo na América andina e na América Central em que este instrumento é comum na música popular, como afirma Dominic Gill (1984). Segundo este autor, a origem dos instrumentos de corda friccionada está relacionada às primeiras experiências em friccionar um arco de caça em uma corda livre (que poderia inclusive ser outro arco) a fim de produzir som. A adaptação de uma caixa de ressonância para amplificar a vibração da corda deu origem à instrumentos de corda friccionada das mais variadas formas. No entanto, a rabeca do fandango paranaense apresenta particularidades que não são encontradas em seus semelhantes em outras regiões do Brasil. Segundo Aldo Hasse (1977), e conforme escrito anteriormente, os instrumentos do fandango são feitos pelos próprios executantes e seguem particularidades de construção muito especiais. Quanto à aprendizagem da rabeca, normalmente passa-se antes por outros instrumentos, como o adufe e a viola, como exemplifica a própria experiência de Leonildo Pereira de Guaraqueçaba, Paraná “...Era a vez que eu comecei a ver tocar viola. E meio devagarzinho, e logo também, entrei em entendimento e já aprendi a tocar na viola (...) Depois meu padrinho me deu uma rabeca, comecei a tocar rabeca...” (in Marchi, 2002). Nas diferentes variantes de rabeca do fandango, é possível encontrar a rabeca de coxo e a rabeca de aro. No primeiro caso a denominação se refere à maneira de construção onde o corpo do instrumento, juntamente com o braço e o cravelhal3 é esculpido em um só bloco de madeira, à maneira de escavação de um coxo (ou de uma canoa de um só tronco), sendo apenas o tampo colado para fechar a caixa de ressonância do instrumento. A rabeca de aro recebe esta denominação, pois suas partes: tampo, fundo, braço e faixas laterais, são esculpidos ou moldados em pedaços distintos de madeira e mais tarde unidos por cola. O aro da nomenclatura se refere às faixas laterais que se formam um contorno de madeira antes do instrumento ser montado, seguindo um padrão de construção semelhante ao do violino. Conforme dito anteriormente, as características pessoais dos artesãos que constroem estes instrumentos estão presentes em cada detalhe e, como a sua construção não segue uma padronização acadêmica, mas depende da memória e da observação, cada construtor tem uma maneira única de elaborar os instrumentos (Corrêa, 2002). Este fato resulta em rabecas únicas e com detalhes que identificam o seu construtor (fato bem mais complicado de identificar em violinos, por exemplo, que seguem uma tradição centenária de construção que é bastante acadêmica). Tomando como exemplo Martinho dos Santos de Morretes e Aorélio Domingues de Paranaguá, que constroem rabecas de aro é possível encontrar alguns pontos interessantes: 3 O cravelhal se encontra na extremidade do instrumento e é o espaço onde se fixam as cravelhas que servem para tencionar as cordas da rabeca. 54 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Uma das marcas registradas das rabecas de Martinho dos Santos é a voluta4 esculpida com uma curva invertida. Neste ponto é interessante notar que Yehudi Menuhin (1996) descreve a voluta do violino como o toque final do luthier,5 ou seja, como a síntese de sua criação, indicando as habilidades únicas do construtor. Esta é uma característica que também se observa nas rabecas do fandango. Outro aspecto notável nas rabecas de Martinho dos Santos é a confecção do tampo e fundo nos padrões da construção do violão ou da viola, ou seja, com barras que fortalecem a estrutura do instrumento. Trata-se, além de um indício de exclusividade de cada instrumento, e de um vestígio da fonte de conhecimento deste construtor, que adaptou técnicas de construção de violas para a rabeca. A mesma adequação acontece para as faixas laterais que são feitas a partir de um único pedaço de madeira muito fina que é dobrada para fazer o formato em “8” do instrumento (diferentemente, em um violino, este formato é composto de quatro secções distintas, a fim de fazer as angulações necessárias). Quanto aos instrumentos de Aorélio Domingues, destaca-se o fato de possuírem uma grande bombatura6 o que se reflete em um som bastante característico, experiência acústica semelhante aos violinos construídos por Jacob Stainer e Nicolo Amati no séculos XVI e XVII (Gill, 1984). Também são encontrados nas rabecas construídas por este caiçara detalhes em marchetaria7 que são um exemplo de refinamento na decoração do instrumento, uma vez que não têm qualquer objetivo acústico, sem influenciar os aspectos timbrísticos do instrumento. Os dois exemplos citados acima são uma amostra da riqueza que existe no universo das rabecas. Como cita Ana Salvagni (1997) cada rabeca é sempre um instrumento novo que conseqüentemente apresenta novos timbres. Esta exclusividade é resultado de uma maneira de construir totalmente baseada na experimentação. A origem da rabeca ainda não é totalmente conhecida, o que estimula a pensar em todas as possibilidades de procedência, incluindo as principais etnias que formaram os primeiros brasileiros: os índios, os negros e os portugueses. Ao reclamar sua origem indígena, não se descobrem muitas pistas. Encontra-se na música indígena uma predominância de instrumentos idiófones, aerófones e membranófones (em ordem de incidência). Os instrumentos cordófones são incomuns, sendo inexistentes os de corda friccionada.8 Como raro exemplo de instrumento de corda, há o ka-txo-stê dos índios Ramkôkâmekra do Maranhão, que é feito com um talo de buriti (espécie de palmeira), em que fibras são desfiadas sem serem desprendidas da peça principal e são tencionadas por meio de cavaletes. Segundo Helza Camêu (1979) que realizou estas pesquisas, não há informações sobre como este instrumento é tocado. 4 Também conhecida como a cabeça do instrumento, a voluta fica logo acima da caixa de cravelhas, ou cravelhal. 5 Luthier; aquele que constrói e repara instrumentos de corda. 6 Bombatura pode ser entendido como as curvas esculpidas no tampo e no fundo que dão maior volume interno à caixa de ressonância do instrumento. 7 Marchetaria é a arte de incrustar finíssimas lâminas de madeira de diversas cores e tonalidades, no corpo do instrumento, a fim de produzir símbolos e desenhos. 8 Esta constatação é resultado de exaustivas buscas de instrumentos de corda friccionada na literatura sobre a música das comunidades indígenas. No entanto, para fazer esta afirmação, não foram consideradas as comunidades que tiveram um contato pós-descobrimento com a rabeca, como é o caso dos índios Guarani da aldeia Karuguá, em Curitiba. Tampouco foi possível fazer esta alegação referindo-se a grande quantidade de tribos isoladas, cujas características musicais ainda não foram documentadas. A rabeca do fandango paranaense 55 Na tentativa de se estabelecer uma procedência africana para a rabeca, não se encontram muitas pistas, mesmo que neste continente haja uma grande quantidade de instrumentos de corda friccionada. Entretanto, os instrumentos a arco presentes na África não têm a caixa de ressonância com a forma em “8”, característica da rabeca do fandango (e também do violino e sua família). Este fato não indica de forma alguma a falta de criatividade na invenção de instrumentos cordófones a arco, o que se demonstra pela existência de um instrumento muito semelhante ao exemplo indígena descrito acima (o ka-txo-stê), só que desta vez em Moçambique, de acordo com as pesquisas de Margot Dias (1986). Trata-se do Nkungulandi, uma espécie de cítara tubular, também chamada cítara tubular idiomonocórdica. Assim como o instrumento dos índios Ramkôkâmekra, esta espécie de cítara também é feita a partir do desprendimento de uma fibra do corpo do instrumento, desta vez uma secção de bambu, complementado por cavaletes tencionadores. Os dois exemplos apresentados acima apontam que o formato em “8” não pode ter surgido ao acaso, uma vez que em várias regiões onde a cultura musical inventou inúmeros instrumentos de corda friccionada, este formato que se assemelha ao violino não é encontrado. A partir destes levantamentos, esta comunicação defende que a origem ibérica da rabeca parece ser a mais plausível. De acordo com Aldo Hasse (1977) a rabeca (provavelmente com violino) deve ter sido introduzida no Brasil pelos padres Jesuítas no século XVI, que viam a música como um importante instrumento de evangelização. Esta é, aliás, uma característica importante da estética da música do período barroco, momento em que nasce a Companhia de Jesus, a ordem dos Jesuítas. Este período da história da música é marcado pela emancipação do violino como um instrumento fundamental da música daquela época, lugar que ocuparia durante todos os períodos que se seguiram, constituindose (juntamente com os outros instrumentos da família do violino) como base da orquestra. Quanto ao violino barroco, é interessante observar alguns detalhes que o fazem diferente do violino moderno, ou clássico; são eles, conforme Dominic Gill (1984): um espelho mais curto; braço do instrumento paralelo ao corpo, tendo, conseqüentemente, um espelho angular para acompanhar a inclinação da corda que vai da pestana ao cavalete; a ausência de queixeira, indicando que o instrumento era tocado apoiado no peito, ou levemente colocado sobre o ombro. Todos os detalhes do violino barroco descritos acima poderiam perfeitamente servir para descrever a rabeca. Esta constatação intrigante pode indicar que a rabeca é a “cópia popular” dos violinos trazidos pelos Jesuítas há 500 anos, ou seja, a rabeca é um instrumento que teve suas técnicas de construção transmitidas oralmente, preservando por gerações maneiras de conceber um instrumento de acordo com o período barroco, sendo uma testemunha do tempo antes da chegada da reforma ocorrida no violino,9 que se mantém até hoje. Detendo-se principalmente na investigação sobre a origem da rabeca, esta comunicação não pretende exceder sua proposição inicial, no entanto existe a intenção de propor futuras pesquisas no que se refere ao espaço que o rabequeiro ocupa no grupo musical que acompanha as danças do fandango. Entre as diferenças notáveis que envolvem a rabeca e os outros instrumentos utilizados no acompanhamento do fandango, a postura do instrumentista parece ser um vasto campo de estudo. Enquanto a viola e o adufe são instrumentos que se beneficiam de uma certa popularidade, encontrando um maior número de músicos que saibam manejá-los, a rabeca parece ser uma tradição passada a poucas 9 A reforma de alguns elementos do violino (e sua família) data de 1830, período em que a nova estética musical (relacionada com a ascensão da burguesia e salas de concerto maiores) exigia uma emissão sonora com mais potência e brilho. 56 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 pessoas que são, de certa forma, selecionadas por sua facilidade em manejar um arco que fricciona as cordas e em dedilhar o instrumento sem o auxílio de trastes (referência tátil de posicionamento de dedos, comum na maioria dos instrumentos de corda dedilhados como a viola ou o violão). A partir desta busca, propõe-se utilizar a etnomusicologia como categoria científica mais adequada no estudo deste problema. A etnomusicologia Na necessidade de aprofundar os estudos sobre fandango considera-se importante utilizar métodos que sejam criteriosos na coleta de dados e bem fundamentados na análise do material sistematizado. Desta forma, entende-se que a etnomusicologia pode apresentar respostas satisfatórias para a realização de uma investigação que pretende entender não apenas a rabeca, mas o seu tocador: o rabequeiro. Dentro da necessidade que o homem tem de entender a sua existência, e sua relação com o meio no qual vive, foram desenvolvidos diversos caminhos científicos. Dentre as várias vertentes, o campo das humanidades procura entender o homem no tempo e no espaço a partir do ponto de vista humano. A esse nível, a etnomusicologia almeja compreender o homem por meio de sua expressão musical (Mukuma, 1983, p. 23). Segundo Mukuma (Ibid, p. 24), evitando uma definição obsoleta de música com concepções eurocêntricas (“arte de organização de sons em padrões agradáveis ao ouvido”), a etnomusicologia considera outra aproximação conceitual: “música é tudo aquilo que é assim designado pelo seu produtor”. A etnomusicologia se concentra, então, no estudo da música na cultura destes povos. Alam Merian ampliou este conceito de música, utilizandose de uma visão behaviorista assumindo, segundo Bastos (1978, p. 40), a difícil tarefa de juntar música com cultura. A música pode ser definida como um produto do comportamento humano da sociedade: Um produto estruturado do homem, mas a sua estrutura não pode ter uma existência própria divorciada do comportamento de quem a produz. Para compreender por que é que a estruturação da música existe como tal, devemos também compreender o como e o porquê dos conceitos subjacentes a esse comportamento que são ordenados de modo a produzirem uma forma particular desejada de som organizado. (Merian, 1964, p. 7 in Mukuma, pp. 24, 25). Apesar de bastante abrangente, esta definição apresenta a música como instrumento importante para a compreensão do comportamento humano. Desta forma, a etnomusicologia é considerada uma disciplina humanista, preocupando-se com o homem e usando a música como meio de estudo. Mukuma exemplifica a função do etnomusicólogo comparando-o com o crítico musical. Enquanto este último se satisfaz em descobrir a mensagem presente em uma manifestação artística, o primeiro utiliza o conhecimento desenvolvido para determinar a razão de uma certa expressão musical. Ao analisar outros aspectos da etnomusicologia, Mukuma (1983) entende que este método científico de investigação deriva de campos distintos do conhecimento humano, tornandose um processo interdisciplinar de estudo. A esse respeito, Bastos (1978) apresenta as três tradições musicológicas no ocidente: 1. Musicologia histórica, ou simplesmente musicologia, é a mais antiga, datando dos tempos da civilização grega clássica. Deriva, como disciplina, da história. A rabeca do fandango paranaense 2. 57 Sociologia da música, ou sociomusicologia. Surgida em fins do século XIX, é uma vertente sociológica da musicologia histórica e está mais relacionada ao campo da sociologia. 3 . Etnomusicologia, também conhecida como psicomusicologia quando aborda o aspecto psicológico da música. É uma vertente antropológica da musicologia histórica. Surgida junto com a sociologia da música, também é contemporânea ao desenvolvimento do folclore. Esta última se apresenta mais próxima do que é necessário estudar no fandango paranaense, impedindo a retirada dos protagonistas desta dança de seu local natural de vida, o que evita pesquisas artificiais que levantam dados que se tornam pouco úteis no processo de preservação da memória cultural. Jonathan Stock (2000), em sua página eletrônica dedicada ao tema, considera como uma das mais interessantes definições para etnomusicologia, a de Jeff Todd Titon: “o estudo de gente fazendo música”. A partir desta curta definição, Stock entende que etnomusicólogos estão tão interessados no processo de criação musical de certas pessoas, quanto na música por elas produzidas. Desta forma, o interesse não se limita apenas às estruturas musicais descobertas, mas a todo o processo e contextos pelos quais ela foi imaginada e elaborada. A etnomusicologia estuda a produção musical no mundo inteiro, sempre procurando entender o que esta arte representa para cada grupo particular de pessoas, descobrindo qual a importância da música em suas vidas. Domingos Morais (1983), que considera a etnomusicologia um “instrumento privilegiado de análise e compreensão da vivência musical contemporânea”, salienta que o principal objetivo deste estudo está na preservação de valores culturais. Segundo este autor (1983, p. 15), as culturas que estão em rápida transformação ou em desaparecimento, têm a necessidade de resgatar e registrar, para as próximas gerações, uma parcela importante do patrimônio cultural humano. Desta forma, considerando as várias finalidades da etnomusicologia, afirma que “(...) a Etnomusicologia (...) é hoje parte e instrumento indispensável na formação de profissionais de diferentes sectores de actividade, desde os especificamente musicais ao ensino nos vários níveis, sem esquecer os mass-media”.(Morais, 1983, p. 15). Observando este ponto de vista, fica claro que a etnomusicologia tem objetivos educacionais quando pretende resgatar valores culturais, preservando-os para gerações futuras. Ainda relacionando a etnomusicologia com a educação, foi considerado importante transcrever abaixo um trecho escrito por Bastos, diferenciando os graus de abrangência de duas abordagens musicais diferentes. Note-se que ‘falar sobre’ e ‘fazer’ música são categorias que delimitam respectivamente os discursos ‘antropológico geral’ (‘cultura musical’) e ‘etnomusicológico’ (‘música’). Como se vê, também aqui se manifesta aquela idéia da prevalência da ‘cultura’ ante a ‘música’. Ainda sobre as duas primeiras categorias, vale a pena refletir, de passagem, sobre o fato do insucesso musical do estabelecimento de ensino musical por excelência no Brasil, o conservatório: este insucesso parece que se deve, entre outras coisas, ao fato de o estabelecimento se dedicar muito mais ao ‘falar sobre’do que, efetivamente, ao ‘fazer’ música. (Bastos, 1978, p. 60). Segundo Monique Desroches (1983), os conceitos sobre música, sua percepção, estruturação e funções mudam entre diferentes povos e culturas. Diante deste quadro de 58 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 tantas variações, o estudo e o registro destas formas de expressão cultural estarão diretamente relacionados com os métodos e aproximações empregados pelos pesquisadores. Assim, cria-se um dilema: ocorre uma individualização gradativa nos métodos de investigação, um dos problemas fundamentais da etnomusicologia. Baseando-se na exposição apresentada acima sobre etnomusicologia, percebe-se que não se trata de um caminho de investigação científica que está livre de problemas, no entanto, diante de uma proposta de aprofundamento sobre a relação do rabequeiro com o fandango, devido ao campo de estudo bastante limitado, deve-se primar ao máximo pelos métodos científicos utilizados. A etnomusicologia parece ser uma alternativa viável para futuros estudos. Considerações finais A preocupação com o desaparecimento dos tocadores e construtores de rabeca já pode ser notada no texto de Aldo Hasse, em 1977. Após quase trinta anos, nem o dança e tampouco a rabeca desapareceu, muito menos seus executantes ou construtores. Este fato expõe o dinamismo dos processos de transmissão cultural que desafiam as preocupações da academia, alimentando esperanças e demonstrando que a cultura popular tem sólidos, e ainda desconhecidos, processos de sobrevivência que merecem ser estudados. Uma análise do fandango apenas preocupada em descrever uma manifestação popular a partir de um certo distanciamento já foi o caminho percorrido por muitos pesquisadores. Sem desmerecer a importância das primeiras aproximações sobre esta dança, que certamente foram fundamentais para esta comunicação, enfatiza-se a necessidade de promover estudos mais aprofundados na área, envolvendo os aspectos humanos da pesquisa. Esta proposta é sem dúvida desafiadora, uma vez que a pesquisa em ciências humanas e sociais tende a ser extremamente complexa, no entanto, é por este caminho que poderá ser desvendado um universo que é certamente mais sedutor do que o foi pesquisado até então, revelando-nos muitos aspectos inimagináveis sobre o fandango. Isto certamente despertaria a atenção que esta manifestação popular merece. Finalmente, a tentativa de procurar uma explicação para a origem da rabeca é uma forma de propor novas aproximações científicas com o fandango. Esta comunicação tinha a pretensão de se contrapor a generalizações baseadas apenas em uma observação superficial, tão presente em muitas pesquisas sobre o fandango. Acredita-se que com os argumentos expostos foi possível entender que a rabeca não tem origem africana nem indígena. Tampouco é verossímil imaginar que tal instrumento simplesmente partiu da imaginação de algum artesão mais talentoso. Conclui-se que a rabeca se caracteriza como uma construção artesanal transmitida oralmente que reside na memória de seus construtores remontando gerações até a época em que algum caiçara teve contato com um violino barroco que veio de Portugal ou da Espanha (especialmente nos casos dos Jesuítas). A partir deste contato, começou a produzir um novo instrumento com base nas imagens que estavam em sua memória. Referências bibliográficas. AZEVEDO, Fernando. C. de. Fandango do Paraná. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. BASTOS, Rafael J. de M. 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Atuou em grupos de música de câmara, em especial no Quarteto da PUC-PR, com o qual representou a América Latina no Festival International de Musique Universitaire, em Belfort, França. Participou da gravação de vários Cds. Foi aluno de construção de rabecas com Aorélio Domingues em 2003. Ainda hoje é aluno de violino dos professores Marco Vinícius Damm e Paulo Bosísio. Mestre em educação é professor de metodologia do ensino da música, prática de ensino e estágio supervisionado, e oficina de construção de instrumentos no departamento de Teoria e Prática de Ensino do Setor de Educação da UFPR. Atualmente é aluno do curso de doutorado em educação da mesma universidade, desenvolvendo uma pesquisa na linha Escola, Cultura e Ensino. Alceo Bocchino: Sonatina para piano – uma abordagem analítica-estrutural Josely Maria Machado Bark (UNICAMP) Resumo: O presente trabalho reúne informações obtidas na pesquisa concluída no curso de mestrado (IA/UNICAMP, 2002). Como objetivo, realiza uma análise da Sonatina para Piano de Alceo Bocchino, a qual compreende três movimentos: Toccata, Invenção e Cadenza. Para a análise musical, utiliza as técnicas desenvolvidas por A. Schoenberg, que investiga os motivos e suas variações, e por J. White, que observa o comportamento dos parâmetros: ritmo, melodia, harmonia e sonoridade. Desse estudo são levantadas informações sobre a linguagem empregada, os elementos composicionais característicos utilizados pelo compositor e como ele os manipula. A conclusão destaca as informações de maior interesse obtidas da análise efetuada, o que contribui para a melhor compreensão e interpretação da obra. Palavras-chaves: Bocchino; Sonatina; Piano; Análise. Introdução Nas primeiras décadas do século XX, ocorreram profundas transformações na linguagem – dissonância - e nos estilos – pluralismo – da arte musical. Com relação à questão da dissonância, já ao final do século XIX, compositores envolvidos pelo sistema tonal mas preocupados com os conflitos gerados pelos choques de sonoridades, observaram o relativismo implícito da teoria clássica sobre “tensão/repouso”, através de ocorrências como: o emprego simultâneo de um si sustenido e um si natural por Georges Bizet (1838–75) numa passagem de L’Arlésienne (1872);1 o emprego sutil e inusitado das apogiaturas por Maurice Ravel (1875–1937); o emprego de um número amplo de tonalidades diversas por Wagner no início do prelúdio de Tristão e Isolda (1865); o uso de modos medievais2 e orientais por Debussy (1862-1918), como por exemplo, o modo frígio no segundo dos Nocturnes (1893–1899).3 Numa segunda fase, a dicotomia “tensão/repouso” foi explicada científica e culturalmente pelo compositor austríaco Schoenberg. O ponto nodal de sua teoria incide na emancipação do conceito tradicional de dissonância. O decodificador das mensagens dos discursos musicais habituou-se, durante séculos, à oposição sons consonantes versus sons dissonantes, devido à inserção dos sons dissonantes entre os últimos harmônicos.4 Em contrapartida, as escutas mais freqüentes dessas sonoridades mais remotas favoreceram as emancipações dos acordes de sétima, de sétimas diminutas, de quintas aumentadas; e tornaram audíveis com maior nitidez, os empregos de dissonâncias nas obras de Wagner, Strauss, Mussorgsky, Debussy, Mahler e Puccini. 1 L’Arlésienne (A Arlesiana): Música incidental muito popular de Bizet para a peça do mesmo nome de Alphonse Daudet. Da partitura original foram extraídas duas suítes orquestrais, uma pelo próprio Bizet, em 1872, e outra por Guiraud, após a morte do compositor. 2 Os modos medievais se originam da escala pitagórica grega, e têm como base o que hoje são as notas brancas do piano, com certas diferenças de afinação. Por volta do séc. II d.C., os gregos utilizavam a escala pitagórica de sete maneiras diferentes. Estas foram adaptadas no séc. IV por Santo Ambrósio, bispo de Milão, para uso eclesiástico em quatro modos, mais tarde conhecidos como modos autênticos. No séc. VI, São Gregório Magno aperfeiçoou os modos ambrosianos e acrescentou-lhes mais quatro, então designados modos plagais. Esses oito modos são os chamados modos eclesiásticos. Finalmente, no séc. XVI, o monge suíço Henricus Glareanus definiu 12 modos e atribuiu-lhes os nomes gregos: dórico, hipodórico, frígio, hipofrígio, lídio, hipolídio, mixolídio, hipomixolídio, eólio, hipoeólio, jônico e hipojônico. Com o desenvolvimento da harmonia, dois desses modos – o jônico e o eólio – passaram a ser mais utilizados, e ficaram conhecidos, a partir do séc. XVII como escala maior e escala menor. 3 Coleção de três peças para orquestra e coro feminino. Os movimentos são “Nuages”, “Fêtes” e “Sirènes”. 4 Wisnik, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 195–204. Alceo Bocchino: Sonatina para piano 61 O pluralismo estilístico da arte musical no século XX passou a se fundamentar em diferentes critérios composicionais como: polifonia harmônica ou fusão do contraponto e harmonia; dissolução do conflito consonância/dissonância; o poema sinfônico e a ópera teatral como formas mais significativas; o modo cromático atonal; o modo enarmônico; diversos tipos de relações de acordes e timbres; o compositor como autor do texto do poema dramático; a utilização do verso livre para se atingir a liberdade polirrítmica. “Ser moderno”, independentemente de uma tendência estético-cultural específica, implicava o desejo de o compositor reformular radicalmente os critérios conhecidos para escrever música. Em geral, nos principais pólos culturais europeus – Paris, Milão, Berlim, Viena–, os compositores de vanguarda almejavam contestar as culturas oficiais preservadas pela burguesia e aristocracia, durante o século XIX até a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914–1918). A fragmentação do sistema tonal – centro da chamada música universal no Ocidente – implicou o afloramento de movimentos modernistas, caracterizados pelos novos tipos de combinações e relações de agrupamentos sonoros. A apresentação de novas experimentações em peças como Pierrot Lunaire, de Schoenberg (1912), A Sagração da Primavera, de Stravinsky (1913), e Parade, de Satie (1917)5 foram duramente criticadas. As transformações técnico-estéticas desencadearam choques entre os artistas de vanguarda e o gosto musical sacralizado como uma “verdade histórica” pelas elites culturais e governantes da época. No Brasil, o gosto musical dominante nos principais pólos culturais desse momento histórico, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro (décadas de 1910 e 1920), circunscrevia-se num repertório calcado na tradição clássico-romântica. As obras consagradas e apresentadas nos programas de concertos restringiam-se a compositores do passado como Bach, Haendel, Mozart, Beethoven, Chopin, Schumann, Wagner, Brahms, Verdi e contemporâneos como Richard Strauss, Puccini, Pietro Mascagni e Gustav Mahler entre outros. A circulação de partituras desses compositores propiciou, através do piano e do canto, uma invasão sonora, sem precedentes históricos nos teatros, cafés e mansões burguesas dos principais núcleos urbanos e rurais no Brasil.6 Essa efervescência cultural ocorreu na Europa, no período de 1848 (as revoluções da primavera) a 1914 (Primeira Guerra Mundial), momento da aceleração da fusão do gosto da aristocracia oriunda do Ancien Regime e das burguesias liberais do século XIX.7 O belo musical como justificativa social, recreativa e utilitária conforme o pensamento iluminista, 5 Pierrot Lunaire op. 21 (1912). Escrita por Arnold Schoenberg. Peça atonal de colorações expressionistas. Compreende 21 melodias para uma Sprechstimme (fala cantada), piano, flauta, clarinete e violoncelo. A Sagração da Primavera (1913). Escrita para balé por Igor Stravinsky, com base nas lendas do folclore russo, utilizando novas estruturas de ritmo, de timbres e organizações de alturas. Parade, ballet réaliste en un tableau (1917). Escrita por Erik Satie; texto de Jean Cocteau; cenografia de Pablo Picasso; coreografia de Massime e Diaghilev. Satie incorporou músicas populares dos cafés-concertos; ruídos diversos, tais como máquinas de escrever e sirenes de ambulâncias. 6 Contier, Arnaldo. Modernismos e brasilidade: música, utopia e tradição. Tempo e História /organização Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras - Secretaria Municipal da Cultura, 1992. 7 Mayer, Arno. A Força da Tradição. A Persistência da Tradição do Antigo Regime, 1848–1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 62 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 consolidou-se na mentalidade de segmentos sociais consumidores de música de concerto (óperas, poemas sinfônicos, sonatas). Em busca de novas formas de expressão, alguns modernistas negaram a própria História e passaram a teorizar as suas novas experimentações, a partir de “arte autônoma ou independente”, nos textos escritos por Schoenberg, em sua fase atonal ou expressionista (1908–21). Em geral, os compositores modernistas partidários das mais diversas concepções técnicoestéticas tais como Debussy (1862-1918), simbolismo (Pelléas);8 Schoenberg, expressionismo, atonalismo, “Escola de Viena” (Op. 10, 1907); o Grupo dos Seis: Milhaud (1892–1974), Honneger (1892–1955) e Poulenc (1899–1963), em especial; Schoenberg, dodecafonismo (Suíte para piano op. 25); Webern (1883–1945) e Alban Berg (1885–1935), música serial; Bartók (1881–1945); Manuel de Falla (1876-1946); Satie, dadaísmo, futurismo; Eisler; Kurt Weill (1900–1950), arte engajada; entre outros, almejaram renovar o pensamento musical modificando as mentalidades então dominantes. No Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, os modernistas, preocupados com o ideal de atualização técnico-estética no campo musical em face dos modernismos europeus, passaram a defender, com veemência, a construção de um projeto em prol da criação de uma música brasileira nacionalista em suas especificidades rítmicas, melódicas, timbrísticas e formais. A música como os imaginários da literatura e do folclore, e a interpretação sobre uma determinada concepção da história do Brasil favoreceram a construção de um programa em prol da brasilidade modernista, baseada nas pesquisas temática e técnica da cultura popular. Assim, a criação artística brasileira das primeiras décadas deste século representa a lenta preparação para a grande revolução da Semana de Arte Moderna de 1922,9 movimento que abalou profundamente a vida cultural de São Paulo e que, pouco a pouco, atingiu todo o país, levantando um protesto contra o academismo reinante, pregando a modernização das linguagens artísticas e a necessidade de dar-lhe um caráter essencialmente nacionalista. Villa-Lobos (1887–1959) era o compositor da Semana de Arte Moderna, realizando concertos com a colaboração de músicos que com ele vieram do Rio de Janeiro. Junto a ele salientaram-se Francisco Mignone (1897–1986) e Mozart Camargo Guarnieri (1907–1993), compositores que derivavam de modo direto do movimento modernista e da orientação de Mário de Andrade, e que representaram os melhores frutos da concepção mais científica do estudo do folclore e da utilização direta – e às vezes bem simples, como desejava Mário de Andrade - da temática popular. Alceo Bocchino desponta dentro do conjunto atual de compositores brasileiros como herdeiro direto das orientações dos três compositores supracitados, figuras de primeira importância na história da música no Brasil. Além de Villa-Lobos, Francisco Mignone e 8 O termo impressionista, freqüentemente usado para descrever a música de Debussy, só em parte é apropriado: o próprio Debussy sempre se sentiu mais perto do movimento simbolista. Não obstante, suas obras parecem, muitas vezes evocar imagens através da sugestão de uma atmosfera e de um estado de espírito que seriam os equivalentes musicais do impressionismo nas artes visuais. 9 Contier, Arnaldo D. Música e Ideologia no Brasil. São Paulo: Novas Metas, 1985. A Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1922, visava renovar a linguagem artística abrangendo todas as artes. Na música, os artistas apoiados pelos agentes sociais dominantes ligados à burguesia agrário-exportadora, buscavam romper com a arte tradicional (música romântica), que envolvia técnicas e uso de temas musicais com influências européias. Compunha-se de exposições, conferências sobre a estética modernista, leituras de poemas e concertos. Alceo Bocchino: Sonatina para piano 63 Camargo Guarnieri, recebeu também orientação de Dinorah de Carvalho, Eleazar de Carvalho e Tomás Teran. Nascido a 30 de novembro de 1918 na cidade de Curitiba, Paraná, as atividades de Alceo Bocchino foram sempre bastante auspiciosas, não só como compositor, mas também como acompanhador, pianista, orquestrador, diretor musical de várias emissoras e como regente. Foi eleito para a Academia Brasileira de Música a convite de Villa-Lobos, que lhe deu a honra de organizar um recital com obras suas. Bocchino também tomou parte em uma excursão artística ao Norte e Nordeste do Brasil, organizada por Villa-Lobos. Foi assessor musical do ministro da Educação e Cultura, Clóvis Salgado, para as obras do chamado “barroco mineiro”, havendo dado apoio às pesquisas do musicólogo Curt Lange. Além de ser membro compositor da Academia Brasileira de Música (Cadeira no 37), pertence também à Academia Paranaense de Letras e à Academia Brasileira de Artes. É patrono da Cadeira de Música do Centro de Letras do Paraná, professor de Regência e Composição da Escola Villa-Lobos do Rio de Janeiro, e um dos fundadores da Orquestra Sinfônica Nacional (OSN) da Rádio MEC, onde foi regente titular por treze anos. Essa Orquestra, a OSN, formada em 1961 através de um decreto assinado pelo então presidente Juscelino Kubitschek, reuniu alguns dos mais importantes nomes da música brasileira do século XX. Seus integrantes estiveram envolvidos na atividade de produzir e freqüentemente registrar em fita um vasto repertório musical que incluiu, em grande proporção, música brasileira. Música composta por brasileiros das variadas regiões do país desde o período colonial. Música de influência folclórica, européia, africana e indígena. Música vocal e instrumental. Um pouco do vasto aspecto cultural do Brasil. E foi precisamente voltada para a educação e a cultura do país que a emissora foi criada. Sobre a Orquestra Sinfônica Nacional, diz o maestro Alceo Bocchino: “Pela cultura dos que vivem em nossa terra e pelo progresso do Brasil – essa era uma frase que a gente sempre tinha na cabeça.”10 A OSN era uma orquestra atuante num sistema oficial de radiodifusão, seguindo o exemplo das ORTF francesa, BBC inglesa, RAI italiana e Bayerische Rundfunk de Munique, Alemanha, com o objetivo de, segundo Edino Krieger, “preencher uma lacuna na divulgação do repertório sinfônico, priorizando a música brasileira e música contemporânea, ambas minoritárias na programação das demais orquestras do país.”11 Sua audiência não seria apenas aquela das salas de concerto mas, também, dos ouvintes da Rádio. Nas fichas da Rádio MEC estão registradas gravações de 101 obras12 de autores brasileiros pela OSN, no período entre a sua criação, em 1961, até 1972.13 Este processo envolveu 31 regentes, tendo Alceo Bocchino sido o mais freqüente na tarefa, aparecendo à frente da orquestra 39 vezes. Alceo Bocchino foi ainda presidente da comissão artística da Orquestra Sinfônica Brasileira e regente titular da mesma de 1960 a 1964. É também um dos fundadores da Orquestra 10 Azevedo, Cláudia. “A Rádio MEC como centro difusor da música de concerto no Brasil”. Brasiliana. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, n. 5, 2000, p. 5. O maestro Alceo Bocchino concedeu entrevista à autora em 18.09.98, na Escola de Música da UFRJ. 11 Krieger, Edino. “OSN – uma orquestra para a música brasileira”. O Amigo Ouvinte, Informativo da Sociedade dos Amigos da Rádio MEC, ano V, n. 18, julho de 1997, p. 4. 12 Azevedo, Cláudia. Op. cit. 2000, p. 8. Considerando-se os movimentos das obras, elas somam 193. 13 Ibidem. A OSN existiu na Rádio MEC até 1984, quando foi incorporada à UFF, mas o arquivamento mais recente nas fichas é de 1972. 64 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Sinfônica do Paraná, da qual foi maestro titular desde sua criação (1985), e atualmente é maestro emérito. É Cidadão Honorário do Município do Rio de Janeiro e Cidadão Benemérito do Estado do Paraná. Como educador, foi fundador e professor titular da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, ministrando aulas de diversas matérias teóricas. Lecionou no Conservatório Musical de Santos e na Escola de Música Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Foi co-fundador da Academia de Música Lorenzo Fernandez, com Arnaldo Estrella, Eleazar de Carvalho e Lúcia Branco, entre outros, onde hoje é professor titular. Professor e lançador de maestros consagrados, sua vasta atividade pedagógica revela um homem preocupado com o futuro e com a formação musical. Como compositor, sua obra está completamente inserida na corrente nacionalista e inclui páginas sinfônicas e camerísticas, além de canções e peças para instrumentos solistas, apresentadas também na França, Inglaterra, em Portugal, na Argentina e em Israel. Segundo o musicólogo Vasco Mariz, pode-se dividir a obra do compositor em três períodos: um anterior a 1944, de peças juvenis; o segundo, fortemente influenciado por Camargo Guarnieri, bastante rebuscado e de fisionomia claramente polifônica (como Trova para piano e Canção de Inverno para canto); e o terceiro período, que começa em fins de 1951 e evidencia tendência para maior simplicidade, de pesquisa da essência da música brasileira, talvez de maior sinceridade, técnica mais singela e maior expressividade também. Nesse último período as diretrizes gerais foram traçadas por Villa-Lobos, a quem estava ligado intimamente.14 Hoje, Alceo Bocchino mora no Rio de Janeiro, onde, além de compor, atende a diversos convites para reger e dar aulas. Também pode ser encontrado na Academia Lorenzo Fernandez e na Escola de Música Villa-Lobos duas vezes por semana, ministrando com o mesmo entusiasmo as cadeiras Ritmo, Transposição, Acompanhamento ao Piano e Regência. Sonatina para Piano - estrutura e material A Sonatina para Piano de Alceo Bocchino representa o ápice de sua produção pianística. Escrita entre 1950/51 foi dedicada ao pianista brasileiro Joel Bello Soares e é considerada por Edino Krieger “uma das mais significativas obras da literatura pianística do século XX no Brasil, juntamente com a Toccata de Cláudio Santoro”.15 Segundo Bocchino: “A Sonatina é una Piccola Toccata, uma pequena Toccata”.16 Compreende três movimentos: I. Com humor (Piccola Toccata); II. Invenção – Andante mosso; III. Cadenza: Tranquillo - Galhofeiro (Allegretto). Os movimentos Com Humor (I) e Cadenza (III) estão escritos na Forma-Sonata. No entanto, a Forma-Sonata empregada diverge da forma das Sonatas e Sonatinas dos séculos XVIII e XIX, pois possui a diferença de não apresentar a segunda idéia (Parte B) – ou segundo tema - na Reexposição. Os dois movimentos contêm na Reexposição exclusivamente a Parte A, exatamente como na primeira vez que ocorre. Esses dois movimentos se compõem de seis seções: Introdução, Parte A, Parte B, Desenvolvimento, Reexposição da Parte A e Coda. No movimento inicial – Com Humor – a Introdução, o Desenvolvimento e a Coda apresentam-se reduzidos em extensão. Já o terceiro movimento 14 Mariz, Vasco. História da Música no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 286. Secretaria de Estado da Cultura (PR). Música erudita paranaense. Curitiba, v.1, 2000, p. 6. 16 Comunicação pessoal. Curitiba, maio/1999. O compositor refere-se aqui especificamente ao primeiro movimento "Com humor". 15 Alceo Bocchino: Sonatina para piano 65 – Cadenza – amplia essas partes, o que permite o desenvolvimento sobre maior variedade de materiais. O movimento intermediário (II) recorre ao processo contrapontístico da Invenção, contendo três seções: Exposição, Desenvolvimento e Reexposição. Primeiro movimento - Com humor (Piccola Toccata) O primeiro movimento da Sonatina possui caráter predominantemente rítmico. A manutenção do desenho rítmico inicial, com unidade de tempo subdividida em quatro pulsos iguais, andamento rápido e em contratempo com a voz inferior, estabelece um motoperpétuo bem característico de uma Toccata, o que justifica a denominação Piccola Toccata indicada pelo próprio compositor junto ao andamento (Ex. 2.1). Ex. 2.1. Bocchino, Sonatina para Piano, primeiro movimento - Com Humor - (cc. 1 a 4) A Seção 3 intermediária (Parte B, cc. 30 a 45, Ex. 2.2). introduz um contraste, ao evidenciar a melodia sobre os outros elementos. Com o tratamento polifônico das vozes, traz o caráter mais expressivo e cantado. Ex. 2.2. Bocchino, Sonatina para Piano, primeiro movimento - Com Humor - (cc. 30 a 33) – Início da Seção 3 Esse movimento inicial é construído a partir de seis motivos básicos (Tab. 1). 66 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Tabela 1 Motivos básicos do primeiro movimento - Com Humor Durante o primeiro movimento da Sonatina, o Motivo 4 é o que apresenta maior número e tipos de variações. São variações rítmicas, intervalares, por transposição, melódicas, na articulação, por preenchimento harmônico dos intervalos, e por fragmentos, tal como ilustrado na Tabela 2. O Motivo 1, apesar de introduzir a obra, possui menor número de variações. Como conserva sua característica rítmica praticamente inalterada durante o primeiro movimento (com exceção da Parte B intermediária, Ex. 2.2), faz com que o ritmo seja o elemento predominante. O Motivo 3 pode ser considerado como uma variação do Motivo 1 ou mesmo do Motivo 1.1, como ilustra o Ex. 2.3. Nesse caso o Motivo 3 seria uma variação rítmica por ampliação dos anteriores, com supressão dos intervalos intermediários (3as) e das notas formadoras dos intervalos de 6as. No entanto, optou-se por classificá-lo como motivo básico, pois é a célula introdutória e de conclusão do terceiro e último movimento - Cadenza. Também as escalas pentatônica e de tons inteiros foram classificadas como motivos básicos, uma vez que aparecem com freqüência, seja como simples repetição, ou modificadas, em variações. Alceo Bocchino: Sonatina para piano Tabela 2 Variações do Motivo 4 no primeiro movimento - Com Humor Ex. 2.3 O Motivo 3 como variação dos Motivos 1 e 1.1 67 68 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Segundo movimento – Invenção O termo Invenção usado como título desse movimento está plenamente de acordo com a forma e estilo da composição. A textura é contrapontística a duas vozes, e se desenvolve sobre material motívico reduzido – somente dois motivos básicos (Motivos 7 e 8, Ex. 3.1) – com o uso extensivo do contraponto inversível.17 Ex. 3.1. Bocchino, Sonatina para Piano, segundo movimento – Invenção – (cc. 1 a 3) – Motivos básicos Da utilização do contraponto inversível, para o ajuste dos Motivos 7 e 8, então denominados Motivo e Contramotivo, existem Episódios18 rítmicos, formados predominantemente por porções desses motivos básicos. No segundo movimento da Sonatina os dois Motivos formadores possuem quantidades aproximadas de variações. Assim, com suas respectivas variações, constroem a obra em conjunto e se desenvolvem em igual proporção. Isso está de acordo com a definição de uma Invenção, a qual se constitui de uma obra contrapontística centrada no desenvolvimento de material derivado de um ou dois Motivos.19 Esse movimento estabelece alto contraste com o primeiro, devido a fatores como: caráter mais melodioso, forma da composição, estilo polifônico, andamento mais calmo, simplicidade dos motivos empregados e redução do número de motivos. Fato interessante a se observar da comparação entre os dois primeiros movimentos é o uso da semicolcheia como figura padrão, majoritária, porém construindo ambientes totalmente contrastantes. No primeiro movimento, a unidade de tempo formada por quatro semicolcheias (compasso 2/4 nos dois movimentos) estabelece uma sonoridade viva, dançante e “bem humorada”. Isso ocorre também devido ao andamento rápido, ao toque mais seco – staccato, e ao tratamento harmônico dos intervalos. No segundo movimento, a unidade de tempo também subdividida em quatro semicolcheias produz o ambiente vocal, 17 Kennan, Kent. Counterpoint – Based on Eigtheenth-Century Practice. 4.ed. Upper Saddle River: Prentice Hall, 1999, p. 115. O Contraponto Inversível ou Duplo Contraponto ocorre quando duas vozes são “inversíveis”, ou seja, quando qualquer uma delas pode ser utilizada como voz superior ou inferior, com bons resultados. Para três vozes, utiliza-se também o termo Triplo Contraponto. A palavra “inversão” deve ser entendida aqui como o nível ou posição relativa entre as vozes, e não deve ser confundida com o artifício da variação por movimento contrário, ao qual freqüentemente se denomina “inversão”. 18 Kennan, Kent. Op. cit. 1999, p. 134. Episódios são seções derivadas de uma porção do motivo ou do contramotivo, ou até mesmo de outro material novo. Podem ser de qualquer extensão, mas freqüentemente ocupam dois a quatro compassos. O motivo, quando utilizado como base, geralmente não aparece na sua forma completa, mas em segmentos menores. Os Episódios são quase sempre seqüenciais. Suas funções principais são: a modulação de uma tonalidade para outra, e a interrupção de repetições demasiadas e sucessivas do motivo. 19 Ibidem, p. 126. Alceo Bocchino: Sonatina para piano 69 singelo, melodioso. O estilo polifônico, com o uso do contraponto inversível, o toque legato, e o andamento Andante mosso – contribuem conjuntamente para a formação dessa sonoridade. O segundo movimento da Sonatina para Piano demonstra a possibilidade de se utilizar, no século XX, um estilo de composição, que remonta ao século XVIII (Invenções de Bach). O compositor exibe nesse movimento sua alta habilidade contrapontística, uma vez que utiliza material motívico extremamente reduzido, e consegue, de forma criativa e interessante, o pleno desenvolvimento da obra. Terceiro movimento – Cadenza A Cadenza se desenvolve sobre variações dos motivos básicos dos movimentos anteriores Com Humor e Invenção, apresentando portanto forma cíclica de composição.20 Como o primeiro movimento apresenta característica predominantemente rítmica e o segundo movimento contrasta com o anterior por evidenciar a melodia, não existe, para toda a Cadenza, um aspecto predominante entre os quatro elementos analisados: ritmo, melodia, harmonia e sonoridade. Contudo, ao se tomar cada seção individualmente, é fácil perceber sua qualidade prioritária e os contrastes entre as seções inferidos pelas mudanças dessa característica principal. Já na Introdução, a célula inicial provém do primeiro movimento (Ex. 4.1), porém apresenta o Motivo 3 ritmicamente modificado e o Motivo 2b com variação intervalar. Em toque legato, esses Motivos assumem caráter melodioso, expressivo. Ex. 4.1. Bocchino, Sonatina para Piano, terceiro movimento – Cadenza – Célula inicial Para a composição do terceiro movimento – Cadenza – observa-se que nem todos os motivos do primeiro movimento são empregados. Os Motivos 1 e 5, por exemplo, não estão presentes na Cadenza. Entre os motivos envolvidos, os de número 3, 4 e 7 são os que aparecem com maior número de variações. O Motivo 3 compõe a célula inicial e final do movimento. Aparece no início em andamento lento, com caráter tranquillo e expressivo, destacando o elemento melódico. Ao final, em andamento rápido, reforça o elemento rítmico, em toque staccato seco e com intensidade fff. O Motivo 4 possui originalmente forte qualidade rítmica, uma vez que é composto por conjuntos de quatro pulsos iguais para a unidade de tempo, os quais estabelecem um ritmo motor na maior parte do primeiro movimento. Na Cadenza, esse motivo é bastante explorado, sofrendo ampliações rítmicas por toda a sua extensão ou parte da mesma. 20 Soleil, Jean-Jacques e Lelong, Guy. As Obras-Primas da Música. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 245. Forma Cíclica é a expressão aplicada ao procedimento de composição musical que, a partir de um tema dito gerador ou tema cíclico, consiste em repetir periodicamente um ou vários elementos desse tema nos diferentes movimentos da obra, a fim de reforçar a unidade estrutural da mesma. Deve-se a expressão Forma Cíclica a Vincent d’Indy, que apontou Beethoven como o inventor do procedimento e considerava César Franck como seu primeiro utilizador consciente. 70 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Assim, em oposição ao seu caráter rítmico original, faz com que a melodia ressalte, contribuindo para o contraste ritmo-melodia entre as seções do movimento. O Motivo 7, original do segundo movimento – Invenção –, é o que apresenta maior número de variações na Cadenza. Na Invenção é utilizado como célula principal para a construção da polifonia a duas vozes. Na Cadenza, especialmente nas seções Exposição da Parte A (cc. 25 a 43), Reexposição da Parte A (cc. 63 a 81) e Coda (cc. 82 a 91), comporta-se de maneira contrária ao Motivo 4, pois em andamento rápido e com toque staccato, destaca o elemento rítmico e galhofeiro dessas seções. O Ex. 4.2 a seguir ilustra uma variação do Motivo 7 durante a Cadenza, que transforma sua característica original melodiosa e expressiva, com toque legato, para uma qualidade rítmica, com toque staccato saltitante. Ex. 4.2. Bocchino, Sonatina para Piano, terceiro movimento – Cadenza – Utilização dos Motivos 2 (a e b), 3 e 7 durante a Exposição da Parte A Conclusão O estudo analítico da Sonatina para Piano de Alceo Bocchino permite um conhecimento mais aprofundado da obra, de forma a demonstrar a coerência estrutural da composição. Através da análise percebe-se a utilização de motivos básicos determinados e variações em torno dos mesmos. Esse procedimento caracteriza um método construtivo bastante praticado, podendo ser encontrado em uma grande variedade de estilos musicais e, igualmente, nos materiais da música contemporânea. Da análise motívica da obra conclui-se que existem oito motivos básicos, e que todos eles são apresentados nos primeiros dois movimentos – Com Humor e Invenção. O último movimento – Cadenza – é construído por variações de alguns desses oito motivos (Motivos 2, 3, 4, 6, 7 e 8). Esse procedimento – a forma cíclica de composição – é utilizado como proposta para reforçar a unidade estrutural de toda a Sonatina, permitindo maior coesão entre os movimentos. O terceiro movimento – Cadenza - ora recorda características do primeiro movimento, ora características do segundo. O compositor procura uma combinação entre os motivos anteriormente apresentados, utilizando para isso, artifícios que transformam a qualidade original dos mesmos, e que acarretam efeitos estéticos opostos, como por exemplo, de rítmico para melódico. A abordagem analítica-estrutural da Sonatina aponta respostas para a questão “Como funcionam os elementos do discurso musical e quais são suas relações?” Esse estudo sistemático orienta e sugere opções para uma interpretação mais consciente em torno de aspectos como: graus de dinâmica, diferenças de sonoridade entre as vozes, andamento, Alceo Bocchino: Sonatina para piano 71 caráter expressivo, pontos de tensão x repouso, tipo de toque, uso do pedal. Dessa forma, a análise promove uma relação íntima entre a obra e o executante o que, como conseqüência, favorece maior compreensão por parte do ouvinte. Referências Bibliográficas ATALA, Fuad. Alceo Bocchino: Um humanista a serviço da música – Série Memória. Rio de Janeiro: Funarte: Fundação Teatro Municipal do Rio de Janeiro, v.9, 2001. AZEVEDO, Cláudia. “A Rádio MEC como centro difusor da música de concerto no Brasil”. Brasiliana. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, n. 5, pp. 2–13, 2000. BOCCHINO, ALCEO. In: Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Compositores. Divisão de música e Arquivo Sonoro. Acervo Virtual. Disponível em: <http://www.fbn.br/> . Acesso em: 4 mar. 2001. CONTIER, Arnaldo D. Música e Ideologia no Brasil. São Paulo: Novas Metas, 1985. _____. Modernismos e brasilidade: música, utopia e tradição. Tempo e História /organização Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras - Secretaria Municipal da Cultura, 1992. KENNAN, Kent. Counterpoint – Based on Eigtheenth-Century Practice. 4.ed. Upper Saddle River: Prentice Hall, 1999. KESSEL, Carlos. Academia Brasileira de Música. Acadêmicos. Cadeira no 37. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.abmusica.org.br/>. Acesso em: 15 mar. 2001. MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1984. SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA (PR). Música erudita paranaense. Curitiba, v. 1, 2000. SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. Tradução: Eduardo Seincman. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1991. WHITE, John D. Comprehensive musical analysis. London: The Scarecrow Press, 1994. Josely Machado Bark graduou-se na EMBAP/PR. Freqüentou cursos ministrados por Beatriz Balzi, Moura Castro, Yara Bernette, Caio Pagano, Antônio Bezzan, Homero Magalhães, Eudóxia de Barros, Timothy Shafer (EUA), Paul Rutmann (EUA), Gyorgy Sandor (EUA) e Wolfgang Leibnitz (Alemanha). Após a graduação, transferiu-se para os Estados Unidos (Ohio), onde se apresentou junto aos renomados flautista Michel Debost e oboísta Alex Klein. No Brasil, atuou como solista da Orquestra Sinfônica do Paraná e como professora de piano da EMBAP/PR (1998 a 2000). Premiada em concursos nacionais, participou do 21o Concurso Internacional de Piano & Festival Bartók-Kabalevsky-Prokofiev (EUA/2001), classificando-se entre os três primeiros lugares. Na banca examinadora estava Gyorgy Sandor, ex-aluno de Bartók. Foi pianista acompanhadora oficial das 20a e 21a Oficinas de Curitiba (2002/2003). Realizou Mestrado na UNICAMP, onde atualmente cursa Doutorado em Música. Residente em São Paulo/SP desde 2000, participou do VI Fórum 2004 do CLM na ECA/USP, e do XV Congresso da ANPPOM 2005, no RJ. Ouvinte Modelo e Ouvinte Real: uma proposta de aproximação com a teoria do Leitor Modelo Judson Gonçalves de Lima (UFPR) Resumo: Umberto Eco, no livro Lector in fabula, propõe à teoria da recepção a existência do leitor modelo¨, que é uma estratégia textual, um “conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial”. O que este trabalho vem levantar é a possibilidade de pensarmos um ouvinte modelo para a canção popular. E a partir daí, estendermos o debate ao Ouvinte Real de canções. Palavras-chave: “Lector in fabula”, leitura, escuta, canção, recepção. INTRODUÇÃO A intenção deste artigo é buscar uma adaptação, ou aproximação, da teoria de “leitor modelo” com uma possível teoria sobre o “ouvinte modelo”, e a partir daí chegarmos ao ouvinte real, também em aproximação com o leitor real. A bibliografia que serve de base é quase toda da área da literatura. Isso por dois motivos principais: 1) este artigo é fruto de um requisito de avaliação para uma disciplina de pósgraduação em literatura e; 2) a escassez de bibliografia desse ponto de vista aplicado à música, ao menos em nosso idioma. Segundo Vincent Jouve (2002, p. 12), “é a expansão da pragmática que vai levar os estudiosos da literatura a se interessar pelos problemas da recepção.” Algumas teorias desenvolvidas que obtiveram relevância foram: a de H. R. Jauss, sobre a “estética da recepção”; a de Wolfgang Iser sobre o “leitor implícito”; de Lintvelt, a do “leitor abstrato”; de Umberto Eco, sobre o leitor-modelo e; de Michel Picard, sobre o “leitor real”. Essas teorias prosperaram e tiveram um motivo de existência quando se pensou a leitura, ou o leitor. A partir do momento em que se admitiu que um texto é escrito para que alguém o leia, e só a partir dessa leitura tome vida –exista– começou a se pensar o ato, ou o processo da leitura. Da mesma forma, esse artigo só tem motivo para ser escrito se considerar que a música é feita para o ouvinte, e que a música só existe de fato, a partir do momento da audição, ou escuta1 – até então, ela é apenas música em potencial. O objetivo, portanto, é o de adaptar, ou aproximar, algumas teorias da leitura para a recepção em música, mais precisamente, a de leitor modelo. O que seria o ouvinte modelo? Algumas questões foram levantadas, mas nem todas respondidas, porque isso demandaria uma pesquisa muito maior do que a que foi realizada. A música implicada aqui é a canção, ou seja, a música com letra, e limitaremos os exemplos à canção brasileira. Do leitor modelo ao ouvinte modelo A teoria do leitor-modelo foi profundamente influenciada pela teoria do leitor implícito de W. Iser, que data de 1976. Para Iser, “o leitor é o pressuposto do texto” (Jouve, 2002, p. 14). Assim, todo texto prevê um leitor (o leitor está implícito) que o execute. O texto é o mesmo para todos os leitores e o seu objetivo é organizar e dirigir a leitura. Para que isso funcione, o escritor deve criar para um determinado leitor que “reage no plano cognitivo 1 Barthes, Roland. O óbvio e o obtuso.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. No capítulo 2, O corpo da música, Barthes discute A escuta, e diz que “Ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar é um ato psicológico”, p. 217. Assim, mais ligado à atividade estética. Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 73 aos percursos impostos pelo texto” (Jouve, 2002 p. 14). Nas palavras de Iser: “repertório e estratégias textuais se limitam a esboçar e pré-estruturar o potencial do texto; caberá ao leitor atualiza-lo para construir o objeto estético.” (Iser, 1999, p. 9). Estrutura do texto e estrutura do ato são assim os dois pólos da situação comunicativa. O primeiro se realiza no segundo; o texto, portanto, não pode ser tido como resultado, ele necessita do ato da leitura para ser concretizado. “É preciso descrever o processo da leitura”, diz Iser, “como interação dinâmica entre texto e leitor, pois os signos lingüísticos do texto, suas estruturas, ganham sua finalidade em razão de sua capacidade de estimular atos, no decorrer dos quais o texto se traduz para a consciência do leitor”. E continua “o autor e o leitor participam, portanto, de um jogo de fantasia; jogo que sequer se iniciaria se o texto pretendesse ser algo mais do que uma regra de jogo. É que a leitura só se torna um prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades” (Iser, p. 10). Em Lintvelt (1981), também reconhecemos a teoria de Iser e um passo a mais para o leitor modelo. O leitor implícito aparece em Lintvelt como “leitor abstrato”: “O leitor abstrato funciona, por um lado, como imagem do destinatário pressuposto e postulado pela obra literária e, por outro lado, como imagem do receptor ideal, capaz de concretizar o sentido total da obra numa leitura ativa. (Jouve op.cit. Lintvelt, p. 44 Grifo nosso).” Essa capacidade de concretizar o sentido total de uma obra será o ponto-chave do leitor-modelo de Eco, aqui chamado de “receptor ideal”. O leitor modelo Na sua obra “Lector in Fabula”, Umberto Eco trabalha demoradamente a questão da recepção da leitura. O que interessa aqui é seu leitor-modelo. Segundo Eco, o “leitor modelo” é um tipo de estratégia textual. “O Leitor-Modelo constitui um conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial”. (Eco, 1986, p. 45) Para que um texto seja plenamente atualizado, são exigidas do leitor habilidades como “competência gramatical” e “enciclopédia básica”. Isso é necessário porque o texto é um “mecanismo preguiçoso (ou econômico)”, “que vive da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu.” Ou seja, o leitor-modelo deve ser capaz de atualizar todos os “não-ditos”, os “espaços brancos”, os “interstícios”, “as referências”, programados pelo texto. Deve, enfim, participar desse “jogo”, cooperando2 para que o “conteúdo potencial” de um texto se concretize. Essa idéia de “jogo” é importante na teoria da leitura e foi desenvolvida por muitos teóricos.3 Como Eco trata de como o texto programa sua recepção, deve ser lembrado que Iser diz que o texto não pretende ser mais que uma regra de jogo, ou seja, o texto organiza e dirige a leitura (ou então, ‘programa sua recepção’). 2 Umberto Eco diz que “como cooperação textual não se deve entender a atualização das intenções do sujeito empírico da anunciação, mas as intenções virtualmente contidas no enunciado”. 3 Essa questão do jogo não se restringe à teoria da leitura, também em outras artes isso é discutido. Johan Huizinga discute amplamente em Homo Ludens a questão do jogo nas culturas e nas artes, assim como Schiller. Referente ao texto, Michel Picard escreveu “A leitura como um jogo”, onde destaca o leitor real. 74 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Claro que o “leitor modelo” é apenas um modelo, um ideal. Há textos em que, por demais complexos, o jogo pode ser ilimitado e por isso inalcançável ao leitor real, e até mesmo ao autor real – a propósito, deve ser lembrado que a regra do jogo é o texto, e o que está ativado no texto deve ser atribuído à intenção do “autor modelo”, mesmo que ela não seja a intenção do autor empírico, ou autor real. (Eco, 1986, p.46). O ouvinte modelo Ora, sendo o leitor-modelo uma estratégia textual, devemos encarar o ouvinte-modelo, para modo de aproximação, como uma estratégia de escuta. A princípio é simples e podemos definir o ouvinte modelo como sendo um conjunto de condições de êxito, musicalmente e textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que uma canção seja plenamente atualizada no seu conteúdo potencial. Praticamente a mesma definição que Umberto Eco deu ao leitor modelo. É preciso destacar o caráter musical e textual da canção. Como esta possui texto é possível utilizar a teoria da leitura para a análise textual –sobretudo as de análise de textos poéticos; embora as referências aqui citadas não tenham explorado esse tipo de escrita, que se mostra mais complexa às vezes, com mais “não-ditos”, “espaços brancos”, “interstícios”, além de uma preocupação muito grande com as qualidades musicais das palavras. O leitor modelo, entretanto, pode ser parte do ouvinte modelo de canção. O que deve, afinal de contas, ser atualizado pelo ouvinte modelo de canção? Ora, pretendemos fazer aqui apenas uma proposta primária e na medida do possível adaptando características do leitor modelo. Parece que o texto, além de ser atualizado como outros textos poéticos ou narrativos, deve ser também visto como condutor de uma melodia (assim como a melodia do canto deve ser tomada como condutora de um texto). É claro que a palavra, independentemente de onde ela esteja, traz em si uma melodia, mas a melodia na música desempenha um papel muito destacado, e a palavra ganha contornos que não conhece na fala diária – nem na leitura poética, apesar de desempenhar papel importante. Então deve ser pensada a relação de notas dentro da palavra (do texto), assim como sua prosódia e suas características rítmicas. Wolfgang Kayser4 ao analisar o poema “La Lune Blanche” de Verlaine, segue o seguinte método: análise da forma; análise do ritmo; da sonoridade e do significado. Parece que esse método é apropriado, também, para a análise de textos de canção.5 Além das capacidades de interpretação textuais, o ouvinte modelo deve ser capaz de atualizar as características musicais da canção. E nesse momento a questão deixa de ser 4 Kayser, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Sucessor-Coimbra: Armênio Amado, 1976. p. 164. 5 Dizemos “textos de canção” porque apesar de alguns autores considerá-los poemas isso é discutível. Poderia ser usada então apenas a expressão “letras de música”, ou ainda “letras”, no entanto, estas deixariam de fora poemas, textos em prosa e outros textos quaisquer que foram musicados mas que não foram compostos para esse fim. Mas é preciso esclarecer, já que citamos R. Barthes, que não entendemos “texto” como ele entende. “Texto” aqui são textos escritos, quaisquer textos musicados – para Barthes, qualquer prática significante é um texto. Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 75 simples. Em uma aproximação com a teoria do leitor modelo, poderia ser dito agora que o ouvinte modelo deve possuir, além da capacidade auditiva, uma espécie de “dicionário mínimo” e de “enciclopédia básica”. Mas o que seria esse dicionário e essa enciclopédia musicais? Prematuramente podemos dizer que um dicionário de base em música, corresponde a um conhecimento mínimo de harmonia, melodia e ritmo.6 E uma enciclopédia seria o conhecimento do uso desses aspectos. Porque no seu uso ocorrem “jogos”. Por exemplo: na canção “eu te amo” de Tom Jobim e Chico Buarque, a harmonia7 segue uma relação não muito comum na canção “popular”, o que pode ser entendido como um jogo - há quebra de expectativas e se o ouvinte não percebe é como se não houvesse. Na canção “O pulsar”, Caetano Veloso musicou um poema de Augusto de Campos. No poema, as vogais são inicialmente substituídas por símbolos como estrelas e bolas; ao musicar, Caetano buscou trazer essa intenção ao atribuir para cada vogal uma determinada nota. Na frase: Onde aparece o pequeno círculo, canta-se com a nota dó, onde aparece uma estrela, a nota ré numa oitava superior e onde aparece “a”, a nota sol. Além de saber quais notas são, seria interessante saber que essas notas correspondem ao I, II e V graus da escala, nas quais boa parte da música se baseia. O ouvinte deve fazer atualização das citações. A citação musical pode não ser tão freqüente quanto a textual, mas também ocorre. Às vezes ela ocorre de forma muito clara, em fonogramas introduzidos durante a execução da canção. Em “Jack Soul Brasileiro”, Lenine faz uma homenagem a Jackson do Pandeiro. Nesta canção ocorre referência no texto: “quem foi? / que fez a ema gemer na boa”, aludindo à canção “O canto da ema”; citação textual: “Tião. Oi/ Foste? Fui/ Compraste? Comprei/ Pagaste? Paguei/ Me diz quanto foi/ foi quinhentos réis”, que é um trecho da canção “Cantiga do sapo”; citação cantando um trecho de “Chiclete com Banana”; e citação com inserção de fonograma da “cantiga do sapo”. Um outro tipo de citação é a da melodia. Na canção “Baião de Quatro Toques”, por exemplo, de Zé Miguel Wisnik e Luiz Tatit, a melodia cita quase que na canção inteira a Quinta Sinfonia de Beethoven, baseando-se no mesmo motivo rítmico-melódico que a sinfonia e ainda no texto faz-se a referência e dá a pista: 6 Esses são considerados os pilares da música tonal, que abrange quase toda a canção brasileira, pelo menos a chamada MPB, de onde extraímos nossos exemplos. 7 A harmonia é a relação entre as notas, quando notas são relacionadas simultaneamente tem-se um acorde. A seqüência dos acordes segue uma determinada lógica dentro da música tonal, música que abrange a maior parte das canções brasileiras. 76 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 “pra quem compôs, pra quem tocou e pra quem ouve / é o destino que sempre se quis / é uma quinta sinfonia de Beethoven / que decantou e só ficou a raiz”. Além dessas, podemos lembrar o arranjo. A identificação dos instrumentos, seus timbres e o uso desses pode interferir na escuta. Na canção “Terra”, Caetano Veloso, ao cantar a palavra Paraíba ao final da seguinte frase: “Mando um abraço pra ti, pequenina Como se eu fosse o saudoso poeta, E fosses a Paraíba”. um triângulo, instrumento fundamental nos arranjos de forró e baião, começa a ser tocado8 mas não aparece em “primeiro plano”. Esse detalhe do arranjo é parte do jogo: a letra faz referência à “Paraíba” de Luiz Gonzaga (“O rei do baião”)e Humberto Teixeira, no qual se canta: “Hoje eu mando um abraço pra ti, pequenina. Paraíba masculina, muié macho sim, sinhô.” Em “samba de uma nota só” acontece um jogo interessante. A letra canta o que acontece com a linha melódica. Quando se canta: "Eis aqui este sambinha/ feito numa nota só/ outras notas vão entrar/ mas a base é uma só", a melodia é toda tocada na nota ré. Um jogo explícito. Quanto à percepção musical, José Estevam Gava faz uma afirmativa importante acerca de João Gilberto, que serve para pensarmos a condição da escuta em geral. Diz Gava que no “num mundo ‘minimalista’, como é o de João Gilberto, uma pequena diferença é o que conta. Mas só adquire sentido quando é bem ouvida, com a devida reverência. Por isso requer atenção e, outra condição básica, silêncio total. Caso contrário, os minúsculos detalhes cuidadosamente trabalhados se perdem inutilmente, diluem-se em algo aparentemente repetitivo e monótono” (Gava, 2002 p. 97). Os jogos de João Gilberto ocorrem, sobretudo, nos aspectos musicais (harmonia, melodia e arranjo). Isso é importante para destacar duas questões: 1) em quais condições se escuta a canção, e; 2) cada canção requer seu ouvinte modelo. Podemos perguntar se a canção é um mecanismo preguiçoso, ou então, tão preguiçoso quanto o texto. A princípio parece que não. Uma pessoa pode entrar em um restaurante e ser tomada de assalto por uma música, inclusive uma música que não gosta, a qual nunca escutaria em casa. Mas ela esta sendo tocada, contra a sua vontade. Basta sua faculdade auditiva para perceber. Ao contrário, pode ser sua música preferida, e então ela ficará 8 Esse arranjo se encontra no disco Prenda Minha de 1999, faixa 4. Importante notar que é muito comum a mudança de “roupagem” das canções. Nesse sentido ela é muito mais flexível que um texto. Pode-se cantar uma canção sendo acompanhada por uma orquestra, ou por um violão apenas. Sem dúvida isso interfere na escuta. Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 77 satisfeita em ouvi-la e lhe dará atenção. Mas como, em um ambiente com "ruídos", alguém pode realizar o jogo da cooperação? Nesse momento precisamos nos apoiar em Barthes e dizer que a escuta é um exercício de “inteligência, isto é, de seleção”. Então o ouvinte pode direcionar sua escuta para uma canção mesmo em um ambiente ruidoso. Mas, como lembra o próprio Barthes, “se o fundo auditivo invade todo o espaço sonoro (se o ruído ambiente é demasiadamente forte), a seleção, a inteligência do espaço já não é possível, a escuta é lesada.” (1990, p. 218) Assim, é possível escutar canção em ambiente não silencioso, mas a escuta é lesada (o que impossibilita a cooperação ideal). Por isso, muitas vezes o ouvinte real, se distancia do ouvinte modelo: a condição de escuta não é adequada. Ouve-se música no trânsito, enquanto se realiza uma leitura (que exige atenção), enquanto bate papo, enquanto janta em um restaurante, enquanto bebe em um bar etc. (Nesses casos parece que a canção desempenha uma espécie de função: uma função de passatempo prazeroso, ou de “preenchedora” de ‘espaço sonoro’, enquanto outra atividade é praticada). Além disso, há uma questão de tecnologia: os alto-falantes mais acessíveis no comércio, muitas vezes não são adequados para a execução de uma canção - eles tendem a prejudicar a audição dos sons mais agudos e mais graves. Ou então, o ambiente ruidoso foi uma opção. Cada canção, pressupõe seu ouvinte modelo (assim como o texto o seu leitor). O ouvinte modelo de Chico Buarque pode se parecer com o de Caetano Veloso, que pode se parecer com o de Tom Jobim, ou João Gilberto. Mas certamente eles são bem distintos do ouvinte de “Festa no apê”, versão do cantor Latino. Usamos esses extremos para lembrar que se a música, assim como o texto, é apenas a regra do jogo, o jogo proposto em uma, pode ser completamente diferente do jogo proposto em outra. Enquanto necessita silêncio para seguir as regras do jogo numa gravação de João Gilberto, necessita a dança para seguir as regras do jogo de um “funk”, ou de uma “música axé” executada em cima de um trio elétrico. Cada canção requer seu próprio ouvinte modelo. O ouvinte real Se o ouvinte modelo, como o leitor modelo, são estratégias e ideais de interpretação, não podemos perder de vista a “lei pragmática”, segundo a qual “a competência do destinatário não é necessariamente a do emitente” (Eco, 1986, p. 38), e nesse caso podemos pensar no próprio texto como emitente, e ter em vista sua ilimitada gama de referências possíveis. Michel Picard diz que o leitor real, e podemos estender ao ouvinte real, é aquele que “apreende o texto” e a canção (no caso proposto), “com sua inteligência, seus desejos, sua cultura, suas determinações sócio-históricas e seu inconsciente” (Jouve, 2002, p. 15), e por esses fatores delimitados. Jouve diz que apesar de Umberto Eco ter feito uma leitura com “intensidade cooperativa”, “lucidez” e “clareza” da novela “Un Drame Bien Parisien”, é legítimo questionar se o resultado seria o mesmo de uma outra leitura lúcida, clara e intensamente cooperativa realizada por outro teórico (2002, p. 48). O mesmo pode ser dito para uma análise de canção. 78 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 O ouvinte real é, na maioria das vezes, leigo ou amador no que tange aos conhecimentos musical e literário. Mas isso não impede que a canção seja obra demasiadamente apreciada – talvez o gênero musical mais consumido atualmente, e certamente o é no Brasil. O ouvinte, mesmo não especializado, extrai prazer dessa prática. Nesse ponto queríamos chegar: é preciso possuir mesmo amplos dicionário e enciclopédia musicais e textuais para ser bom ouvinte? Para extrair prazer? Como já foi proposto antes, essas seriam condições para ser o ouvinte “modelo” de canção, mas para ser simplesmente ouvinte não parecem necessárias. Não queremos, no entanto, fazer a defesa da estupidez. É certo que participa mais do jogo quem conhece melhor as regras e sabe delas desfrutar. Por conseguinte, como uma canção não é um produto que surge do nada, ou seja, faz parte de uma história, o conhecedor de canções tem mais condições de apreciar uma obra do que quem não tem contato com esse tipo de gênero. Parece viável propor que o ouvinte em geral busque participar do jogo. Sendo ou não ouvinte modelo (mesmo porque esse não existe – nos termos postos por Eco, nem o autor real é um receptor modelo!), o que deve ser buscado é a interação, é a cooperação. Mas por quê? Por que deve? Por que essa obrigação? Arriscamo-nos responder: porque a canção serve para isso. Ela é uma proposta que só se concretiza no ato da escuta, assim como o texto só se concretiza no ato da leitura, ela existe porque existe o receptor e quando o esforço pela sua concretização é maior, mais ela se concretiza, mais largamente, então: ela se torna “maior”. O tamanho dela dependerá do seu ouvinte. E um dos prazeres do ouvinte está justamente nesse ato de atualização. O que postulamos é que um ouvinte atento pode possuir um determinado “senso prático” (ou um “conhecimento prático”), que o possibilita a apreciação. Ele é capaz de definir alturas melódicas, ter uma noção da orientação produzida pela harmonia (tensão e repouso, cromatismo...), reconhecer instrumentos, ter senso rítmico, possuir uma memória auditiva que o permite fazer comparações etc. A mesma capacidade que as pessoas em geral desenvolvem para o texto. Ninguém precisa saber o que é um lexema ou um morfema para aprender a ler. Ninguém precisa ter a definição de semântica para entender o sentido de um texto. Tentemos um exemplo para afirmar a possibilidade de escutas musicais sem o necessário auxílio do conhecimento técnico: a canção “O Extremo Sul” de Zé Miguel Wisnik. Afirmamos que há uma citação de uma outra canção, uma citação sutil. Pois bem, o que se exige do ouvinte para que se perceba isso? (como podemos perguntar: o que se exige do ouvinte para perceber o cromatismo de “Eu Te Amo?”). Talvez a resposta seja: perspicácia! Claro que se ele nunca tiver ouvido “Felicidade” do gaúcho Lupicínio Rodrigues, não será possível tecer relação alguma. Mas um ouvinte perspicaz pode perceber a semelhança na curva melódica entre esses dois trechos apresentados, sem saber quais notas formam os intervalos semelhantes. A letra ainda dá a dica da citação para os mais desavisados: “te amo tanto te chamo tanto / será sempre mais ao sul / ou mais azul / felicidade / o sonho de viver”. Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 79 O que estamos rodeando, e pensamos como conclusão para a questão do ouvinte real, é o seguinte: leitor e ouvinte modelos não existem. O que existe são leitores e ouvintes reais, uns mais arrojados que outros, para os quais o conhecimento técnico é fundamental para o profundo desfrute de uma obra, qualquer que seja. Mas não podemos afirmar que um conhecedor de música e texto tenha uma percepção de uma canção necessariamente melhor do que a do não conhecedor (é bem provável que seja, mas não o é necessariamente), que um ouvinte seja melhor que um outro. O certo é que o ouvinte capaz de atualizar com argúcia os jogos propostos pela letra e pela música poderá ter mais prazer que o ouvinte muito delimitado – e a argúcia não é um privilégio de técnicos. Ninguém precisa abdicar do prazer da audição por não possuir um extenso dicionário e enciclopédia musicais. Podemos fazer por fim, mesmo que superficialmente, um comentário acerca do ouvinte brasileiro. Essa intenção vem da leitura dos primeiros capítulos do “Dispersa Demanda” de Luis Costa Lima. Nesse livro, Costa Lima faz uma crítica dura ao sistema intelectual brasileiro no que tange, sobretudo, à sua formação, e tenta encontrar as causas dos problemas que ele enxerga na nossa intelectualidade. Segundo ele, a cultura brasileira é preponderantemente “auditiva”, herança de uma forte cultura oral, mas diferente dela, porque já possui contato com a escrita, com sistema universitário etc. A Literatura seguiu por esse caminho, era “cúmplice da oralidade”: “e a maneira de converter a página escrita em forma oral consistia em oferecer uma leitura fácil, fluente, embalada pela ritmicidade dos versos iguais (Gonçalves Dias) e pela prosa digestiva (...) (Lima, 1981, p. 7)”. Assim também os cursos superiores, como o Direito, foram calçados não na realidade dos fatos, não nas confirmações factuais e sim, baseados no falar bem, nos artifícios retóricos. Os desdobramentos dessa prática são facilmente identificados nas tribunas políticas. Costa Lima faz questão de não desmerecer, simplesmente, as culturas orais. Explica sua crítica ao sistema intelectual “auditivo”: “A base da nossa crítica à oralidade, entre nós dominante, se baseia no fato de que ela no entanto se dá no interior de uma civilização da escrita (Lima, 1981, p. 15)”. Pois bem, talvez isso possa ser aproveitado por um outro aspecto. Essa cultura auditiva brasileira pode exercer uma influência positiva para o aspecto musical. Não é nada incomum vermos elogios ao jeito musical do brasileiro, do tino musical, do ouvido do brasileiro para a música. No Brasil, a canção é marca demasiado forte, às vezes considerada das melhores do mundo (restringindo ao âmbito da canção popular). Não são poucos os críticos literários que já salientaram para a força da canção popular no Brasil. Inclusive, vale lembrar que em quase todos os outros países do mundo, quando se fala em música popular, pensa-se sobretudo em música folclórica (Carlos Sandroni,9 Philipe Tagg10). Augusto de Campos no seu “Balanço da Bossa e Outras Bossas” (Campos, 1978) 9 Sandroni, Carlos: “Adeus à MPB”. In: Berenice, C., (Org,) Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Vol. I, Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ São Paulo, Perseu Abramo, 2004. Nesse artigo, Sandroni faz uma reflexão sobre o termo MPB e conclui que ele não é mais eficaz para definir a canção moderna brasileira. 10 Tagg, Philip, “Analisando a musica popular: teoria, método e prática”. In: Em Pauta. Vol. I, n. I. Pós-graduação em Música, Mestrado e Doutorado, Porto Alegre, 1989. Nesse artigo, escrito pelo 80 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 diz que poesia de qualidade no Brasil depois da década de 60 é encontrada, sobretudo, na música popular e elege Caetano Veloso e Gilberto Gil como os melhores poetas brasileiros durante o período que ficou conhecido como Tropicália. Charles A. Perrone (Perrone, 1998) também fez um longo estudo sobre as letras de músicas da MPB (sigla hoje em dia um tanto vaga), considerando seu potencial poético. Claro que é destacado que por mais que uma letra de canção tenha qualidades poéticas, ela não sobrevive sem a música que a acompanha. A relevância disso é que pode haver uma relação intrínseca entre a “auditividade” e a canção. Se o caráter auditivo é tão forte quanto assinala Luis da Costa Lima, ele pode ser um responsável pela força da canção no Brasil. Canção é transmissão oral, e mais que isso: é transmissão oral com a preocupação estética, que pode tornar a palavra ainda mais forte. Se a cultura auditiva se manifesta nas tribunas palacianas, manifesta-se também na canção de protesto, com voz política mais potente do que muitos discursos ideológicos, e também na produção de parte da “poesia” brasileira. Dificilmente será negada a qualidade poética de um Chico Buarque, ou de um Caetano Veloso – para ficarmos no lugar-comum. Sabemos que esse artigo não dá conta de levar ao fim essa aproximação da teoria de recepção em literatura com a recepção em música. Inclusive, parece-nos indicar uma solução para o tema da recepção, a idéia do jogo – que não foi aprofundada, mas apenas comentada. Outra consideração que não foi feita, é referente às teorias de “emoção em música”, que em determinado ponto pode assemelhar-se à idéia de prazer. Seria pretensioso querer mais que uma aproximação em tão poucas páginas. Percebemos que poderia demandar muito mais trabalho e pesquisa, e consequentemente tempo, para chegarmos a resultados mais sólidos sobre as questões discutidas. Durante a redação, muitas questões foram salientadas e muitas não resolvidas. Assim, se há prazer na leitura e na escuta, e prazer na descoberta, teremos prazer em retomar esse jogo que apenas iniciamos aqui. Referências bibliográficas BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BERENICE, C., (Org,) Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Vol.I, Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ São Paulo,Perseu Abramo, 2004. CAMPOS, Augusto. Balanço da Bossa e outras boissas. São Paulo. Perspectiva, 1978. ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1986. Em Pauta. Vol.I, n.I. Pós-graduação em Música, Mestrado e Doutorado, Porto Alegre, 1989. GAVA, J. E. A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo: Editora UNESP, 2002. ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1999. 2v. JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002. inglês Philip Tagg, professor de musicologia da Universidade de Montreal, fica bem nítido o que se entende por música popular para os pesquisadores da Europa e América do Norte. Ouvinte Modelo e Ouvinte Real 81 KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Sucessor-Coimbra: Armênio Amado, 1976. LIMA, L. Costa. Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1981. Judson G. Lima: Licenciado e Bacharelado em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Graduando em Educação Musical pela Universidade Federal do Paraná. Mestrando em Literatura no Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná A musicologia histórica: herança e perspectivas Juliana Noronha Dutra (IA-UNESP) Resumo: Nesse trabalho propomos uma reflexão sobre os principais paradigmas que nortearam a pesquisa em musicologia no Brasil, cujas matrizes de pensamento principais foram o romantismo, o historicismo e o positivismo. A partir dos anos 80 começou-se a elaborar um novo paradigma de pesquisa em musicologia, cujos contornos apontam para uma abordagem interpretativa e interdisciplinar. Consideramos que nessa nova abordagem a análise sócio-histórica desenvolvida por Pierre Bourdieu traz uma valiosa contribuição ao analisar a relação entre produção musical e seu lugar na economia dos bens simbólicos. Palavras-chave: Musicologia histórica, positivismo, romantismo, historicismo, Bourdieu. A visão Romântica A musicologia constituiu-se como disciplina a partir de 1919, desde então, várias concepções do que é música e modos de entender o mundo, influenciaram suas práticas de pesquisa. A concepção do que é música influencia, não só o objeto de pesquisa, mas o método e as seleções de materiais e fontes. Havendo, portanto, em cada época objetos priveligiados ou reconhecidamente dignos de pesquisa e outros relegados ao esquecimento. Entre as visões históricas que mais influenciaram na pesquisa musicológica brasileira, duas merecem especial destaque e analisa: a visão romântica e o positivismo. Tais influências não podem ser qualificadas apenas como momentos históricos do desenvolvimento da musicologia enquanto ciência, mas que perduram até hoje em muitos trabalhos na área, da mesma forma como ainda persiste no meio artístico a noção de “gênio artístico” como algo totalmente desvinculado de seu contexto histórico e social. O que revela que nenhuma corrente de pensamento influenciou tão decisivamente a estética e concepção de arte em geral como o Romantismo, cujas marcas ainda podem ser notadas na forma como o imaginário coletivo vê os artistas e na forma como eles próprios vêem a si mesmos. O Romantismo, que tem início na segunda metade do século XVIII, se contrapõe ao racionalismo do século XVII e seu desdobramento no Iluminismo que viam na razão a única fonte legítima de conhecimento. Ele busca no sentimento, na imaginação, na experiência uma nova maneira de conhecer o mundo e o próprio homem. No Romantismo o indivíduo encontra o caminho livre para fazer sua interpretação pessoal da vida. Nesse esforço interpretativo, alguns românticos chegam a dotar a sensibilidade artística de um poder transcendental, como uma força criadora capaz de ultrapassar as limitações humanas em direção a um ideal que só pode ser intuído pelo gênio artístico. Dessa forma, a essência da personalidade romântica é o gênio do artista. Para os românticos, só a arte é capaz de nos aproximar do indizível, pois nela encontramos algo de intuitivo, não racionalizado, que nos permite uma aproximação maior com o sentido profundo das coisas que, muitas vezes, é ocultado pelo conhecimento metódico da ciência. O gênio seria aquele cuja sensibilidade é capaz de trazer à tona, através da expressão artística, o sentido profundo oculto para ciência. Shelling afirma que o gênio artístico é a encarnação do divino no humano. Esse conceito eterno do ser humano em Deus, como causa imediata de suas produções, é aquilo que se chama gênio, o “gênio”, por assim dizer, o divino que habita o ser humano. Ele é por assim dizer, um pedaço da absolutez de Deus. Por isso, cada artista também só pode produzir tanto quanto esteja A musicologia histórica: herança e perspectivas 83 vinculado ao conceito eterno de sua própria essência em Deus. Ora, quanto mais o universo é intuído já nesse conceito por si, tanto mais orgânico é o artista; quanto mais une a finitude à infinitude, tanto mais produtivo ele é. (Schelling, 2001, p. 119) Desse modo, a produção artística é vista como uma emanação de uma força criadora transcendente e, portanto, como algo dissociado de qualquer influência externa, tais como o contexto social e histórico em que o artista está inserido. Por contraditório que possa parecer, o artista é aquele que é capaz de captar o espírito universal dominante de sua época, mesmo que não tenha o propósito de fazê-lo, pois esse é capaz, por assim dizer, de sentir “o espírito do tempo” o que explicaria a concordância entre a produção dos “grandes mestres” e a forma estética dominante em determinada época. Nas épocas de florescimento da arte é a necessidade do espírito universal dominante, é a prosperidade e, por assim dizer, a primavera daquele período que produz, em maior ou menor medida, a concordância universal entre os grandes mestres, de modo que, como também mostra a história da arte, as grandes obras surgem e amadurecem muito próximas umas das outras, quase simultaneamente, como que por um mesmo alento e sob um mesmo sol (...). (Schelling, 2001, p. 23) Disso decorre que, para entender uma época e o espírito dominante desta época, deve-se pesquisar os grandes gênios e suas grandes obras. Assim o estudo das obras artísticas concentram –se assim sobre as características do autor e de sua grande obra. Mesmo em termos não tão idealistas o filosofo filósofo Herder desenvolveu uma teoria da história em que afirma que cada época da história tem um valor próprio e cada povo sua forma de ser, ou seja sua própria alma, mas, ao mesmo tempo, ao expressarem sua peculiaridade, atingem algo de universal. A História, nessa medida, constitui-se desses esforços dos homens que, em cada época, em cada lugar, e de um modo concreto, buscam tornar-se Humanität, manifestando-se como povos particulares. Não é o progresso do homem em geral, mas a sucessão dos povos, cada qual com sua peculiariedade e força, e que, ao progredirem e atingirem a plenitude, também entram em declínio: o tempo impede a eternização da plenitude.(Valverde (ed.), 1987, p. 476) Essa visão de história contribuiu para o sentimento de identidade própria de cada nação, inspirando o romantismo nacionalista que se interessava sobretudo pela história de seu povo, sua língua e pela cultura popular. Historicismo A chamada “escola historista” ou historicismo, corrente de estudos históricos cujo principal representante foi Wilhelm Dilthey (1833–1911), apesar de partir de uma matriz bastante diversa tanto em termos metodológicos como de referencial teórico, também chega a 84 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 resultados próximos aos da abordagem romântica. Ao afirmar que só é possível entender textos e fatos que aconteceram no passado a partir da própria vivência do pesquisador. Como já havia observado Vico, “o sujeito que investiga a história é o mesmo que faz a história”. Nesse sentido, o conceito de vivência ocupa um papel fundamental. Para Dilthey, a biografia individual é o que permite atribuir um sentido às vivências individuais asseguradas pelo eu-identidade. Ela permite estabelecer uma conexão entre a vivência individual e a existência coletiva na medida em que as experiências vitais se desenvolvem em um processo histórico em que as significações atribuídas individualmente se constituem a partir de um sistema de referências compartilhadas. Assim o historiador escolhe em cada época as figuras mais representativas capazes de traduzir em sua biografia individual todo o sentido daquele período histórico e nessa biografia individual os feitos que seriam os mais decisivos. O que surge da vida diária se encontra sobre o poder de seus interesses. O que se vai derramando continuamente no passado se encontra também determinado na sua interpretação pelo momento. Há algo terrível nisto em que, na luta dos interesses práticos, qualquer expressão nos pode enganar e até a nossa própria interpretação muda pela mudança de nossa postura. Mas quando, como ocorre nas grandes obras, o espiritual se emancipa do seu criador, o poeta, o artista, o escritor, entramos em um domínio no qual se acaba o engano. Nenhuma obra de arte verdadeiramente grande pode, a modo da relação que aqui impera, e que mais tarde desenvolveremos, simular-nos um conteúdo espiritual estranho ao seu autor e mesmo nada pretende dizer de seu autor. Verdadeira em si, se encontra fixada, duradoura, visível, e assim é possível uma compreensão artística segura dela mesma. Temos, pois, que nas fronteiras entre o saber e o fazer se estende um círculo no qual a vida se nos revela em umas profundidades que não são acessíveis à observação, à reflexão nem à teoria. (Dilthey, 1944, p. 231) A influência romântica e historicista na musicologia brasileira Percebe-se a influência da visão romântica e historicista na pesquisa musical brasileira principalmente nas obras de caráter biográfico de autores consagrados. Através delas o biógrafo procura captar qual o “espírito da época”, a alma brasileira cuja expressão maior encontra-se na alma do artista. Os trabalhos biográficos pouco nos dizem sobre a música em si, mas pretendem mostrar traços psicológicos do compositor e comparar com o caráter de sua obra. Em um artigo, Antônio Alexandre Bispo cita um texto de Andrade Muricy, que exemplifica esse tratamento subjetivo dos escritos sobre música: Heitor Villa Lobos é o maior pioneiro da sondagem heróica na alma desconforme, multiforme, do instintivismo, por assim dizer, da infância da gente brasileira(...) Deverão ser, um dia, estudadas em profundidade as aventuras vertiginosas desse lançador de sonda no oceano sônico, complexo, A musicologia histórica: herança e perspectivas 85 desnorteador, de nossa raça, que opõe ao artista e ao pesquisador aparentes impossibilidades de captação e absorção. (Bispo, 1983, p. 24) Essa visão subjetiva, muitas vezes tinha a intenção de enaltecer a nação. O nacionalismo brasileiro estava interessado principalmente nos compositores que conseguiram de alguma forma expressar o sentimento nacional em suas obras, não se interessando então por compositores de uma época mais remota por entenderem que no início a música que se fazia no Brasil era totalmente nos moldes da música européia. Por outro lado, uma grande contribuição dos nacionalistas à musicologia brasileira foi a de desenvolver a prática da pesquisa musical das músicas folclóricas brasileiras. Outra prática recorrente de inspiração historicista é a de pensar a história como um todo homogêneo em que cada momento histórico deve ser preenchido para que este não tenha ‘descontinuidades’ ou ‘lacunas’. Assim, a tarefa do musicólogo brasileiro seria a de preencher as lacunas que existem no cânon de obras e autores consagrados. É sob este pensamento que Luiz Heitor Corrêa de Azevedo escreve: A música brasileira que o historiador pode apreciar à luz da crítica começa no século XIX(...) Mas é necessário que as pesquisas para a reconstituição prossigam ativamente, pois o interesse histórico que apresenta não padece discussão; e há que contar com as surpresas, que podem invalidar o que acima ficou dito e trazer à luz obras mais importantes, que façam recuar aquele marco prematuro, estabelecido, de acordo com os nossos conhecimentos atuais, para assinalar o início em memórias históricas, mas, também, por intermédio de realizações dignas de permanência, em nossos programas de concertos ou outros atos da vida musical contemporânea (Bispo, 1983, p. 27). Em seu artigo “Descoberta e restauração” Paulo Castagna aponta algumas conseqüências dessa visão historicista no tratamento de arquivos musicais. Ele descreve o que chama de visão romântica do pesquisador que se vê como um herói a desbravar os arquivos musicais em busca de grandes obras do passado ou da música mais remota a fim de recuar o marco do início da composição musical no Brasil. Nessa visão, o pesquisador trata os arquivos musicais de forma seletiva, escolhendo segundo seus critérios as obras que merecem ou não ser preservadas . Na musicologia “heróica” como denomina Paulo Castagna, “arquivos musicais são usados apenas como depósitos, nos quais se descobrem obras-primas de grandes mestres do passado, desprezando-se as demais, elegendo-se cópias ou versões específicas como as corretas e interferindo-se na partitura sem critérios cientificamente estabelecidos” (Castagna, 1998, p. 107). Como conseqüência desse procedimento, a compreensão que se tem da produção musical de cada época histórica é sempre parcial e fragmentada por se tratar sempre de um recorte realizado de maneira discutível e desvinculado do contexto social no qual a obra se insere. 86 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 A visão Positivista A visão positivista, ao contrário da visão historicista, pretende construir uma ciência isenta de juízos de valor, tendo como modelo as ciências naturais. A relação não é mais de um sujeito com outro sujeito e sim entre sujeito e objeto. Émile Durkheim considerado o fundador da Sociologia, inspirado pelos estudos de Comte tenta fazer da Sociologia uma “física social”. Durkheim pretende tratar os fatos sociais como “coisas”, para que dessa forma possa afastar-se definitivamente da tradição das ciências do espírito e se aproximar do modelo das ciências naturais. Tratar certos fatos como coisas não é, portanto, classificá-los numa ou noutra categoria do real: é ter para com eles uma certa atitude mental; é abordar o seu estudo partindo do princípio de que se desconhecem por completo e que as suas propriedades características, tal como as causas de que dependem, não podem ser descobertas pela introspecção, por mais atenta que seja (Durkheim, 1983 , p. 76) Dessa forma, os positivistas pregam o afastamento do pesquisador em relação ao seu objeto de pesquisa buscando atingir a mesma neutralidade de que gozam as ciências naturais. A empatia, a proximidade da vivência, buscada pelo pesquisador romântico ou historicista é vista como algo que deforma e prejudica a análise científica dos fatos. Ao mesmo tempo, o pesquisador positivista recusa a tentativa de explicar os fatos com base em pressupostos metafísicos ou noções absolutas, formulando apenas teorias de alcance limitado a serem complementadas por estudos posteriores. Como afirma o próprio Comte fundador do positivismo: Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus tempos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir ( Comte, 1983, p. 4). Garantindo-se o rigor do método, os positivistas acreditam que o conhecimento tenderá a alargar-se progressivamente em um contínuo, como se o progresso científico não implicasse, na maioria das vezes, na derrubada de todas as teses em que se acreditava até então. Os positivistas acreditavam que os fenômenos tanto sociais quanto naturais estariam regidos pelas mesmas leis gerais e que, através da pesquisa científica, poderíamos reduzir cada vez mais o número dessas leis e, através delas, unificar todas as ciências, através da unidade em termos de método de pesquisa, o que implica na indiferenciação entre fenômenos naturais e fatos sociais. A musicologia histórica: herança e perspectivas 87 A influência da visão positivista na musicologia brasileira A influência da visão positivista na musicologia brasileira é bem apontada no artigo de Alberto Ikeda: Por fim, no que toca às pesquisas, continuamos regidos marcadamente por posicionamentos originados no pensamento positivista, no qual, pelo lado perverso, se preconizava a impossibilidade de se conhecer além dos fenômenos em si, sem indagações dos porquês, das causas e finalidades dos fatos sociais e dos aspectos mais reflexivo-compreensivos relacionados aos fenômenos estudados. Daí é que, quando muito, nas pesquisas musicais, se procedem a análises internas e técnicas co objeto de estudo (análise estrutural), que, no entanto, permanece reificado do seu contexto social (ou histórico social, no caso da musicologia histórica), dificultando a sua compreensão (Ikeda, 1998, p. 66). No entanto, a advogada neutralidade do positivismo, isto é, de que você não pode conhecer para além dos fenômenos em si, se revela como ideologia, na medida em serve como forma de ocultamento dos critérios e pressupostos na seleção dos fenômenos que são dignos de serem pesquisados ou não. Na musicologia de orientação positivista, o pesquisador escolhe os autores e obras que, invariavelmente, coincidem com aqueles já consagrados pela história tradicional e que são considerados como clássicos da cultura universal. Em geral, os musicólogos positivistas brasileiros se dedicam ao estudo da música erudita européia etnocentricamente considerados os maiores exemplos desta cultura universal. A visão positivista da musicologia influencia também na escolha de fontes para a pesquisa, pois, considera apenas a grafia da música de preferência aos manuscritos como fonte válida. Apesar de seus pressupostos, não podemos deixar de reconhecer a contribuição da pesquisa de orientação positivista na musicologia ao tentar estabelecer critérios de cientificidade e métodos de pesquisa. Um novo paradigma na Musicologia histórica latino-americana Na busca pela autonomia do campo da musicologia brasileira e latino-americana, vários autores apontam uma mudança de enfoque da disciplina por volta do fim dos anos 80. Esse novo paradigma se caracteriza pela superação do positivismo por um método mais interpretativo, como diz Maria Elizabeth Lucas: Minha experiência docente e de pesquisa tem acolhido sinais de uma guinada qualitativa no tratamento de certos temas e problemas de investigação da produção musical brasileira. Caracterizo essa guinada como a da superação positivista e categórica do fazer científico, para uma postura mais reflexiva e relativizadora do modus operandi.(Lucas, 1998, pp. 69–70). Ricardo Tacuchian também percebe essa mudança quando diz: Dessa forma, inaugura-se uma terceira fase nas pesquisas musicológicas brasileiras, isto é, uma reflexão interdisciplinar sobre o fato histórico-musical representado pelo documento exumado e uma análise técnico-estrutural da 88 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 partitura musical. Esta fase interpretativa ou reflexiva da musicologia brasileira ainda está nos seus primórdios (Tacuchian, 1994, p. 100). Outros apontam uma mudança metodológica, para acompanhar o desenvolvimento científico das ultimas décadas do século XX, como propõe Gerardo Huseby: Especialmente nos últimos anos, a musicologia internacional ha refletido também os novos ventos que sopram no mundo das idéias. Cada vez mais se comprova a impossibilidade de trabalhar em compartimentos estanques, e cada vez mais se percebe a necessidade de abrir-se a interdisciplinariedade, a enfoques de bases mais amplas e abrangentes. As velhas perguntas se recolocam à luz dos aportes da sociologia, da antropologia, dos conhecimentos proporcionados pela lingüística ou da semiologia. Estudam-se as relações entre o texto e o contexto através de diversos marcos teóricos e estratégias metodológicas (...) não podemos permanecer à margem das correntes de pensamento contemporâneas (Huseby, 1995, p. 22). O novo paradigma que se apresenta à musicologia brasileira está em desenvolvimento, o que torna precoce a tentativa de estabelecer quais as técnicas e abordagens que lhe são características. Porém, esse novo jeito de fazer musicologia, já tem uma configuração suficiente que nos permite elencar algumas mudanças: 1 ∑ novos objetos de pesquisa – ao deixar de privilegiar exclusivamente como objeto de pesquisa as grandes obras dos grandes mestres do passado, a nova abordagem da musicologia se depara com várias partituras, muitas vezes anônimas em arquivos pouco explorados e catalogados. A pesquisa desses materiais, dentro desse novo enfoque musicológico, levam a novas suposições de como eram as atividades musicais do nosso passado. ∑ novas fontes de pesquisa – além das fontes musicais dos arquivos musicais como já dito, muitas vezes não catalogados, pouco explorados e muitas vezes sob perigo de extinção1, a nova musicologia utiliza também com mais freqüência outras fontes extra musicais , que portanto podem dar a pesquisa informações importantes de como era a vida musical de uma determinada época, comunidade, grupo, etc; ou até sobre o desenvolvimento do pensamento musical por um período. Essas novas fontes podem ser periódicos , revistas musicais , jornais , ordem de pagamento para músico etc. ∑ novas questões – A questão posta pela musicologia até então era o que as grandes obras e os grandes compositores diziam de sua época. Na nova abordagem musicológica várias perguntas se colocam:. Qual o cenário musical de cada Sobre o tratamento dos arquivos musicais e sua situação ver: Conclusões e Recomendações do I Colóquio Brasileiro de arquivologia e Edição Musical. I Colóquio Brasileiro de Arquivologia e Edição Musical, Mariana, 18-20 jul. 2003. Anais. São Paulo, s.n. 1995. pp. 148–159. A musicologia histórica: herança e perspectivas 89 época? Quais as relações entre diferentes grupos de músicos em uma determinada sociedade? ∑ enfoque multidisciplinar – para se responder as novas questões que a musicologia atual se propõe, torna-se necessário se valer da contribuição de outras disciplinas como a sociologia e a antropologia cultural que nos ajudam a entender melhor as relações sociais e os conflitos de classe no qual a produção artística se desenvolve, assim como o ambiente cultural de uma determinada época. ∑ não hierarquização sobre esses elementos- a maior característica desse novo enfoque musicológico é a não hierarquizações dos objetos de pesquisa e das fontes. Tanto na musicologia de orientação romântico-historicista como na positivista, autores e obras eram hierarquizados segundo um padrão um tanto arbitrário de importância histórica. Hoje o importante é compreender a produção de uma época em seu conjunto, em sua trama interna de influências recíprocas. Musicologia e contexto histórico-social Os estudos em musicologia, como foi visto, tiveram várias maneiras de abordar a pesquisa musical, as pesquisas biográficas de caráter subjetivo desenvolvidas dentro de uma visão historicista; o tratamento seletivo de arquivos a fim de se “descobrir” as peças que preencheriam as lacunas do cânon das grandes obras e artistas que refletiram o “espírito de uma época” ou análise interna e técnica da música reificada de seu contexto social. Frente à insuficiência dessas abordagens, tem-se buscado nos últimos tempos uma mudança metodológica nos estudos de musicologia. Essa nova abordagem nos leva a crer que a pesquisa musicológica não pode ser desvinculada do aspecto histórico e social. Nesse sentido, as ciências sociais, em particular a antropologia e a sociologia da cultura, podem oferecer uma contribuição significativa como referencial teórico e metodológico. A pesquisa de Pierre Bourdieu sobre a economia das trocas simbólicas traz importantes contribuições nesta perspectiva. Bourdieu afirma que a história da literatura tradicional, assim como acontece também na musicologia, ainda resiste a analisar os autores e obras sociologicamente, querendo analisálos em si mesmos. Tal apreensão tem em vista tratar uma individualidade “criadora” cuja “originalidade deliberadamente cultivada parece propícia a suscitar o sentimento da irredutibilidade e a reverência” (Bourdieu, 2004, p. 183). Dessa forma, a tradição positivista permanece presa a ideologia romântica do “gênio criador”. Tais obstáculos à compreensão de um artista ou obra são também uma fonte para o sociólogo interpretar a ideologia que está por trás disso e que é capaz de revelar qual é a posição do artista na estrutura do campo intelectual, que, por sua vez, está incluído em um campo político e em uma determinada posição na fração intelectual e artística. É só na era romântica em que a biografia do escritor vira ela mesma uma obra de arte e tenta dessa forma estabelecer uma comunhão entre a “pessoa” do leitor e a “pessoa” do 90 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 criador. O objetivo de tal culto romântico da biografia é parte integrante de um “mandarinato intelectual” fundado “nos princípios de um aristocratismo da inteligência e de uma representação carismática da produção e da recepção das obras simbólicas” (Bourdieu, 2004, p. 185). Para Bourdieu são esses os princípios que engendram ainda hoje a representação que os intelectuais possuem do mundo social e de sua função no mundo. Também é ainda a orientação romântica que predomina na análise das obras desvinculandoas do contexto social. Portanto, a tarefa a que Bourdieu se propõe é a de analisar por que se constituiu esse determinado corpus e qual sua posição no campo do poder e no campo intelectual. Para se realizar um estudo da produção cultural e artística, Bourdieu considera que três passos metodológicos são fundamentais que mantêm entre si uma relação de ordem tão estrita como os três níveis da realidade social que apreendem:. Primeiramente, uma análise da posição dos intelectuais e dos artistas na estrutura da classe dirigente(...) Em segundo lugar, uma análise da estrutura das relações objetivas entre as posições que os grupos colocados em situação de concorrência pela legitimidade intelectual ou artística ocupam num dado momento do tempo na estrutura do campo intelectual.(...)O terceiro e último corresponde à construção do habitus como sistema das disposições socialmente constituídasque, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes. (Bourdieu, 2004, p. 191). Dessa forma, a primeira coisa que o pesquisador deve analisar é qual o papel da produção musical e da produção de bens simbólicos em geral na sociedade capitalista. Para que seja possível romper com a problemática tradicional (...) a condição básica consiste em constituir o campo intelectual (por maior que seja a sua autonomia, ele é determinado em sua estrutura e em sua função pela posição que ocupa no interior do campo de poder) como sistema de posições predeterminadas abrangendo, assim como os postos de um mercado de trabalho, classes de agentes providos de propriedades de um tipo determinado. Tal passo é necessário para que se possa indagar não como tal escritor chegou a ser o que é, mas o que as diferentes categorias de artistas e escritores de uma determinada época e sociedade deviam ser do ponto de vista do habitus socialmente constituído, para que lhes tivesse sido possível ocupar as posições que lhes eram oferecidas por um determinado estado do campo intelectual e, ao mesmo tempo, adotar as tomadas de posição estéticas ou ideológicas objetivamente vinculadas a estas posições ( Bourdieu, 2004, p. 190). Por exemplo segundo Bourdieu a produção erudita, compreendida dentro do campo dos bens simbólicos, cumpre a função de assegurar a conservação e a transmissão seletiva dos bens culturais e dos consumidores dispostos e aptos a consumi-los. O consumo dos bens simbólicos necessita de instrumentos de decodificação desses bens. Portanto, as obras de arte erudita derivam sua função de distinção social da raridade dos instrumentos destinados A musicologia histórica: herança e perspectivas 91 ao seu deciframento, como por exemplo, através do acesso às instituições escolares e também das disposições para adquirir tal código como ser de uma família de músicos. Desse modo, a escola é um veículo de reprodução dos meios de consagração da cultura erudita. A escola não cumpre apenas a função de consagrar a “distinção” – no sentido duplo do termo – das classes cultivadas. A cultura que ela transmite separa os que a recebem do restante da sociedade mediante um conjunto de diferenças sistemáticas: aqueles que possuem como “cultura” ( no sentido dos etnólogos ) a cultura erudita veiculada pela escola dispõe de um sistema de categorias de percepção, de linguagem, de pensamento e de apreciação, que os distingue daqueles que só tiveram acesso à aprendizagem veiculada pelas obrigações de um ofício ou a que lhes foi transmitida pelos contatos sociais com seus semelhantes. (...) Falar em cultura popular é acreditar que o sistema dos esquemas que constitui a cultura (no sentido subjetivo) das classes populares poderia ou deveria, em condições que nunca são especificadas, constituir-se em cultura ( no sentido objetivo) objetivando-se sob a forma de obras “populares” capazes de exprimir o povo de acordo com os esquemas de linguagem e pensamento que definem sua cultura ( no sentido subjetivo).(...) Logo, não se pode desconhecer o fato de que a cultura popular define-se, em sua essência, como se estivesse privada da objetivação e até da intenção de objetivação que define a cultura erudita (Bourdieu, 2004, pp. 221–222). Assim se constitui duas categorias de bens simbólicos: a arte erudita destinada às pessoas que adquiriram as disposições para compreendê-la, e a arte média, produto da indústria cultural, destinada a um público “médio” que é socialmente heterogêneo. Os produtos da indústria cultural utilizam-se de recursos imediatamente acessíveis, em busca da rentabilidade e da extensão máxima do público. Por sua vez, a arte erudita por se destinar a um público reduzido e contar, muitas vezes, com a subvenção do Estado, pode fazer experimentos de vanguarda que poderão ser apropriados pela arte média por seus resultados já testados e garantidos. Assim a arte média é sempre subsidiária da cultura erudita, pois qualquer inovação poderia por em risco o contato com o grande público, por se tratar de um efeito ainda não testado. Disso decorre que a arte média é sempre uma cópia mais acessível da cultura legítima. Bourdieu explica que não se pode falar propriamente de uma cultura popular porque enquanto a cultura da classe dominante é transmitida na escola e encontra sua complementação fora dela como cultura erudita, a cultura popular é desprovida de ambos. Assim para que possa existir uma cultura popular deveria haver uma forma de produção de obras “populares” capazes de exprimir o povo de acordo com esquemas de linguagem e pensamento que definem sua cultura. Mas isso equivaleria, segundo Bourdieu, “a exigir ao povo que tome de empréstimo à cultura erudita a intenção e os meios de expressão (como fazem os escritores populistas, burgueses ou trânsfugas) a fim de exprimir uma experiência estruturada segundo os esquemas de uma cultura (no sentido subjetivo) que, por definição, exclui tal intenção e tais meios” (bourdieu, 2004, p. 221) 92 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Porém, ao pesquisar a história da produção cultural dos países da América Latina, em particular do Brasil, podemos perceber em inúmeros casos que técnicas e inovações da música partiram de práticas de uma cultura popular como no caso da modinha e do choro. A dinâmica da produção cultural não se restringe às categorias de arte média e arte erudita. Existem espaços de produção cultural que não são rentáveis o suficiente para serem absorvidos pela indústria cultural e tampouco transmitem o status simbólico de que goza a cultura erudita. É possível que nesses espaços se desenvolvam formas de produção artística muito mais ligadas a expressão cultural de grupos dominados não reificados pelo sistema de cultura legítima. Ao levar esse fato em consideração, a musicologia história não pode ter como objeto de estudo apenas a música erudita, mas sim todas as expressões musicais de cada época e suas inter-relações. Dessa forma, os estudos em musicologia devem não tanto focar uma obra ou autor, mas o conjunto da produção musical em uma determinada época como expressão no campo simbólico das contradições sociais e da forma como os homens pensam e vivenciam essas contradições. Referências bibliográficas BISPO, Antônio Alexandre. “Tendências e perspectivas da musicologia no Brasil”. Boletim da Sociedade Brasileira de Musicologia, São Paulo, ano 1, n. 1, 1983, pp. 13–52. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção de Sérgio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 2004. 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Juliana Dutra: Licenciada em Educação Artística com Habilitação em Música pelo Institudo de artes da UNESP, mestranda do programa de pós-graduação em Música da UNESP sob a orientação do Prof. Dr. Alberto T. Ikeda. Música eletroacústica e um novo escutar musical Maria Cristina Dignart (UFG), Anselmo Guerra de Almeida (UFG) Resumo: Ao utilizar recursos de fixação e processamento sonoro como estratégia composicional, a música eletroacústica traz uma nova problemática: a questão da escuta. Ao utilizar materiais que focam a interioridade do som esta forma composicional trouxe conseqüências irreversíveis para o pensamento musical como um todo. O presente artigo discute novos conceitos e a nova visão para a escuta que a trazidos com o surgimento da música eletroacústica. Palavras-chave: Música eletroacústica, escuta e Escuta Reduzida. Introdução A música eletroacústica, desde seu surgimento na década de 1950, trouxe consigo questões relacionadas a estratégias composicionais que vieram refletir no processo histórico da música como um todo. Durante anos, simpatizantes da linha Musique Concrète (França) e os que seguiram a linha da Eletronische Musik (Alemanha), trouxeram à tona discussões que propiciaram novos meios de realização e vinculação de obras musicais. Tanto a utilização de sons gravados em diversos ambientes, manipulados e estruturados em estúdio, quanto a busca da criação e recriação de sons e timbres através de síntese eletrônica foram incorporados ao conjunto de possibilidades do compositor contemporâneo. E a fusão destes elementos de natureza distinta gerou basicamente o conceito atual da música eletroacústica. Esta tendência tem como característica principal o rompimento com a supremacia dos parâmetros altura e duração, propondo assim, uma nova categoria de escuta, que busca uma percepção da interioridade dos dados sonoros que trouxeram novos conceitos instaurando um novo pensar, fazer e ouvir musical. Boa parte dos estudos relacionados à análise da música contemporânea dedica sua atenção às músicas conduzidas pelos parâmetros regentes da musica tradicional – altura, duração, dinâmica e timbre – enquanto suportes para as análises que se apóiam na representação gráfica em partitura. Ao utilizar recursos de fixação e processamento sonoro como estratégia composicional, a música eletroacústica traz uma nova problemática: a questão da escuta no processo analítico. A escuta musical toma um sentido bem profundo nesta forma composicional, por esta não possuir o elemento referencial de origem – o instrumento, no sentido tradicional -, e ainda por não possuir uma notação gráfica objetiva. Caesar (2000) a esse respeito afirma que “o novo arsenal de ferramentas ocupava um espaço privilegiado, cuja suficiência poderia prescindir daquilo que de mais próprio a música tinha - seu canal específico - a escuta”. Por não ser registrada graficamente, mas sim, gravada, esta música irá trazer um desafio mais intenso para o órgão principal que conduz a atividade musical: o ouvido. O importante é o som por ele mesmo, as suas relações com outros e a construção temporal desse discurso musical, tornando inviável o uso da notação tradicional. Varèse (1936, p. 58) acerca deste abandono de notação impulsionado pela implantação dos instrumentos elétricos cita: “E aqui é curioso notar, como ao início de duas outras eras – a alta Idade Média e a nossa era primitiva [...] – que nos defrontamos com o mesmo problema: o de encontrar uma simbologia gráfica apta a transformar em som o pensamento do compositor”. Desta maneira, a escuta será vista neste contexto como ponto de partida da análise. Com a nova fase digital de composição eletrônica, outras possibilidades estão se abrindo no âmbito da composição onde o desafio da escuta permanece e defronta-se com as formas de articulação do sonoro apresentados nesta maneira de criação musical. O fenômeno da música em meios eletrônicos trouxe novas possibilidades de combinação rítmicas e sonoras, oferecendo assim, uma nova visão da criação musical, dotada de uma diferenciada Música eletroacústica e um novo escutar musical 95 estética que na maioria das vezes não é compreendida pelos apreciadores de música tradicional. Devido à falta de registro gráfico tradicional, existe aqui a dificuldade na descrição da experiência auditiva, pois neste contexto de criação não há uma grafia clara que sirva de subsídio para o trabalho analítico, então voltamos à questão da escuta como base de diagnósticos dos signos presentes neste fazer musical, além da dificuldade encontrada na descrição do material utilizado que muitas vezes não está previamente distribuído em sistemas intervalares. Sobre isso Caesar (1994) ressalta que “a ausência de notação - e conseqüentemente de um átomo elementar, uma unidade mínima - está na base mesma da especificidade da música eletroacústica: sua irredutibilidade. Não se pode reconstituir uma obra eletroacústica a partir de sinais gráficos, mas, mais do que isso, falta a ela qualquer ponto de apoio que permita análises objetivas [grifo nosso]”. Uma das primeiras tentativas de implantar subsídios para a descrição da experiência eletroacústica surgiu do compositor Pierre Schaeffer a partir da publicação da sua obra intitulada Tratado dos objetos musicais (1993) em 1966. Neste livro foram discutidas formas de trabalhar e classificar o que ele denominou os objetos sonoros e musicais. Instaurando novos conceitos relacionados à percepção dos eventos sonoros que compõe uma obra musical. Para essa classificação, foi proposto o exercício da “escuta reduzida”, que, sugere um tipo especial de atenção musical aos sons: uma ferramenta para avaliação dos objetos sonoros. O presente trabalho tem o objetivo de abordar a escuta como principal eixo de condução para uma apreciação analítica que procura não se utilizar o padrão tradicional instaurados ao longo da história da música, fundamentando-se nos conceitos trazidos pelo compositor Pierre Schaeffer, que foi um dos pioneiros a discutir a questão do ouvir como forma de análise da música eletroacústica. Novos conceitos A presença cada vez maior de tecnologias na produção musical contemporânea evoca questões que se fazem presentes desde a década de 50, quando surgiram as primeiras vertentes de criação musical em meios eletrônicos. A música eletroacústica tornou possível que o compositor trabalhe seu material de forma direta criando seus próprios sons em sua peça. Assim, o envolvimento com o material musical tornou-se muito mais imediato, sendo oportuno na época em que o serialismo era considerado uma forma de viagem objetiva de descoberta científica em música. Duas grandes vertentes de produção musical em meios eletrônicos trouxeram à superfície técnicas exclusivas que influenciaram a música atual, sabe-se que o corte entre as vertentes francesa e alemã – conhecidas como musica concreta e música eletrônica, respectivamente – deveu-se basicamente às diferentes origens dos sons utilizados por ambas (gravados vs. sintetizados). Em conseqüência dessa diferença, cada uma dessas escolas teria optado por abordagens do trabalho de composição distintas: o determinismo da escrita, para os de Colônia, em oposição à complexidade dos sons gravados, para os de Paris. Essas vertentes, e suas técnicas deixaram algumas discussões estéticas internas que surgiram em sua época e ainda persistem hoje no discurso musical. O compositor Pierre Schaeffer – que liderava a corrente parisiense – a partir da publicação de seu Traité des objets musicaux (Tratado dos Objetos Musicais), em 1966, discutiu novos conceitos que foram adotados ou reformulados pela música eletroacústica atual e por outras vertentes musicais contemporâneas. Abordagens como as formas de se trabalhar e qualificar os 96 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 objetos sonoros e musicais, bem como a maneira ideal de se ouvir e entender esse tipo de linguagem musical, e a nova noção de instrumento musical foram novos conceitos propostos por Schaeffer que se encaixam em toda e qualquer música, e alguns destes serão discutidos neste artigo. O objeto sonoro O trabalho de Pierre Schaeffer veio trazer não apenas um novo mundo sonoro e musical, mas também, através de suas conceituações intermináveis indagações que originaram inquietações sempre experimentadas por muitos compositores e estudiosos de música. Seus conceitos até hoje são importantes ferramentas para análise e temas para discussões em cima de uma visão mais íntima para com o fenômeno musical. Um dos conceitos amplamente discutido e adotado pelos compositores é o que vem a ser o objeto sonoro. No seu Tratado dos Objetos Musicais, Schaeffer, busca essa definição lidando com a percepção do sonoro e do musical, decompondo a experiência musical em alguns quadros e categorias de conceitos. O compositor propõe essa conceituação através da experiência de uma escuta atenta aos sons, e que ao escutá-los, deve-se desligar qualquer referência que não seja exclusivamente pertinente às características internas deste som. Palombini (1999) acerca da nova conceituação Schaefferiana de objeto sonoro coloca que este: não é um produto estético, mas uma prática significante; não é uma estrutura, mas uma estruturação; não é um objeto, mas um trabalho e um jogo (...); não é um grupo de signos fechados, mas um volume de traços em deslocamento; não é a significação, mas o Significante; não é a velha obra musical, mas o Texto da Vida. Inicialmente antes de definir propriamente o objeto sonoro, Schaeffer começa discutindo o que não é, e a primeira afirmação é a de que um objeto sonoro não é o instrumento tocado, pois ele defende que para escutarmos o objeto musical devemos abdicar da função causal do instrumento, ele reforça dizendo que: a distinção que desejamos estabelecer entre ‘instrumento’ e ‘objeto sonoro’ é ainda mais radical: se nos for apresentada uma fita sobre a qual está gravado um som cuja origem somos incapazes de identificar, o que é que estamos ouvido? Precisamente aquilo que chamamos de objeto sonoro, independentemente de toda referencia causal, designada pelos termos de corpo sonoro, fonte sonora ou instrumento. (Scheffer, 1993, p. 87). Mesmo que materializado pela fita magnética, o objeto tal como Schaeffer busca definir, não está tampouco sobre a fita, a fita não é nada mais nada menos que um suporte sonoro, ou sinal acústico. Daí surge a próxima afirmação do autor: o objeto sonoro não é a fita magnética, mas sim, apenas relativo à escuta . Sem a escuta de um determinado ouvinte, estes sons passam a ser apenas sinais físicos fixados em um meio material, pois somente a escuta é que dará contas do resultado perceptível, necessário para a identificação do objeto sonoro. E, através das possibilidades de manipulações na fita, é possível a modificação e até a criação de novos objetos, mas não é este fato que definirá o objeto sonoro, mas sim a percepção que o ouvinte terá deste, pois existe na verdade “uma ‘correlação’ entre as manipulações que se infligem a uma fita ou às suas diversas condições de leitura – as condições da nossa escuta e o objeto percebido” (Schaeffer, 1993, p. 87). Por ser fruto da percepção, o objeto sonoro tem a aparência de estar fundamentado apenas na subjetividade de um indivíduo. Entretanto, o autor coloca que apesar de existir uma variação de percepção de um indivíduo para outro, ele não se modificará. Nota-se que Música eletroacústica e um novo escutar musical 97 Schaeffer busca o conceito de objeto sonoro em cima de uma percepção apurada sobre a matéria escutada, para ele o objeto sonoro irá existir quando for completado, ao mesmo tempo materialmente e individualmente uma redução rigorosa na escuta, ou seja, não se deve restringir apenas às informações dadas pelo ouvido, não se procura mais obter informações do evento sonoro (como sua fonte, sua altura precisa, por exemplo), mas sim é o próprio som em sua essência é que deve ser “observado”. Deve-se ter em mente - segundo essa teoria proposta por Schaeffer – que o objeto sonoro pode possuir as propriedades fundamentais de outros objetos percebidos (como o agente produtor do som, por exemplo), então é “preciso reconhecer, que em um som, é mais fácil confundir o objeto percebido e a percepção que dele tenho” (Schaeffer, 1993, p. 244), ou seja, a percepção é algo particular do indivíduo, mas o objeto sonoro não modificará ao ser apresentado a diferentes ouvintes. Outro ponto que deve ser colocado em questão é a relação do objeto sonoro com o sinal físico. Schaeffer defende que o sinal físico não é sonoro em sua essência, pois se deve levar em consideração o que é captado pelo ouvido. Para a física o conceito deste objeto é relacionado com as normas e sistemas de referência desta, e a percepção deve ser fundamentadas em suas grandezas particulares (deslocamento, velocidade, pressões, etc.). O físico considera que o objeto sonoro não passa de um sinal mensurável, e assim ele acaba por colocar o sinal físico no começo das análises, e a audição virá posteriormente, o que contrariará o que Schaeffer quando diz que “é o objeto sonoro, dado na percepção que designa o sinal a ser estudado, e que não se poderia, portanto, cogitar de reconstruí-lo a partir do sinal” (Schaeffer, 1993, p. 245). Schaeffer, ainda coloca que para escutar o objeto sonoro é necessário abdicar de qualquer referência a alguma fonte que este pode trazer, ou seja, devemos renunciar ao condicionamento criados por hábitos anteriores. Para essa percepção é necessário voltar à experiência auditiva, recapitular as impressões, para ser possível encontrar informações sobre os objetos sonoros, e não a sua fonte. Tipologia e morfologia do objeto sonoro Ao se estabelecer uma definição para o objeto sonoro, surgiu a preocupação se ordenar critérios auxiliares para uma escuta da música, especialmente a feita com as novas tecnologias. Com a música eletroacústica surgiram alguns problemas composicionais e analíticos, só poderiam ser passados adiante através da descrição da escuta. Seus conceitos baseiam-se em grande parte em cima de uma escuta atenta aos sons com o objetivo de um relato mais apurado das características ou traços distintivos da experiência musical, buscando uma análise diferente do que a proposta da análise tradicional. Através da experiência de fragmentação e repetição de um objeto sonoro fixado em um meio, Schaeffer, volta sua atenção ao som em si, como já dito anteriormente, abdicando da preocupação com causa sonora, para voltar-se ao objeto, passar a ouvi-lo de outra maneira, pela escuta reduzida, que será comentado mais adiante. Ele coloca que de tanto manipular os sons tão diversificados, chegou à seguinte conclusão: “primeiro foi a necessidade de renunciar toda classificação musical prematura. Mas foi preciso também, por falta de critério musical, comparar os sons em função das características banais [...]: eles tinham um começo um meio e um fim” (Schaeffer, 1993, p. 328). Desta forma, surgiu a necessidade de uma morfologia comparativa, pois uns sons possuíam a característica de serem mais harmoniosos que outros, e essa comparação surgiu da decomposição do som em três partes: seu ataque, seu corpo e sua queda. E esta seleção 98 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 não podia ser feita, a não ser segundo diferenças morfológicas. E vale lembrar que na visão schaefferiana, é mais importante e prioritário constatar e compreender o aspecto morfológico e tipológico do objeto sonoro, do que descrevê-lo, prematuramente por intermédio de uma notação. A morfologia surge do exame de efeitos e comportamento através do tempo do objeto sonoro. Já a tipologia surge do confronto das coleções de sons, dos quais, na intenção de identificá-los, não se detém mais do que as características mais gerais deste som. Assim, a morfologia tende a uma qualificação do sonoro enquanto a tipologia está relacionada à necessidade de identificação os objetos. Depois de renunciado a todas as referências do objeto, resta então em uma análise, compará-los entre si, de todas as formas possíveis em seu contexto e suas organizações, isso seria a atividade da morfologia. Enquanto a tipologia é o ato de separar estes objetos e identificá-los, e estes são feitos a partir de dados morfológicos. Na procura de uma caracterização do objeto sonoro, Schaeffer propõe levar da prática de corpos produtores de som, uma musicalidade universal através de uma técnica de escuta – a escuta reduzida -, esta é a proposta do denominado Solfejo dos objetos musicais.1 E para a realização deste solfejo são necessárias fases que compreendem: uma etapa preliminar, quatro operações e um epílogo ou síntese. Na etapa preparatória, ou etapa preliminar, os corpos sonoros heterogêneos são colocados em vibração por processos variados e os sons resultantes são registrados. Na primeira operação que é a da Tipologia, objetos são extraídos de contínuos sonoros e selecionados ou descartados de acordo com uma tendência que ele coloca como sendo musical, ou seja, faz-se uma triagem dos objetos que conduzem à determinação de seu tipo; na segunda fase, a da Morfologia, os objetos selecionados são comparados, os critérios de percepção que os compõe são nomeados e os objetos são qualificados enquanto amostras destes critérios; na terceira etapa, o denominado interlúdio arqueológico, interações de critérios são identificadas no âmbito de um objeto sonoro dado, sendo então referidas a um evento produtor de som; na quarta, a da Análise, os objetos que elucidam os critérios são confrontados com os campos perceptivos das alturas, das durações e das intensidades, a fim de se estabelecerem escalas cardinais (absolutas) ou ordinais (relativas) de critérios. No epílogo, ou síntese, tem-se a intenção de se produzir novas músicas baseadas em estruturas de referência dadas pelos critérios de percepção. A partir da escuta atenta é que se delineia os critérios da morfologia do objeto sonoro – o qual Schaeffer coloca como sendo potencialmente musical, ou seja, passíveis de emergir como valores musicais no contexto de estruturações. Estes critérios, também são denominados critérios de percepção os quais o autor estabeleceu dois tipos: os critérios de forma e os critérios de matéria. Os critérios de forma descrevem evoluções temporais sobre o fundo dos critérios de matéria. Estes são separados como perfis: melódico - em relação às modificações na altura -, dinâmico - em relação à intensidade - e os de massa em relação ao conjunto das intensidades e dos componentes do espectro de um som. Já os critérios de matéria têm a função de descrever as qualidades imediatas, espaciais, dos sons e da massa: sua densidade, espessura e complexidade (em oposição à “tonicidade” dos sons de espectro harmônico dos instrumentos musicais); avaliando ainda o timbre harmônico existente em determinadas massas. 1 Jean-Claude Risset (in Menezes, 1996, p. 185) define os Solfejo dos objetos musicais, de Schaeffer, como sendo uma “cartografia” do domínio sensível que permite a referência de qualquer objeto sonoro no espaço de sons percebidos, consistindo no que ele chama de um “esboço metódico” suscetível de esclarecer e de nortear uma procura de correlações entre as particularidades do som e os critérios da sensibilidade. Música eletroacústica e um novo escutar musical 99 Existe na região que está entre forma e matéria ainda dois outros critérios, que são: o grão, que descreve a experiência que fica na fronteira entre pulso espaçado - aspecto temporal - e diferentes rugosidades ou outras qualidades quase palpáveis - aspectos espaciais - da massa; e a allure, que seria um modo de “andar” do objeto sonoro, em outras palavras, modos ondulatórios de se mover no tempo, tais como o vibrato (de altura), o tremollo (dinâmica) e ainda uma allure de massa. Poderia haver ainda outras maneiras de descrever do sonoro ao musical como recorrer a analogias, como as que usamos diariamente, por exemplo “som agudo”, “penetrante”, “ácido”, “tenso”, etc; mas Schaeffer condena o uso de analogias para o descrever sonoro, defendendo que esta “apenas traduz a profunda dificuldade em que nos encontramos para descrever o objeto em si, fora de toda estrutura” (Schaeffer, 1993, p. 388). Conhecidos as categorias e funções do objeto, cabe ao compositor impor limitações pertinentes para se trazer à luz tal ou qual mecanismo ligado a essas classificações é próprio para o ato musical, pois localizar o critério é uma coisa, outra coisa é calibrá-lo, esta consiste em uma tarefa mais complexa. O compositor deve ter uma primeira atitude de explorador, para assim se tornar conhecedor desses critérios e categorizações, para que se conceba uma obra dotada de grande originalidade e autenticidade. E para reforçar esta questão, pertinentemente Schaeffer afirma: o progresso musical se dá talvez por tal preço: talvez a meta de um compositor inteligente não devesse mais ser a de uma casualidade elíptica que o levasse diretamente à obra, ele deveria optar pelo âmbito estreito [...] de um exercício preparatório. [...] É no nível do solfejo que propomos a abordagem experimental, pré-condição de uma inspiração musical autêntica e realista. (Schaeffer in Menezes, 1993, p.159). Um novo escutar musical A escuta musical toma um sentido bem profundo no que diz respeito à música atual, e na música eletroacústica essa questão é amplamente discutida por esta não possuir o elemento referencial de origem, e ainda por não haver uma notação gráfica objetiva. Parece que a partir de um momento da história da música, a escuta, tão importante no ato musical, de certa forma, mudou seu foco, tendo ela não mais o caráter primordial de análise. Com o processo de representação sonora através da notação musical, o ouvir foi sacrificado no sentido analítico de percepção do sonoro. Sobre esta questão Gubernikoff (1997) afirma: A composição musical, [...] só pode partir da escuta, sem a qual os conceitos de som e de música, e, conseqüentemente, o de tempo, não existiriam. Entretanto, o estatuto da escuta no ato de compor é um tema que está longe de ser equacionado e recebe uma nova potencialização a partir da opção da música culta pela notação musical. [...]. Com a notação musical rompeu-se a relação direta e contígua entre a escuta e a composição. Parece um tanto quanto bizarra a afirmação de que a música admitiu que a audição, qualidade principal da existência musical, estivesse deixada de lado como questão. A escrita aparentemente trouxe uma mudança de foco para a escuta na música. Praticamente abdicou dos procedimentos reguladores baseados na memória e na improvisação, que constituem um princípio da prática musical tradicional. Mas, ao contrário, por consistir num aspecto na exterioridade em sua base, a escritura musical exige uma organização lógica prévia. 100 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 A música eletroacústica a partir do seu surgimento, trouxe então de volta esta questão do escutar como principal recurso analítico, que até então a música havia de certa forma dado uma menor atenção em relação à escrita durante muitos séculos, por ser a grafia musical um principal suporte de análise. Sua elaboração com novos materiais e matérias no interior do som, trouxe conseqüências irreversíveis para o pensamento musical. As novas tecnologias ainda não se tornaram capazes de apontar modelos de análise determinantes e objetivos para descrever, ou de qualquer outra forma representar as obras dessa nova música. Essas novas ferramentas para a composição ocuparam um espaço privilegiado e suas habilidades trouxeram a possibilidade de voltar a atenção àquilo que de mais próprio a música tinha, o seu canal característico - a audição. Schaeffer, como já mencionado ao longo deste artigo, foi o responsável pelas primeiras tentativas de sistematizar aportes para a escuta de músicas feitas com as novas tecnologias. Seu trabalho era motivado pela inquietação em buscar contribuições que levassem a um conhecimento mais profundo da música. Suas pesquisas eram desenvolvidas sob a visão de que a música deve permanecer em seu território como uma arte para ser “escutada” por um sujeito “ouvinte”. Com o desenvolvimento da música em meios eletrônicos, surgiram problemas com os novos meios de realização sonora, pois os resultados finais solicitavam conhecimentos para análise e para síntese – que até então não eram discutidos pela teoria tradicional. Não sendo suscetível de notação gráfica de partituras tradicionais, esta música dependia unicamente do ouvido para ser apreciada e analisada. Havia então, a necessidade de uma nova linguagem para sua descrição. O material, na música eletroacústica, não é de natureza discreta, ou seja, não está previamente distribuído em sistemas intervalares. Ele pode ser analisado na sua natureza física, mas, a análise não estará em seqüência com a imagem sonora produzida na percepção. Esta série de rupturas, de não causalidades, entre o som e sua origem, o gesto que o originou, é responsável pelo grande esforço em encontrar um repertório de equivalências que dêem conta da complexidade sonora e composicional da música eletroacústica. Por este fato, Pierre Schaeffer assumiu esta nova problemática pelo caminho que lhe era mais pertinente, o da escuta orientada com seu projeto mais ambicionado, o de uma comunicação universal. As quatro escutas Na busca de uma escuta significativa dos objetos sonoros e musicais, e em busca do seu conceito de “escuta reduzida”, Schaeffer propõe a teoria de quatro funções para esse ouvir mais atento: o ouvir; o escutar; o entender e o compreender. 1. Escutar: Trata-se do processo de captar os sons exteriores e dirigir-se a eles por eles. Nas Palavras do autor: “não é forçosamente interessar-se pelo som. Pode-se dizer mesmo que só excepcionalmente é interessar-se por ele, pois por seu intermédio, visa-se outra coisa” (Schaeffer, 1993, p.93). Por exemplo: um indivíduo ao escutar sons de vozes fora do recinto em que se encontra, tem a capacidade de as situar, calcular a distância, ou então distinguir se são vozes de crianças ou adultos, se estão brigando ou tendo uma conversa alegre, ou seja, fazer uma descrição rápida com algumas informações. O escutar então terá o objetivo principal de entender melhor um evento sonoro atingido pelo ouvido, e através da apreensão instantânea do som, busca-se visar algo além dele mesmo que seria uma “natureza” que este som apresenta no conjunto da percepção. Música eletroacústica e um novo escutar musical 101 2. Ouvir: É o perceber do ouvido, porém de uma forma diferente do escutar que se refere a uma atitude mais ativa, o que se ouve é aquilo que é dado na percepção, em outras palavras: “não é ‘ser tocado por sons’ que chegam ao meu ouvido sem atingir minha consciência. Só em relação a ela é que o fundo sonoro adquire uma realidade” (Schaeffer, 1993, p. 91). Este é o caso de sempre pela reflexão ou pela memória, torna-se possível tomar consciência de uma ambiência sonora. É situar, relacionar e fazer seleções dos dados ouvidos. Exemplificando: um sujeito ao ouvir o toque do relógio, sabe que ele tocou através da reconstituição no pensamento de toques escutados anteriormente, e através deste toque situa-se as horas. Se não houvesse a intenção de se saber as horas, o toque escutado não seria relacionado aos toques anteriores que informaram o horário. 3. Entender: Ter uma intenção sobre algo, neste caso o som apreendido. Captar um sentido. Aplicar o ouvido para buscar uma interpretação do dado sonoro, dar atenção. Para ilustrar: ao participar de uma conversa com diversas pessoas, o indivíduo passa de um locutor a outro conforme seu interesse, sem se dar conta da mistura de vozes, risadas e ruídos que envolvem o ambiente. E Schaeffer (1993, p.89) complementa acerca do entender: “dirigir o seu ouvido para, por onde, receber a impressão de sons”. 4. Compreender: Assim como o entender, significa captar um sentido, porém com a diferença que o compreender tem o sentido de “tomar para si”. Segundo Schaeffer (1993, p. 96): “Eu compreendo pelo êxito de um trabalho, de uma atividade consciente de espírito, que não se contenta mais em acolher uma significação, mas abstrai, compara, deduz, relaciona informações de fontes e naturezas diversas. Trata-se de precisar a significação inicial, ou extrair uma significação suplementar.” Exemplificando: Ao participar de uma conversa, um sujeito entende o que o interlocutor expõe, porém com uma análise dos fatos colocados por ele, o sujeito saberá se a conversa é verdadeira ou não. O ato de compressão então, irá combinar com uma atividade da escuta: todo o trabalho de dedução, de comparação, de abstração, é conduzido em um patamar além do conteúdo do ato de entender. Compreende-se o que é apontado na escuta, graças ao que foi selecionado para entender. Mas reciprocamente, o que já foi compreendido é o que vai conduzir a escuta e irá informar aquilo que se entende. Em outras palavras poderíamos definir cada processo da seguinte maneira: Escutar trata-se do gesto de dar atenção aos objetos sonoros captados pelo ouvido; ouvir é estabelecer relações de semelhança entre significante e significado;2 entender é instituir relações de causalidade entre estes significantes e significados a aplicar intencionalmente um sentido a eles. Compreender é o promover relações simbólicas; porque ouvir, escutar, entender e compreender são acepções de entender – em relação ao significado etimológico que é o de “ter a intenção de”. Desta forma, Schaeffer definiu a palavra entendre no sentido de: ouvir, escutar, entender e compreender com a consciência de uma intenção. Ao definir estas funções, foi proposto o que ele denomina “balanço funcional do ouvido”, onde sugere que nosso ouvido possui um caminho de percepção em etapas. Mas sua intenção é a de - numa finalidade metodológica - descrever os objetivos que correspondem a funções da escuta, e não a de decompor a escuta em uma seqüencialidade cronológica de acontecimentos que procedem uns dos outros como os efeitos decorrem de causas. 2 Significante aqui é visto como parte física ou material que representa qualquer signo; e o significado é o valor representativo do signo (Objeto em sua essência). 102 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Este balanço funcionará da seguinte maneira: primeiro, recebe-se a mensagem energética revelada pelo som (escutar), então se tem a percepção bruta deste evento sonoro (ouvir), então virá um momento de apreciação e seleção relacionadas a experiências passadas e intenções dominantes (entender), e por fim, essas percepções se referenciarão em um conjunto de conhecimentos com o intuito de chegar a uma significação abstrata em relação ao objeto (compreender) (Fig. 1). 4. 1. compreender escutar 3. 2. entender ouvir FIG. 1. Representação do balanço funcional do ouvido É necessário ter em mente que “não se deve inferir das nossas divisões e numerações nem uma cronologia nem uma lógica, a que se devesse conformar o nosso mecanismo perceptivo” (Schaeffer, 1993, p. 101). A escuta reduzida Preocupado com a problemática da escuta instaurada pela música eletroacústica, Pierre Schaeffer buscou uma metodologia de análise dos fenômenos sonoros que fosse baseado pricipalmente no ato de ouvir. Esta análise se dava pelo processo perceptivo dos dados qualificáveis dos sons, em oposição aos dados notáveis da partitura tradicional. E através do que denominou escuta reduzida, o autor procurou identificar os aportes da escuta através da descrição os objetos sonoros. Estes aportes da escuta foram identificados pela descrição dos objetos sonoros através da escuta reduzida. E este conceito abriu a porta para uma crescente vitalização dos modelos de escuta na música de um modo geral. Sobre a escuta reduzida Caesar (2000) diz que o modelo “gerou diversos desmembramentos que hoje arborizam os saberes da música e de sua escuta. Depois da música em si, como obra, esses conhecimentos têm sido o maior aporte das tecnologias recentes, mesmo quando acontecem a despeito de seus instigadores”. A proposta schaefferiana trata-se de uma nova escuta fenomenológica dos tipos e morfologias sonoras fundamentando-se nos conceitos e formulações de Edmund Husserl. A escuta reduzida então consiste em exercitar a escuta dos objetos sonoros desligando Música eletroacústica e um novo escutar musical 103 qualquer referência que não seja exclusivamente pertinente às características internas deste, esta afirmativa é baseada na “redução fenomenológica” de Hursserl – daí advém o nome “escuta reduzida”. Na tentativa de descrição deste experiência, o autor coloca que o objeto é o pólo de identidade inerente às vivencias particulares3 do indivíduo que o percebe e, no entanto transcendente em sua identidade que ultrapassa essas vivencias particulares, ou seja, o objeto percebido não se confunde de forma alguma com a sua percepção, é necessário por “entre parênteses” sua relação com o mundo exterior, e perceber o “objeto em si” mesmo, sem sua referencialidade exteriores – neste caso o instrumento gerador do som. É o que Husserl chama de epoché, que é o “colocar entre parênteses”, isto é, desvencilhar o objeto do mundo e percebê-lo em sua essência. Assim, através desta escuta especializada é que encontramos o objeto sonoro, fruto da epoché. Primeiramente é necessário renunciar às formas tradicionais de percepção, é indispensável buscar esvaziar a consciência dos conteúdos habituais e rejeitar índices e valores que orientam a percepção de qualquer indivíduo, ou seja, uma suspensão de relações simbólicas e indiciais (como referências ao solfejo tradicional e à fonte ou à causalidade do som). Desta maneira, este processo implicará em uma escuta com um caráter autêntico de análise, e este exercício de redução do campo perceptivo por eliminação das origens mecânicas ou referenciais dos sons consistirá em enumerar nos mesmos, apenas suas características conforme a redução fenomenológica. Os sons são apreciados quanto às suas texturas, densidades de massa, perfis melódicos, dinâmicos, etc – critérios de percepção mencionados anteriormente. O exercício da escuta reduzida se resume então, à construção de uma escuta generalizada e integral, a escuta que não só ouve e escuta, mas entende e compreende à conclusão do processo. Conclusão Alguns compositores e teóricos acreditam ser um erro projetos para análise de obras de música eletroacústica, por esta não possuir critérios de análises práticos instituídos pelos parâmetros de percepções tradicionais. O ouvir analítico da música eletroacústica porém nos remete a uma experiência única no contato mais íntimo com a obra. Através da atenção voltada aos eventos sonoros em si, há uma certa obrigação em estabelecer uma relação mais íntima com a música. Ao mesmo tempo, torna-se difícil esse contato, devido ao condicionamento adquirido ao longo do processo de aprendizagem musical, que busca auxílio nas características mensuráveis do som, critérios estes estabelecidos pela prática da escritura musical. Porém este processo trata de uma experiência singular, por estabelecer uma relação extremamente próxima ao fenômeno sonoro/musical em si. Novos conceitos são adotados ao se perceber a interioridade do som, e o exercício da escuta reduzida, proposto por Schaeffer, pode ser considerado uma abertura para uma escuta generalizadora, onde se busca voltar a atenção para efeitos mais amplos e conseqüências conceituais radicais derivadas da diversidade desse universo qualitativo e não quantitativo do evento sonoro, chamando a atenção para a necessidade de re-direcionamento do foco analítico para a escuta. 3 É através do que ele denomina como unidade de intenção, ou atos de síntese que o objeto se dirige à essas vivencias. 104 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Referências bibliográficas CAESAR, Rodolfo. “Novas tecnologias e outra escuta: para escutar a música feita com tecnologia recente”. In: I Colóquio de Pesquisa e Pós-Praduação, Anais, Rio de janeiro: UFRJ, 2000. _____. “Os espaços internos e externos da nota”.In: LaMut,. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1994. Disponível em http://acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/mel.htm> acessado em 17 de maio de 2004. GUBERNIKOFF, Carole. “Escuta e Eletroacústica: composição e análise”. Debates. Rio de Janeiro: UNIRIO, n° 1; pp. 28–35, ago. 1997. RISSET, Jean-Claude. “Síntese de sons por meios de computadores”. In: MENEZES, Flô (org). Música Eletroacústica: histórias e estéticas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. SCHAEFFER, Pierre. Tratado dos Objetos Musicais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993. ______. “A experiência Musical”. In: MENEZES, Flô (org). Música Eletroacústica: histórias e estéticas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. VARÈSE, Edgar “Novos instrumentos e nova música”. In: MENEZES, Flô (org). Música Eletroacústica: histórias e estéticas. São Paulo: USP, 1996. Maria Cristina Dignart é graduada em Educação Musical pela pela Universidade Federal de Mato Grosso, onde concluiu o seu curso em 2004. No ano de 2005 ingressou no mestrado em música na Universidade Federal de Goiás na linha de pesquisa Composição e Novas tecnologias, onde está com o projeto de dissertação em andamento “Processos Composicionais na Música Eletroacústica”, sob a orientação do professor. Dr. Anselmo Guerra de Almeida. Anselmo Guerra de Almeida é formado em piano pelo Conservatório Musical de Santos/SP. Concluiu curso de Composição e Regência no IAP/UNESP em 1986. Em 1992 concluiu mestrado em Ciência da Computação/UnB, na linha de pesquisa em música computacional. Foi pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em San Diego/EUA no período letivo de 1995/6, como parte de seu doutorado. Concluiu na PUC-SP a tese: "Ambientes Interativos de Composição Musical Assistidos por Computador”, em julho de 1997. Em setembro do mesmo ano tornou-se professor da EMAC/UFG. Foi coodenador do Mestrado em Música entre 1999 e 2001. Em 2000 criou os Laboratórios de Pesquisa Sonora da EMAC (LPqS), que coordena até a data atual. É vice-presidente da Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica. Fatores do desempenho e realização músico-instrumental. Relações interdisciplinares Maria Bernardete Castelan Póvoas (UDESC) Resumo: Nesse trabalho são apresentados aspectos sobre fatores do desempenho que intervêm na prática instrumental, mais especificamente, força, fadiga, flexibilidade, rapidez de movimento e coordenação motora. Busca-se estabelecer relações entre os fatores em destaque e a ação pianística, visando à eficiência do trabalho técnicoinstrumental. Vêm sendo agregados argumentos interdisciplinares para o desenvolvimento de uma consciência anatômica e cinesiológica dos membros superiores em conexão com a prática, resultado sonoro e a manutenção da saúde das estruturas anatômicas ativas durante o trabalho instrumental. Correlações entre argumentos e situações específicas de treinamento pianístico permitem antecipar que há benefícios na prática de recursos técnico-instrumentais que consideram aspectos inerentes a fatores do movimento humano. Palavras-chave: ação pianística; fatores do desempenho; prática instrumental; técnica; interdisciplinaridade. Introdução Esta investigação é um recorte da pesquisa "Fatores do Desempenho e Ação Pianística Uma Perspectiva Interdisciplinar" cujo foco é o estudo de determinados fatores do desempenho (movimento) que intervêm na prática pianística, mais especificamente, força, fadiga, flexibilidade, rapidez de movimento e coordenação motora. Tem sua origem em argumentos apresentados por Póvoas (1999) e como referencial os pressupostos de Rasch sobre o desempenho humano, este entendido como “a expressão de vários componentes denominados fatores do desempenho” (Rasch, 1991, p. 183–193). Entre seus objetivos estão: investigar e discutir sobre os fatores em destaque e suas implicações na utilização de recursos técnico-instrumentais, estabelecer relações entre aspectos a eles inerentes e a ação pianística1 com vistas à eficiência do trabalho técnicoinstrumental e discutir sobre implicações que a utilização das relações levantadas, na prática, têm no desempenho. O movimento é considerado o elemento-meio da atividade em foco cuja ação físico-motora está sujeita à intervenção de vários fatores e, conseqüentemente, aspectos a eles relacionados interagem na atividade instrumental. A revisão bibliográfica tem por base pressupostos teóricos interdisciplinares. Integra abordagens da área pianística e de áreas que tratam de questões referentes ao movimento humano, a citar, cinesiologia, biomecânica e ergonomia. São discutidos procedimentos para o desenvolvimento de uma consciência anatômica e cinesiológica dos membros superiores em suas relações com a prática, resultado sonoro e a manutenção da saúde das estruturas anatômicas mais ativas durante o trabalho instrumental objetivando a otimização do desempenho. As áreas que tratam do movimento humano como meio de produção de uma atividade seguem a tendência de buscar uma melhor compreensão dos fenômenos envolvidos na interdisciplinaridade. Esta permite uma maior abrangência dos recursos teóricos e práticos alicerçados tanto na funcionalidade dos recursos já disponíveis quanto nos resultados de novas investidas e experimentos específicos. Resultados de estudo piloto (experimento biomecânico), realizado em etapa anterior desta pesquisa, apontam para o aprofundamento das relações entre questões técnico-instrumentais e aspectos mais específicos a cada um dos fatores em estudo. Neste sentido, estão sendo 1 Ação pianística: atitude criativa e interpretativa construída através do processamento das questões envolvidas na música selecionando, coordenando e realizando tanto os elementos da construção musical que constituem e caracterizam cada obra quanto os movimentos que possibilitam esta ação (Póvoas, 1999, p. 81). 106 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 avaliadas conexões teóricas entre os fatores de desempenho pesquisados e a aplicabilidade de argumentos levantados, na prática instrumental. Um segundo experimento deverá ser realizado utilizando-se a cinemetria, método quantitativo de avaliação do movimento em que são usados equipamentos para a medição de parâmetros do movimento como trajetória e deslocamento nas coordenadas x, y e z. Para esta apresentação, foi construída uma proposta de trabalho sobre uma situação específica de prática para a realização musical de um exceto da Sonata No. 5 de Sckriabin, compassos 47 a 56. No planejamento da trajetória do movimento foram consideradas questões técnico-musicais relacionadas a aspectos inerentes aos fatores do desempenho, em conexão com a aplicação dos ciclos de movimento (Póvoas, 1999). Ação pianística e fatores de desempenho. Aspectos teóricos e discussão A prática pianística é uma atividade que tem como meta a produção sonora. Para a obtenção de um resultado sonoro adequado a determinado trecho musical é essencial que haja controle a potência de movimento a ser aplicada. Assim, a potência muscular é definida como o produto da força e velocidade (Nigg; Herzog, 1994), havendo uma relação de causa e efeito entre força e flexibilidade. Na biomecânica, “os parâmetros codeterminantes do decurso do movimento, [como] impulsos de força a serem coordenados na ação motora” (Meinel, 1987, p. 2), são considerados dentro do conceito de coordenação. Os parâmetros que indicam a potência de movimento a ser aplicada durante a realização de um determinado trecho musical são determinados, entre outros aspectos, pelo design musical. Para que se estabeleça uma correta aplicação desta potência, é essencial que o pianista controle tal processo (Schmidt & Wrisberg, 2001). De acordo com Rasch (1991, p. 183), “qualquer desempenho pode ser formal ou informalmente analisado para determinar seus componentes em termos de fatores gerais ou específicos. Uma vez identificados tais fatores, pode-se formular programas de desenvolvimento ou treinamento”. Segundo Rasch (1991) e Hall (1993), a força pode ser classificada como força dinâmica, estática e explosiva, sub fatores que podem ser separados e “desenvolvidos de modo diferencial”. Assim, o satisfatório desenvolvimento deste fator depende, significativamente, do repouso entre períodos de atividade, havendo também relação entre o tempo de manutenção e com a velocidade de ativação muscular. Força e velocidade são definidas pelas relações existentes entre a força máxima muscular e a taxa de mudança instantânea de comprimento. A força muscular tem, portanto, relação com a velocidade de encurtamento, ao comprimento e ao tempo de ativação de um músculo (Rasch, 1991; Hall, 1993). Outra maneira de definir força “é dizer que ela é um empurrão (compressão) ou uma tração (tensão)” (Lehmkul,1989, p. 28). O uso inadequado da força é destacado por Meinke (1998) como a causa mais comum de problemas músculo-esqueléticos em músicos. Dentro desta perspectiva, para que haja uma correta aplicação de força e conseqüente preservação destas estruturas, deve-se ter, previamente, uma concepção do resultado sonoro que se espera produzir ao executar um trecho musical. Quanto ao controle do movimento e regulação da potência (força) a ser aplicada, de acordo com o resultado sonoro desejado, o professor de instrumento exerce o papel de orientador de uma tarefa em que o planejamento do treinamento e a avaliação permanente de resultados são estratégias essenciais no processo de desenvolvimento das habilidades específicas de uma ação. Contudo, a obtenção um bom resultado sonoro não pode ser atribuída somente à potência de movimento. Aspectos de natureza diversa, envolvidos na prática pianística, devem ser levados em consideração durante o trabalho. Por esta razão e para se alcançar uma maior Fatores do desempenho e realização músico-instrumental 107 eficiência da uma ação com resultados ótimos (Meinel, 1987), a busca por um equilíbrio entre o uso de força com outros parâmetros, deve ocorrer. Este conceito se aplica à ação pianística quando se pretende que os movimentos adequados ao design da obra, ou de partes da obra em estudo, sejam organizados e realizados em função de uma sonoridade prevista. Desta forma, a “razão do movimento” deve determinar quais os procedimentos mais eficazes para que a relação causa - efeito sonoro seja otimizada. Tal condição pode ser o resultado da conexão entre a realização da técnica, e aqui se inclui o equilíbrio entre a aplicação da força, a real necessidade de energia que o texto musical requer que seja despendida e o tempo de treinamento ou prática instrumental. Um dos fatores do desempenho que está diretamente associado à resistência muscular é a fadiga. Assim sendo, o estudo sobre causas e efeitos da fadiga na atividade humana é de interesse para a área pianística. Entre as definições de resistência, uma delas diz que “a resistência é a capacidade de realizar o mesmo trabalho durante um período de tempo [e] a fadiga é definida como uma falha em manter a força necessária ou esperada de contração muscular” (Lehmkul & Smith, 1989, p. 115). Segundo os autores, uma atividade muscular prolongada pode levar a conseqüências que incluem “a acumulação dos produtos das reações químicas que diminui a velocidade das reações subseqüentes”. Assim, a realização de tarefas exaustivas pode resultar em fadigas musculares que são, mais precisamente, o produto do ácido láctico acumulado no sangue e nos músculos devido ao trabalho físicomuscular além do limite saudável. Quanto ao efeito da fadiga em termos bioquímicos, o relaxamento de um músculo depende da disponibilidade de adenosina trifosfato (ATP) e, igualmente, do nível de oxigênio e nutrientes adequados para prover este músculo de ATP e mantê-lo apto para responder, por um período mais longo respostas de baixa freqüência de tetania, ou seja, contraturas dos membros superiores. Assim, para que o músculo possa sintetizar a ATP, esta freqüência deve ser baixa a uma taxa suficiente para manter a taxa de quebra de ATP durante a contração (Nordin & Frankel, 2003). A informação acerca da fadiga muscular pode ser obtida quando, depois de determinado número de repetições, há uma redução de tenção máxima (torque) de um grupo muscular. A fadiga de um grupo muscular pode ser causada por falha de um ou mais mecanismos neuromusculares que participam da contração muscular (Fox, 1993) e a ausência de contração voluntária pode ocorrer devido a falhas do nervo motor, da junção neuromuscular, do mecanismo contrátil e do sistema nervoso central. Entre as falhas relacionadas ao sistema nervoso está a incapacidade de retransmissão dos impulsos nervosos para as fibras musculares. Assim sendo, a habilidade do músculo de exercer tensão durante um período de tempo é a resistência muscular. Nela, a tensão pode ser constante ou variável e “fatigabilidade é o oposto da resistência [e] quanto mais rápido um músculo fadiga-se, menor é sua resistência” (Hall, 1993, p. 71). Se a fadiga dentro do mecanismo contrátil pode ser causada pelo acúmulo de ácido láctico no sangue e nos músculos, a recuperação deste estado para um de não fadiga depende da remoção do ácido e o tempo de remoção pode variar dependendo da forma de repouso. A que se considerar, também, que a fadiga está diretamente relacionada aos princípios da amplitude de movimento e de recuperação que pode ser acelerada durante pausas de repouso por meio de massagens e movimentos ou exercícios de alongamento (Rasch, 1991). Fox (1993) chama de repouso-recuperação a recuperação que consiste em um repouso total, ou seja, a completa ausência de exercício durante o tempo de descanso. O chamado repouso-exercício é aquele no qual a recuperação é acompanhada de exercícios leves, como o também chamado “esfriamento” para o atleta. Este mesmo argumento pode ser altamente válido na prática pianística. Segundo Fox, “o acido láctico é removido mais 108 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 rapidamente durante o exercício-recuperação do que durante o repouso-recuperação”. (Fox, 1993, p. 40). É no período de repouso que ocorre uma restauração ou reparo acompanhado por uma supercompensação que deve elevar a capacidade do indivíduo para um novo nível de resistência física e mental. Conforme o princípio do treinamento excessivo relacionado, sobretudo, com o desenvolvimento da força e energia, um estado de fadiga crônica pode acarretar alterações tanto morfológicas como psicológicas (Rasch, 1991). Assim sendo, o treinamento a intervalos além de prevenir a fadiga pode eliminá-la. Perrot (in Rasch, 1991) sugere cuidados para se evitar a fadiga, entre eles: eliminar movimentos desnecessários, fazer uso da gravidade para a realização do trabalho e posicionar o corpo o mais confortavelmente possível para que grupos musculares possam trabalhar adequadamente. O estudo de aspectos ergonômicos, em relação ao piano, também pode ajudar na prevenção da fadiga. Por exemplo, o banco do piano deve estar a uma altura que permita manter o cotovelo paralelamente ao teclado e os pés apoiados no chão, e a uma distância que permita a livre movimentação do tronco diante do teclado. O conhecimento acerca das causas e as conseqüências da fadiga, são de extrema utilidade para músicos instrumentistas, no sentido de prevenir contra danos causados pelos excessos atividade muscular. Como em toda a atividade físico-muscular, na ação pianística a manutenção da energia está relacionada à resistência, e esta à intensidade do trabalho e à duração de realização da tarefa e o tempo e/ou a intensidade do trabalho são determinantes durante o treinamento e na avaliação dos resultados (Lehmkuhl e Smith, 1989). Desta forma, o espaço de tempo entre sessões de treinamento deve ser suficiente para dar tempo ao organismo de se recompor fisiologicamente e suficientemente freqüente para permitir o desenvolvimento da habilidade (Rasch, 1991; Magill, 2000). Flexibilidade é um termo qualitativo usado para representar os arcos de movimento presentes em uma articulação2 em diferentes direções. (Hall, 1993, p. 86). A associação entre flexibilidade e o desempenho motor depende da atividade praticada. Segundo Farinatti (2000, p. 92), “uma síntese das pesquisas na área apontaria para a noção de que atletas teriam padrões de mobilidade estreitamente associados ao ato motor executado habitualmente”. Na ação pianística busca-se o desenvolvimento de flexibilidade com o objetivo de evitar lesões e de facilitar movimentos de abertura dos segmentos. Dentro da perspectiva de otimizar a ação pianística, embora a flexibilidade permita um melhor aproveitamento de força, velocidade e coordenação, os excessos de movimento e de tensão devem ser evitados (Kaplan, 1987). Neste sentido, posições articulares extremas podem comprometer a fluência ou continuidade do movimento e ocasionar um quadro álgico. Levando-se em conta que “em geral apenas uma amplitude média, que evita uma posição articular extrema, possibilita uma forma econômica de trabalho da musculatura” (Meinel, 1964, p. 163), pressupõe-se que, para a prática pianística, a utilização da amplitude média durante a execução da maioria dos movimentos, consiste em um grau de flexibilidade mais adequado. É necessário desenvolver ou manter um nível mínimo de flexibilidade, considerando-se que, durante a ação pianística, os movimentos dos segmentos são realizados nos eixos x, y e z. Uma flexibilidade mínima é necessária, mas o excesso de flexibilidade não é aconselhável. Um quadro de hiperflexibilidade leva a uma diminuição da estabilidade muscular e 2 Articulações são conjuntos de elementos, anatomicamente definidos, que fazem ligações entre os ossos. As articulações do membro superior, diartroses, são amplamente móveis e permitem ao corpo mover-se. Fatores do desempenho e realização músico-instrumental 109 ligamentosa, gerando um limitado controle corporal, má coordenação e menor capacidade de percepção corporal (Voigt, 2002). A hiperflexibilidade pode ser genética ou adquirida através de supertreinamento. Porém, mesmo nesses casos, há um certo grau de genética envolvido (Farinatti, 2000; Voigt, 2002). Para haver equilíbrio, um bom programa de treinamento deve aliar um trabalho de força ao treinamento de flexibilidade, uma vez que um músculo trabalhado resulta em diminuição da flexibilidade (Voigt, 2002). Existem diversas técnicas de alongamento, que se dividem em alongamento estático (sem movimento, mantendo a posição de alongamento) ou dinâmico (com movimento, pode ser denominado balístico, quando os movimentos forem livres), sendo que podem ser executadas de formas diferentes. Vários autores concordam que o alongamento estático seria o mais seguro e eficiente em relação à prevenção de lesões. Fernandes, Marinho et. al. (2002) explicam que a menor chance de lesão neste tipo de alongamento deve-se à menor atividade dos fusos musculares em comparação com o alongamento dinâmico e há menor chance de ocorrência de dor muscular. Os benefícios deste tipo de alongamento vêm do tipo de técnica que é lenta e produz maior relaxamento do músculo, permitindo um alongamento adicional, além de diminuir a fadiga muscular (Amaral, 2001). O método estático com uma movimentação lenta até o limite de desconforto e a posterior manutenção da postura parece ser o mais difundido pela sua facilidade de aplicação, aprendizado, menores riscos de lesões e eficiência (Viveiros de Castro e Simões, 2001). A prática de alongamentos é um procedimento indicado na atividade pianística, anteriormente ao início da atividade, como aquecimento, durante o treinamento e ao final do trabalho. O desenvolvimento da flexibilidade é possibilitado através de exercícios de alongamento, cuja prática ao início do treinamento pianístico é essencial para aliviar a tensão muscular. Os músculos da extremidade do membro superior recebem menos sangue porque os vasos sangüíneos são pequenos, fazendo os músculos pequenos ainda mais vulneráveis a lesões. Músculos são compostos de fibras individuais e um pequeno músculo depende de relativamente poucas fibras para realizar um movimento. A prática de um instrumento musical faz extrema demanda aos músculos pequenos e somente dois minutos de alongamento podem auxiliar, enormemente, a circulação sanguínea dos tecidos corporais e os músculos da periferia do corpo (Bruser, 1997). O alongamento distende os tecidos de cicatrização ajudando a realinhar as fibras musculares e as fibras de colágeno do tecido conjuntivo circundante na direção da tensão e previne retrações musculares incapacitantes. (Amaral, Gomes et al, 2001, p. 39). Porém, os mesmos autores advertem que uma técnica inadequada ou um excesso de estiramento poderão provocar microrupturas musculares predispondo a acidentes. Geoffrey afirma que “os exercícios de alongamento possuem um papel preventivo e importante, preparam a musculatura, favorecem a recuperação de lesões e permitem evitar problemas tendinosos, musculares articulares e circulatórios”. (Geoffroy, 2001, p. 17). Farinatti (2000), porém, lembra que as lesões são desencadeadas por fatores múltiplos e que é difícil discernir relações de causa e efeito com base nos dados disponíveis pelo componente do acaso, pelo fato de que as exigências em termos de flexibilidade variam para cada atividade e, finalmente, que a flexibilidade considerada nas pesquisas é a flexibilidade passiva, não a dinâmica, usada na atividade esportiva. Tais informações se adaptam à atividade pianística. Quanto à utilização de exercícios de alongamento como aquecimento para tais atividades, há controvérsias. Num estudo de Murphy (in Castro e Simões, 2001), o método estático contribui para o aquecimento geral, sofrimento muscular, prevenção de lesões e melhoria da performance e a opinião crítica a essas observações são discutidas em função do pequeno aumento da temperatura corporal, que parece insuficiente para proporcionar um aquecimento geral do organismo e diminuir os riscos de lesões, sendo ainda um método 110 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 com quase nenhuma velocidade de movimento que pouco favoreceria o sistema circulatório e o relaxamento. Exercícios de alongamento anteriormente à prática pianística vêm sendo praticados com o objetivo de preparar as estruturas do membro superior para um esforço maior e gerar uma maior consciência corporal e sensação do movimento. Para Pereira (in Voigt, 2002), exercícios de flexibilidade não devem ser realizados momentos antes de competições, pois a flexibilidade excessiva pode ser tão prejudicial quanto à falta de flexibilidade. Pode haver risco de lesão “devido a uma instabilidade articular causada pela deformação dos ligamentos”. Os ligamentos, por serem componentes plásticos, “não retornam à sua forma original, promovem [o] relaxamento da musculatura envolvida no trabalho de flexibilidade, diminuindo a capacidade de esses músculos e ligamentos atuarem como estabilizadores das articulações” (Pereira in Voigt, 2002, p. 48). Outro fator do desempenho a ser considerado na atividade pianística é a rapidez de movimento. Segundo Rasch, a rapidez máxima de um movimento está sujeita, em parte, a características individuais inatas. Os tempos de reação e resposta que podem ser minimizados por treinamento da atenção, estado mental e habilidades influem na rapidez do movimento que pode ainda ser reduzida “pela incapacidade de os músculos antagonistas se relaxarem adequadamente; até certo ponto, esta é uma habilidade e está sujeita a influência do treinamento” (Rasch, 1991, p. 187). Kaplan (1987) apresenta três fatores que influem na velocidade do movimento durante a ação pianística: a imagem clara e objetiva a ser alcançada, direção do movimento e as alavancas ósseas utilizadas: ombro, cotovelo, punho e dedo, as quais há uma velocidade limite passível de ser atingida (Kotchevitsky, 1967; Kaplan, 1987), podendo-se inferir uma flexibilização do braço ao punho, por exemplo, com o objetivo de aumentar a velocidade. “A freqüência de vibração do punho pode ser aumentada com a ajuda de movimentos coordenados do braço inteiro em conexões com divisões métricas” (Kotchevitsky, 1967, p. 33, tradução nossa). Quanto à imagem clara e objetiva a ser alcançada e a direção do movimento na ação pianística, Kaplan (1987) chama atenção no sentido de evitar mudanças de direção e cuidados com o dedilhado. Póvoas (1999) sugere uma análise anterior da partitura e um planejamento do movimento em seus ângulos e trajetórias anterior à execução. Póvoas (1999, p. 90) apresenta um “recurso estratégico de utilização do movimento, no sentido de explorar a organização espacial do movimento em sua trajetória”, através de uma racionalização (realização objetiva do movimento de acordo com o design musical), “diminuindo o somatório de distâncias a serem percorridas significando menos carga de trabalho com menor desgaste físico-muscular”. Propõe a autora etapas de preparação, de acompanhamento e de avaliação de resultados: “uma fase de análise prévia (preparação) para a definição das ações, uma fase de controle (acompanhamento) durante o treinamento e aplicação dos recursos selecionados e uma fase de análise dos resultados (avaliação)”. A análise prévia seria anterior à execução, investigando sobre movimentos a serem utilizados, adequados á realização do design da obra, “em função da velocidade e dos resultados sonoros pretendidos”. Durante a segunda fase, para o melhor o desempenho motor, devem ser considerados e desenvolvidos ao nível de consciência e domínio, os fatores força, resistência, coordenação e flexibilidade articulares. A correspondência do controle cinestésico, sensação física experimentada a cada movimento com o resultado sonoro, torna-se essencial. Um terceiro momento no processo seria dedicado à avaliação dos resultados (Op. Cit., pp. 98–99). A racionalização e a consciência do movimento são de extrema importância para ações muito rápidas e produzidas em ambientes estáveis e previsíveis (Schmidt & Wrisberg, Fatores do desempenho e realização músico-instrumental 111 2001). Após um movimento rápido ter sido iniciado, o controle consciente sobre este movimento diminui, ou seja, se o executante perceber a necessidade de modificação, haverá um espaço de tempo entre o comando de mudança ou correção do movimento até o processamento da informação (Schmidt, 1993). Rasch e Burke (1987, p. 111) afirmam que “se uma habilidade refinada exige grande velocidade e muita precisão (...), as práticas devem enfatizar essas duas qualidades desde o princípio, tanto quanto possível” e que se for dada uma maior importância à precisão em detrimento da velocidade, terá de se reaprender muito nas fases finais da prática, quando se necessita de maior velocidade, daí a importância da clareza mental e do planejamento do movimento. Neste contexto, Kaplan (1987) afirma para o estudo de movimentos deve-se levar em conta o andamento pretendido para a performance, mesmo que em andamento lento. Póvoas (1999, p. 92) posiciona-se de maneira equivalente quando orienta: Durante a etapa inicial de treinamento do repertório, os ciclos de movimentos devem ser organizados visando a sua realização instrumental no andamento pretendido. Este procedimento poderá diminuir a diferença entre a reação muscular durante o período de estudo em que determinada obra é executada em andamento mais lento e a reação muscular nos estágios de treinamento em que a velocidade de execução da peça é mais próxima da velocidade pretendida. Habilidades manuais de direcionamento têm, na sua maioria, uma característica comum que consiste no desempenho rápido e preciso de uma habilidade. Velocidade e precisão, quando relacionadas a um desempenho bem-sucedido de uma habilidade, constituem um dos princípios fundamentais do desempenho motor: um compromisso entre a velocidade e a precisão (Maggil, 2000, p. 75). Na medida em que o tamanho do alvo vai sendo reduzido ou à medida que a distância se torna maior, a velocidade do movimento diminui para que o movimento seja preciso. Relacionando com a ação pianística, na execução de uma passagem musical que apresente deslocamento dos segmentos em movimento contrário, cujo posicionamento de uma mão deva estar localizada na região aguda do teclado e a outra na região grave ao mesmo tempo, a visão poderia ser disponibilizada, primeiramente, para o ponto mais crítico ou de maior distância com relação ao eixo do corpo no momento da execução do evento musical. Um treinamento neste sentido pode reduzir a dependência de necessidade da visão. Neste sentido, a habilidade para estimar distâncias é um elemento decisivo para a prática pianística, especialmente em trechos que apresentem saltos em velocidade. (Kotchevitsky, 1967). Há conexão entre a velocidade de ataque do dedo na tecla e resultado sonoro. As variações de toque vão gerar diferentes gradações de intensidade sonora, variações dinâmicas que dependem da rapidez de retirada do dedo da profundidade da tecla ou duração do toque, que produzem a articulação requerida pelo design do texto musical. Por exemplo, para produzir-se um staccato,3 é necessária uma saída rápida da tecla e, para realizar-se um legato, é preciso uma retirada do dedo mais lenta da nota e, dependendo da situação musica e de andamento requerido, com transferência do peso de braço para a nota seguinte (Breithaup, 1909). A coordenação motora é um fator que está relacionado a rapidez de movimentos, em diferentes situações de realização instrumental. Nas áreas da cinesiologia e anatomia funcional entende-se por coordenação às ordenações próprias da atividade de cada músculo e de grupos musculares. Na biomecânica, dentro do conceito de coordenação são considerados “os parâmetros coodeterminantes do decurso do 3 Indicação de articulação que diminui pela metade a duração da nota, muitas vezes produzindo um toque “seco”. 112 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 movimento, como impulsos de força a serem coordenados na ação motora” (Meinel, 1987, p. 2). No campo da ação pianística, o executante, ou agente do ato coordenado, terá condições de apropriar-se do decurso de um movimento na medida em que tiver uma correta compreensão da tarefa a que se propõe realizar, de seus objetivos e da razão do movimento. Quanto mais exatamente for compreendida a ação, maiores são as possibilidades de sucesso na aprendizagem de novos movimentos (Meinel, 1987). Na ação pianística, um trabalho de coordenação motora refere-se à utilização dos músculos necessários para a realização de cada situação específica de desempenho, quando os demais músculos devem manter-se relaxados, ao máximo possível, para que se evitem as tensões na seqüência da execução instrumental. “A compreensão e a elaboração exatas das informações sensoriais de movimento como base de uma direção e regulação corretas do decurso de movimento já nos são conhecidas como processo parcial essencial da coordenação motora” (Meinel, 1984, p. 153). Neste contexto, postula-se que, para um desempenho motor mais eficiente na ação pianística, é necessário proceder-se à análise prévia da peça a ser executada e o planejamento dos movimentos mais adequados. Muitas vezes o pianista adquire o hábito de executar um determinado trecho utilizando-se de gestos mais complexos do que os necessários, fato este que pode ocasionar um acúmulo de tensões e, ao longo do tempo, lesões. Além do mais, a utilização de gestos desnecessários pode impedir a execução de algumas passagens, em geral, aquelas de maior velocidade. Portanto, deve-se entender por coordenação, a realização organizada de movimentos segundo um objetivo antecipado. Outro aspecto a ser mencionado, diz respeito à educação das sensações de movimento que auxilia no processo cinestésico da aprendizagem motora. No caso da ação pianística, podese coordenar movimentos complexos através da “automatização” e sensação ou consciência dos mesmos. As coordenações mais complexas não podem ser dominadas até que certos movimentos básicos não tenham atingido um adequado nível de automatização. As novas habilidades em geral, se baseiam em recombinações de habilidades já adquiridas. Habilidades de coordenação complexas no piano são, por exemplo, movimentos alternados entre horizontais e verticais em cada mão, movimento paralelo das mãos, realização instrumental de texto polifônico, entre outros. Após adquirir o domínio de diferentes maneiras de coordenação, o pianista obterá maior controle e segurança para realizar movimentos que exijam habilidades complexas. A utilização de movimentos complexos exige do executante uma coordenação bastante elaborada e um alto nível de dissociação muscular. Para Kaplan (1987), “dissociação muscular” é o domínio das sensações de contração e de relaxamento e que além de um controle sobre as sensações, a dissociação possibilita desenvolver a capacidade de autoobservação e, igualmente, a controlar e a coordenar conscientemente o próprio corpo em função do objetivo musical a ser atingido. Dissociar e coordenar movimentos que abrangem a musculatura dos dois membros superiores, sobretudo dos segmentos braços, antebraços, mãos e dedos, e o emprego dos pedais que exige o controle e a coordenação dos movimentos das pernas direita e esquerda constituem-se em uma tarefa bastante complexa. Somente através de uma prática planejada e consciente pode-se obter uma habilidade motora mais eficiente e otimizada. Segundo Magill (2000), o termo habilidade é uma palavra que serve para designar uma tarefa com uma finalidade específica a ser atingida, portanto, voluntária. A habilidade motora é parte integrante da prática pianística uma vez que esta exige movimentos voluntários do corpo e/ou de membros para atingir o objetivo. A ação pianística utiliza-se, mais precisamente, da habilidade motora fina que requer o controle de músculos pequenos, Fatores do desempenho e realização músico-instrumental 113 tais como aqueles envolvidos no movimento das mãos/dedos, que exigem um alto grau de precisão para tocar ou pressionar as teclas na seqüência e no tempo certos. Embora os grandes músculos possam estar envolvidos no desempenho de uma habilidade motora fina, os músculos pequenos são os mais acionados. O desenvolvimento da capacidade motora é o que permite a realização de movimentos complexos com o menor dispêndio possível de energia, evitando lesões e fadigas musculares. A habilidade motora é o elemento da atividade que capacita o executante a realizar grande quantidade de trabalho físico com um esforço relativamente pequeno, sendo adquirida, especificamente, através de um processo de aperfeiçoamento da coordenação dos diversos grupos musculares. “A perfeita coordenação do sistema muscular necessária para realizar uma determinada ação (movimentos), faz com que o gasto de energia necessária para executá-la seja muito menor que no caso daquela estar ausente” (Kaplan, 1987, p. 32). A consideração de alguns aspectos relacionados ao desenvolvimento da coordenação motora torna-se essencial. O primeiro relaciona-se à idade do indivíduo: “O indivíduo deve ter a idade apropriada para aprender uma certa atividade antes que a sua prática tenha um efeito favorável. A idade necessária não é a idade cronológica, e sim a idade fisiológica, isto é, o grau de maturidade atingido pelo sistema nervoso da criança ou do adolescente”. (Kaplan, 1987, p. 52). A dissociação e a maturação são condições essenciais para a coordenação. Assim, dissociação pode ser definida como a contração dos músculos necessários à realização de uma ação e relaxamento dos que, momentaneamente, não são necessários e/ou podem perturbar a mesma ação. Maturação é a preparação física do sistema nervoso central necessária para a realização de um repertório (Kaplan, 1987). Para Knapp (1989), a maturação pode ser definida como o ‘amadurecimento’ fisiológico de um organismo. Toda tarefa que demande a coordenação de movimentos muito precisos e de extrema rapidez, como no caso da execução no piano, está baseada em hábitos que são reações adquiridas pela repetição do estudo correto, com reforço de uma mesma rede de integração neuromuscular. A repetição deve estar baseada na garantia que nos oferecem os hábitos que não são outra coisa senão reações automáticas adquiridas e/ou esteriotipadas pela repetição de situações estimuladoras idênticas, com reforço da mesma rede de integração neuromuscular. Assim, os hábitos devem ser o resultado de atos voluntários transformados em automatismos, sendo que uma vez alcançados, escapem à atividade consciente do indivíduo. O hábito é, pois, o produto final da aprendizagem motora. “Do ponto de vista da execução instrumental, a aquisição e posterior reorganização dos hábitos constitui a base sobre a qual irá se construir a técnica” (Kaplan, 1987, p. 45). Através da preparação e desenvolvimento de um ato motor complexo, se desenvolve a habilidade motora e, com estudos intensivos que automatizam as habilidades motoras, se desenvolve o hábito sobre o qual se fundamenta a técnica pianística. A diferença básica entre hábito e habilidade motora é que esta é adaptável e flexível, enquanto que os hábitos, uma vez adquiridos, são executados mecanicamente sem referência às conseqüências. Um ato executado de forma hábil “distingue-[se] pelo seu ajustamento minucioso às circunstâncias do momento com o propósito de obter-se um resultado final, ao passo que um hábito é essencialmente uma reação sem um fim que o justifique ou oriente”. (Kaplan, 1987, p. 46). Postula-se que hábitos motores corretos a partir da individualização dos movimentos primários de maneira que possam, posteriormente, serem reorganizados de acordo com as exigências de cada obra, se estabelece como procedimento essencial para a construção de uma técnica adequada. O treinamento de elementos isolados tem se revelado mais eficaz, 114 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 não só porque simplifica os conceitos intelectuais, como também a coordenação motora (Knapp, 1989). A possibilidade de uma parte ou ação ser trabalhada separadamente, possibilita a integração posterior das partes com maior detalhamento (Knapp, 1989). Partindo-se dos pressupostos anteriores, o instrumentista poderá, primeiramente, adquirir uma forma motora o mais próximo possível daquela que será em princípio a melhor para, depois, se dedicar ao trabalho desta forma a fim de torná-la um habitual. A redução de solicitações da atenção de uma habilidade pode ser obtida com a prática de movimentos diferentes que deverão ser realizados simultaneamente, independentemente (Magill, 2000). Isso permite que o pianista fique atento ao movimento dos segmentos separadamente, assimilando o conteúdo musical (partitura) determinado para cada mão (ou lado do corpo) sem o compromisso de fixar-se na coordenação de todo o conjunto de eventos musicais, otimizando, desta forma, o aprendizado e, conseqüentemente, o tempo de estudo. “Depois de praticar cada parte independentemente, o aluno pode reuni-las para praticá-las em uma única unidade, com a sua atenção agora dirigida para as solicitações da coordenação temporal e espacial da ação dos braços (...)”. (Magill, 2000, p. 279). O correto uso das estruturas corporais implica na constante atenção e observação ao que ocorre com as estruturas anatômicas envolvida enquanto executamos qualquer ação, seja ela pianística ou não. Para tanto, é necessário que estejamos predispostos a buscar meios de desencadear processos que venham a propiciar a tomada da consciência corporal, com o objetivo de tornar nossa motricidade mais variada e harmoniosamente coordenada. Um modelo para aplicação de ciclos de movimento No modelo seguinte são apresentados ciclos de movimento. Contém linhas de orientação da trajetória que são direcionamentos para a movimentação dos segmentos durante a execução dos compassos 47–56 da Sonata no 5 de Sckriabin. O trecho caracteriza o movimento assimétrico, movimento geral em que as mãos direita e esquerda executam movimentos diferentes tanto ritmicamente como melodicamente. O design da linha da mão direita apresenta acordes de três sons em deslocamentos, cujo caráter melódico e articulações correspondentes caracterizam a escrita de uma grande parte da temática da obra (segundo tema). Nesta passagem, a realização destas questões, aliada à graduação sonora e à velocidade indicadas na partitura, além da independência rítmica necessária entre os movimentos a serem realizados pelas mãos direita e esquerda, apresenta alguns desafios a serem resolvidos. A aplicação de conceitos relacionados ao fator força na realização deste trecho musical deverá estar subordinada às indicações de dinâmica, textura, andamento e caráter. A execução desta passagem requer que os movimentos sejam organizados no sentido de melhor operacionalizar todas estas questões e de tornar a ação pianística mais eficiente. Conforme a Fig. 1, as formas das linhas de trajetórias que orientam a movimentação dos segmentos para a execução da mão direita, estão delineadas no sentido de permitir maior flexibilização dos movimentos buscando otimizar a ação pianística em função dos aspectos anteriormente levantados. A linha de trajetória que orienta a execução da mão esquerda (LT, m.e.) encontra-se somente sob os dois primeiros compassos da segunda linha pode ser aplicada aos demais compassos de trecho. A graduação da intensidade sonora pode aqui ser mediada pela distribuição da força (peso) nos impulsos intermediários entre eventos e a maior ou a menor participação da ação muscular dos segmentos. Fatores do desempenho e realização músico-instrumental 115 Fig. 1: Ciclos de Movimento- Linha de Orientação da Trajetória - Ciclos de Movimento. Sonata n. 5 de Sckriabin, compassos 47–56. O modelo apresentado mostra opções para a organização de movimentos na execução de situações específicas e pode, oportunamente, ser transportados ou servir de referencial para a resolução de situações técnico-instrumentais equivalentes na organização de movimentos e no sentido de otimizar a ação pianística. Esta otimização depende da adequação de movimentos corporais a serem praticados (aspecto técnico-instrumental e questões físicomusculares) às características individuais de cada executante, de sua relação com o instrumento de trabalho (técnica) e com a resolução dos aspectos musicais que correspondem ao design. Requer, igualmente, o planejamento destes movimentos anteriormente à ação (análise prévia), o controle sobre as ações a serem praticadas (fase de treinamento e controle) e avaliação dos resultados, visando relacionar os resultados obtidos com as ações realizadas e com as ações necessárias à resolução de novas situações. Conclusões Nesta investigação sobre fatores do desempenho e sua inter-relação com a ação pianística foram levantados argumentos significativos para a área da técnica instrumental. Considerando-se a necessidade de organização dos processos envolvidos na prática pianística, os pressupostos levantados nesta investigação se aplicam a esta atividade. Os procedimentos praticados durante o período desta investigação apontam para uma atenção à consciência corporal, que auxilia na otimização do uso do fator força e a prevenção da fadiga em decorrência do desenvolvimento de consciência da consciente das estruturas corporais envolvidas na ação pianística. A aplicabilidade de conceitos relacionados a estes fatores na realização de trechos musicais deverá, na medida do possível, estar subordinada às indicações de contidas no design. Como a força está relacionada com o tempo de manutenção e com a velocidade de ativação muscular, o controle sobre este fator tem reflexos diretos na maior ou menor velocidade de realização de movimentos e na produção de intensidades sonoras. Uma das conseqüências do treinamento excessivo de uma atividade motora ou também de uma atividade mental prolongada é tornar o indivíduo vulnerável à fadiga. Esta se reflete na provável ocorrência 116 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 de erros de natureza físico-muscular ou execução da ação e de memória a que o instrumentista fica exposto. Em princípio, tais situações não devem ocorrer em situação de controle, ou seja, se a fadiga for eliminada ou amenizada durante os intervalos entre períodos de treinamento ao piano. Exercícios de alongamento são um meio para desenvolver a flexibilidade. Treinamentos de flexibilidade e força atuam de forma oposta, sendo previdente o equilíbrio entre procedimentos de treinamentos. Quanto à rapidez de movimento, a clareza mental e o planejamento da trajetória do movimento são considerados fundamentais para a realização de trechos que envolvem velocidade. Com base nos pressupostos estudados verificou-se que através da preparação e desenvolvimento de um ato motor complexo, se desenvolve a habilidade motora e, com estudos intensivos que automatizam as habilidades motoras, se desenvolve o hábito sobre o qual se fundamenta a técnica pianística. A partir da situação músico-instrumental apresentada, observou-se que para a realização técnico-musical deste trecho, faz-se necessária uma prática minuciosa com treinamento dos segmentos direito e esquerdo, separadamente, para melhor consciência das trajetórias necessárias para a execução das linhas musicais. Pressupõe-se que as informações obtidas e as estratégias apresentadas poderão servir de recursos na busca do aumento no índice de eficiência do desempenho pianístico através do controle, aproveitamento e aprimoramento de movimentos, no sentido de torná-los mais objetivos durante o treinamento. Estes resultados poderão contribuir como suporte para profissionais e alunos, no sentido de que a ação pianística possa ser realizada com maior rendimento técnico-musical e menos esforço. As correlações entre os argumentos até então levantados e os resultados parciais de situações específicas de treinamento pianístico, permitem antecipar que há benefícios em uma prática cujos recursos técnico-instrumentais utilizados levem em conta aspectos inerentes a fatores do movimento humano. Referências bibliográficas AMARAL, Carla; GOMES, Carla et. al. “Estiramento muscular”. Revista Medicina Desportiva, Coimbra, v.9, n. 19, pp. 35–42, 2001. BREITHAUP, Rudolf M. Natural piano-technique: school of weight-touch. v. 2. Leipzig: C.F. Kahnt Nachfolder, 1909. BRUSER, Madeline. The art of practicing. A guide to making music from the heart. New York: Bell Tower, 1997. FARINATTI, Paulo T. V. “Flexibilidade e esporte: uma revisão da literatura”. 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Participa de Eventos Científicos na área da música com apresentação e publicação de pesquisa interdisciplinar sobre desempenho pianístico. Foi Chefe do Departamento de Música do CEART-UDESC em várias gestões, Diretora de ensino de CEART-UDESC, Coordenadora de eventos, entre eles “Ciclo Intercâmbio MúsicoInstrumental (2001 a 2004) e I Concurso Nacional de Piano – Cidade de Florianópolis (2003). Vem participando de comissões técnicas e comitês, de projetos de reformulação curricular e de novos cursos. Como pianista atua como solista, camerista e em acompanhamentos de solistas e corais. Iamurikuma: Música, Mito e Ritual. Maria Ignez Cruz Mello (UDESC) Resumo: O presente texto é um resumo de minha recém defendida tese de doutorado em antropologia social (Mello 2005), que tem como foco o ritual de iamurikuma entre os índios Wauja do Alto Xingu, MT. Com base na mitologia e no discurso nativo, o universo em torno deste ritual é analisado especialmente em sua dimensão musical. A música, através de sua formalização e do jogo em torno dos sentidos e das proporções, é considerada o elemento central do ritual, constituindo a forma ideal de expressão dos afetos. Palavras-chave: Música Indígena; Alto Xingu; Ritual; Antropologia da Música. Os Wauja e o sistema xinguano Os índios Wauja são hoje cerca de trezentas pessoas,1 vivendo em uma aldeia circular com dezoito casas, próxima à lagoa Piulaga, na região dos formadores do rio Xingu. Os Wauja são um dos dez grupos indígenas que fazem parte do que se conhece na literatura etnológica como povos xingüanos, aqueles que habitam a região sul da Terra Indígena do Xingu (TIX) no estado do Mato Grosso. Os xingüanos são atualmente cerca de 3.000 mil pessoas, vivendo no interior da TIX, local de grande diversidade lingüística: os Wauja, Mehináku e Yawalapití são falantes de línguas aruak, os Kamayurá e Awetí de língua tupi, os Kuikúro, Kalapálo, Matipú e Nahukuwá são falantes de línguas karib e os Trumaí falam uma língua isolada. Apesar desta diversidade lingüística cada membro de um grupo fala quase que exclusivamente sua própria língua, além do português, que é falado por uma minoria, e que também é a língua de comunicação com o mundo do branco. Entre os xingüanos, não falar a língua do outro parece ser uma questão de honra, pois mesmo que se entenda o que as pessoas de um outro grupo estão dizendo, segue-se falando a própria língua, como em uma atitude de insubmissão. Este aspecto do monolingüismo é um importante dado da socialidade, na medida em que a língua falada é um dos fortes sinais diacríticos das múltiplas identidades étnicas na região.2 Ainda assim, verifica-se um discreto polilingüismo, decorrente dos estreitos laços de parentesco que os casamentos por aliança fomentam. Os povos xingüanos mantêm relações intertribais através de rituais, trocas materiais, e de matrimônios. A relação entre os diferentes grupos aponta, a princípio, para uma área culturalmente estável e, aparentemente homogênea. Contudo, há uma lógica de diferenciação interna, cuja dinâmica passa não somente pela língua, mas também pela etnohistória, pelas especializações técnicas, musicais e iconográficas, articulando-se em de um sistema intertribal de trocas. Esta lógica prevê tanto solidariedade e cooperação, quanto disputas e conflitos. Os rituais Wauja É esta convivência na diferença que chama a atenção do pesquisador xingüanista, especialmente ao observar os rituais intertribais. É através destes rituais que vários povos da região se encontram, lutam, cantam e dançam, é quando dialogam e se relacionam. Durante estas práticas, entretanto, uma forte tensão é expressa: a tensão que advém da necessidade de haver uma aceitabilidade comunicatória dentro de um quadro que inclui, de forma congênita, a diferença e mesmo a divergência (Menezes Bastos, 2001). Durante os rituais intertribais, apesar de um povo não falar a língua do outro, a maioria dos cantos são entoados na língua de origem do ritual, sendo legítimo, desta forma, pronunciar uma língua alheia, mas somente no contexto músico-ritual. Os grandes rituais intertribais, tais como 1 2 De acordo com censo realizado por mim em 2002. Sobre este ponto ver Franchetto (2001). Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 119 kwaryp, iamurikuma, yawari, constituem o espaço no qual as regras e padrões da socialidade e comunicabilidade pan-xingüana são colocadas em ação, promovendo a constituição da diferença e do conflito no seio da convivência e solidariedade. Como nota Basso (1985, p. 244), o ritual xingüano tem um espaço pequeno para falas, há nele uma certa economia de objetos simbólicos, que, no entanto, são altamente elaborados. Neste contexto, os atos de composição e performance musical, comunicando e expressando idéias profundamente sentidas, são cruciais no próprio estabelecimento do ritual. Disto decorre que o estudo dos sistemas e ritos musicais da região são uma importante colaboração no esforço de compreensão do mundo xingüano e do modo de vida destes povos.3 De modo geral, pode-se dizer que o sistema xingüano tem como um de seus pilares o jogo entre semelhança e diferença. Para além de seu significado no nível sócio-político, que envolve disputas faccionais dentro de um só grupo ou entre os diversos grupos, este jogo constitui um eixo fundamental nas cosmologias e nas artes locais: é, de fato, neste universo que a diferença é construída em um plano poético-musical. Nesta direção, Piedade, ao analisar o ritual das flautas kawoká, conclui que “a poética musical Wauja trata da confecção da diferença, dada fundamentalmente no eixo do tempo e da existência, ou seja, na temporalidade (2004, p. 230)”.4 Se no Alto Xingu se pode afirmar que a música institui o ritual, este devendo ser considerado musical por excelência (cf. Basso, 1985), isto é porque, ao lidar com proporções, repetições e variações, a música instaura o conflito ao mesmo tempo em que o mantém sob controle. Além dos rituais intertribais, há uma série de rituais intratribais que fazem parte, de forma preponderante, da vida cotidiana Wauja. O termo genérico em Wauja para todas estas práticas é naakai, com o qual se referem a uma série de diferentes ritos, constituídos por conjuntos de eventos particulares, cada qual pertencente a um complexo simbólico que se sustenta em mitos, repertórios musicais, danças, máscaras, pinturas corporais, enfim, em uma série de elementos típicos de cada ritual. Os momentos rituais são considerados pelos Wauja como espaços carregados de expressividade, de mudança na postura física, nas atitudes, comportamentos e, principalmente no humor.5 3 Nesta mesma direção, desde o final dos anos setenta, as investigações sobre as músicas dos povos indígenas das terras baixas da América do Sul têm revelado, sob a perspectiva do campo da etnologia, sistemas musicais e cosmologias densamente elaboradas, com trabalhos como os de Aytai (1985), Menezes Bastos (1990,1999), Beaudet (1983, 1997), Fucks (1989), Smith (1977), Travassos (1984), Seeger (1987) e Hill (1992, 1993), Ermel (1988), Estival (1994), Olsen (1996), que abordaram, respectivamente, a música entre os Xavante, Kamayurá, Waiãpi (Beaudet pesquisou no lado da Guiana Francesa e Fucks no lado brasileiro), Amuesha, Kayabi, Suyá, Wakuénai, Cinta-Larga, Assuriní e Arara, e Warao. A partir do final dos anos 90, ocorre um crescimento nesta linha de pesquisa nos quadros universitários brasileiros, através de trabalhos como os de Bueno da Silva (1997), sobre a música Kulina (Alto Purús); Piedade (1997), sobre os Tukano; meu trabalho sobre a música Wauja (Mello, 1999); Cunha (1999), entre os Pankararú; Montardo (2002), sobre amúsica Guarani; Werlang (2001), sobre os Marubo e Piedade (2004) sobre a música das flautas kawoká entre os Wauja. 4 A tese de Piedade (2004) é fundamental para a compreensão do complexo musical que envolve as flautas masculinas e os cantos femininos, na medida em que o repertório instrumental por ele analisado serve de modelo para as análises que empreendo sobre a música vocal. 5 Peirano (2001) apresenta uma síntese das perspectivas antropológicas que lidam com o ritual na atualidade e assume o pensamento de Tambiah como forma de escapar da rigidez das definições que impedem que percebamos que “o caráter performativo do ritual está implicado na relação entre forma e conteúdo que, por sua vez, está contida na cosmologia” (op. cit: p. 26). Para Tambiah (1985), o ritual é um sistema de comunicação simbólica culturalmente construído, composto de eventos especiais, mais formalizados, esteriotipados, redundantes e condensados do que aqueles da vida 120 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Esta pesquisa analisou mais detidamente o ritual feminino de iamurikuma, e sua relação com o ritual masculino das flautas kawoká. Estes rituais apresentam uma relação profunda entre si e constituem um único complexo músico-mítico-ritual. No contexto intertribal, estes dois rituais podem ser chamados de “rituais de gênero”, entendidos como rituais nos quais questões relativas às relações de gênero são enfatizadas.6 Eles podem também ocorrer em versões intratribais, quando participam apenas os membros do próprio grupo. É importante destacar que os rituais de kawoká e iamurikuma, principalmente em suas versões intratribais, estão relacionados ao xamanismo, e desta forma, às doenças cuja causa é a ação dos seres apapaatai, “espíritos”.7 Os apapaatai têm a capacidade de ouvir os pensamentos e desejos dos humanos e podem detectar insatisfações e desejos não realizados pelas pessoas. O estado de insatisfação torna possível que estes seres penetrem nos corpos dos humanos na tentativa de roubar suas almas. Esta explicação, um tanto sintética neste texto, serve aqui para fornecer a dimensão metafísica e ética em que os rituais estão inseridos, bem como lançar alguma luz sobre as concepções Wauja de doença e cura.8 Note-se que são vários os rituais promovidos para curar doenças provocadas pelos apapaatai, estes rituais sendo em sua maioria intratribais e seu repertório musical podendo tanto ser masculino (vocal e/ou instrumental), feminino (sempre vocal), ou misto, quando homens e mulheres cantam juntos. Conforme o discurso nativo, na verdade são incontáveis os rituais de cura, visto que a doença é percebida como resultado da ação dos apapaatai e estes seres existem em um número desconhecido. O iakapá, o “pajé”, é o responsável por descobrir qual apapaatai é o causador do mal que acomete o doente e, a partir de seu diagnóstico, uma série de procedimentos e comportamentos rituais poderão ser adotados. cotidiana. Para este autor, a eficácia do ritual advém de três fatores: primeiramente, dizer algo na performance ritual significa efetivamente fazer algo, ou seja, o dito é um feito (inspirando-se aqui nas idéias de Austin); além disso, no ritual são utilizados vários meios de comunicação através dos quais os participantes experimentam os eventos de forma intensa; por fim, há no ritual uma profusão de valores indexicais vinculados ou inferidos pelos atores durante o ritual. 6 Ficando aqui com esta definição preliminar, a questão de haver rituais especificamente dedicados à oposição ou complementaridade dos sexos é muito trabalhada na literatura antropológica da Amazônica e da Melanésia (ver MCallum, 2001; Gregor & Tuzin, 2001; Herdt, 1982), sendo tomada ora como uma guerra dos sexos (Gregor, 1985), resultado do antagonismo sexual (S. Hugh-Jones, 1979), por cultos de fertilidade (Hill, 2001), ou como derivação da questão mais funda da maternidade (Biersack, 2001) ou ainda como expressão de aspectos da consagüinidade e afinidade (Descola, 2001). Lembro também que a própria ênfase na questão de gênero pode ser vista como resultante do viés ocidental (cf. Overing, 1986; Piedade, 2004, revela uma posição semelhante). Destaco ainda que entendo o complexo iamurikuma-kawoká como simultaneamente rituais de gênero e rituais musicais (cf. Basso, 1985). 7 A categoria apapaatai pode ser traduzida muito aproximadamente por “espíritos”. Estes seres sobrenaturais habitam o cosmos Wauja, podendo provocar doenças e mortes, ou se tornarem aliados dos humanos, desde que estes últimos realizem os rituais apropriados para cada caso. Os apapaatai povoam a maioria das narrativas míticas e representam um elemento fundamental na atividade do xamã, atividade que pode ser vista como uma política cósmica com estes seres. Esta política, que é uma negociação do xamã com os seres sobrenaturais visando que eles não roubem as almas dos vivos, engendra, por sua vez, uma ética e uma estética que se explicitam tanto no ritual, através das mais diferentes formas visuais e sonoras, quanto na economia da vida diária.Os Wauja distinguem as doenças causadas por apapaatai daquelas outras que chamam, em português, de “doença de branco”, estas sendo causadas por outros processos e curáveis através de remédios “de branco”: por exemplo, gripe, sarampo, leishmaniose, malária, etc. Tal distinção é comum entre os xingüanos (ver Menezes Bastos, 1999a). 8 Todos estes conceitos são densamente elaborados ao longo da tese (Mello 2005), bem como estão respaldados em amplo corpus mítico recolhido durante a pesquisa de campo. Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 121 Para os Wauja, está sempre em aberto o campo de possibilidades para o aparecimento de apapaatai até então desconhecidos e a subseqüente criação de novos ritos de cura, apesar de se observar a reincidência de um número limitado de festas. Ressalto que o interesse pelo ritual está também na esfera das distinções sociais, pois é sinal de prestígio pessoal poder bancar um ritual, patrocinando alimento a todos os participantes, colocando várias pessoas para trabalharem em torno desta construção e manutenção de distintividade. Assim, o ritual Wauja está fundado na esfera política, tendo um papel regulador em termos cosmológicos, vigendo no mundo da cura e da beleza, da ética e da estética, como explicitarei a seguir. O mito de iamurikuma: quebra da reciprocidade entre homens e mulheres. De modo um tanto resumido, pode-se dizer que iamurikuma é um ritual que atualiza o mito cuja temática é a transformação das mulheres em apapaatai poderosos e perigosos chamados iamurikuma. As mulheres, no mito, se transformam nestes seres após serem enganadas pelos homens, que, ao invés de irem para uma pescaria coletiva, conforme haviam combinado, passam a fabricar máscaras para se transformarem em vários apapaatai, na intenção de matar suas mulheres. Estas, em represália, comem determinadas frutas que as deixam “loucas” e passam a cantar e dançar no centro da aldeia - como normalmente só os homens fazem -, se pintam e se adornam como os homens, abandonam os filhos homens dentro de grandes pilões na aldeia, e partem dali através de um buraco na terra. Quando os homens são alertados sobre esta transformação, voltam correndo para a aldeia a fim de dissuadi-las, porém elas seguem cantando e vão embora. Pessoas de outras aldeias passam a seguí-las nesta jornada, e partem juntas cantando até chegarem do outro lado do céu, na yuwejokupoho, “aldeia dos mortos”, onde fundam uma aldeia na qual só vivem as iamurikuma. Um rapaz as segue até este local, a fim de reencontrar sua namorada, mas é alertado por ela para que volte à sua aldeia de origem. Ao retornar, o jovem conta tudo o que viu e ensina a todos as músicas que ouviu as mulheres cantarem na “aldeia dos mortos”. O ritual de iamurikuma: música e relações de gênero. Este ritual é realizado quase que anualmente, mas não possui uma data certa, como é o caso de outras festas. É um ritual intertribal -envolvendo convidados de outras aldeias da regiãofeito apenas por mulheres, sendo que o chefe da aldeia muitas vezes toma parte conduzindo os cantos. Entretanto, acompanhei um ritual de iamurikuma em sua versão intratribal, do qual participaram apenas os Wauja, de agosto a novembro de 2001. Neste período, presenciei muitos finais de tarde em que um grupo de mulheres se reunia no centro da aldeia para cantar e dançar. Algumas madrugadas também foram preenchidas pelos cantos femininos que se estendiam até o amanhecer. Por vezes os homens saíram para pescarias coletivas em função da festa e, em outras ocasiões, ocorreram agressões e provocações entre homens e mulheres, sempre de forma comedida e dentro dos limites impostos pela ética local. O motivo da festa era que havia na aldeia cinco grandes pilões de madeira que tinham sido feitos pelas mulheres em um ritual de iamurikuma há cerca de dez anos. Elas haviam feito estes objetos para cinco homens que ficaram doentes naquela época por causa do apapaatai iamurikuma. Em 2001 os pilões já estavam velhos e corroídos, o que motivou as mulheres a realizarem uma festa para queimá-los e, quem sabe, no futuro fabricarem novos pilões. Durante todo o período, a temática dos cantos femininos girou em torno das relações afetivas, do ciúme, inveja, namoro, sexo, além de muitos cantos fazerem referências diretas 122 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 ao mito de origem da festa. Também foi comum ver as mulheres usarem deste espaço ritual para reclamarem de atitudes dos homens através de canções especialmente compostas por elas. Ao longo de todo o período, foram executados cerca de duzentos cantos diferentes, organizados em quatro sub-repertórios, dos quais, pode-se destacar o de iamurikuma propriamente (aqueles cantos que se referem ao mito), e o de kawokakuma (cuja referência das canções são as flautas kawoká) como os principais sub-repertórios. Com base nas análises de mitos e em análises musicológicas busquei compreender a ligação entre a música vocal do ritual de iamurikuma e a música instrumental das flautas kawoká, pois as mulheres afirmavam que “música de iamurikuma é música de flauta”. No entanto, pelo fato delas serem proibidas de ver as flautas, esta afirmação parecia um contra-senso. Caso aconteça de alguma mulher ver as tais flautas kawoká -tanto em repouso quanto ao serem tocadas-, ela será estuprada por todos os homens da aldeia, não importando se ela infringiu a regra propositalmente ou involuntariamente. Contudo, não se tem registro de que tenha ocorrido tal fato nos últimos quarenta ou cinqüenta anos. A partir dos mitos e músicas, das exegeses e traduções de canções, e do discurso nativo sobre música, surgiu a temática das relações de gênero como fator a ser problematizado, bem como verificou-se que há uma raiz comum, dada pela estrutura musical, para o conjunto de canções de iamurikuma e para a música instrumental das flautas kawoká, onde se nota que os temas principais em ambos repertórios são frases muito próximas do ponto de vista rítmico-melódico, como variações de uma frase básica realizada tanto pelas flautas quanto pelo canto feminino.9 A partir destas observações pode-se dizer que o repertório de flautas kawoká é como que “transponível” para os cantos femininos, ou vice-versa. A música e a dança, através do canto das mulheres, são os marcadores dos momentos densos do rito. A movimentação coreográfica varia de acordo com o número de participantes, com a disposição das dançarinas entre si, e o deslocamento destas pelo perímetro da aldeia. Tais variáveis estão relacionadas ao repertório musical, pensado aqui como um roteiro, que, por sua vez, deve se adequar aos períodos do dia (manhã, tarde, noite e madrugada) e aos momentos específicos do rito, tais como pescaria dos homens, abertura, encerramento. Há uma série de diferentes disposições coreográficas ao longo do ritual que apontam para momentos com distintas motivações, “enquadrando” comportamentos que podem ir da brincadeira à agressão. As idéias que Bateson desenvolve em sua teoria sobre a brincadeira e enquadre (1998 [1972]) ajudam a pensar sobre os conjuntos de mensagens que estão em jogo em cada um dos diferentes contextos ao longo do ritual. Há um pano de fundo que é dado pela diferença entre homens e mulheres, uma disputa por espaço, presente na maioria das falas dos rapazes e no comportamento das moças. Iamurikuma aitsa awojopai, “iamurikuma não é legal” (tradução livre), dizem os rapazes a todo o momento. Iamurikuma apokapai, peietepei, “iamurikuma está louca, brava”, afirmam os mais velhos. As mulheres parecem indiferentes às provocações, mantendo-se sempre altivas e distantes, exceto nos momentos em que resolvem, em grupo, atacar os homens. Elas tanto podem bater, arranhar, dar beliscões, quanto atacar sexualmente, indo, também em grupo, até suas redes. Bateson chama a atenção para o fato de que não há entre a brincadeira, o blefe, e a ameaça uma delimitação clara, na verdade “formam juntos um único e indivisível complexo de fenômenos” (op.cit. p. 61). Há, portanto, que se adotar o frame correto para não extrapolar os objetivos. 9 Esta hipótese já havia sido levantada anteriormente em minha dissertação de mestrado (Mello, 1998), sendo que só se confirmou após trabalho de campo mais aprofundado durante as pesquisa de doutorado desenvolvidas por mim e por Piedade (2004). Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 123 Parte do repertório musical deste ritual, aquele aqui classificado como iamurikuma, é como que um roteiro para o ritual, baseado no script do aunaki, o “mito”. Cada canto narra um momento do mito e pode se repetir em diferentes dias, o que evoca uma não linearidade do ritual. Há algo semelhante àquilo que Menezes Bastos (1990) detectou no yawari como uma compressão e distensão do tempo. Este autor usa a imagem do fole de uma sanfona para evocar a alternância entre momentos de total retraimento (pensados como adensamentos) e de completa distensão dos eventos rituais. Análise de um canto de kawokakuma. Se uma parte do repertório musical é ligada ao mito, a outra, chamada de kawokakuma, não se atém a este, mas às paixões, aos sentimentos de homens e mulheres, e fazem a ponte sonora entre o iamurikuma e o kawoká. São estes cantos, os kawokakuma, que mereceram maior aprofundamento analítico ao longo da tese. Através da análise de uma parcela deste repertório, nota-se que ele está ancorado em operações musicais complexas, que exigem um alto grau de conhecimento por parte das mulheres cantoras, principalmente da cantoracompositora central. Estes cantos podem ou não ter letra, mas em todos os casos estão relacionados aos sentimentos e emoções experimentados pelos Wauja ao londo de suas vidas. Para chegar às classificações musicais apresentadas na tese, foi necessária uma audição atenta de aproximadamente um total de setenta horas de gravação. Nestas audições, foram classificadas cerca de duzentas músicas diferentes, pertencentes a gêneros musicais específicos. Para alcançar estas subdivisões, foi preciso realizar uma transcrição preliminar do conjunto total de peças, e efetuar uma análise prévia deste conjunto que pudesse ajudar nesta classificação inicial. Diferentemente do repertório das flautas kawoká, sempre executado em blocos de suítes nomeadas, os cantos de kawokakuma são cantados alternando cantos de diferentes estilos, além destes cantos serem intercalados por cantos propriamente de iamurikuma. A conclusão de que estes repertórios constituem gêneros diferentes, iamurikuma e kawokakuma, só pôde ser alcançada mediante tais audições e transcrições. Como não pude contar com uma classificação nativa para empreender um ordenamento dos cantos, a atenção durante as audições teve que ser duplicada em vista da semelhança de algumas peças. Por vezes, a letra dos cantos auxiliou na identificação, outras, no entanto, em vista da ausência de letra, dependeu única e exclusivamente de uma escuta acurada. Nos cantos de kawokakuma cada peça é constituída por um conjunto de temas e motivos. Dependendo da peça, cada motivo pode ser curto, com poucas notas, ou não tão curto, quase uma frase, sendo designados por letras (a), (b), (c), etc., podendo ter uma ou mais variações cada um, designadas então por (a’), (a’’), etc. As variações são entendidas como aplicações de princípios fundamentais de diferenciação no interior dos motivos, operações tais como transposição, pequena alteração intervalar ou rítmica no início ou no final do motivo, adição ou exclusão de uma nota, entre outras. Variações em conjuntos de motivos, entendidos como frases que constituem os temas, podem ser pensadas como transformações, que ocorrem por mecanismos de inclusão e exclusão de motivos, ou através de variações nos seus motivos constituintes. A diferença entre uma variação e um motivo novo é a resposta estrutural da seqüência de notas organizada no interior da peça. Os motivos, portanto, são as partes constitutivas dos temas a que chamei de e . Há também uma frase, chamada na análise de , que surge geralmente no início das peças, e , e ainda no final, correspondendo sempre ao centro tonal como separação dos temas das canções. 124 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 e é dialógica e dialética, o primeiro tema Resumidamente, a relação entre os temas constituindo o material básico da peça, e o segundo configurando uma elaboração deste material em uma camada superior (em termos de alturas), geralmente atingindo a nota mais aguda da escala. Nesta espécie de transposição, muitas vezes ocorre uma série de transformações, que variam de peça para peça. Um outro fato observado é o englobamento de por , ou seja: a antítese elabora a tese de forma a incluí-la em sua terminação, às funciona como âncora, indicador vezes integralmente. Observa-se também que o motivo e reforço do centro tonal, vinheta de separação entre temas e entre canções. Um outro ponto importante é o tema , que é o tema com letra adicionada. Segue abaixo um exemplo de transcrição e análise de um dos duzentos cantos realizados neste ritual. Estou utilizando transcrições reduzidas seguindo o modelo criado por Piedade em sua análise da música das flautas kawoka (2004), pois, se as transcrições fossem apresentadas integralmente, facilitariam a leitura, mas ocupariam demasiado espaço sem proporcionar maior rendimento analítico. A transcrição reduzida porta a informação essencial, encontrada através do discurso musical nativo, que ressalta as construções motívicas. Desta forma, os motivos, conforme citados acima, aparecem escritos integralmente somente uma vez na transcrição, nas demais repetições, aparecem apenas as letras correspondentes a eles (a), (b), (c), etc., grafadas sobre uma linha, e não sobre o pentagrama. O canto aqui apresentado foi executado duas vezes durante todo o ritual, uma de madrugada, e outra no final de uma tarde. A composição deste canto é atribuída às mulheres de uma outra etnia, às mulheres Mehinaku. Contudo, pelo fato deste povo falar também uma língua de origem aruak, os cantos de ambos os grupos são compreendidos e incorporados mais facilmente em seus repertórios rituais. Letra do canto em Wauja (Mehinaku) e sua tradução: Aunumana, aunumana Venha aqui, venha aqui Patuwato Ukaruwã traga (sua mulher) Ukaruwã Aunumana, aunumana Venha aqui, venha aqui Patuwato Ukaruwã traga (sua mulher) Ukaruwã Maka aunupa okanato Para nós vermos a boca dela Itsapai Tupat okanatu Parece com a boca de tupatu (espécie de peixe) Ukaruwã Ukaruwã Segundo a cantora principal, de nome Kalupuku, a explicação para a letra deste canto é a seguinte: “Havia um homem Mehinaku chamado Ukaruwã que se casou com mulher de nome Mukura, talvez ela fosse índia Matipú. As mulheres Mehinaku fizeram esta música para a mulher falando de sua boca, pois quando ela sorria, ficava com a boca torta, igual ao tupatu, um peixe que tem a boca de lado, torta. Com esta música elas queriam dizer assim: Ukaruwã, traz sua mulher para cá, para a gente ver a boca torta dela”. Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 125 Transcrição analítica do canto. Quadro analítico da seqüência dos motivos e frases: acrescido de letra, pois ele é repetido Neste canto, a ênfase está no tema , o tema várias vezes. Aqui ocorrem operações já observadas em outros cantos, precisamente o fato 126 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 seja cantado. Em deste iniciar com o tema , que aparece por duas vezes antes que o nota-se que o motivo (f) está em diálogo estreito com o motivo (e), cuja alternância é do tipo pergunta e resposta. É provável que o intervalo descendente, que atinge a nota Fá, carregue tal característica, apontando para o caráter dialógico entre os motivos. O tema está englobado em e, portanto, a aparição tardia de não causa surpresa. Após cantarem , e novamente , iniciam uma grande seção de , que será apresentada quatro vezes, sendo que entre a segunda e a terceira vez, reaparecem, , , , . Nesta peça, fica evidente uma preponderância de e , que pode ser considerada uma marca desta face feminina do gênero musical kawokakuma-kawoká. Além disso, há um destaque para a letra, que trata da jocosidade: as mulheres Mehináku estão aqui ridicularizando uma mulher Matipú, que quando sorri exibe uma “boca torta”: trata-se do mote do defeito físico, muito freqüente em vários cantos. Neste, as cantoras se dirigem ao marido desta mulher, um homem Mehináku que se casou com uma mulher de outro grupo, fato que é sempre motivo de reações deste tipo, e que, no fundo, demonstra o ciúme coletivo provocado por casamentos interétnicos. Das cerca de cinqüenta transcrições apresentadas ao longo da tese, as análises musicais destacam várias operações fundamentais no âmbito motívico das músicas de kawokakuma, que podem ser resumidas em: variação tética, variação sufixal, fusão, tipo bordadura, jogo alternante 3M/3m, motivo justaposto de citação, adição, exclusão, prolongamento rítmico, motivo de dissolução e motivo de retomada. Nota-se a importância das terminações de motivos, frases e temas, bem como o englobamento do tema pelo tema . No âmbito das letras, encontrou-se nexos entre a canção, o mito e as paixões, aparecendo algumas temáticas recorrentes, como por exemplo o do mote do defeito físico, quando a cantora expõe na letra da canção qualquer defeito que a pessoa a quem ela queira atingir possua. Na relação letra-música, notou-se fatores importantes como a inversão de texto e a flexibilização rítmica. A distribuição de todas estas operações composicionais acentua a idéia de que a música do ritual de iamurikuma não constitui um único gênero musical, mas sim dois: iamurikuma e kawokakuma, este último sendo a face feminina de um supergênero que tem na outra face a música do ritual de flautas k a w oká. Estudar os processos composicionais dos repertórios masculino e feminino, sob um prisma comparativo, se configura como um caminho estimulante para futuros trabalhos. Considerações finais Homens e mulheres usam da tática de se provocarem mutuamente através dos cantos, principalmente incitando o sentimento de uki, “ciúme-inveja”, inserindo uma terceira pessoa na situação descrita pela letra das canções. Muitos cantos de kawokakuma procuram provocar uki nos homens ou em mulheres que estejam rivalizando com as cantoras. É através da criação poético-musical que os conflitos suscitados por sentimentos como uki são contornados. A positividade ou negatividade de uki, contudo, é uma questão de grau: todas as estratégias de que eles lançam mão para lidar com este sentimento, através de brincadeiras, mitos, e ritos específicos,10 tudo isto concorre para a busca de um ponto intermediário em um continuum entre o excesso e a ausência de uki. Segundo os Wauja, ciúme-inveja não é algo com relação a que se deva mostrar indiferença ou rejeitar por completo, diferentemente de sentimentos como kamusixiapa, “raiva ou ódio”,11 que devem 10 Ver na tese em questão as explicações sobre o Ritual do Pequi. Esta festa gira em torno de disputas entre homens e mulheres, durante a qual realizam diferentes brincadeiras físicas e provocações musicais. 11 A raiz desta palavra, usixa, significa “queimar”. Iamurikuma: Música, Mito e Ritual 127 ser prontamente aplacados. Ao contrário, uki deve ser cultivado, e se deve aprender a lidar com isto desde cedo. Segundo os Wauja, uki é a faísca que acende as relações: como me disse um informante, “é como a pimenta que arde, mas é boa”, sem a qual a comida ficaria insossa. O mérito de saber lidar com estes sentimentos estaria no controle da medida certa em provocar e em aceitar provocações, em saber a hora certa para o revide, em não provocar além do limite aceitável. Durante as brincadeiras jocosas, avalia-se muito o quanto homens ou mulheres agüentam de provocação sem revidar, mas também é esperada e até mesmo apreciada a boa resposta no momento certo. Vê-se que, através de toda a elaboração estético-ritual, detectada desde o tratamento detalhista na construção motívica dos cantos, passando pela transferência dos cantos de kawokakuma de um gênero sexual a outro, e por re-elaborações de fatos do cotidiano que são inseridos nos moldes dos cantos, todo este processo, enfim, só surge durante a performance ritual, que acaba por dar concretude ao mito e significado às questões existenciais. Toda a criação ritual trata da demarcação de limites, de estabelecer proporções, de precisar doses, criar diferenças, construir fronteiras, criar o espaço humano de agência no mundo. E este espaço se instaura no ritual, onde a música é o “dito” que se torna “feito”. A linguagem enfeitada e pintada que é o canto, os corpos enfeitados e produzidos, as formações coreográficas e seus traçados entrecortando a aldeia, indicam a necessidade da elaboração ritual por meio de uma alta formalização. Assim, as regras que observamos nas práticas rituais Wauja, bem como nas construções composicionais, aparecem explicitamente como uma forma de codificação, no sentido exposto por Bourdieu,12 e apontam para a construção de um sistema coerente que dê conta das tensões suscitadas pelos afetos. Aqui está, creio, a centralidade da música no ritual: onde se encontra a formalização em seu grau máximo. Basso (1985) afirma que esta posição fundante da música no ritual xingüano está diretamente ligada ao fato dos nativos crerem que, através da execução musical, podem compensar as ilusões da criação verbal. Opinião confirmada por Franchetto ao afirmar que, neste cenário, há um continuum indo da fala ao canto, em cujos extremos estariam situadas a mentira e a verdade, o mais humano e o sobrenatural (1986, p. 249). Para esta autora, os mitos fundamentam a execução ritual, e esta, por sua vez, tem a música como seu aspecto mais importante, pois os nativos, “através da sensualidade e dos sentimentos que a musicalidade inspira, transformam a consciência de si, a consciência coletiva e a apreensão do mundo” (1986, p. 288). Estudar, de forma detalhada, todos os aspectos envolvidos no ritual, como a pintura corporal, a música, a dança, os discursos e as narrativas míticas, é uma forma de acessar esta codificação e, assim, buscar uma compreensão mais substancial do evento como um todo. É no momento do ritual que a sociedade Wauja cria condições privilegiadas para que homens e mulheres, através de um jogo em torno dos sentidos e das proporções, tratem, de forma intensa e musical, de questões importantes como namoro e sexo, e de afetos fundamentais como o ciúme e a inveja. 12 Bourdieu chama a atenção para o fato de que o grau de codificação adotado por um determinado grupo em relação a diferentes situações deve variar de acordo com o grau de risco em que tal situação está envolvida. É quando o habitus dá lugar à condutas reguladas por rituais metodicamente instituídos e mesmo codificados (1990, p. 98). 128 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Referências bibliográficas AYTAI, Desiderio. O Mundo Sonoro Xavante. São Paulo: USP, 1985. BASSO, Ellen. A musical view of the universe: Kalapalo myth and ritual performances. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985. BATESON, Gregory. “Uma teoria sobre brincadeira e fantasia”. In Branca T. 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Doutora em Antropologia Social, formada pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Mestre em Antropologia Social, formada pela UFSC; Especialista em Estudos Culturais, formada pela UFSC; e Bacharel em Composição e Regência, formada pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Realiza pesquisas sobre música indígena amazônica, música popular brasileira, percepção musical, e sobre música e relações de gênero. Atua como compositora, tendo sido recentemente selecionada para participar da XVI Bienal de Música Contemporânea. Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia de Pierre Schaeffer Rael Bertarelli Gimenes Toffolo, André Luiz Gonçalves de Oliveira (UEM) Resumo: O presente artigo pretende desenvolver uma nova perspectiva para a descrição da percepção (écoute) utilizada por Pierre Schaeffer, apoiada na fenomenologia pontyana e na teoria do conhecimento atuacionista de Maturana (1995) e Varela et al (1991). O trabalho de Schaeffer desenvolve-se centrado na fenomenologia de Hussler que por sua vez já sofreu inúmeras reformulações ao decorrer do desenvolvimento histórico da fenomenologia moderna. Neste trabalho apresentamos os conceitos chaves da teoria de Schaeffer (1966) e apontamos algumas reformulações necessárias, para que dessa forma tais conceitos acompanhem as transformações ocorridas na fenomenologia. Palavras-chave: Pierre Schaeffer, Marleau-Ponty, fenomenologia, atuacionismo, audição corporificada e situada. Introdução Desde sua primeira publicação em 1966 o Traité des objets Musicaux de Pierre Schaeffer tem sido uma obra referencial para a composição e para o estudo da música contemporânea, principalmente as que se enquadram na vertente acusmática. Dentro desse panorama, o Traité também se tornou obra teórica central para o estudo e desenvolvimento de estéticas musicais que colocam a percepção como fundamento para a construção de técnicas e procedimentos composicionais. Diversos autores deram seguimento ao trabalho de Schaeffer no intuito de completar e expandir sua perspectiva de música contemporânea, dos quais podemos destacar Simon Emmerson (1987), François Bayle (1993) e Michel Chion (1994). É a noção de acusmática que possibilita a colocação da percepção (écoute para Schaeffer) como foco central para a atividade composicional. Essa transformação de foco da dupla fazer/ouvir para um ouvir/fazer, entendendo o fazer como o próprio processo composicional, é decorrente de um amplo estudo e críticas às posturas tradicionais da atividade musical ocidental. Schaeffer parte de uma análise, breve, porém profunda da situação da música que lhe era contemporânea, esboçando alguns problemas a serem resolvidos e críticas a posturas composicionais dominantes de sua época. Aponta para as transformações que a musicologia deveria enfrentar, decorrentes das mudanças das noções de escala de alturas como base para a construção musical; o crescente desenvolvimento de formas de produção sonora, advindas dos equipamentos eletrônicos e dos instrumentos não ocidentais; os problemas que a crítica musical enfrentava por não apresentar nem conteúdo nem terminologia apropriada para a explicação do fenômeno musical. O autor afirma que o surgimento da postura estruturalista em música, do início do século XX, foi uma reação a esses “impasses” da musicologia, já que fica justificada, em meio a tal crise, o apoio sistemático em parâmetros “seguros” da física. Dessa forma, Schaeffer refere-se à perspectiva estruturalista como geradora de uma música a priori, por esta colocar a construção e manipulação abstrata de símbolos musicais, que apresentam uma analogia com parâmetros acústicos, como fato primeiro em relação à escuta. Criticando essa postura que não toma a experiência do material sonoro que ocorre na escuta, Schaeffer sugere uma alternativa que inverta a ordem da conduta composicional estruturalista e a denomina de música concreta e posteriormente de música experimental. 132 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Les Quatre Écoutes O autor lança-se então à uma descrição do funcionamento da escuta baseando-se em situações e ações específicas de um ouvinte hipotético. Divide a escuta em quatro tipos funcionais: 1. Écouter: É disponibilizar o ouvido, interessar-se por. Eu me dirijo ativamente a alguém ou a alguma coisa que me é descrita ou assinalada por um som. (Schaeffer, 1966, p. 104) 2. Ouïr: É perceber pelo ouvido. Por oposição a escutar, que corresponde à atitude mais ativa, aquilo que ouço é aquilo que me é dado na percepção. (Schaeffer, 1966, p. 104) 3. D´entendre: É o estágio da escuta no qual ocorrem as qualificações do ouvir, dependendo de uma intenção. Segundo Schaeffer, a origem etimológica da palavra aponta que entender é “ter uma `intenção´. Aquilo que entendo, aquilo que me é manifesto, é função dessa intenção.” (Schaeffer, 1966, p. 104). 4. Comprendre: Realizado a partir da qualificação do entender, é o ato de perceber um sentido onde o som torna-se um signo que possui relações com um código cultural. (Schaeffer, 1966, p. 104) O quadro de funcionalidades da escuta é a base sobre a qual o autor fundará toda a sua investigação sobre a atividade musical para a construção de uma vertente acusmática e experimental, ao lidar com o fenômeno sonoro. É a partir dele que Schaeffer realiza uma análise das diferentes situações de escuta decorrentes de diferentes situações humanas. Posteriormente, propõe uma descrição do fenômeno musical para além daquela fornecida pela física acústica. Para que tal tarefa seja exeqüível, o autor recorre à noção de redução fenomenológica de Edmund Hussler. Tal noção será de suma importância para a construção do seu objeto sonoro e este por sua vez será a base para o desenvolvimento de seu solfejo. Além da divisão da escuta em quatro funcionalidades, Schaeffer organizará posteriormente formas diferentes de agrupar tais funcionalidades. Uma subdivisão que apresenta relevância para este texto é a organização do quadro de funcionalidades da escuta em dois pólos opóstos: Banale/Praticienne. Na abordagem crítica de Windsor (1995), para a análise de música acusmática, encontramos corroboração à relevância da descrição desses dois modos de percepção tal qual realizada por Schaeffer, de forma a opor dois pólos que são responsáveis pela caracterização de uma escuta de dia-a-dia (banalle) e de uma escuta especializada (praticienne) que remete à um sistema simbólico. This is not to suggest that Schaeffer’s ideas per se have no relevance to the analyst. His discussions of the relationship of listening to culture and nature, his perspicacious accounts of the problems inherent within traditional views of listening and musical discourse (Schaeffer, 1966) have been instrumental in defining the challenges posed by the acousmatic and have been instrumental in shaping this thesis. (Windsor, 1995, p. 34) A descrição das funcionalidades da escuta organizada nesses dois pólos será de suma importância para as reformulações que apresentamos no presente artigo. Porém para chegarmos aos resultados pretendidos realizaremos uma revisão no quadro das quatre écoutes para posteriormente retornarmos a esse ponto. Uma abordagem atuacionista 133 A delimitação schaefferiana das quatre écoutes apresenta algumas inconsistências decorrentes de redundâncias conceituas. Na definição de écouter, que descreve uma escuta “mais ativa” que a presente na definição de ouïr, não fica claro quão mais ativo deve ser o comportamento para ser caracterizado como écouter. Schaeffer considera que tal atividade de um suposto sujeito, própria do escutar, centra-se na busca da fonte sonora (referencialidade), o que não ocorre no ouvir. O problema aqui apontado está na tentativa de separar as funções que ocorrem no escutar e no ouvir. Para Schaeffer o ouvir seria a atividade realizada por um ouvido que recebe estímulos de um mundo dado e que não realiza nenhum tipo ação sobre eles. Aqui podemos apontar ao menos três problemas para a descrição da percepção, a saber: a) um ouvir que é incessante; b) um mundo dado antes da experiência do mundo; c) um sujeito suposto antes da experiência.1 a) para o autor (Schaeffer, 1966, p. 104) o sujeito jamais cessa de ouvir e encontra-se em um mundo que jamais cessa de estar ai. Em uma experiência de dia-a-dia estamos constantemente realizando escolhas de hábitos de audição que resultam em um cessar de ouvir algo para ouvir outro algo. A psicologia ecológica de Gibson e Baeteson, a fenomenologia pontyana e a ciência cognitiva atuacionista de Maturana e Varela, mesmo com suas diferenças de abordagens, oferecem uma explicação mais adequada para tal conduta. De acordo com tais áreas de estudos, é necessário a substituição de uma abordagem da percepção como um receptor2 de sensações, que conduz os estímulos ao processamento interno, para as abordagens: ecológica, fenomenológica e autopoiética, que apresentam a noção de sistemas perceptivos, que se fazem no seu viver, isto é, na sua história de acoplamentos estruturais com o meio. Tais sistemas caracterizam-se por uma ação no meio em busca de um acoplamento adequado com a situação vivida. No conhecido exemplo do coktail-party phenomenon (Gibson, 1966, p. 84), o indivíduo orienta sua atenção e passa a ouvir especificamente aquilo que quer. O sistema auditivo se auto-ajusta através do tensionamento do músculo estapédico que regula o padrão de tensão da membrana timpânica de acordo com o controle do sistema nervoso central, para melhor detectar o padrão sonoro desejado (Guynton e Hall, 1997). Se a membrana timpânica está ajustada para ressoar a um tipo de padrão sonoro, não irá ressoar com outros padrões, resultando numa seleção e, portanto, na interrupção da audição de tais padrões sonoros, os quais podem estar sendo ouvidos por outras pessoas com outros padrões de comportamento auditivo. b) para que a descrição de Schaeffer de um ouvir passivo, que capta o mundo ininterruptamente, possa equivaler ao real, é necessário conceber um mundo existente independente da experiência de existência desse mundo. Essa noção de mundo dado é decorrente de um posicionamento dualista cartesiano sujeito/objeto que tem como correlatos outros dualismos importantes na filosofia: mente/corpo e natural/cultural. A fenomenologia desde Hussler e inclusive desde Hegel em sua Fenomenologia do Espírito tem sido marcada por uma orientação para a eliminação de tais dualismos. 1 As alternativas explicativas aos problemas conceituais apresentados nesta seção serão descritos em maior profundidade nas próximas seções. 2 A palavra receptor designa uma passividade no sentido de que o órgão recebe o estímulo ao invés de buscar por ele. (Gibson, 1966). 134 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 c) a crença em um mundo dado, anterior à experiência resulta também em uma crença em um sujeito hipotético independente da experiência. A circunscrição da noção de sujeito tem sido um dos problemas centrais na Filosofia da Mente contemporânea. Estão ligados a tal circunscrição conceitos como consciência, psiquê, self, mente, espírito, alma, etc. Desde seu nascimento, a filosofia se ocupa com a descrição de tais conceitos sem chegar a uma resposta conclusiva. Há uma marca cartesiana3 muito forte na filosofia moderna que apresenta o sujeito como algo desligado de seu corpo. Na Fenomenologia da Percepção, MPonty supera esse dualismo apresentando uma descrição da mente (psique) e corpo como entidades não separáveis: O homem concretamente considerado não é um psiquismo unido a um organismo, mas este vai-e-vem da existência que ora se deixa ser corporal e ora se dirige aos atos pessoais. Os motivos psicológicos e as ocasiões temporais podem-se entrelaçar porque não há um só movimento em um corpo vivo que seja um caso absoluto às intenções psíquicas, nenhum só ato psíquico que não tenha encontrado seu germe ou seu esboço geral nas disposições fisiológicas. (M-Ponty, 1994, p. 130). M-Ponty propõe a noção de um sujeito incorporado e situado. É a mesma noção proposta por Varela et al., Maturana e Haselager (2003) de um sujeito corpóreo que se faz através de sua ação no mundo. A noção de sujeito presente no trabalho de Schaeffer é filiada à perspectiva hussleriana de sujeito transcendente, que é oposta a noção de sujeito encarnado e situado no espaço e no tempo. (cf. M- Ponty, 1990, p. 159). Resta-nos agora abordar os conceitos de entendre e comprendre. O entendre segundo Schaeffer caracteriza-se por uma ação intencional na escuta. O problema do conceito de entender centra-se no conceito de intencionalidade. O estudo de tal noção é central na filosofia, especificamente na Filosofia da Mente. São referenciais nesta área de estudos os trabalhos de Tomás de Aquino, Bretano, Dennet, Dretske, Fodor, Searle, Putnam, entre outros. Não encontra-se no escopo deste artigo abordar especificamente problemas com a noção de intencionalidade, o que é tarefa para futuros trabalhos. Ocorre que Schaeffer encontra-se numa tradição dualista cartesiana na utilização de tal conceito, incorrendo com isso em noções problemáticas tanto para a explicação da percepção quanto para a própria demarcação de organismo, mente e sujeito conforme podemos na verificar na citação abaixo: Brentano argued both (A) that this reality-neutral feature of intentionality makes it the distinguishing mark of the mental, in that all and only mental things are intentional in that sense, and (B) that purely physical or material objects cannot have intentional properties—for how could any purely physical entity or state have the property of being “directed upon” or about a nonexistent state of affairs? (A) and (B) together imply the Cartesian dualist thesis that no mental thing is also physical. And each is controversial in its own right.Thesis (A) is controversial because it is hardly obvious that every mental state has a possibly nonexistent intentional object; bodily sensations such as itches and tickles do not seem to, and free-floating anxiety is notorious in this regard. (...) Dualism and immaterialism about the mind are unpopular 3 Há alternativas à Descartes que são contemporâneas a ele mesmo como é o caso de Spinoza. No entanto, o cartesianismo já em sua época tornou-se tendência dominante. Uma abordagem atuacionista 135 both in philosophy and in psychology—certainly cognitive psychologists do not suppose that the computational and representational states they posit are states of anything but the brain—so we have strong motives for rejecting thesis (B) and finding a way of explaining how a purely physical organism can have intentional states. (The MIT encyclopedia of the cognitive sciences, 1999, p. 414) Na abordagem que propomos neste artigo apresentaremos uma explicação para a percepção que não necessita deste conceito de intencionalidade por utilizar uma perspectiva não dualista-cartesiana. Em relação ao comprendre, Shaeffer o descreve utilizando noções próprias da tradição do paradigma do processamento de informação para a explicação da percepção. Para o autor, este estágio envolve a organização de significações que foram selecionadas intencionalmente no entendre. Como Schaeffer coloca, o suposto sujeito é autor de deduções, abstrações, comparações e relações de informações de fontes e naturezas diversas (1966, p. 110). As atividades realizadas no entender e no compreender são próprias de um sujeito metafísico, cartesiano e independente da experiência incorporada e situada no mundo. Conforme exposto no início desta seção, apresentaremos uma alternativa explicativa para as funcionalidades da escuta de Schaeffer, porém para que isso seja possível buscaremos na fenomenologia pontyana e no atuacionismo de Varela, fundamentos filosóficos mais adequados para a descrição da percepção. Um novo paradigma para o estudo da percepção Os estudos feitos sobre percepção em diferentes áreas como a biologia (fisiologia), ou a psicologia, ou ainda a filosofia vêm recebendo contribuições ao longo dos últimos 50 anos que apontam o desenvolvimento de um novo paradigma, distinto daquele denominado por processamento de informação originário da concepção dualista-cartesiana de mundo. Com intenção de apresentar brevemente alternativas explicativas para a percepção auditiva a presente seção trata da noção de percepção para dois autores que podem ser considerados exemplares na busca por alternativas às propostas dualista-cartesianas. São eles MerleauPonty e Francisco Varela. A experiência do corpo no mundo A perspectiva apresentada na Fenomenologia da Percepção permite escapar de encruzilhadas conceituais dualistas, sobretudo por retomar a experiência como objeto central de seu estudo e colocá-la como fundamento ontológico de toda e qualquer descrição sobre ela, como afirma o prefácio: Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, (...), precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele. (Merleau-Ponty, 1996, p. 3) 136 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Ao retomar a experiência como um retorno ao fenômeno, antes da explicação desse fenômeno, Merleau-Ponty critica Descartes por colocar uma representação do mundo no lugar do próprio mundo vivido, e apontar para tal representação como fundamento de toda atividade cognitiva e mesmo perceptiva. Para Merleau-Ponty (1996, p. 7): A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. Tal maneira de entender percepção e mundo é uma grande novidade ainda hoje, tanto para a tradição filosófica quanto para a ciência cognitiva, ou psicologia e neurociência. As conseqüências dessa amostra do pensamento de Merleau-Ponty podem ser destrutivas para teorias que propõe seus fundamentos do conhecer em uma metafísica dualista cartesiana, que tendem a deixar de fora a própria experiência cotidiana do conhecer e do perceber. M-Ponty inicia sua Fenomenologia pela descrição do papel do corpo nas atividades perceptivas. Criticando o dualismo-cartesiano o autor busca alternativas à perspectiva do corpo-objeto da fisiologia e da psicologia clássica. Inicialmente a noção de corpo fora da perspectiva dualista possibilita M-Ponty dispensar a noção de representação mental e explicar a percepção como em conjunto com a ação (movimento) formando um sistema que se modifica como um todo. Continuemos a citação: Se, por exemplo, percebo que não querem obedecer-me e em conseqüência modifico meu gesto, não há ali dois atos de consciência distintos, mas vejo a má vontade de meu parceiro e meu gesto de impaciência nasce dessa situação, sem nenhum pensamento interposto. (M-Ponty, 1996, p. 160) Nesse sentido é o corpo no mundo que dá condições de comportamentos considerados inteligentes. M-Ponty fala especificamente do hábito, mas como não estando nem no pensamento, ou seja, como algum tipo de representação mental, nem no corpo-objeto, mas no corpo como mediador de um mundo. Através do exemplo específico de um organista que vai tocar em um órgão que não conhece, o autor explica de forma não mecanicista o que ocorre. M-Ponty (1996, p. 201) afirma que o tal organista durante o curto ensaio que precede o concerto, (...) não se comporta como o fazemos quando queremos armar um plano. Mas ao contrário o organista usa todo tempo que tem para experimentar os pedais, as teclas, utilizar com seu corpo o instrumento, vesti-se dele. Segundo o próprio autor o organista: (...) avalia o instrumento com seu corpo, incorpora a si as dimensões e direções, instala-se no órgão como nós nos instalamos em uma casa. O que ele aprende para cada tecla e para cada pedal não são posições no espaço objetivo e não é à sua memória que ele os confia. Entre a essência musical da peça, tal como ela está indicada na partitura, e a música que efetivamente ressoa em torno do órgão estabelece uma relação tão direta que o corpo do organista e o instrumento são apenas o lugar de passagem dessa relação. (M-Ponty 1996, p. 20 e 201). O corpo tem papel fundamental para a explicação fenomenológica da percepção ele é o próprio espaço expressivo, e é pela experiência do corpo no mundo que eu alcanço o mundo. E na segunda parte da Fenomenologia M.-Ponty aborda o mundo percebido, não Uma abordagem atuacionista 137 como um mundo objetivo, existente independente de um percebedor, como foi posto pela tradição dualista. Nem como um mundo construído em mim como representação de um mundo objetivo fora de mim. Mas como um mundo vivido, experimentado. Segundo o próprio autor, pela experiência perceptiva me afundo na espessura do mundo. (M.-Ponty, 1996, p. 275.). Estando então ‘afundado’ no mundo, não necessito copiá-lo dentro de mim. Isso não quer dizer que a fenomenologia negue a ocorrência de atividade neuronal, por exemplo. O que ocorre é que com a fenomenologia há uma orientação para que o foco do estudo da percepção esteja na experiência perceptiva, e não em supostas causas ou conseqüências. Em outras palavras, a orientação dualista direciona o estudo das atividades perceptivas como se fossem ou conseqüências ou causas das atividades neuronais (que seriam as próprias representações mentais), e a fenomenologia aponta para a necessidade de se focalizar a experiência de um corpo em um mundo se a intenção é estudar a percepção. Com isso M.-Ponty apresenta uma definição de percepção completamente diferente daquela trazida pelo processamento de informação. Entendendo o mundo, as coisas como correlativos de meu corpo, M.-Ponty (1996, p. 429) afirma que a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas articulações são as mesmas de nossa existência. Nesse caminho não faz sentido a noção de um sujeito que processe as informações recebidas de um mundo dado de antemão. Para a fenomenologia não há esse mundo dado antes da experiência, ou nas palavras do autor: o que é dado não é somente a coisa, mas a experiência da coisa (...). (M.-Ponty, 1996, p. 436). Também esse sujeito não existe desligado do mundo, M.-Ponty é muito claro e direto ao afirmar que: O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão um projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. (M-Ponty, 1996, p. 576) Assim, não há como argumentar em favor da percepção e da significação que ocorre na percepção, como reelaboração construída por um sujeito que opera interpretando um mundo que lhe é estranho e externo. Mas abre-se a perspectiva para entender a percepção como certa maneira de agir no mundo, certa maneira de ser no mundo. Tal perspectiva será desenvolvida também por outros autores além de M.-Ponty, como Varela, por exemplo, que no início da década de 90 mostra-se comprometido com uma perspectiva que valoriza a experiência para a explicação dela mesma. Há diversos outros autores que desenvolvem pesquisas acerca de percepção e cognição e que vêm engrossando as fileiras de um paradigma não dualista-cartesiano. Escolhemos abordar o trabalho de Varela por entender que ele acaba condensando todo um conjunto de esforços que se desenvolve sob um nome comum de ciência cognitiva e dialoga diretamente com a filosofia da mente. O conhecimento faz o mundo, ou, o mundo e eu somos feitos na experiência. Também é à tradição dualista e representacionista cartesiana que se encaminham as críticas de Varela, Thompson e Rosh (2003, p. 150) quando falam de um tipo de ansiedade cartesiana vivida com as questões sobre os fundamentos objetivos do mundo ou do sujeito que conhece o mundo: Ao tratar a mente e o mundo como pólos opostos – o subjetivo e o objetivo –, a ansiedade cartesiana oscila indefinidamente entre os dois na busca de uma fundação. De acordo com os autores, a postura dualista-cartesiana gera ansiedade na medida em que tais fundamentos objetivos (independentes da experiência) para o mundo e 138 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 para a mente não são alcançados suficientemente. Tal ansiedade é ainda geradora de niilismo conforme afirmam na seqüência (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 152): (...) nossa ganância por um alicerce, seja ele interno ou externo, é a origem profunda de frustração e ansiedade. A concepção de cognição como um tipo de representação de um mundo dado, construída por uma mente é que temos apontado e criticado naquilo que chamamos de adesão ao paradigma dualista-cartesiano. Além da preocupação crítica Varela, Thompson e Rosh se incubem da tarefa de descrever cognição de uma nova maneira, não dualista e que leve em conta, sobretudo o conhecimento na experiência cotidiana do viver. Eles descrevem a cognição através da noção de enacção4 ou atuação5, sempre como cognição corporificada e ação situada. Nesse sentido apontam uma nova maneira de descrever atividades perceptivas, como a discriminação de cores, por exemplo: Vimos que as cores não estão “lá fora”, independentes de nossas capacidades perceptivas e cognitivas. Vimos também que as cores não estão “aqui dentro”, independentes do mundo biológico e cultural à nossa volta. Contrariamente à visão objetivista, as categorias de cores são experienciais; contrariamente à visão subjetivista, as categorias de cores pertencem ao nosso mundo biológico e cultural. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 176) Colocando as coisas dessa maneira, os autores apontam um caminho contrário ao dualismo, e com isso a possibilidade de evitar as conseqüências problemáticas de tal opção teórica. A abordagem atuacionista que vem sendo desenvolvida por mais de dez anos no seio da ciência cognitiva e da filosofia da mente tem demonstrado importantes frutos quando aplicadas por áreas de estudo tão diferentes como as artes, a lingüística, ou a robótica evolucionária. Os autores propõem a noção de percepção como ação perceptivamente orientada, e afirmam também que as estruturas cognitivas emergem dos padrões sensório-motores recorrentes que possibilitam a ação ser perceptivamente orientada. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Isso é a própria definição da abordagem atuacionista para os autores citados. Para essa abordagem do estudo da percepção não é importante, como no caso do paradigma dualista-cartesiano, determinar como um mundo independente de um observador pode ser recuperado, mas sim determinar os princípios comuns entre os sistemas sensorial e motor que explicam como a ação pode ser orientada em um mundo dependente de um observador. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Em trechos subseqüentes os próprios autores reconhecem sua filiação à tradição fenomenológica de M.-Ponty e trazem claramente sua concepção de percepção não só como parte (ou embutida) de um mundo, mas como colaboradora com a atuação desse mesmo mundo. Aí está, de forma resumida, um conjunto de argumentações destacando possibilidades explicativas da percepção e cognição no contexto da ciência cognitiva e filosofia da mente. Acabamos de apresentar a abordagem denominada atuacionista de Varela, Thompson e Rosh, que se desenvolve a partir de e concepções fenomenológicas de M.-Ponty. Tais abordagens para o estudo da percepção (de M.-Ponty e Varela, entre outros) apontam para uma alternativa no contexto das explicações sobre percepção. Elas não concebem nem um 4 5 De acordo com tradução de ennaction para o portugês de Portugal em edição do Instituto Piaget. De acordo com tradução do termo ennaction para o portugês do Brasil em edição da Artmed. Uma abordagem atuacionista 139 sujeito absoluto que existe e age separado de um mundo (que por sua vez também existe e age independente do sujeito), nem um mundo objetivo, com coisas que existem independentes de algum percebedor que as possa distinguir. Concebem então um percebedor e um mundo que se fazem enquanto estão atuando acoplados estruturalmente mantendo sua organização. Nesse sentido foi o título dessa seção afirmando que o conhecer é atuar, viver, possuir uma história de acoplamento estrutural com o meio. E perceber é a própria ação no mundo, que nunca existe sem orientação perceptiva, e não com representações ou orientações para um mundo externo. Um outro autor bastante importante para a pesquisa sobre cognição e percepção, H. Maturana, que não será aprofundado no presente texto por uma questão do recorte momentâneo, tem uma citação muito rica para concluir a presente seção. Com ela Maturana amplia a noção de percepção, saí da perspectiva do per-capere (literalmente: obtido por captação) e entende percepção como o nome que um observador atribui a uma conduta específica, ou um mundo de ações. Nas palavras do autor: O mundo cognitivo que vivemos, através da percepção, se assemelha a isso: produzimos um mundo de distinções através de mudanças de estados que experimentamos enquanto conservamos nosso acoplamento estrutural com os diferentes meios nos quais estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, então, usando nossas mudanças de estado como distinções recorrentes em um domínio de coordenações de coordenações de condutas consensuais (linguagem), produzimos um mundo de objetos como coordenações de ações com as quais descrevemos nossas coordenações de ações. (Maturana, 1997/2001, p. 103). Les Quatre Écoutes como hábitos de escuta Após esta apresentação das propostas de M-Ponty e Varela, estamos aptos a desenvolver as críticas e alternativas explicativas esboçadas na segunda seção. Conforme citamos acima, apontamos como relevante para nosso estudo a catagorização schaefferiana das funcionalidades da escuta como banalle e praticienne. Tal organização pode ser relacionada com aquela descrita na teoria da percepção direta de Gibson (1966 e 1979). Segundo Michaels e Carello (1981), todas as teorias que estudam a percepção partem do pressuposto de que o comportamento dos animais demonstra o quanto conhecem seu meioambiente. Porém, existe uma diferença em como cada teoria explica esse tipo de conhecimento. Essa diferença, segundo as autoras, divide os estudos sobre percepção em Teorias da Percepção Indiretas (uso de representações mentais) e Teoria da Percepção Direta. Gibson e seus seguidores adotaram uma perspectiva Ecológica ao afirmar que perceber é um processo que se dá num sistema mutuamente informacional formado por animal e meio ambiente, e não somente no animal tal como ocorre com a percepção Indireta. Outro ponto crucial que diferencia esses dois blocos que estudam a percepção é que a Teoria da Percepção Direta não concorda com o uso de memórias e representações mentais, ou seja, não há mediação na atividade perceptual, por isso ser denominada como uma teoria da 140 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Percepção Direta, ao contrário das teorias da Percepção Indireta que explicam os processos perceptuais com o uso da mediação.6 Para explicar a atividade de acoplamento estrutural entre organismo e meio na experiência sonoro-musical, Oliveira & Oliveira 2003 utilizam-se de noções advindas da Teoria da Percepção Direta de Gibson: A percepção quando descrita como o acoplamento estrutural entre organismo e meio, elimina a noção de representação da explicação da atividade perceptiva. Essa maneira de abordar a percepção como um ciclo de percepção-ação é o que Gibson denomina como percepção direta (Gibson, 1979). De acordo com tal teoria, Gibson categoriza a percepção em dois tipos: primeira e segunda mão. Naquilo que Gibson denomina por percepção de primeira mão encontra-se um tipo de ação que é caracterizada pela imediatidade. O organismo percebe o mundo e age sem que tal ação envolva aquilo que se caracterize por um planejamento anterior (representação mental). Como exemplo desse tipo de ação, podemos tomar o caso de alguém que caminha em um terreno acidentado. No seu caminhar ele desvia dos acidentes e procura um caminho estável para que seu andar possa ocorrer. No entanto ao visualizar um buraco, por exemplo, nosso caminhante não tem tempo de planejar que tipo de posição de perna, de pé, enfim, o de corpo inteiro, ele irá tomar. Seu corpo se coloca, imediatamente, em condições de superar o obstáculo. Não há como observar aí um plano prévio, por mais rápido que pudesse ocorrer. O corpo se molda à situação, age sem intermediários, age orientado diretamente pela percepção. Em se tratando de música, os exemplos de percepção de primeira mão são também esclarecedores. Tomemos o caso de um regente à frente de uma orquestra. Por mais que o regente tenha preparado previamente seu conjunto de movimentos, fundamentado no estudo da partitura, o momento da execução exige um tipo de ação imediata do regente, para adequar a sonoridade resultante da performance, a cada momento. Variações em diferentes aspectos musicais (dinâmica, agógica, articulação...) ocorrerão e cabe ao regente adequá-las para conseguir a sonoridade esperada. A realização de seus padrões gestuais, é sempre orientada, no momento da execução, pela percepção daquilo que está sendo gerado na performance da orquestra. Forma-se assim o ciclo percepção-ação. Em contra-partida, o planejamento do gestual para a performance, e todo o conjunto de conceitos teóricos musicais utilizados para a construção de tal planejamento caracterizam-se pelo que Gibson, Maturana, M-Ponty e Varela entendem como percepção de segunda mão7. Essa percepção caracteriza-se por um nível superior de recorrência do acoplamento estrutural, por isso ser um segundo, que é sempre orientada e orienta a primeira mão. Com isso podemos observar a ação de um corpo (encarnado) em uma situação específica (situado) num ciclo de percepção-ação que ocorre com diferentes níveis de recorrência. Se optarmos pela descrição de cognição de Varela et al (1991) e Maturana (1995) podemos entender que aquilo que denominamos por percepção e por conhecimento são descrições condutuais consensuais mais ou menos recorrentes observadas nos diferentes níveis de sub-redes sensóriomotoras em seu operar no meio, 6 Gibson não nega a existência das representações mentais, mas afirma que na atividade perceptual elas não são utilizadas. Para uma visão aprofundada sobre a crítica à representação mental no processo perceptual ver Haselager (2003). 7 Apenas Gibson utiliza o termo second-hand perception. No entanto os outros autores citados também apresentam um tipo de categorização da percepção que pode ser descrito adequadamente segundo a noção gibsoniana referida. Uma abordagem atuacionista 141 guardando suas identidade e mantendo seu acoplamento estrutural. Tal nível maior ou menor de recorrência está diretamente relacionado com aquilo que entendemos por percepção de primeira mão (baixa recorrência) e percepção de segunda mão (alta recorrência). Como já afirmamos, Schaeffer se aproxima muito dessa categorização ao agrupar as funcionalidades da escuta na dupla banale e praticienne. O agrupamento do escutar e do ouvir em uma escuta banale, de dia-a-dia segundo Windsor (1995), corresponderia à primeira mão tal qual descrevemos acima e a dupla entender/compreender agrupada em uma escuta praticienne corresponderia à segunda mão. Temos assim uma substituição possível às funcionalidades schaefferianas da escuta que resolveria os problemas de conceituação e de explicação da percepção apoiadas em uma abordagem dualistacartesiana, que era exatamente o que Husserl e a tradição fenomenológica pretendia expurgar. Devemos ressaltar que nossa reformulação não apresentará prejuízos para o retorno que Schaeffer realiza ao quadro das funcionalidades no intuito de realizar a passagem da música tradicional para a música experimental. Para isso Schaeffer propõe a inversão no direcionamento das atitudes perante o fenômeno sonoro. Na música tradicional esse direcionamento ocorre de uma etapa de identificação dos valores musicais, que englobam o compreender e o escutar como domínio da musicalidade, para uma qualificação, que engloba o ouvir e o entender em um domínio da sonoridade. Temos assim o domínio da musicalidade que representa as identificações abstratas e conceituais sendo posteriormente efetivadas no mundo no domínio da sonoridade. A inversão se da a partir de uma qualificação realizada no domínio da sonoridade, através da escuta reduzida e sua decorrência no objeto sonoro, para posteriores identificações e organizações de coleções de significações no domínio da musicalidade. Ao reorganizarmos o quadro das funcionalidades da escuta, teremos a escuta como um todo, que num nível de recorrência inferior é caracterizado pela percepção de primeira-mão e num nível de recorrência superior pela percepção de segunda-mão. A inversão da atividade composicional, do fazer-ouvir para um ouvir-fazer, pode ser melhor descrita, nos termos das teorias abordadas aqui, como um caminho de valorização da percepção de primeira mão. Da maneira que Schaeffer apresenta sua inversão, não é possível, ou melhor, não é objetivo da escuta reduzida a ocorrência de significação na percepção de primeira mão, mas ela própria é a proposição de um segundo nível de recorrência (segunda mão) sobre a percepção imediata. Nesse sentido o autor nem considera a possibilidade da emergência de significação na percepção de primeira mão. O que consideramos central para a crítica e proposições realizadas no presente estudo é apontar que diversos autores8 indicam um tipo de significação perceptiva, próprios da ocorrência do ciclo percepção-ação de um corpo em um meio específico. O caminho que os referidos autores propõem é um tipo de descrição para as significações próprias de cada uma das duas categorias de percepção. É relevante observar que Gibson, ao argumentar em favor de uma significação própria da percepção de primeira mão, não rejeita a possibilidade de um tipo de significação que ocorra utilizando mediações. Ao contrário, tal autor afirma 8 Gibson, Maturana, Varela e M-Ponty, por exemplo. 142 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 que o caso de um tipo de significação indireta, mediada por representações,9 pode ser descrito adequadamente como de segunda-mão, ou seja, com um nível maior de recorrência da coordenação condutual consensual no operar do organismo em seu meio. Essa reformulação do quadro de escutas nos direciona para uma reformulação do próprio conceito de objeto sonoro. Como afirmamos, o objeto sonoro de Schaeffer é obtido pela redução fenomenológica. Tal redução visa a eliminação dos condicionamentos culturais (hábitos) da escuta, para que seja desvelado o objeto sonoro. Tal objeto está relacionado à noção de essência, o que coloca a experiência apenas como um aspecto passageiro e menos importante na percepção. Nesse sentido a experiência é uma das etapas na construção das significações possíveis para o objeto sonoro. Com tal posição Schaeffer incorre ao mesmo erro cartesiano criticado por M-Ponty, de substituir o mundo por uma representação do mundo, ou mais especificamente no caso hussleriano, substituir a experiência do mundo por suas essências. Tais essências se configuram em um conjunto de características universais dos múltiplos objetos possíveis à escuta. Com isso Schaeffer espera criar um sistema de categorização que seja independente de qualquer situação de escuta. Ao comparar as escutas do músico, do engenheiro e do ouvinte comum, Schaeffer encontra diferenças de significação decorrentes da escuta especializada de cada um deles e atribui à escuta reduzida a função de revelar o objeto sonoro, enquanto essência, e a função de possibilitar uma classificação que será comum a todas as pessoas em todas as situações de escuta. No entanto, ao propor um tipo de escuta próprio para acessar a essência da experiência sonora, seu objeto sonoro, o autor acaba por substituir um grupo de hábitos de escuta, por um outro hábito, denominado por ele mesmo como antinatural, como podemos ler: Como posso descrever no plano puramente sonoro um galope? (...) Necessito volver à experiência auditiva, recapitular minhas impressões, para reencontrar, através das mesmas, informações sobre o objeto sonoro, e não mais sobre o cavalo. (...) Na verdade se trata de um retorno às fontes, à ‘experiência originária’, como diria Husserl – que se tornou necessária por uma ‘mudança do objeto’. Antes que um novo treinamento me seja possível e que possa ser elaborado um outro sistema de referências, desta vez apropriado ao objeto sonoro, eu deveria libertar-me do condicionamento criado por meus hábitos anteriores, passar pela prova da époché. Não se trata de forma alguma de um retorno à natureza. Nada nos é mais natural do que obedecer à um condicionamento. Trata-se de um esforço ‘antinatural’ para perceber aquilo que antes determinava a consciência inadvertidamente. (Schaeffer, 1966, p. 270) É especificamente quando qualifica a experiência à qual se deve recorrer (experiência originária) para descrever adequadamente um evento sonoro, que Schaeffer tira a experiência do evento sonoro-acontecendo do centro da descrição dele próprio e coloca em seu lugar um tipo de representação mental anteriormente elaborada e armazenada na memória. Tal representação seria uma espécie de essência do evento percebido, ou seja, o objeto sonoro encontrado a partir da escuta reduzida. A partir dessas observações sobre essa importante citação, confirma-se que a noção de objeto sonoro, que Schaeffer desenvolve no Traité, está relacionada diretamente à própria noção de representação mental adequadamente elaborada. A experiência de estar ouvindo 9 Estamos nos referindo à noção de representação não como representação interna/mental. Uma abordagem atuacionista 143 um evento sonoro em uma situação específica é apenas o início do processo de desvelamento do objeto essencial, a ser alcançado por um hábito específico (escuta reduzida). A experiência de ouvir o evento sonoro em um meio específico não é suficiente para caracterizar o objeto sonoro schaefferiano, é antes, apenas o início do processo de desvelamento desse objeto, que será completado por outras etapas realizadas na mente do ouvinte. Dessa forma, Schaeffer incorre em um erro de acreditar que buscava uma descrição para a percepção de todo o possível acústico em meios fenomenológicos, que pudessem ser estendidos a qualquer indivíduo. A busca da essência da escuta, que eliminaria qualquer referência a condicionamentos pessoais, através da escuta reduzida, garantiria tal universalidade. Porém, o que temos é que Schaeffer cria mais uma forma especializada de escutar o mundo em que a tipo-morfologia, base fundamental para o seu solfejo dos objetos, acaba por ser um a priori que guiará toda a escuta do mundo. Poderíamos dizer que o solfejo dos objetos é a escuta praticienne do compositor acusmático que deve ser apreendida e condicionada para que funcione de acordo com o esperado por Schaeffer, portanto não pode configurar-se como uma explicação dos fundamentos da percepção, já que ela encontrar-se-ia na segunda-mão, sendo uma elaboração sobre a percepção de primeira-mão e não seu fundamento. Nossa proposta alternativa à escuta reduzida pode ser denominada como audição corporificada e situada. Com um tipo de significação que se dá sempre a partir de um ouvir/agir de um corpo específico em uma situação específica. Com isso é necessário que tenhamos claro dois conceitos, a saber: som situado e audição corporificada e situada: The sonic phenomenon is result of a mechanic event generated by the movement of any body composed with some elastic material, or a simulation of it in a computerized environment. This event, in all case, is always embedded in a specific situation, with a specific characteristics deriving of the relation between the perceiver and his environment. (Oliveira e Oliveira, 2003) A partir de tal citação podemos descrever adequadamente o que propomos como audição corporificada e situada. De acordo com Gibson (1966) o estudo da percepção não deve ser concebido apenas a partir da noção de órgão do sentido, aliás ele troca “órgão do sentido” por “sistema perceptivo”. O autor ressalta que os ouvidos estão na cabeça sobre o pescoço, sobre os ombros e sobre o resto do corpo. Tal corpo se movimenta no meio em busca de operar em congruência com o ambiente para adequar o acoplamento estrutural no sentido de manter sua identidade. Após toda exposição acima podemos apresentar uma alternativa à noção do objeto sonoro schaefferiano. Tal noção encontra-se, como vimos, enraizada na metafísica dualistacartesiana, e como tal, carece de estrutura argumentativa tanto epistemológica quanto ontológica. O que propomos como alternativa é o conceito de objeto sonoro como distinções realizadas por um organismo em sua história de condutas operacionais no sentido de manter sua identidade, mantendo seu acoplamento estrutural. Aqui fica claro que nos apoiamos em uma epistemologia própria especificamente de autores como M-Ponty e Maturana, como já nos referimos anteriomente. Assim esperamos também propor uma alternativa de fundamentação filosófica para a metodologia schaefferiana de circunscrever o objeto sonoro através da redução husseleriana. Acreditamos que a fenomenologia pontyana pode ser muito mais interessante 144 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 para a composição musical contemporânea, uma vez que fundamenta a explicação sobre a percepção em bases alternativas ao dualismo cartesiano. Dessa forma, ao abordar a tipo-morfologia de Schaeffer e sua estruturação final no quadro de solfejo dos objetos musicais, podemos pensar que todo o seu conjunto de categorizações pode ser entendido como uma possibilidade de escuta entre muitas possíveis. Como afirmamos acima, tais categorizações podem ser a descrição das distinções que afirmamos acima, porém em uma história de acoplamentos estruturais típicas de um compositor acusmático que passou pelo treinamento (aquisição de hábitos) de perceber segundo os critérios tipo-morfológicos de Schaeffer. O mais importante dessa abordagem é que a tipomorfologia passa a ser não um fundamento essencial da percepção, mas sim uma possível descrição de um tipo de escuta de um indivíduo que possui essa história de acoplamentos com o meio. Em Toffolo 2004, sugerimos uma re-adequação do quadro do solfejo dos objetos musicais que visava uma simplificação das inúmeras categorias. Tal simplificação foi no sentido de limpar alguns conceitos presentes no quadro que apresentavam grande dubiedade e tal dubiedade é decorrente dos problemas aqui apresentados. Ao reorganizar os conceitos chaves da teoria de Schaeffer chegamos à um quadro mais funcional e enxuto da tipo-morfologia que se apresentou como uma ferramenta interessante tanto para a composição como para a análise do repertório acúsmático e de Paisagens Sonoras. Com o apresentado neste trabalho acreditamos contribuir para uma renovação da teoria de Schaeffer tornando-a atual e condizente com as bases fenomenológicas modernas, o que só reforça a importância e a grandeza do Traité e o seu caráter de indispensável para o estudo da percepção e da composição musical contemporânea. Referências bibliográficas Gibson, J. J. The Senses Considered as Perceptual Systems. Houghton Mifflin Company, Boston, 1966. Gibson, J. J. Ecological Approach to Visual Perception. Lawrence Erlbaum Associates Publishers, Hillsdate, 1979/1986. Keller, D. Touch’n go: Ecological models in composition [online]. Disponível em: http://www.sfu.ca/sonic-studio/EcoModelsComposition.html, 1999. Keller, D.; Truax, B. Ecologically-based granular synthesis http://www.sfu.ca/~dkeller/EcoGranSynth/EGSpaper.html, 1998. [online]. Disponível em: Maturana, H. R. Da biologia a psicologia. Porto-Alegre, Artmed, 1995. M-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção. 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Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 Renato Kutner; Emerson De Biaggi (UNICAMP) Resumo: Este artigo apresenta aspectos estilísticos, formais e históricos da Brasiliana n. 2 para viola e orquestra de Cyro Pereira, levantados até o momento. Esta peça foi por nós editada, e é objeto de nossa dissertação de mestrado. Palavras-chave: Cyro Pereira- Brasiliana n. 2- Viola. Introdução Grande parte do repertório musical brasileiro ainda está por revisar, e é de difícil acesso, a exemplo de muitas obras de Villa-Lobos que ainda não foram editadas, e as que estão, em sua maioria na França e Estados Unidos, ou as de Camargo Guarnieri, que só atualmente estão sendo editadas também no exterior, ou ainda da nossa produção mineira do período colonial que tem muito por revisar e editar. Em contraste com essa situação, ao executarmos peças de compositores europeus, além de encontrarmos várias edições da obra, encontramos literatura sobre o compositor, sobre sua obra e inúmeras gravações, podendo assim começar o trabalho interpretativo munidos de informações sobre o universo artístico do compositor. A tudo isto se some o fato de o repertório de viola não ser muito extenso comparado ao de outros instrumentos como piano ou violino. Estas razões nos motivaram a escolher dentro do repertório nacional uma peça que justificasse uma pesquisa. Tivemos nos últimos 15 anos contato com o compositor Cyro Pereira por participarmos como violista da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, onde ele atua como maestro, compositor e arranjador1 tendo assim a oportunidade de conhecermos uma grande parte de sua obra. Justificativa Cyro Pereira é, na nossa opinião, um dos grandes compositores brasileiros da atualidade. Apesar de se considerar um músico popular2 e ter militado nesse tipo de música quase toda sua vida, a sua obra indica que muitas vezes os limites entre música popular e erudita talvez não sejam tão delineados. Sua obra é imensamente diversificada, desde peças para instrumentos solo, passando por música de câmara e chegando a grandes formações orquestrais. Dentro destas últimas, existem peças de sua autoria assim como arranjos de músicas populares. Cyro3 não foi vinculado à escola nacionalista, apesar de ter sido influenciado por ela no contato que teve em seus anos de trabalho em radiodifusão com 1 A Jazz Sinfônica é uma orquestra que foi criada por Arrigo Barnabé em 1990, na gestão de Fernando de Moraes como secretário de cultura do Estado de SP. Seu primeiro diretor artístico foi o compositor Eduardo Gudin. Seu maior objetivo é o de resgatar o passado das orquestras de rádio que existiram no Brasil até a década de 70, em que a música brasileira era tocada com arranjos sinfônicos. Esta proposta foi sendo ampliada para as diversas vertentes da música brasileira. Nestes 15 anos de existência, ela além de ter acompanhado quase todos os grandes nomes da música popular brasileira, sejam cantores ou instrumentistas, abriu campo para novos arranjadores que muitas vezes estavam restritos ao mercado fonográfico ou publicitário. Passaram pelos palcos da Jazz muitos nomes, dos quais citaremos alguns apenas para ilustrarmos a diversidade: Tom Jobim, Milton Nascimento, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Edu Lobo, Dori Caymmi, Zélia Duncan, Sivuca, Naná Vasconcelos, Cássia Eller, MPB4, Os Cariocas, Leila Pinheiro, Ivan Lins, Zizi Possi, Chico César, grupos instrumentais como Pau Brasil e Uakti, arranjadores como Edmundo Villani e Luís Arruda Paes, e nomes internacionais como Joe Zawinul, Turtle Island Quartet, Arturo Sandoval entre muitos outros. Ela dispõe de um acervo de mais de 700 arranjos e músicas quase todos escritos especialmente para ela e conta até esta data com 9 CDs gravados. 2 Entrevista concedida ao autor em 17/05/2004 3 Ao nos referirmos a Cyro Pereira, optamos usar o primeiro nome, Cyro, do que seu sobrenome. Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 147 alguns compositores desta escola. Sua obra tem uma linguagem própria, sempre despretensiosa como uma boa música popular, e com grande refinamento de escrita e orquestração. Esta peça, a Brasiliana n. 2, se mostrou apropriada para uma pesquisa por ter sido pouco tocada,4 divulgada e não estar editada. Ela é uma obra escrita na forma suíte-concerto, em três movimentos (rápido-lento-rápido), para viola e orquestra. Estes movimentos são escritos em formas bem brasileiras, um Samba, uma Valsa Brasileira e um Choro. É uma peça virtuosística, de grande desafio técnico ao solista, pela mestria da instrumentação, e pela originalidade aliada à simplicidade das formas. Sua revisão, com possibilidade de esclarecimento de possíveis dúvidas com o próprio compositor, somando-se sua edição e execução, tem como objetivo preservar, enriquecer, e difundir o repertório musical brasileiro para viola e a obra de Cyro Pereira. Objetivos a) Fazer análise interpretativa verificando sua estrutura formal, sua orquestração, sua harmonia, aspectos idiomáticos, bem como comentários técnicos de execução. b) Editar, revisar, executar com orquestra e reduzir a partitura orquestral para piano para aumentar a possibilidade de execução. Executar a obra em concertos. d) Discutir a questão dos caminhos possíveis de interpretação da obra. Procedimentos técnicos: 1. Edição do manuscrito: A partitura foi digitalizada a partir de cópia do original. Foram extraídas da partitura as partes de cada instrumento, e editadas, tendo sido comparadas com as partes copiadas pelo compositor, anotando-se todas contradições encontradas em uma tabela. Foi discutida com o compositor cada uma dessas anotações e acrescentadas as conclusões a esta tabela. A partitura foi digitalizada em versões de tamanhos A 4 e A3. A partitura e as partes foram revisadas duas vezes, uma delas por um outro músico,5 para corrigir erros de digitação ou do autor. 2 . Redução: Realizamos uma redução para piano do 1º e 3º movimentos. O 2º movimento já existia nesta versão feita pelo próprio Cyro Pereira. O objetivo desta redução é, além servir para estudo e conhecimento da obra, o de tornar possível sua execução com piano em recitais de música de câmera. Esta redução foi mostrada ao compositor, que aprovou o resultado final. 3 . Estudo da Obra para sua execução: Este estudo consiste da leitura e estudo práticos da obra no instrumento, anotando-se todas as dificuldades, desenvolvimento de dedilhado, arcadas, articulações, enfim, tudo o que se refere à execução propriamente dita. Está agendada a apresentação da obra para o compositor, para discussão dos diversos caminhos técnicos e interpretativos. 4 Até onde pudemos apurar, além de Marcelo Jaffé, esta peça foi tocada, até esta data, somente por Newton Carneiro e Alexandre de Leon com a Orquestra Jazz Sinfônica e estes últimos, apenas o 3º movimento. 5 O violista Alexandre de Leon. 148 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Cyro Pereira O compositor e arranjador Cyro Pereira, nasceu na cidade de Rio Grande, RS, em 14/08/1929. Mudou-se para São Paulo em 1950, onde vive e desenvolveu sua extensa carreira. Trabalhou na rádio e televisão Record e posteriormente na TV Tupi. Na TV Record participou como maestro e arranjador dos memoráveis Festivais de Música Popular Brasileira de 1966 a 1969. Foi o criador em 1965, em parceria com Mário Albanese do ritmo Jequibau, ritmo este que alcançou grande sucesso no exterior e foi gravado em 23 países. Ganhou diversos prêmios entre eles o Roquette Pinto em 1957 e 1966, e o Prêmio Carlos Gomes em 1996. A partir de 1989 foi professor da Unicamp de orquestração dentro do curso de graduação em música popular até se aposentar em 1999. No mesmo ano de 1989 participou da criação da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, onde permanece até hoje como Maestro e compositor residente.6 A Suíte Brasiliana n. 2 Cyro Pereira escreveu quatro suítes Brasilianas até esta data. Como ele próprio define em entrevista7, Brasiliana refere-se a uma suíte com danças e ritmos brasileiros. Este nome, Brasiliana, é inspirado na obra de Radamés Gnattali, que usou este termo para inúmeras peças (Barbosa, 1984, p. 73). Ele comenta nesta entrevista que ouvia muito os arranjos de Gnattali no rádio, e que este tipo de música foi que o impulsionou mais tarde a querer aprender a escrever para orquestra. Sua primeira Brasiliana foi escrita para o Concurso de Composição Cidade de São Paulo, em que ganhou menção honrosa e foi estreada em 29 de abril de 1963, com a Orquestra Municipal de São Paulo (Shimabuco, 1998, p. 22, 23). Ela está escrita numa forma um pouco diferente das outras subseqüentes, contando com cinco movimentos tendo o caráter mais usual de suíte. Estes movimentos se enquadravam na forma pedida no concurso, a saber: Dobrado, toada, valsa, choro e baião. Já as outras três Brasilianas são na verdade concertos para instrumento solo, a segunda para viola, a terceira para violoncelo e a quarta para trompete. A segunda consta de três movimentos: Samba, Valsa e Choro. A terceira também conta com três movimentos, Choro, Prelúdio e Frevo, sendo o prelúdio uma adaptação da primeira peça da Pequena suíte para grandes amigos de 1998 para piano solo (Shimabuco, 1998, p. 51). Sua orquestração conta com cordas e bateria. Até o momento permanece inédita. A quarta é para trompete solo e orquestra de sopros, e foi estreada no Festival de Inverno de Campos de Jordão de 2005, por Daniel D’Alcântara no trompete acompanhado pela Orquestra Jazz Sinfônica. Seus movimentos são: Choro, Canção e Frevo. Seu terceiro movimento foi uma adaptação do frevo Ventania para orquestra completa, de autoria do próprio compositor. A Brasiliana n. 2 foi dedicada ao violista Gualberto Estades Basavilbaso8 e estreada em 01/03/94, em São Paulo, com a Orquestra Jazz Sinfônica tendo Marcelo Jaffé9 como solista 6 As informações contidas nesta pequena biografia foram retiradas principalmente da dissertação de mestrado de Luciana Sayuri Shimabuco (1998, p. 11–48), além de outras fornecidas pelo próprio compositor. 7 Entrevista cit. 8 O Prof. Basavilbaso foi professor de viola da Universidade de Campinas. Em sua tese de doutorado, Origens e desenvolvimento técnico da viola, Unicamp, Campinas, 1995, insere três fragmentos facsímiles da Brasiliana n. 2 dentro de uma série de exemplos musicais sobre obras violísticas nas páginas 275 a 277. 9 Marcelo Jaffé é um dos mais atuantes violistas brasileiros. Nascido em 1963 em São Paulo é professor de viola da Universidade de São Paulo, violista do Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo e foi diretor artístico da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo. Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 149 (Shimabuco, 1998, p. 51). Sua orquestração conta com os seguintes instrumentos: Cordas completas, 3 flautas com a terceira revezando com flautim, 2 oboés, 2 clarinetas em si bemol, 2 fagotes, 4 trompas, harpa, bateria e tímpano. A percussão não é usada no segundo movimento enquanto que a harpa somente é utilizada nele. Mesmo sendo uma suíte, a Brasiliana n. 2 é também um concerto na sua forma mais corriqueira: “Uma peça instrumental que mantém contraste entre um conjunto orquestral e um grupo menor ou um instrumento solista, ou entre vários grupos e uma orquestra inteira” (Fuller, in Grove, v.4, p. 626, tradução nossa). Apesar das suítes geralmente serem formadas por mais de três movimentos, esta obra possui apenas três. Este fato não descaracteriza esta forma, mesmo porque, as formas sempre apareceram na história da música de maneira muito variada (Bas, 1947, p. 296). Vale lembrar que os concertos barrocos têm sua origem na forma suíte, contando geralmente com quatro movimentos com caráter de dança.(Zamacois, 1985, p. 206 e 207), passando em época posterior a possuir três movimentos, como por exemplo, os concertos de J.S. Bach para violino solo. 1º movimento: Samba O Samba10 é um gênero que aparece em formas bem variadas. Suas características principais são: compasso 2/4 (às vezes 4/4), melodia sincopada sobre uma batucada característica. Os tipos mais popularizados são: samba canção, samba enredo, samba de breque, samba-choro, entre outros. Geralmente a forma mais usada consta de duas partes podendo ser uma delas um estribilho ou refrão: A letra da música vai mudando numa delas, e na outra, o refrão, ela se repete. Esta forma se parece com um rondó, com a diferença que no rondó uma das partes vai sendo variada, não na letra, porém na música, enquanto que a outra, que é o estribilho, aparece inalterada. Este movimento difere principalmente do que conhecemos por samba por ter sido escrito para viola, instrumento que tradicionalmente não toca este tipo de música. Cyro usou a batida característica do samba na bateria, com partes na viola solista escritas como se a viola fizesse o papel de um cantor (c. 41 a 47, Ex. 1): Ex.1: cc. 41–47. Uso da viola de maneira melódica E em outros de maneira instrumental, idiomática11 (Kubala, 2004, pp. 47–51) e mais virtuosística, como nos compassos 2 e 3, Ex. 2 ou nos compassos 62 a 66 Ex. 3: 10 Fontes consultadas sobre o samba: Andrade, 1965, p. 145; Cascudo, 2000, p. 614 e Enciclopédia da Música Brasileira, 1998, p. 704. 11 O termo idiomático e sua aplicação foram amplamente discutidos na dissertação de mestrado de Ricardo Kubala (vide bibliografia). Adotaremos também este termo, pois ele descreve 150 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Ex. 2: c. 2–3. Uso da viola de maneira especificamente instrumental. Ex. 3: cc. 62–66. Uso da viola de maneira mais virtuosística. Neste movimento o compositor cria temas ambientados na música popular brasileira, principalmente do período da bossa nova. A harmonia usada e o caráter da peça remetem a este período da música popular muito admirado pelo compositor e sobre o qual realizou inúmeros arranjos e fantasias. Um fato que nos chama a atenção é que estes ritmos brasileiros exigem para sua execução um conhecimento prévio da tradição musical ligada a este tipo de música. Segundo Cyro Pereira,12 é quase impossível escrever o que realmente é interpretado num samba ou choro. O baterista que executar esta música deve ter experiência na execução de sambas e choros. Este fato poderá dificultar a execução desta peça no exterior por músicos não brasileiros que não tenham tido contato com a música brasileira. Mesmos músicos da chamada formação erudita, em nosso ponto de vista, teriam de se familiarizar com este tipo de música antes de executar esta peça, sob o risco de tocá-la totalmente fora de contexto, sem a característica “ginga” brasileira. 2º movimento: Valsa O segundo movimento da Brasiliana n. 2 é uma Valsa, e foi inspirada na peça para piano solo, Pois é!!! Nem parece! de 1993. Sobre este nome da peça quando na versão para piano solo, o autor explica que, por ocasião do 65º aniversário de sua esposa, fez uma brincadeira e lhe dedicou essa música.13 Realizou também uma adaptação para piano e viola deste movimento e outra para violoncelo e piano. Esta última está um tom abaixo do original. As duas foram compostas em novembro de 1993. Esta valsa é feita de uma forma bem peculiar, onde às vezes não se sente o compasso, com muito rubato e fermatas, no estilo que Cyro chama de Valsa Brasileira (Ex. 4).14 satisfatoriamente quando uma escrita musical está bem aplicada às particularidades de um determinado instrumento. 12 Entrevista cit. 13 Reunião entre o autor e Cyro Pereira em 28/01/2005. 14 Entrevista cit. Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 151 Cabe aqui um aparte sobre a história dessa forma abrasileirada de valsa. Segundo a Enciclopédia Da Música Brasileira (1998, p. 803), a valsa aqui aportou com a vinda da família real portuguesa, em 1808, e tornou-se popular nos salões. Logo passou a ser um gênero popular influenciando as modinhas, que passaram a ser ternárias. Através dos conjuntos de choro transforma-se em um gênero seresteiro, e Ernesto Nazareth a torna uma de suas principais formas de composição. As valsas foram registradas desde as primeiras gravações realizadas e tiveram seu apogeu na rádio na década de 1930 nas vozes de grandes cantores. Foi também utilizada por diversos compositores brasileiros eruditos. Vejamos o que diz Cazes a respeito: A valsa, dança ternária oriunda da Áustria e da Alemanha, que chegou ao Brasil com a corte portuguesa, desenvolveu aqui características próprias, com andamentos bem lentos, para dar vazão a tanto sentimentalismo e um esquema de modulações similar ao das polcas. Nazareth aprofundou as possibilidades desses gêneros com uma obra volumosa e de qualidade homogênea. (Cazes, 1998, p. 36). Ex. 4: Valsa da Suíte Brasiliana n. 2 152 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Na opinião de Cyro este gênero foi desenvolvido com maestria por Ernesto Nazareth, Francisco Mignone e Radamés Gnattali.15 3º movimento: Choro O terceiro movimento está na forma de choro. Este segundo Cazes teria surgido devido a uma nacionalização de vários gêneros trazidos de colonizadores, principalmente a Polca, e que foram adquirindo caráter nacional. Este processo ocorreu de modo semelhante em vários países, somando-se o sotaque do colonizador e a influência negra, originando assim a música popular urbana que hoje conhecemos (Cazes, 1998, p. 17). De acordo com ele as características do choro seriam: [...]Em resumo: Choro foi primeiro uma maneira de tocar. Na década de 10, passou a ser uma forma musical definida. O Choro como gênero tem normalmente três partes (mais modernamente duas) e se caracteriza por ser necessariamente modulante. Mais recentemente, Choro voltou a significar uma maneira de frasear, aplicável a vários tipos de música brasileira. A obediência à forma rondó (em que sempre se retorna à primeira parte) aos poucos tem sido flexibilizada (Cazes, 1998, p. 21). Este choro possui duas partes, e sua forma geral é A-B-A mais uma coda. Nos choros de Pixinguinha observamos que em geral há 3 partes, como por exemplo, nos choros: Chorando Sempre (As partes estão respectivamente nas tonalidades de Sol, mi e Dó).16 Naquele Tempo (ré, Fá, Ré), Um a Zero (Dó, Sol, Fá) e Vou Vivendo (Fá, ré, Si bemol), porém há exceções com apenas duas partes como Carinhoso, Atencioso, etc.. Já o famoso Brasileirinho de Waldir de Azevedo tem somente duas partes, mas a casa dois da primeira parte pode quase ser considerada uma segunda parte por sua extensa dimensão. A primeira está em Fá maior e a segunda em fá menor na partitura consultada.17 Com o passar do tempo o choro foi sendo composto mais em duas partes como nos choros Noites Cariocas (Sol, Do e coda em Sol) e Nosso Romance (Do lá) entre muitos outros de Jacob do bandolim, ou Choro Negro (sol e Sol) de Paulinho da Viola.18 Colocamos as tonalidades das partes dos choros entre parênteses para demonstrar que as modulações nestes choros, que são uma amostragem expressiva do gênero, são feitas em direção às tonalidades vizinhas como as relativas maiores ou menores, dominantes e subdominantes. Nos choros tradicionais são usados acordes maiores, menores, de sétima de dominante, menores com sétima e diminutos, mas raramente acordes com maiores alterações. Nesta obra Cyro utiliza uma harmonia mais complexa, com acordes de nona, décima primeira, etc., quartas superpostas, e utiliza-se de harmonia jazzística (Ex. 5). Cyro escreve quase que exclusivamente sem armadura de clave em suas obras. Inquirimos o compositor se a obra estaria escrita em uma tonalidade específica sobre o que, ele nos explanou, que apesar de começar numa região tonal e terminar na mesma, ele procurou não se fixar em nenhuma, modulando sempre rapidamente e passando por muitas tonalidades, sendo essa uma característica geral de suas obras desde muitos anos atrás. Esta 15 Entrevista cit. As tonalidades maiores serão descritas com a letra inicial maiúscula e as menores com minúscula 17 TA-389, Rio de Janeiro: Todamérica Música Ltda. 1950. 18 Cyro Pereira fez uma versão deste choro para viola e piano ainda manuscrita e que faremos uma edição futuramente. 16 Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 153 maneira de utilizar a harmonia remete-nos ao conceito de polarização apresentado por Stravinsky em sua Poética musical, na qual ele afirma: Por mais de um século, a música vem nos oferecendo seguidos exemplos de um estilo em que a dissonância alcançou sua emancipação. Ela já não está amarrada à sua função antiga. Tendo se tornado uma entidade auto-suficiente, muitas vezes não prepara nem antecipa alguma coisa (Stravinsky, 1995, p. 40). E mais à frente: Tendo atingido esse ponto, torna-se indispensável obedecer não a novos ídolos, mas a eterna necessidade de afirmar o eixo de nossa musica, e reconhecer a existência de alguns pólos de atração. A tonalidade diatônica é apenas um dos meios de orientar a música na direção a esses pólos. [...] De modo que nossa principal preocupação é menos o que se chama de tonalidade do que o que poderíamos chamar de atração polarizada do som, de um intervalo ou mesmo de complexo de notas. [...] (Stravinsky, 1995, p. 41). Este uso da tonalidade foi abordado Antenor Ferreira Corrêa em seu artigo Poliônimo, para os anais da 15ª ANPPOM de 2005, ainda a ser publicado, que é chamado de tonalidade flutuante, e aproxima-se muito da maneira de compor de Cyro: Processo composicional que não se atém a um único pólo atrativo, mas “flutua” ao redor de várias tônicas sem se direcionar efetivamente para um centro exclusivo. Com isto, uma vagueza harmônica é impingida ao discurso musical. Pode haver o uso de harmonia triádica, embora sem sugerir subordinações a nenhuma tônica em especial. Guarda semelhança com as sucessões de acordes empregadas nas seções de transição, sem que, como estas, atinjam objetivos harmônicos específicos. É um estado estrutural no qual várias tônicas exercem simultaneamente seu poder de atração, sem que uma destas torne-se o pólo conclusivo.[...] (Corrêa, 2005, p. 6). Estas questões sobre a estrutura harmônica e aspectos formais serão analisados na dissertação, sempre do ponto de vista interpretativo, ou seja, sempre que forem relevantes para a interpretação da peça. Conclusão Quando nos defrontamos com a obra de Cyro Pereira, deparamo-nos com várias questões que serão aprofundadas no decorrer de nosso trabalho de dissertação: Em que contexto se insere esta obra e a qual tradição se vincularia? Mesmo Cyro considerando-se um músico popular, este fato implicaria que seu método composicional seja o de um músico popular? Estes termos, música popular e erudita, se não os definirmos claramente, podem não explicar certo tipos de obras que se situariam na “fronteira”. Henrique Pedrosa, no seu livro Música Popular Brasileira Estilizada, discute extensamente o que ele chama de música estilizada, que seria aquela música popular que tem uma elaboração muito próxima da música de concerto, a que chamamos de erudita ou mais popularmente de clássica. Entre exemplos que são citados na obra, temos Joaquim Antônio Calado, Ernesto Nazaré, Baden Powel, Egberto Gismonti e poderíamos acrescentar inúmeros outros, em que o termo jazz ou música popular não seriam completos para definir o tipo de obra que fazem. Pensamos que Cyro Pereira pertenceria a esta classe de músicos que não estão nem bem em um estilo nem no outro. Esta questão está diretamente ligada aos caminhos a serem tomados na interpretação da obra. 154 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Ex. 5 Choro, cc. 1–28, redução para piano e viola. Outra questão a ser levantada é quanto à edição da partitura, como por exemplo, quais informações de performance, tanto técnicas quanto estilísticas deveriam ser acrescentadas à partitura, ou melhor, qual o grau de interferência do revisor é possível sem alterar as intenções do compositor. Referências bibliográficas ANDRADE, Mário. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo: Martins, 1965. BAS, Julio. Tratado de la forma musical. Traducción. Nicolás Lamuraglia. Buenos Ayres: Ricordi, 1947. BARBOSA, Valdinha. DEVOS, Anne Marie. Radamés Gnattali: O eterno experimentador. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1984. CASCUDO, Luís da Câmara, Dicionário do folclore brasileiro -9. Ed. revista, atualizada e ilustrada São Paulo; Global, 2000. Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 155 CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao municipal São Paulo: ed. 34, 1998 1ªedição. CORREA, Antenor Ferreira. “Poliônimos”. In Anais da 15ª ANPPOM, 2005. DINIZ, André. Almanaque do Choro: a história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. Enciclopédia da Música Brasileira: Popular, Erudita e Folclórica. Reimpr. Da 2. Ed. - São Paulo; Art Editora: Publifolha, 1998. FULLER, David. in SADIE, Stanley (Ed.). The new Grove Dictionary of Music and Musicians. London: Macmillan, 1980. GRIER, James. The Critical Editing of Music: History, method, and practice. Cambridge: University Press, 1996. KUBALA, Ricardo Lobo. “A escrita para viola nas sonatas com piano Op.11 n. 4 e Op. 25 n. 4 de Paul Hindemith: aspectos idiomáticos, estilísticos e interpretativos”. Dissertação (Mestrado em Música)-Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, 2004. PEDROSA, Henrique. Música Popular Brasileira Estilizada .Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula, 1988. SHIMABUCO, Luciana S. “Dá licença, maestro!: A trajetória musical de Cyro Pereira”. Dissertação (Mestrado em Música)- Instituto de Artes, UNICAMP. Campinas, 1998. STRAVINSKY, Igor. Poética Musical em 6 lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. ZAMACOIS, Joaquín Curso de Formas Musicales 6.ed. Barcelona : Editorial Labor, 1985. Renato Kutner: natural de São Paulo, é bacharel em viola e licenciado em Educação Artística pela USP. É mestrando desde 2004 em práticas interpretativas na Unicamp sob orientação do Prof. Dr. Emerson de Biaggi. Estudou com Perez Dworecki, Elisa Fukuda, Paulo Bosísio, Alejandro de León e Alberto Jaffé. Em 1984 foi para Israel, onde permaneceu cinco anos, estudando com Yuval Kaminkowisky, na Jerusalem Rubin Academy of Music and Dance e participou da Rishon Le Zion Symphony Orchestra. É membro da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, desde sua fundação em 1990, e da Orquestra Sinfônica Municipal de Santos. Desenvolve intenso trabalho didático, tendo lecionado no Conservatório do Brooklin-SP, Conservatório Estadual de Pouso Alegre-MG, no Projeto Guri-SP, Festival de Música Internacional de Campos-RJ (2001) , Universidade Livre de Música Tom Jobim-SP de 1993 a 2003, entre outros. Emerson De Biaggi: Formou-se em violino com Lola Benda e viola sob orientação de Johannes Oelsner. Bacharel em Música pela USP, foi aluno de Perez Dworecki, Horácio Shaeffer e Marcelo Jaffé. É mestre pela Boston University sob orientação de Rafael Hillyer e Steven Ansell e doutor pela Universidade da Califórnia sob orientação de Heiichiro Ohyama, Donald MacInnes e Ronald Copes. Integrou a Boston Philharmonic, a Vermont Symphony Orchestra e a Boston Modern Music orchestra, e regressou ao Brasil em 1997 para integrar a Orquestra Sinfônica Estadual de São Paulo. Foi professor de viola e música de câmara no Depto. de Música da Unesp de 1997 a 2004 e leciona desde 1998, no Instituto de Artes da Unicamp. Integra o duo de viola e cravo Sebastian, o trio de cordas Camaleon e o quinteto de cordas Quintal. Como solista, tem se apresentado em diversas orquestras entre as quais a de Câmara São Paulo, de Câmera do Teatro São Pedro de Porto Alegre, de Câmera de Jundiaí, Sinfônica da Unicamp, Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo, Experimental de Repertório, de Câmara de Curitiba, Sinfônica de Santo André e Sinfônica Municipal de Santos. 156 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 ANEXOS: Páginas de face de cada movimento da Brasiliana n. 2 Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2 157 158 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 O limiar da Pós-Modernidade na obra de Gilberto Mendes Rita de Cássia Domingues dos Santos (USP) Resumo: Este estudo foi realizado para contextualizar a revisão musicológica e edição de partitura da “Abertura da Ópera Issa”, de Gilberto Mendes, de 1995. Os questionamentos que surgiram com esta pesquisa de mestrado foram: como a pósmodernidade se manifesta, em linhas gerais, nas sociedades pós-industriais, como se configura o pós-modernismo na história da música do século XX e, finalmente, como a pós-modernidade se apresenta em algumas obras de Gilberto Mendes. Palavraschave: pós-modernidade, Gilberto Mendes, história, modernismo, filosofia. Introdução Percebe-se que a pós-modernidade não se vincula propriamente a uma circunscrição geográfica e nem tampouco a um período histórico, pelo menos não se o intuito for delimitá-la de uma forma geral. A respeito do tempo da pós-modernidade, Nicolau Sevcenko se manifesta: Pós-moderno, como está evidente, é um conceito que supõe uma reflexão sobre o tempo, antes de mais nada. Segue-se a pergunta inevitável, a que tempo se refere então? Não a um tempo homogêneo, linear, em que se pudesse estabelecer um recorte e fixar uma data decisiva, um ato inaugural, como se poderia esperar da visão simplista da história na qual somos zelosamente educados. (Sevcenko, 1988, p. 45) Ela parece atender melhor a uma classificação por especificidade de assuntos, segundo Fernando Iazzetta: “A definição do pós-modernismo ainda é um assunto em discussão, e sua delimitação temporal depende do âmbito do qual se está tratando.” (In: Guinsburg, J. e Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 228) Não há ainda um acordo sobre a pós-modernidade, seja quanto aos seus atributos, seja quanto à sua própria existência, ou não. João Adolfo Hansen corrobora nossa opinião, afirmando: “O objeto implicado nas discussões do ‘pós-moderno’ é, assim, o ‘moderno’, falado a partir de vários posicionamentos, e sobre o qual não há nenhum consenso.” (In: Chalhub, Samira, 1994, p. 38) Ao tratarmos o assunto “pós-modernismo”, invariavelmente recorreremos também ao modernismo, pois é pela comparação, no mais das vezes não simétrica, entre ambos, que se estabelece o que é próprio de um ou de outro. Jair Ferreira dos Santos esclarece bem este aspecto: Mas se a pós-modernidade significa mudanças com relação à modernidade, o fato é que não se pode dispensar o aço, a fábrica, o automóvel, a arquitetura funcional, a luz elétrica – conquistas associadas ao modernismo. Assim, no fundo, o pós-modernismo é um fantasma que passeia por castelos modernos. (Santos, J. F., 2004, p. 18) Conclui-se daí que a pós-modernidade, antes de ser algo com existência histórica demarcada ou circunscrita geograficamente, é algo mais apropriadamente estudado no âmbito filosófico, sendo bem identificada no modus vivendi, no comportamento e nas artes. Quanto à terminologia “pós-moderno”, Ricardo Timm de Souza afirma que: Federico de Onís (...) utilizou este termo, pela primeira vez, opondo-o ao movimento ultramodernista (...) pela antologia dedicada ao poeta Antonio Machado e publicada em 1934, organizada por Onís segundo esse esquema de oposição – em que o postmodernismo representaria um “reflexo conservador” no modernismo, um retorno a um intimismo reativo ao ultramodernismo e seu vigor universal –, e que contava com colaboradores tão ilustres como o 160 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 próprio Lorca, Pablo Neruda, Jorge Luís Borges e Vallejo. (In: Guinsburg, J. e Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 88) Esta conotação foi bastante restrita a um determinado aspecto, não apresentando um caráter universalista. No entanto, Souza prossegue: “Vinte anos depois, o termo é novamente empregado, desta vez como categoria de interpretação histórica, por Arnold Toynbee, no oitavo volume de seu A Study of History – desta vez localizando o surgimento da pósmodernidade nas origens do século XX.”(In: Guinsburg, J. e Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 88). Porém, só adquire a conotação com que hoje é mais usualmente empregado, segundo Fernando Magalhães: (...) seu status decisivo dá-se em 1979 com o lançamento do primeiro trabalho em filosofia a fazer uso da concepção de pós-modernidade. É nesse ano que Lyotard publica, em Paris, seu famoso livro La Condition Postmoderne. Lyotard, contudo, aborda o problema no âmbito da superestrutura e refere-se à posição do saber nas sociedades industrialmente desenvolvidas. (Magalhães, 2004, p. 62) Antes de avançarmos, parece-nos apropriado estabelecer uma padronização quanto à terminologia usada neste trabalho para designar a pós-modernidade, ou o pós-modernismo. Com este fito, novamente nos servimos da afirmação de Magalhães: Não obstante se reconheça uma diferença conceitual entre pós-modernismo e pós-modernidade – a primeira refletindo na cultura as mudanças operadas no meio político –, qualquer um dos dois termos pode ser utilizado de forma abrangente, em virtude da estreita relação entre eles. ( Magalhães, 2004, p. 63) Isto posto, cremos imprescindível um breve apanhado histórico para situarmos tanto a modernidade como a pós-modernidade no âmbito desta pesquisa. Para tanto, nos apoiamos em Teixeira Coelho: O “projeto da modernidade” é lançado no século XVIII e firma-se ao longo do XIX – marcado, neste, por processos como o da Revolução Industrial, de um novo pensamento sobre o social (como o de Karl Marx) e o dos passos iniciais da psicanálise, para ficar nos mais evidentes. “Nossa” modernidade, porém, parece cristalizar-se e assumir contornos mais bem trabalhados nos primeiros anos deste século XX. (Coelho, 1995, p. 25) O século XX pode ser alcunhado de “o século do conflito”, pois nele se sucederam duas guerras com menos de trinta anos de intervalo, para citar apenas aquelas que assumiram proporções mundiais. Também não se pode olvidar que, após a última grande conflagração, finda em 1945, estabeleceu-se a chamada “Guerra Fria”, cujo eixo era a disputa pela hegemonia global entre as duas superpotências da época, Estados Unidos e União Soviética. Sobre este século conflituoso, Anthony Giddens afirma: Não apenas a ameaça de confronto nuclear, mas a realidade do conflito militar, formam uma parte básica do “lado sombrio” da modernidade no século atual. O século XX é o século da guerra, com um número de conflitos militares sérios envolvendo perdas substanciais de vidas, consideravelmente mais alto do que qualquer um dos séculos precedentes. (Giddens, 1991, p. 19) E é neste contexto que a modernidade se firma no cenário mundial, sob a égide do avanço tecnológico, da produção industrial, inovações em todos os setores, a ciência como esteio, O limiar da Pós-Modernidade 161 com a força do átomo, com o receio da fissão de seu núcleo para fins militares e com a convivência, no mais das vezes não-pacífica, entre várias culturas, cada qual em seu momento histórico. Sobre a modernidade deste período, Jameson elucida: (...) o modernismo deve ser visto como correspondendo de forma singular a um momento desigual do desenvolvimento social (...) a coexistência de realidades de momentos radicalmente diferentes da história – o artesanato ao lado dos grandes cartéis, as plantações de camponeses com as fábricas da Krupp ou da Ford à distância. (Jameson, 1997, p. 312) Este cenário de coexistência proporcionou uma grande circulação de idéias e de mercadorias, dando origem a uma maior mobilidade social, que predispôs as condições para a identificação da novidade como valor máximo do modernismo. Foi a secularização da era moderna com fé irrestrita no progresso e na história. Perante esta visão, importa reconhecer o pós-moderno não apenas como novidade em relação ao moderno, mas também, e principalmente, como dissolução desta mesma categorização do novo, exemplificada como uma experiência de ‘fim da história’, mais do que como uma mera apresentação de uma etapa diferente, seja mais evoluída ou mais retrógrada, da própria história. Com propriedade, Gianni Vattimo expõe seu pensamento: O pós de pós-moderno indica, com efeito, uma despedida da modernidade, que, na medida em que quer fugir das suas lógicas de desenvolvimento, ou seja, sobretudo da idéia da ‘superação’ crítica em direção a uma nova fundação, busca precisamente o que Nietzsche e Heidegger procuraram em sua peculiar relação ‘crítica’ com o pensamento ocidental. (Vattimo, 2002, p. VII) Nesta referência à procura nietzschiana e heideggeriana, podemos depreender que, para eles, a modernidade está vinculada à idéia da história do pensamento como uma iluminação gradual, de caráter linear e evolucionista, uma apropriação gradativa das bases racionais do conhecimento, exprimida pela noção de superação, qual seja, o surgimento de novos entendimentos que selecionam o que tem valor do que não tem, no que diz respeito à acumulação do conhecimento. E o que eles buscavam era justamente o distanciamento desta noção de superação crítica, superação esta tão cara ao Iluminismo. A modernidade revela também, como característica, o desejo do consenso universal, o discurso das argumentações, a “necessidade” de uma metanarrativa como uma finalidade entre os vários discursos existentes. E é justamente o desencanto com as grandes narrativas, com os metarrelatos de estrutura totalizante, que começa a delinear na face das sociedades os traços da pós-modernidade. A este propósito, Jean-François Lyotard se pronuncia: (...) não parece possível, nem mesmo prudente, orientar, como faz Habermas, a elaboração do problema da legitimação no sentido da busca de um consenso universal em meio ao que ele chama o Diskurs, isto é, o diálogo das argumentações (...) Compreende-se bem qual é a função deste recurso na argumentação de Habermas contra Luhmann. O Diskurs é o último obstáculo oposto à teoria do sistema estável. A causa é boa, mas os argumentos não o são. O consenso tornou-se um valor ultrapassado, e suspeito. A justiça, porém, não o é. É preciso então chegar a uma idéia e a uma prática da justiça que não seja relacionada à do consenso. (Lyotard, 1986, pp. 118–119) 162 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Na época moderna, a inovação era o valor fundamental, ao qual todos os demais valores eram referenciados. A necessidade de enumerar e categorizar foi significativa nesta época, a tudo estabelecendo um paralelo em termos de juízo, ou seja, criando juízos de valor, apoiados na ânsia do progresso e no ímpeto da ruptura, pilares destes tempos modernos. Como já vimos, Nietzsche sintetizou de forma lúcida que a modernidade era a época da superação. Ora surgem sinais de fadiga, compondo este sintoma um sinal próprio da pósmodernidade, embora paradoxalmente, seja justamente o desejo da ruptura com tudo o que as sociedades viveram nestes últimos séculos que anuncie este surgimento de um novo estado de coisas. Sérgio Paulo Rouanet, citado por Raymundo de Lima em seu artigo “Para entender o pós-modernismo”, descreve muito bem este paradoxo: Depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Aushwitz [sic], depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação atômica, pela ressurreição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da modernidade. Todos esses males são atribuídos ao mundo moderno. Essa atitude de rejeição se traduz na convicção de que estamos transitando para um novo paradigma. O desejo de ruptura leva à convicção de que essa ruptura já ocorreu ou está em vias de ocorrer (...). O pós-moderno é muito mais a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam. À consciência pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples mal-estar da modernidade. É literalmente falsa consciência, porque consciência de uma ruptura que não houve, ao mesmo tempo, é também consciência verdadeira, porque alude, de algum modo, às deformações da modernidade (Lima, 2005) Por este prisma, o niilismo preconizado por Nietzsche e o ultrapassamento da metafísica ambicionado por Heidegger estão, ambos, se concretizando, profeticamente, na sociedade atual, tendo em vista que o niilismo dirige-se para a mobilidade do simbólico e para a maneira como vivemos, individualmente e coletivamente, na sociedade pós-moderna. Nela, o sentido da história não tem a peremptoriedade metafísica e teológica que havia na moderna, o que confirma Heidegger, que discursa sobre a necessidade de “abandonar o ser como fundamento”, para “saltar” em seu “abismo”. Eugênio Rondini Trivinho indaga para depois explicar, nas suas palavras: O que é viver hoje?... Hoje, em vista das reciclagens contínuas e da aceleração dos processos, é possível viver centenas de anos em um ano, três ou quatro gerações em uma década. Doravante, a vida precisa ser vista não mais como duração (extensão), mas como espiral de imersões no instante, como absorção em seqüências condensadas em momentos perenes, como magma invisível de várias eras. (Trivinho, 1992, pp. 72–73) A crítica ao humanismo, e o niilismo consumado, nos remetem para uma experiência “fabulizada” da realidade, levando hoje à indefinição do que é aparência e realidade, indicando uma nova possibilidade para a experiência humana, como observamos na declaração de Ariza: (...) trata-se de uma tendência à estetização da vida cotidiana, propiciada a partir da art pop, do dadaísmo, e do surrealismo, através de suas propostas de integração da arte e da vida, como também o surgimento de uma cultura do O limiar da Pós-Modernidade 163 consumo impulsionada pela reprodução constante, levando à indefinição do que é aparência e realidade... A proximidade das obras de arte dos produtos comerciais foi ficando mais estreita na medida em que as artes estavam mais perto do grande público e no caso de que a produção de mercadorias de luxo eram substituídas pelas produzidas em massa, que procuravam cada vez mais, os recursos estéticos da arte para seduzir os consumidores, satisfazê-los e identificá-los com diversos produtos. (Ariza, 1999, p. 32) Na pós-modernidade, época da consagração dos meios de comunicação em massa e das “redes” (Internet, por exemplo), o ceticismo diante de uma verdade dita como “única” (metarrelato) abre as portas para uma nova visão que busca a possível harmonização dentro da multiplicidade inevitável, fazendo ressaltar algumas das qualidades pós-modernas tais como o inclusivismo, a citação ao passado, o ecletismo, dentre outras tantas que podemos verificar na cultura e na arte pós-modernas. Neste âmbito da multiplicidade, estabelecendo um pequena análise da política cultural da pós-modernidade, podemos nos apoiar nas palavras de Steven Connor: “A análise e a política culturais pós-modernas por certo marcam um estágio importante e, com efeito, provavelmente epocal, no desenvolvimento da consciência ética, no reconhecimento da irredutível diversidade de vozes e interesses.” (Connor, 2000, p. 198) Uma questão que surge naturalmente é quanto à propriedade de se falar de pósmodernidade no Brasil, uma vez que nosso país está em (eterno) desenvolvimento econômico-industrial. Sobre a possibilidade da pós-modernidade numa sociedade como a brasileira, Fernando Iazzetta traduz suas reflexões desta maneira: Configurando-se enquanto movimento da sociedade pós-industrial, é natural que o pós-modernismo apresente características muito mais salientes nos países economicamente mais desenvolvidos. Portanto, é um movimento tipicamente norte-americano e da Europa ocidental. Certamente, na sociedade globalizada em que vivemos, os efeitos desse contexto se fazem sentir, nos países menos desenvolvidos, porém de forma mais diluída e menos sintomática. (In: Guinsburg. J. e Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 229) Com esta introdução delineamos alguns aspectos da pós-modernidade para contextualizarmos as transições que a música erudita sofreu no século XX e como estas atingiram o processo composicional de Gilberto Mendes no período compreendido de 1982 a 1995. Justificativa Gilberto Mendes é um dos mais profícuos compositores do Brasil. Nasceu em Santos em 13 de outubro de 1922, sendo que seus mestres foram Cláudio Santoro e Olivier Toni. Criador de uma extensa obra, abarcando repertório para instrumentos solistas, voz e piano, música de câmara, peças corais e orquestrais, não optou pela insistência em uma única poética, mas, sim, preferiu a riqueza da diversidade. Instituiu o Festival Música Nova, em 1962, e é um dos seus responsáveis até hoje. De espírito inquieto e questionador, foi um dos pioneiros, no Brasil, da música aleatória, concreta e visual e, em 1963, foi co-autor do manifesto Música Nova. Sua peça coral de 1966, Moteto em Ré menor (Beba Coca-cola), alcançou popularidade internacional, sendo 164 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 apresentada em todos os continentes. Sua obra Blirium A-9 foi selecionada, em 1970, pela Tribuna Internacional de Compositores - UNESCO, para difusão nas rádios da Europa. Em 1971 ganhou o prêmio da APCA pela melhor obra experimental, com Santos Football Music. Como professor convidado deu aulas de composição na Universidade de Milwaukee (E.U.A), em 1978 e 1979. É autor do livro Uma Odisséia Musical (EDUSP) e suas obras vem sendo executadas nas principais cidades do país e em vários eventos internacionais, como Festival Internacional de Músicas Experimentais em Bourges (França); Sonidos de las Américas no Carnegie Hall, em Nova York (E.U.A.); Festival de Música Brasileira em Bonn (Alemanha); Inter-American Music Festival em Washington (E.U.A) e Festival de Música de Vanguarda da Fundação Gulbenkian Lisboa (Portugal), entre outros. (Duprat, Enciclopédia da Música Brasileira, pp.179–180) Gilberto Mendes sempre transitou com desenvoltura entre os mais diversos sistemas musicais, sendo ímpar sua propriedade de fundir linguagens diferentes, imprimindo nessa fusão sua marca pessoal, podendo ser considerado um autêntico representante do pósmodernismo no Brasil. Desta forma, pela contemporaneidade, relevância e originalidade do assunto em questão, justifica-se esta pesquisa sobre como alguns aspectos do pós-moderno influenciaram o processo criativo deste compositor. A Vanguarda e o Pós-Moderno O conceito de vanguarda é de origem militar e remonta à época de Napoleão Bonaparte, quando também surgiu o conceito de ideologia. De acordo com Bauman: Avant-garde significa, literalmente, vanguarda, posto avançado, ponta-delança da primeira fileira de um exército em movimento: um deslocamento que se move na frente do corpo mais importante das forças armadas – mas permanece adiante apenas com o fim de preparar o terreno para o resto do exército. (...) A vanguarda dá à distância que a separa do grosso da tropa uma dimensão temporal: o que está sendo feito presentemente por uma pequena unidade avançada será repetido mais tarde, por todas. (...) Num mundo em que se pode falar de a v a n t - g a r d e, “para frente” e “para trás” têm, simultaneamente, dimensões espaciais e temporais. (Bauman, 1998, p. 121) Ao largo do século XIX o conceito de vanguarda se estendeu a outros campos, principalmente para a política e a arte, que lhe deram um significado metafórico. Na política, entendia-se por vanguarda aquele setor de um grupo social, ou político, cujas idéias ou ações eram mais radicais, como, por exemplo, os socialistas utópicos da França e, posteriormente, a minoria que liderava a revolução social marxista. De acordo com Vattimo, as vanguardas atuavam por meio da “supressão dos limites do estético, em direção a um alcance metafísico ou histórico-político da obra.”(Vattimo, 2002, p.43) No final do século XIX ocorreu um rompimento entre a vanguarda política e a artística. Procedendo a uma análise das expressões da modernidade no âmbito musical, verificamos que os “ismos” modernistas do século XX assumiram para si o conceito de vanguarda. Por conseguinte, observamos três fases distintas na construção da modernidade musical: a O limiar da Pós-Modernidade 165 primeira, compreendida entre as duas grandes guerras; a segunda, entre 1945 e 1960, com a formação de dois núcleos composicionais (vanguarda e experimentação); e a terceira fase da modernidade musical, com o ápice das vanguardas na década de sessenta, exprimindo a busca constante do “novo”, o que levou ao seu exaurimento como linguagem musical. O modernismo musical chegou esmaecido ao nosso país. Desde o século XIX, o questionamento sobre a criação de uma música livre dos esquemas impostos pela Europa foi preponderante no Brasil. Diante disto, esta primeira fase modernista brasileira apresentou uma nostalgia das tradições derivadas dos movimentos artísticos nacionalistas. A produção musical brasileira da Semana de 22 parecia desatualizada em relação às novas conquistas modernistas como o dodecafonismo, exceção feita às obras de Villa-Lobos, nas quais encontravam-se superposições politonais, atonalismo, polirritmias e experiências com novas combinações instrumentais. De uma forma geral, as três fases nas quais podemos dividir o modernismo musical brasileiro são: a primeira, de 1922 a meados dos anos de 1945, quando se firmou a poética nacionalista; a segunda inicia-se em 1946, quando da declaração do Manifesto Música Viva, estendendo-se até a década de 1960; a terceira surge também com um manifesto, Música Nova (1963), quando a influência de Darmstadt se fêz presente aqui no Brasil. Enquanto Villa-Lobos estava na Europa compondo os Choros, Mário de Andrade assumiu o lugar de pensador e crítico da música brasileira, tendo como fiel discípulo Camargo Guarnieri. Este compositor, a partir das diretrizes de seu mentor, constituiu escola, trabalhando com a linguagem neoclássica de Hindemith, tendo com âncora a busca do caráter musical brasileiro. Após a Segunda Guerra Mundial, ocorreu, na Europa e nos Estados Unidos, a formação de dois núcleos composicionais, quais sejam, respectivamente: o serialismo integral, derivado da Segunda Escola de Viena; e o uso da indeterminação, iniciado com John Cage (1912–1992). Nas palavras de Griffiths: “Somente um compositor norte-americano poderia ter empreendido uma revisão tão radical do sentido da música, estabelecendo a ‘não intenção’ zen no lugar da realização de um produto da vontade individual, finalidade da arte européia desde o Renascimento.”(Griffiths, 1987, p. 120) Desta forma, o compositor assume um papel completamente diferente daquele da tradição musical romântica, começando a quebra das categorias de superação e originalidade, que veremos consolidada na pós-modernidade. Referindo-nos novamente ao Brasil, pela primeira vez tentou-se aqui desenvolver a aplicação sistemática do dodecafonismo, pela iniciativa de Hans Joachim Koellreutter (1915–2005). Compositores que estudavam com ele como Cláudio Santoro (1919–1989), Edino Krieger (1928–), Eunice Catunda (1915–1990) e Guerra-Peixe (1914–1993) lançaram o Manifesto Música Viva no Rio de Janeiro, em primeiro de novembro de 1946. Ao se aproximar a década de sessenta, vários compositores em toda a Europa procuraram novas soluções composicionais: Olivier Messiaen (1908–1992) elaborou uma arquitetura sonora estática, concebida após incursões pelo canto gregoriano e pelas rítmicas grega e hindu; György Ligeti (1923–) construiu densas texturas sonoras em obras como Atmospheres (1961–); o realismo socialista manifestou-se na música dos poloneses como Krysztof Penderecki (1933–) e Witold Lutoslawiski (1913–1994). Segundo Gubernikoff, “A música ocidental se acreditava universal e histórica e baseava sua produção nessas 166 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 premissas. As músicas do século XX, com a multiplicação das tendências e o reconhecimento das músicas de outras culturas, mostraram como pode haver inúmeras possibilidades de se produzir música”. (Gubernikoff, 1992, p. 14) Em 7 de novembro de 1950 Guarnieri, influenciado pelo Manifesto Jdanov, escreveu a Carta Aberta aos Críticos e Músicos do Brasil, gerando a última fase modernista na música erudita brasileira, quando os integrantes do Grupo Música Nova, inspirados pela escola de Darmstadt, buscaram romper com a escola de Guarnieri. Conforme Teixeira Coelho em seu livro Moderno Pós Moderno, a música das décadas de 60 e 70 recebeu o rótulo de “revolução permanente”, por ter usado variadas linguagens e processos, na ânsia do novo, característica da modernidade, inclusive com o surgimento de novas notações musicais. Quanto a esta “revolução”, Buckinx comenta a problemática da originalidade: Principalmente após o Romantismo a psicose da originalidade virou uma praga (...) A originalidade era a contribuição do indivíduo e a isto se resignou a sociedade burguesa e principalmente o mercado burguês (...) Logo após, com a dodecafonia, achou-se que todo mundo deveria construir seu “próprio” sistema de tons, tudo assim muito rápido, e em 1954 (...) foi quando as pessoas acharam que todo mundo deveria fabricar seu próprio material (...) Cada obra deveria dar um passo adiante. Assim se era sempre original, mesmo em relação a si próprio. Ao final cada obra tornou-se um conceito próprio. (Buckinx, 1998, pp. 52–53) Ainda sobre esta “psicose” aventada por Buckinx, depreendemos que foi justamente ela que proporcionou um dos motivos para o esgotamento dos procedimentos de vanguarda. Sobre a busca do novo e sua relação com o que designa como “pós-moderno”, o compositor Ricardo Tacuchian declara: (...) No pós-moderno todo artista procura o novo porque o artista é, por natureza, um criador, não um repetidor. Mas essa aflição de, a cada segundo, a cada milímetro eu ter um signo novo, isso deixa de existir como existia na Vanguarda – esse é o primeiro conceito para o pós-moderno. O outro, um corolário deste, é que eu não rompi com a tradição. Eu parti da tradição e estou avançando com novas idéias, com novas proposições. Então, isso é o que caracteriza o que eu chamo de pós-moderno. (Tacuchian, 1999, pp. 20–27) Na música, a multiplicidade de vozes tornou-se presente nos compositores alcunhados pósmodernos. Nas composições de Sofia Gubaidulina (1931–), desde os anos sessenta, coexistem diversas tradições, sendo uma precursora do pós-modernismo. Alguns compositores fizeram o retorno ao tonalismo como, por exemplo, Alfred Schnittke (1934–1998). Por vezes, suas composições ganham ares neo clássicos; outras tantas, usa amplamente a poliestilística. Na década de setenta começou a se estabelecer uma nova estética na música, confluente de várias poéticas como a música politicamente engajada, a nova simplicidade (derivada do neo-romântico), o minimalismo, a nova consonância, o new age e o modernismo moderado. (...) começa, ainda que de forma não muito consciente, em 1973, atinge em 1980 um momento de ruptura e por volta de 1985 um primeiro ponto O limiar da Pós-Modernidade 167 culminante. Ao redor de 1990 se dá um movimento de restauração modernista e hoje aceita-se em geral o pomo, o pomo mais antigo chega ao fim e inicia-se uma segunda fase na qual todos estão ou deveriam estar conscientes desta estética. (Buckinx, 1998, p. 23) Em linhas gerais esta nova tendência, denominada pós-moderna (pomo), caracteriza-se pela tolerância, inclusivismo e pluralidade, tornando-se acessível ao público. Apresenta continuidade da tradição, é poliestilística, convive respeitosamente com as contradições e pode ser cosmopolita ou local. Na pós-modernidade todos os sistemas harmônicos são possíveis (práticas que remontam a qualquer época), inclusive as mais variadas e incomuns formas de fusão entre eles. Compositores que apresentam algumas destas características são: Cláudio Santoro (1919–1989), Gilberto Mendes (1922–), Edino Krieger (1928–), Henryk Mikolai Gorecki (1933–), Arvo Part (1935–), Willy Corrêa (1938–), Marlos Nobre (1939–), Ricardo Tacuchian (1939–), Almeida Prado (1943–), John Adams (1947–), Ronaldo Miranda (1948–) Wolfgang Rihm (1952–), Rubens Ricciardi (1964–), dentre outros. Sobre os brasileiros, Salles observa que estes compositores não pretenderam criar uma escola e que superaram a “polaridade entre nacional e universal que marcou a trajetória da música brasileira até a década de 1960”. (Salles, 2005, pp.186–187) Quer seja no Brasil, quer seja em outros países, na concepção pós-moderna os recursos eletroacústicos e concretos podem ser utilizados como técnicas em meio a uma problemática maior da linguagem musical. A crítica à indústria cultural permanece, porém, há a inclusão de material do universo popular ou de entretenimento nas composições. Desta forma, ocorre a diluição do antagonismo das categorias “original” versus “conservador” e a questão da originalidade tem seu valor minorado. O sentido da música já não é trabalhar com esta novidade ou revolucionar aquela outra, mas sim deslocar o eixo de abordagem da teoria para o de vivência da audição. A partir dos anos 80 a maioria dos compositores brasileiros abandonaram as propostas consideradas radicais. Grande parte deles está em uma fase eclética, onde há uma suspensão de conflitos estilísticos e a adoção de um espécie de sincretismo de vertentes composicionais que pareciam irreconciliáveis. De acordo com João Marcos Coelho, Hoje as palavras de ordem são: ‘síntese’ (Edino Krieger), ‘mistura de tudo’ (Marlos Nobre), ‘fusão’ (Ronaldo Miranda), ‘estética da multiplicidade’ (Almeida Prado), ‘releitura menos policiada por escolas’ (Jocy de Oliveira), ‘química de linguagens múltiplas’ (Gilberto Mendes). Eles falam de ‘neotonalidade’ e em ‘transitar entre o pop e o erudito’ sem o menor sinal de lhes subir rubor às faces... Está decretado, portanto, o fim das patrulhas ideológicas da vanguarda dos anos 60 (...) Esta estética da multiplicidade onde tudo cabe e atende também pelo nome de pós-modernismo também entra na balança das importações (...) E todos, sem exceção, atravessaram suas fases vanguardistas, herméticas, e hoje degustam as delícias de poder usar sem culpa um acorde perfeito (...). (Coelho, abr. 2005, p. D9) Os problemas da pós-modernidade musical são o perigo do ecletismo gratuito e as interfaces com o kitsch. Safatle comenta o retorno ao tonalismo da seguinte forma: (...) O que não significa que o caminho aberto pelo novo tonalismo não seja rico em perspectivas, da mesma forma que ele é rico em impasses. Saber assumir riscos é uma virtude maior e, por incrível que pareça, talvez o maior 168 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 risco que um compositor pode correr hoje apareça no momento em que ele procura retornar a estruturas tonais sem aceitar as facilidades das estratégias de colagem pós-modernas. (Safatle, 2005) As citações podem se configurar como as partes mais interessantes de uma obra se o compositor não desenvolve uma linguagem pessoal, esquecendo-se da perspectiva ontológico-existencial no seu processo formador de linguagem. Pós-Modernidade em Gilberto Mendes no período de 1982 à 1995 De acordo com a pesquisadora Adriana Francato, “pode-se classificar a sua produção musical em três grandes períodos: Formação (de 1945 a 1959), Experimentalismo (de 1960 a 1982) e Pós-Tudo, como ele mesmo denomina sua última fase de produção (de 1982 a hoje).” Buckinx também observa esta transformação na produção de Gilberto Mendes a partir da década de oitenta: A obra de Gilberto Mendes traz já do início todo o tipo de informação: bigband, jazz, musicals, Villa-Lobos, recusas de limites hierárquicos entre alta e baixa cultura, uma mistura de serialismo e Brigitte Bardot (Cidade, 1964, para vozes, instrumentos, aparelhos eletro-domésticos). A partir dos anos 80 a sua obra sofrerá transformações radicais. É quando ele opta por uma música de compreensão mais imediata, mais melifluente (O meu Amigo Koellreutter, 1984). (Buckinx, 1998, p. 75) A utilização de formas clássicas e a releitura de uma obra “tradicional” são características típicas do pós-modernismo que encontramos em suas obras iniciais. Como exemplo temos a Sonatina (Mozartiana–1951), que reflete uma preocupação com a estrutura da forma sonata, mas, por outro lado, uma leitura criativa da Sonata e m Dó Maior K.545, de Mozart, enriquecida com ritmos e modalismos brasileiros, transformada pela linguagem pessoal de Gilberto Mendes. Sobre as influências brasileiras e cosmopolitas na produção deste compositor, Antônio Eduardo dos Santos afirma: Gilberto Mendes integra, em sua linguagem composicional, todo o material e meio de expressão à sua disposição, ou seja, cria uma arte semântica passando pelos timbres jazzísticos, dos musicais norte-americanos das décadas de 1930 e 1940, por músicos como Friedrich Hollaender, David Raksin ou nomes como Count Basie, Earl Hinnes e o pianista Teddy Wilson, a quem considerou um Mozart do jazz, não deixando de lado, porém, a música popular brasileira. (Santos, A. E., 1997) Inicia sua terceira fase composicional com a obra Vento Noroeste (1982). Sobre esta peça, Gilberto Mendes realizou os seguintes comentários: ‘Vento Noroeste’ foi composta a pedido do pianista Caio Pagano a quem é dedicada e por ele estreada no Festival de Miami, em 1982. Trabalhada sobre um seqüência de notas distanciadas por tons inteiros e sua inversão, bem como a sobreposição dessas duas seqüências (do que resulta um fracionamento em meios tons) e a sua compreensão numa outra seqüência também por meios tons. Esses meios tons se definem ao longo da peça num eixo descendente/ascendente, em torno do qual se identificam procedimentos musicais que tanto podem ser do romantismo alemão, como da música dos mares do sul, ou da bossa nova; permeados de determinados acordes O limiar da Pós-Modernidade 169 semânticos (fonte de novos materiais sonoros) em sua múltiplas combinações. Uma melodia muitas vezes repetida emerge, personificando o espírito do vento noroeste que sopra quente, sobre o mar, junto às praias de Santos; trazendo lembranças fugazes da música de Chopin, Schumann, Liszt, Debussy, de cuja escrita esta peça pretende ser uma metalinguagem. (Zago, 2002, p. 102) Em 1986 Gilberto Mendes representou o Brasil no primeiro festival de Patras. O tema do simpósio era “Pós-Modernismo na Música”. Quando voltou, escreveu um artigo para a Folha Ilustrada, em 7 de setembro, com os seguintes trechos: Posso assegurar que algo me liga aos ‘divertimentos’ arquitetônicos de Philip Johson, quando componho peças como ‘Beba Coca-Cola’, ‘Santos Football Music’, ou mesmo o ‘Longhorn Trio’, tocado em Patras... E certos caminhos, nos Estados Unidos, de George Crumb, ou do ex ‘taxi driver’ Philip Glass, este retomando descaradamente a periodicidade, em relação a Cage (...) Dentro de uma tradição de pluralismo, sincretismo e ecletismo, principalmente no Brasil. ‘Beleza também é função’ (Niemeyer, 1942). A prolixidade em Villa-Lobos, que Messiaen tanto admira. O antropofagismo... comparei Charles Ives a Villa-Lobos, como verdadeiros pós-modernos ‘avant la lettre’ (...) a minha própria tentativa de articular agora numa real linguagem tudo aquilo que fôra, na minha própria música, colagem, citação, paródia, ‘kitsch’, metalinguagem (...). (Mendes, set. 1986) A seguir elencamos algumas obras representativas deste período até 1995. Gregoriana (in memorian), 1983, para trompa em F: segundo Carole Gubernikoff, nesta obra a “técnica de pequenas figurações melódico rítmicas justapostas num fluxo contínuo e linear se consolida.(...) Neste sentido, torna-se um verdadeiro desafio à percepção na medida em que a segmentação do fluxo sonoro torna-se, no mínimo, ambígua, quando não impossível.” (Gubernikoff, 10 jun., 2005) Partitura: Um Quadro de Gastão Z. Frazão Mendes fala desta obra em seu livro: , 1985, para orquestra sinfônica. Gilberto Olhei para o quadro de meu amigo Gastão...e, seguindo suas linhas e núcleos abstratos, que pretendem sugerir um novo grafismo, uma nova escrita musical, fui desenhando, em correspondência com o que via, notas em seqüências melódicas e concentrações harmônicas. O resultado serviu de material musical, uma série...Mas não se trata de música serial ortodoxa, como a dodecafônica. Esse material é uma base constante de referência, fator de unidade, mas em vários momentos é abandonado, quando a música segue livremente, porém sempre inspirada nos motivos e clima melódico/harmônico desse material. (Mendes, 1994, p. 200) Último Tango em Vila Parisi, 1987, para orquestra sinfônica: obra em que ocorre mistura de linguagens, com momentos minimalistas e de happening. Gilberto escreveu sobre esta em seu livro: A peça tem um pouco de ‘abertura trágica’ orquestral, à la Brahms, mas apenas na expectativa do que vai acontecer. Na verdade, é um divertimento mozartiano... Obra repetitivo-minimalista, composta sobre somente um acorde orquestral, estático, soando dois minutos, seguido de uma frase musical do 170 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 tipo introdução a um tango, também muitas vezes repetido. Sobre o que se desenvolve o teatro musical. (Mendes, 1994, p. 219) Ulysses em Copacabana Surfing with James Joyce and Dorothy Lamour, 1988, para flauta, clarineta, trompete, sax alto, 2 violinos, viola, violão, contrabaixo e piano (...) integram-se neste meu trabalho materiais que vão desde velhos hinos gregos até o orientalismo kitsch do tipo Hollywood anos 30, tudo muito transformado e desenvolvido, numa Sommerreise schubertiana que passa por muitos climas tropicais e chega a um surf de 3 músicas simultâneas, o fox-trot final que pode estar sendo ouvido num cocoanut grove de Los Angeles, como num café em Trieste, ou num bar de Copacabana. Tentativa de uma forma musical joyciana e de um som schoenberguiano a partir do estilo de orquestração de velhas canções cantadas por Dorothy Lamour (...). (Mendes, 1994, p. 219) Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do Sul, 1989, para piano solo. Bezerra comenta a manifestação da expressão individual e o uso de citações, peculiar do pósmodernismo, presentes nesta peça: O componente autobiográfico é outra característica das obras deste período de maturidade. Nelas, o compositor presta homenagem aos ídolos da sua juventude: as estrelas de Hollywood e os artistas das vanguardas européias (Ulisses em Copacabana Surfando com James Joyce e Dorothy Lamour, 1988; Um Estudo? Eisler e Webern Caminham nos Mares do Sul, 1989). O uso refinado de citações musicais está presente em grande parte das composições mais recentes. (Bezerra, set. 2002, p. 22) Tempo Tempo, 1991, para coro a capela. De acordo com Valente, é uma obra composta apenas para vozes onde encontramos a repetição, característica marcante desta fase de Gilberto Mendes e a mistura de linguagens, marca do pós-modernismo, representada pela alternância de momentos em que utiliza apenas intervalos consonantes, com blocos microtonais. (Valente, 1999, p. 214) Abertura da Ópera Issa, 1995, para orquestra sinfônica: esta abertura não se baseia em processos sistemáticos de repetição em sua totalidade, muitas vezes limitados a partes ou trechos. Assim, o termo “pós-minimalista” seria o mais adequado para caracterizar esta abertura, que lembra o pós-minimalismo europeu, como algumas obras de Arvo Pärt, por exemplo. O compositor utilizou-se da técnica do minimalismo americano de processo aditivo (subtrativo) textural, junto com linhas melódicas expressivas, realizando a mistura de linguagens peculiar do pós-moderno. A primeira parte desta abertura apresenta estrutura formal contínua e textura rítmica homogênea, com construção pós-minimalista a partir de quatro motivos. Na segunda parte da obra se insere mudança de andamento e caráter, ocasião em que é executado pelo oboé o segundo elemento estrutural, uma melodia utilizando escala assemelhada ao modo mixolídio. Para construir esta frase o compositor usou as mesmas relações intervalares do primeiro motivo, identificado em nossa análise, através de duas variações transpostas, sendo a última destas retrógrada. Tanto na segunda quanto na terceira parte a obra abandona o caráter minimalista, apresentando-se o tema como melodia acompanhada. Na terceira parte, as trompas executam o terceiro elemento estrutural da abertura, a melodia derivada da escala Ritsu do Gagaku, já que o protagonista da ópera é o poeta japonês Issa. Esta escala é pentatônica, mas o compositor constrói a frase O limiar da Pós-Modernidade 171 com a sétima maior, criando uma reminiscência tonal, que logo é esmaecida pelos contornos vagos da melodia, apresentando assim o sincretismo próprio do pós-moderno. De acordo com Kaminsky, “o que ocorre hoje, porém, é uma intensificação das identidades sincréticas, geradas pelas migrações internacionais, e que refletem/são refletidas nas produções artísticas.” (Kaminsky, 2002, p. 190–191) Como pudemos notar, o universo pessoal de Gilberto Mendes permeia toda sua produção. Ele navega entre estilos, tendências e influências musicais sob o signo da liberdade criadora, com o ecletismo inerente ao pós-moderno. Conclusão Atualmente o compositor, carregado de informações tanto no campo das artes como na ciência, traz consigo um passado cultural bem mais amplo que em períodos anteriores, com a possibilidade de realizar metalinguagens usando todo material cultural à disposição. Gilberto Mendes abarca um grande variedade de gêneros musicais e suas preocupações poéticas não se encerram nas obras, mas sim nutrem outros procedimentos de criações posteriores. O estudo sobre as possíveis interfaces da pós-modernidade no idiomático de Gilberto Mendes, no período de 1982 à 1995, nos leva a concluir ser este um período onde impera a química de linguagens múltiplas e a mistura de protocolos, numa fusão de horizontes musicais peculiar do pós-moderno. O compositor encara o sistema atonal como uma expansão do sistema tonal e suas obras revelam seu singular imaginário musical, que vai desde as lembranças fugazes de Vento Noroeste até a corte imperial japonesa, presente na Abertura da Ópera Issa, através da escala Ritsu do Gagaku. Neste sentido, demonstra outra faceta pós-moderna, a expressão da individualidade do compositor, com cunho quase autobiográfico. Nesta fase Gilberto Mendes prezou o ecletismo de sua paisagem sonora, exercendo seu mister com simplicidade através da parcimônia na utilização de materiais, com técnicas de citações que produzem, paradoxalmente, uma obra complexa e sofisticada. Suas obras deste período parecem imbuídas da propriedade de serem captadas de modo direto pelo ouvinte, remetendo à característica pós-moderna da feitura de uma arte que possa ser assimilada tranqüilamente pelo público, sem a necessidade de “bulas” ou teorizações estéreis. O objetivo de assinalar aspectos pós-modernistas na obra de Gilberto Mendes é trazer este repertório respectivo para perto dos intérpretes e estudiosos, pois ele ainda é pouco divulgado aqui no Brasil, valendo notar que esta sua produção recente é assaz executada na Europa. Desta forma, esta pesquisa pretende incrementar as execuções deste repertório pósmoderno de Gilberto Mendes em seu país natal. Devido a tão exíguo espaço, o assunto não se esgota neste leve debruçar-se sobre ele, restando vasto campo para ser abordado. O que aqui resta comprovado é a inegável relação de Gilberto Mendes com os modos pós-modernos, e a extraordinária força expressiva que consegue desta condição extrair, enriquecendo de maneira ímpar a música erudita. 172 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Referências bibliográficas ARIZA, Adonay. “A música brasileira no contexto das tendências internacionais”. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. BAUMAN, Zygmunt. O mal – estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar. BEZERRA, Márcio. A eclética trajetória de Gilberto Mendes. Brasiliana, n. 12, set. 2002. BUCKINX, Boudewijn. O pequeno pomo. Tradução: Álvaro Guimarães. São Paulo: Ed. Giordano, 1998. COELHO, Teixeira. Moderno Pós Moderno: Modos e Versões. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995. CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna: Introdução às Teorias do Contemporâneo. São Paulo: Loyola, 2000. Enciclopédia da Música Brasileira Erudita. Marcos Marcondes (ed.). Seleção dos verbetes Régis Duprat. 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Participou do III Fórum de Pesquisa Científica em Arte – EMBAP com o trabalho “Carta de Mário de Andrade a Camargo Guarnieri: um estudo sobre Inferência”. Em 1989 obteve o 3º Lugar com a composição “Retrato Íntimo” no V Concurso Nacional Ritmo e Som da UNESP. Em 1997 teve seu arranjo coral “Divertimento” executado na Fundação Memorial da América Latina, pelo Coral “Amigos do Mundo” e Camerata Ikeda. Regeu coros da graduação da UNESP (campus Araraquara) e do departamento de Música da USP (campus Ribeirão Preto), dentre outros. Atualmente é professora de educação musical no Colégio Benjamin Constant e pesquisa as interfaces do pósmoderno com a música . Educação musical e pedagogia Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC) Resumo: Este trabalho discute a formação musical de professores generalistas. Estes professores são formados em cursos de pedagogia para atuarem na Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental, e deveriam atuar com todas as áreas do conhecimento escolar, incluindo música. No entanto, a formação musical oferecida tem sido precária. Este texto analisa os resultados de um curso de música para professores generalistas baseado em uma estrutura curricular que será apresentada e discutida. Palavras-chave: Educação musical; professores generalistas; estrutura curricular; curso de música. Introdução Os anos iniciais da escola brasileira estão normalmente a cargo de professores generalistas. Tais professores são aqueles que atuam na escola com todas as áreas do conhecimento, tanto na Educação Infantil quanto nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série). Em alguns sistemas educacionais, normalmente os privados, há professores especialistas para certas áreas do conhecimento, como por exemplo, educação física, línguas estrangeiras e artes. A presença de professores especialistas nos anos iniciais da escola de certa forma altera o princípio norteador da educação neste período escolar, pois o que se espera é que um professor seja responsável pela introdução de conhecimentos diversos através de uma perspectiva integrada. Esta integração se justifica do ponto de vista psicológico, e um único professor durante os anos iniciais é mais adequado para a criança desta faixa etária. Além da questão psicológica, um único professor atuando com todas as áreas do conhecimento de forma introdutória, é uma alternativa que pode evitar a fragmentação do currículo. Os professores especialistas em diferentes áreas certamente podem contribuir para um ensino de qualidade nos anos iniciais. Mas o professor generalista deveria compreender o papel de todas as áreas do conhecimento que estão presentes na Educação Infantil e nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental, e, de alguma forma, contribuir para o desenvolvimento destas áreas ao longo de seu trabalho didático-pedagógico. A área de artes tem sido tratada de maneira insatisfatória nos anos iniciais da escola brasileira por diversas razões. Uma delas está diretamente relacionada à quantidade e qualidade da formação artística oferecida nos cursos que preparam professores para os anos iniciais da escola. Tal formação tem contribuído para que se perpetue a idéia de que as artes só podem ser realizadas por alguns indivíduos dotados de talentos especiais. Esta forma de pensar sobre as artes está muito arraigada no contexto escolar inibindo a realização de trabalhos que envolvam artes de maneira consistente. Especificamente sobre música, a formação oferecida em cursos de pedagogia que preparam professores para os anos iniciais da escola, tem sido precária (Figueiredo, 2003). O resultado desta formação (ou falta de formação) está refletido na ausência significativa de propostas de educação musical para os anos iniciais da escola, gerando uma lacuna na Educação Musical e Pedagogia 175 experiência escolar que é oferecida para as crianças nesta faixa etária. Quando há professores especialistas nos anos iniciais atuando na área de música, reforça-se a idéia de que música não é para todos, e o professor generalista parece não ser capaz de lidar com atividades musicais em sua prática escolar. Será possível oferecer uma formação musical durante os cursos de pedagogia de modo que o professor que atuará nos anos iniciais da escola seja capaz de lidar com aspectos educativo-musicais em sua prática docente? Este texto apresenta uma discussão acerca deste assunto, procurando demonstrar que é possível aprimorar a formação musical de professores generalistas de modo que tais professores possam contribuir para o desenvolvimento musical das crianças nos anos iniciais da escola. Formação musical de professores generalistas Em pesquisa realizada em 19 instituições brasileiras que oferecem cursos de pedagogia com habilitações em Educação Infantil e/ou Séries Iniciais, observou-se a precariedade da formação musical oferecida na maioria das instituições participantes (Figueiredo, 2003, 2004a). De um modo geral, a música faz parte de uma disciplina que trata das artes de maneira plural e polivalente. A polivalência para as artes, instituída em 1971, demonstrou resultados insatisfatórios ao longo de 25 anos, período de vigência da lei 5692/71 que regulamentou esta matéria até 1996. A proposta da disciplina Educação Artística envolvendo Artes Cênicas, Artes Plásticas, Desenho Geométrico e Música, pretendia que um único professor desenvolvesse todas as áreas artísticas. Além da inviabilidade de uma prática consistente em todas as áreas em função da formação superficial que era oferecida em cursos de licenciatura em Educação Artística, a prática desta disciplina na escola sempre esteve num plano bastante secundário em termos curriculares. Muitas universidades e faculdades que ofereciam cursos de licenciatura em Educação Artística optaram pela formação específica em uma única linguagem artística desde o início do curso, modificando completamente a proposta da polivalência. Por exemplo, os currículos dos cursos de licenciatura em Educação Artística da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina – formou professores para cada área específica desde 1984, considerando a inviabilidade da formação polivalente. Apesar das críticas à polivalência (Barbosa, 2001, 2005, Figueiredo, 1999, 2000; Hentshcke, 1993; Hentschke e Oliveira, 1999; Oliveira, 2000a, 2000b; Tacuchian, 1992; Tourinho, 1993), diversos cursos de pedagogia ainda sustentam tal prática em seus currículos que preparam professores para as séries iniciais. Parece haver uma certa confusão entre a formação e a prática do professor generalista. Tal professor atuará de forma integrada com as diversas áreas do conhecimento escolar, mas isto não quer dizer que a formação deste professor seja feita em uma única disciplina. No currículo dos cursos de pedagogia existem especificidades como Matemática, Língua Portuguesa, História, dentre outras, que são tratadas de maneira específica durante o curso. O entendimento de que Arte pode ser considerada uma atividade única e, portanto, pode ser ministrada em uma única disciplina por um único professor, é reflexo da prática da Educação Artística que difundiu a polivalência como estratégia de ensino de todas as linguagens artísticas por um profissional que deveria dominar todas as áreas de artes. 176 Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005 Os cursos de pedagogia que preparam professores generalistas para atuarem na Educação Infantil e nas Séries Iniciais incluem as artes de maneira polivalente, em sua maioria, como demonstrou pesquisa realizada nas regiões sul e sudeste do Brasil (Figueiredo, 2003, 2004a). Na maioria dos cursos participantes da pesquisa realizada, existe um único professor de artes, com formação específica em uma linguagem artística, mas que inclui, em sua prática, atividades artísticas diversas. A música é uma das áreas menos oferecidas, pois é considerada específica demais. O resultado desta formação musical superficial é a ausência de experiências significativas em música nos primeiros anos da escola. A insegurança dos professores generalistas com relação à música é freqüentemente mencionada por estes profissionais (Figueiredo e Godoy, 2005) e tal insegurança inibe o desenvolvimento de propostas de educação musical consistentes para os anos iniciais. A insegurança para lidar com música constatada em diversos contextos brasileiros (Bellochio, 2000; Souza, 2002; Torres e Souza, 1999) é também objeto de pesquisa em diversos contextos internacionais (Barret, 1994; Temmerman, 1991; Russel-Bowie, 1997; Mota, 2000; Diaz, 2000). A partir desta situação, verifica-se que a formação musical durante a graduação é fundamental para que se prepare adequadamente os professores que atuarão nos anos iniciais da escola. Esta formação musical precisa ser tratada cuidadosamente nos cursos de pedagogia, e deve ser oferecida por profissionais da educação musical. Além disso, o tempo destinado a esta área de conhecimento deveria ser compatível com aquilo que se espera de uma formação adequada. Educação musical para pedagogos O currículo dos cursos de pedagogia em geral trata superficialmente a formação musical. Diversas razões podem estar ligadas a este tratamento, de acordo com depoimentos de professores e coordenadores de cursos de pedagogia (Figueiredo, 2003): 1) A música é entendida como uma das artes que se desenvolve naturalmente quando se estuda qualquer arte. Esta visão de arte simplifica e reduz as diversas linguagens artísticas a uma ação indefinida, ignorando as especificidades de cada linguagem. Parece que o desenvolvimento de cada linguagem artística depende apenas de estímulos que automaticamente se refletem em outras áreas; é como se ao estudar uma pintura automaticamente haveria um desenvolvimento musical, e assim por diante. 2) Não há tempo na grade curricular para se incluir cada linguagem artística separadamente. Esta justificativa indica que as artes não são compreendidas de forma relevante na formação do pedagogo, pois todas as outras áreas que compreendem o currículo parecem ter espaço e tempo garantidos; não sobra tempo para as artes porque outras áreas, consideradas mais relevantes, ocupam o tempo possível. Some-se a esta questão de tempo a problemática econômica que a contratação de mais professores acarretaria em diversos cursos superiores. 3) Há outras prioridades educacionais para a formação de pedagogos. Por outras prioridades se entendem aspectos racionais e utilitários do currículo. A escola tem valorizado aquilo que será útil para a vida dos indivíduos e esta utilidade muitas vezes está direcionada para o vestibular, por exemplo, ou para a atividade profissional. Nesta Educação Musical e Pedagogia 177 perspectiva utilitária, as artes carregam uma certa dose de ‘inutilidade’, o que justifica sua posição secundária nos projetos curriculares em geral. 4) As artes servem para deixar tudo mais bonito e agradável na escola. Nesta concepção as artes ocupam um papel coadjuvante, sugerindo que sua presença na escola deve sempre estar ligada a algo mais significativo. As artes são utilizadas para entreter, auxiliar na aprendizagem de outros conteúdos e para relaxar as crianças, oferecendo períodos de descanso entre as atividades ‘sérias’ do currículo. 5) Este modelo de ensino de artes é o que vem sendo utilizado por muitos cursos de pedagogia ao longo da história. A repetição de modelos anteriores sem reflexão tem sido uma opção de vários cursos de pedagogia que formam professores generalistas. Ao mesmo tempo faltam propostas concretas para o estabelecimento de novas perspectivas para as artes nos cursos de pedagogia. As cinco razões apresentadas para a falta de uma formação musical mais significativa em música e em artes em geral nos cursos de pedagogia ilustram situações decorrentes de práticas sem a devida reflexão. O discurso da formação integral da criança é diferente da prática curricular que privilegia algumas áreas em detrimento de outras. A falta de discussão sobre a formação musical e artística nos cursos de pedagogia também reflete uma hierarquia curricular que vem sendo praticada, colocando as artes em uma situação irrelevante na formação dos indivíduos. Um aspecto importante para ser discutido é a falta de propostas diferenciadas para esta formação musical. Há cursos que mantêm certas práticas em termos de formação musical porque desconhecem outras propostas possíveis. Neste sentido, o que parece ser importante é a revisão de conceitos sobre música, ensino de música, e música na formação escolar. Para o senso comum, fazer música é tocar instrumentos musicais, e para tanto, é preciso ter talentos especiais, é preciso ser muito musical. Ignora-se o fato de que todas as pessoas se relacionam com a música de sua cultura e, nesta perspectiva, não existem indivíduos não musicais. Como afirma Hodges (1999), “todas as pessoas possuem algum grau de musicalidade, porque todos os indivíduos respondem de alguma forma à música de sua cultura” (p. 30). Além disso, há diversas maneiras de lidar com música além de tocar um instrumento musical, assim como, é possível realizar atividades musicais bastante simples, acessíveis a todas as pessoas. Uma proposta de música para a formação de pedagogos deve rever, em primeiro lugar, a visão de que música deve sempre servir para algo que está fora dela, como, por exemplo, ajudar na fixação de datas, números, ou outros conteúdos. Música serve também para auxiliar na realização de outras tarefas, mas a formação musical deveria ir além desta ênfase nos valores extrínsecos à música (Temmerman, 1991). A própria discussão sobre os significados e as funções da música na sociedade poderia ser um dos componentes a serem incluídos na formação musical de professores generalistas. Merriam (1964) é uma referência importante para a discussão deste tópico. A partir da pesquisa realizada (Figueiredo, 2003) constatou-se uma certa fragilidade nas concepções sobre música no currículo dos cursos de pedagogia. Tal fragilidade incluía um grau elevado de superficialidade nas propostas curriculares, oferecendo para os alunos algumas atividades prontas, espécies de ‘receitas’, para serem utilizadas em momentos específicos na escola (por exemplo, ensinar música para datas comemorativas). O que se 178 Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005 notou, em diversas propostas curriculares dos cursos de pedagogia, foi o tratamento superficial dado à música no currículo sem o reconhecimento desta área como uma das áreas do conhecimento escolar. A alegação de falta de tempo deve ser considerada como um empecilho para o desenvolvimento de um programa mais consistente em termos de educação musical, mas, ao mesmo tempo, falta argumentação em favor da presença desta área no currículo. A tradição de se fazer música como acessório para outras atividades curriculares é um dos grandes obstáculos a serem vencidos quando se pretende modificar a educação musical nos cursos de pedagogia, e, conseqüentemente, nos anos iniciais da escola. A revisão de conceitos é fundamental para proporcionar alguma mudança significativa. Diante da necessidade de revisão de propostas, um questionamento foi realizado com o objetivo de buscar novas alternativas que pudessem aprofundar a questão da música na formação de professores generalistas, levando-se em consideração que grandes alterações não serão possíveis em curto prazo de tempo. Além disso, diversas aproximações entre música e outras áreas de estudo no contexto do curso de pedagogia poderiam ser um caminho para que se construíssem novas concepções curriculares menos hierárquicas, mais holísticas e condizentes com o que se espera da formação escolar nos anos iniciais. Diversos autores que discutiram a formação de professores especialistas e generalistas podem contribuir para a construção de propostas para a música na formação de pedagogos. Alguns destes autores estão apresentados, a seguir, e suas idéias foram utilizadas para a construção da estrutura conceitual para a formação de professores generalistas proposta neste texto. Reimer (1989) em sua filosofia de educação musical considera importante que na formação de professores questões de psicologia façam parte do currículo, enfatizando elementos de percepção, do funcionamento da mente e do desenvolvimento infantil. Elementos de história da educação também são recomendados por Reimer (2003) como uma forma de “entender a música em relação à história e à cultura” (p. 269). Boardman (2001) enfatiza que a música ocorre sempre em um contexto sócio-cultural. Música é discutida como um sistema de símbolos que representa um modo único de representação de mundo, e como tal, não pode ser substituído. Gardner (1991) apresenta elementos fundamentais para o desenvolvimento da educação em artes nas escolas. Dentre estes elementos estão: a) noções filosóficas da educação em artes; b) aspectos psicológicos da aprendizagem em artes; c) práticas artísticas. Mills (1991) reforça a possibilidade de se preparar musicalmente professores generalistas. Em seus argumentos a autora enfatiza a importância da música por causa de sua maneira única de ser, que é diferente de qualquer outra área do conhecimento. Questões filosóficas e psicológicas deveriam ser consideradas no desenvolvimento de programas de música para a formação de pedagogos. Durrant e Welch (1995) consideram que “existem muitos tipos de música e atividades musicais e, conseqüentemente, muitas possibilidades do professor generalista lidar com a música” (p. 3). Todas as atividades musicais práticas sugeridas por estes autores deveriam estar relacionadas com questões filosóficas, psicológicas e antropológicas. Educação Musical e Pedagogia 179 A partir destes autores mencionados é possível considerar que a atividade musical deveria estar conectada com outras compreensões para fazer sentido no contexto educacional. Todo programa de música deveria levar em consideração questões essenciais que pudessem nortear as escolhas e as reflexões do professor. A Fig. 1 apresenta um esquema que inclui algumas questões essenciais que poderiam ser utilizadas para o desenvolvimento de programas de educação musical para professores generalistas. O quê? Quando? Por quê? MÚSICA Como? Onde? Fig. 1 - Questões essenciais (Figueiredo, 2004b, 2004c) A Fig. 1 sugere que ao se pensar em música seria importante localizá-la em diferentes perspectivas. Ao tentar responder o quê de música, o professor deverá investigar diversas manifestações musicais, selecionar as que deseja discutir com seus alunos, definindo estilos, épocas, elementos presentes em cada manifestação escolhida. Música é importante? Por quê? Ao refletir sobre a importância da música o professor terá que ir além da utilização dela para entretenimento e lazer, ou para auxiliar o processo de aprendizagem de outras disciplinas. A música está presente em todas as civilizações e em todos os tempos, e refletir sobre isto amplia as possibilidades de aplicação de propostas musicais na escola. Como a música pode ser incluída na prática escolar também é uma questão fundamental, que indica a necessidade de conhecimento sobre metodologias específicas de educação musical; é preciso ampliar a experiência musical dos alunos para além daquela que já é realizada naturalmente na cultura, e para isto é necessário que se conheçam caminhos educacionais específicos que possibilitem outras experiências sonoras e musicais. Onde a música pode ocorrer sugere a reflexão sobre os diversos espaços da manifestação musical, 180 Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005 dentro e fora da escola; o professor pode ser um estimulador desta constatação da música em diversos contextos, o que também poderia ser um estímulo para buscar diversos tipos de música, além de ampliar o contato com músicos e experiências musicais diversas. Quando a educação musical deve ser incluída e de que forma ela poderia respeitar os diversos aspectos do desenvolvimento da criança também deve ser um elemento de reflexão e estudo do professor. As questões essenciais apresentadas na Fig. 1 conduzem naturalmente a uma síntese de componentes que poderiam ser considerados fundamentais na construção de uma estrutura conceitual através da inclusão de áreas distintas do conhecimento que se somam para atribuir sentido mais amplo à experiência musical na escola. Os componentes desta estrutura conceitual derivam das questões essenciais. A Fig. 2 apresenta estes componentes. Durante a formação oferecida nos cursos de pedagogia são oferecidas diversas disciplinas que se referem aos assuntos aqui propostos. No curso de pedagogia se estuda filosofia da educação, psicologia, sociologia, didática, e outras disciplinas cuja função é preparar o futuro professor como um indivíduo que compreende sua atividade profissional num universo muito amplo. Os componentes propostos na estrutura conceitual apresentada na Fig. 2 poderiam ser discutidos em diversas disciplinas do curso de pedagogia. Compreender a importância da música não é uma questão apenas da aula de música; entender e refletir sobre a presença da música na sociedade é também um assunto que não pertence exclusivamente à área de música; aprimorar o conhecimento sobre a criança e seu desenvolvimento escolar obviamente também inclui questões de música, e assim por diante. È possível estabelecer diversas conexões entre as áreas que estão sendo estudadas pelo futuro pedagogo, e a música deve ser parte desta reflexão. Aplicando a estrutura conceitual para estudantes de pedagogia Um curso de música com 16 horas de duração foi oferecido para estudantes de um curso de pedagogia com o intuito de desenvolver uma experiência musical baseada nas propostas contidas na estrutura conceitual apresentada anteriormente. Os participantes do curso (n=51) faziam parte de 3 classes diferentes de um curso de pedagogia. O desenho metodológico escolhido foi a pesquisa-ação. O curso foi ministrado pelo pesquisador que, ao mesmo tempo, desenvolvia as propostas do conteúdo definido para o trabalho e coletava dados para serem analisados posteriormente. Além destes dados coletados ao longo do curso, outros dados foram extraídos das respostas dos alunos a dois questionários: um no início e outro no final do curso. O questionário inicial solicitava informações gerais sobre: a) a formação musical de cada participante; b) a importância que eles atribuíam à música nos anos iniciais da escola; c) o nível de segurança que eles tinham para trabalhar com elementos musicais na escola; e d) as expectativas que os participantes tinham com relação ao curso de música oferecido. O questionário final solicitava aos participantes que relatassem suas impressões sobre as experiências musicais realizadas ao longo do curso e seu grau de segurança para utilizar música em suas práticas escolares. Educação Musical e Pedagogia 181 Componentes musicais Componentes filosóficos Componentes pedagógicos Componentes psicológicos Componentes sociológicos Fig. 2 - Estrutura Conceitual para a formação musical de professores generalistas (Figueiredo, 2004b, 2004c) As atividades desenvolvidas ao longo dos encontros incluíram diversas questões. Todas as atividades foram permeadas por discussões e reflexões acerca dos elementos evidenciados em cada experiência. Textos de apoio aos vários aspectos trabalhados durante o curso foram indicados para leitura e aprofundamento de questões de interesse dos alunos. O conteúdo do curso A estrutura conceitual apresentada norteou a elaboração de tópicos e atividades a serem desenvolvidas durante o curso, considerando que todos os componentes eram hierarquicamente similares (Figueiredo, 2004b, 2004c). Cada grupo de componentes foi assim contemplado: 1) Componentes musicais: questões de apreciação, criação e execução musical; elementos sonoros, melodia, textura, forma e estilo, dentre outros, foram aspectos explorados através de exercícios individuais ou em grupo; 2) Componentes filosóficos: questões de estética, música e filosofia de educação musical; foram apresentados e discutidos diversos argumentos em favor da educação musical na escola; 3) Componentes psicológicos: teorias do desenvolvimento musical; todas as atividades práticas foram permeadas de discussões acerca da viabilidade de realização de experiências musicais com faixas etárias distintas; 4) Componentes pedagógicos: metodologias de educação musical; diversos autores foram discutidos com o intuito de demonstrar diversas estratégias educativas em música; 182 Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005 5) Componentes sociológicos: as funções da música em diferentes contextos; discussão sobre os vários papéis que a música desempenha nas sociedades humanas. Discussão A formação musical dos participantes era inexistente ou bastante precária. Vários deles relataram e registraram experiências musicais ruins ou pouco significativas ao longo da formação escolar. Esta situação, infelizmente, não é privilégio destes participantes desta pesquisa, já que em diversas partes do Brasil o ensino de artes é pouco sistemático e descontínuo (Penna, 2004). Apesar da pouca formação, os participantes foram unânimes e muito positivos ao se referir à importância da música na escola, apresentando diversas razões. Música acalma, alegra, faz bem para o espírito, desenvolve emoção e sensibilidade, facilita a aprendizagem em outras disciplinas e faz parte do desenvolvimento integral da criança, foram os principais argumentos para justificar a importância da música na visão dos participantes. Estes argumentos apresentados são naturalmente mais dirigidos para valores extrínsecos à atividade musical, confirmando a falta de formação musical específica dos participantes. Para eles, música parece ter que sempre servir para alguma coisa, como se a música em si não tivesse valor para poder ser incluída e justificada na escola. O repertório variado apresentado durante o curso propiciou aos participantes uma vivência com outras experiências musicais, o que contribuiu para a reflexão sobre os tipos de música que poderiam fazer parte de programas escolares. Inicialmente muitos participantes mencionaram os tipos de música que seriam adequados às crianças, demonstrando diversos preconceitos com relação a várias manifestações musicais. Ao longo do curso ficou evidenciado que a música desempenha diversas funções e, por esta razão, não deveria ser simplificada ou utilizada de forma limitada na escola. A mídia também foi objeto de reflexão dos participantes, que compreenderam a necessidade de um pensamento musical autônomo, independente e crítico com relação à imposição dos meios de comunicação de determinados tipos de música que estabelecem o gosto e as preferências musicais por repetição e insistência. Este processo de ampliação do repertório foi estimulante para os participantes. A visão inicial dos participantes com relação a metodologias de ensino de música apresentava forte tendência de se considerar ensino de música equivalente a ensino de um instrumento musical, sempre evidenciando a necessidade de conhecimentos de teoria e de grafia musical para se desenvolver qualquer atividade. Como a maioria das pessoas não possuía esta experiência de tocar instrumentos musicais elas se consideravam inaptas para qualquer atividade musical escolar. As atividades de audição e criação contribuíram para a revisão destes pré-conceitos com relação ao fazer musical e as experiências ao longo do curso redimensionaram diversos pontos de vista. O nível de confiança para desenvolver atividades musicais básicas aumentou significativamente de acordo com as respostas dos participantes. Apesar de se sentirem mais confiantes e aptos a desenvolverem algum tipo de atividade musical na escola, a maioria deles reconheceu a necessidade de mais aprimoramento, e lastimaram não terem tido outras oportunidades ao longo do curso para se desenvolverem musicalmente. Educação Musical e Pedagogia 183 A formação continuada em música foi uma opção apresentada por diversos participantes, que entendem que a universidade não pode dar conta da formação completa. O professor em suas atividades de formação continuada deveria participar também de cursos de música que pudessem ampliar cada vez mais seus conhecimentos nesta área. O curso de música oferecido, apesar de ser breve, foi avaliado muito positivamente pela maioria dos participantes, enfatizando que os diferentes componentes do trabalho realizado propiciaram reflexões importantes sobre diversos aspectos relacionados à educação musical. Nas palavras de uma das participantes, “até a parte teórica do curso foi importante”. Alguns participantes reconheceram que começaram o curso esperando algumas ‘receitas’ práticas sobre como trabalhar com música na escola, mas compreenderam que é necessário mais do que um conjunto de canções para serem repetidas nas datas comemorativas da escola para que seja estimulado um real desenvolvimento musical das crianças. Considerações finais Os resultados do curso foram considerados positivos pelos participantes, o que pode ser visto como um estímulo para a continuidade de trabalhos desta natureza. O curso, apesar de ser curto, propiciou reflexões importantes de acordo com os depoimentos de diversos participantes. A conexão entre a música e diversas outras áreas do conhecimento propiciou conexões que fizeram sentido para muitos dos participantes. A compreensão sobre música foi ampliada em várias direções, demonstrando a eficácia da estrutura conceitual utilizada para a construção do curso de música oferecido. Evidentemente, a mesma estrutura deve ser aplicada em outros contextos e situações, para que possa confirmar aspectos resultantes desta primeira experiência, assim como verificar outros elementos que podem ser aplicados a esta estrutura. Os cursos de pedagogia que formam professores para os anos iniciais da escola poderiam rever a qualidade da formação musical oferecida, contribuindo efetivamente para a formação musical dos futuros professores. O professor egresso do curso de pedagogia é um multiplicador, pois várias crianças estarão sob a responsabilidade deste profissional durante alguns anos da escola. É importante que se compreenda a importância da educação musical como elemento fundamental na formação dos educadores dos anos iniciais. São estes educadores que estabelecerão as bases para o desenvolvimento da criança na escola, e a compreensão da música e suas funções na sociedade é imprescindível para que esta área do conhecimento seja tratada de maneira mais significativa no contexto escolar. O professor dos anos iniciais não será um substituto do professor especialista em música. Ao contrário, quando mais professores e profissionais da educação em geral tiverem consciência da importância da música na escola, maiores serão as chances de se conquistar um espaço mais digno e mais nobre para a educação musical escolar. 184 Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005 Referências bibliográficas BARBOSA, Ana Mae. John Dewey e o ensino de arte no Brasil (3 ed.). São Paulo: Cortez Editora, 2001. BARBOSA, Ana Mae. “Caminhos para a conscientização”. Revista Educação, 97, 2005, pp. 7–9. 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Foi Diretor Regional da ABEM Sul – Associação Brasileira de Educação Musical, e atualmente é representante adjunto da América Latina na ISME RESEARCH COMMISSION (International Society for Music Education), e no Comparative Music Education Group CME. Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda segundo o modelo de Luiz Tatit Carlos G. González (UFPR) Resumo: Cantigas de Roda e Acalantos são entoados no Brasil desde sempre. Saber como se estruturam, partindo de um olhar semiótico é o objetivo principal desta pesquisa, tendo como base as concepções semióticas levantadas por Luiz Tatit (1951). Nessas concepções, se apresentam três parâmetros de análise: tematização, passionalização e figurativização enunciativa. Estes elementos, que Tatit usa para analisar a música popular brasileira, são as ferramentas escolhidas para realizar uma leitura diferente das canções infantis. Este outro olhar, exemplificado na análise prática de alguns destes acalantos e cantigas de roda, permite uma compreensão mais profunda do processo de assimilação que a criança apresenta, no seu papel de receptor. Palavras Chave: Música Infantil; Cantiga e Acalantos; Semiótica. A eficácia da canção Considerações preliminares. Quando a mãe brinca com seu filho cantando “pirulito que bate, bate...”, ou quando a mesma criança adormece ouvindo “Nana neném...”, ela não só está criando uma relação afetiva com o bebê, como também não está só iniciando-o na sua futura relação com a música. Ela transfere uma significativa quantidade de informação musicológica, acumulada em séculos de intercâmbio histórico e cultural, e que mais adiante virá a ser utilizada na construção de referenciais de identidade, grupo social, nação, povo, etc.1 Acalantos e cantigas de roda têm sua origem na miscigenação dos povos latino-americanos. Isso se levando ainda a forte influência da colonização ibérica.2 Lydio R. Silva (1961)3 distingue três pontos principais de influência na formação da música no Brasil: a inegável presença européia representada pela música portuguesa e espanhola, os ritmos e sons negros trazidos pelos escravos, e o aporte ameríndio.4 Esta mistura permeia as diferentes camadas da estratificada sociedade colonial do novo mundo, especialmente em seus desdobramentos musicais, na música folclórica. Além disso, algumas melodias, comuns no Brasil, podem ser encontradas também em outros lugares do mundo, e um recorte embasado nas concepções de Silva,5 deve ser utilizado com o suficiente cuidado para evitarem-se complicações conceituais. 1 Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. pp. 5–27. 2 Ibidem, p. 11. 3 Músico e compositor, arte-educador, musico terapeuta e curitibano, Lydio Roberto Silva é mestre em Psicologia Organizacional pela UFSC e especialista em fundamentos estéticos da arte-educação e especialista em educação especial. Atualmente é professor da Faculdades de Artes do Paraná (FAP) 4 Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 10. 5 Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 11. Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 187 A música para crianças no Brasil, então, faz parte desse universo folclórico ao qual Fontoura e Silva fazem referência. Elas apresentam como característica principal a “perpetuação pela tradição oral de um povo, transmitidas de geração em geração” (Silva, 2001, p. 11). Cabe destacar também a relação de predomínio da melodia sobre o texto, que por sua vez, mostra-se, às vezes, incoerente. Silva explica este fenômeno afirmando que originalmente a canção teve um sentido, mas com o tempo este se foi perdendo: “Na medida em que tivermos a origem completa e exata do fato, o mesmo deixará de ser folclórico” (Silva, 2001, p. 13). Tentar compreender o significado dela modificaria sua condição de música folclórica. Cantigas e acalantos O brinquedo, a brincadeira, são parte fundamental do desenvolvimento das habilidades necessárias para a subsistência. A brincadeira exerce um papel educador de diferentes fatores requeridos para a convivência social, e desta maneira, o indivíduo toma consciência de suas funções dentro da sociedade, desenvolve sua sociabilidade, sua motricidade, etc.6 As cantigas de roda não escapam a esse processo. Silva, no segundo capítulo do seu livro Cancioneiro Folclórico Infantil, cita a tese do escritor Lourenço Chacon Jurado Filho, que destaca a função social da cantiga de roda, que nem sempre foi a mesma. Silva repara na evolução da brincadeira ao longo do tempo e como e por quem ela foi praticada. Inicialmente e até o início do século XX, uma atividade realizada por adultos, jovens e, por imitação, pelas crianças, a brincadeira de roda passa então a ser cada vez menos valorizada, devido aos progressivos avanços tecnológicos e as mudanças de visão de uma nova sociedade,7 ficando reduzida finalmente só ao âmbito infantil. A brincadeira de roda sempre foi um dos principais meios de socialização. Nela encontra-se o divertimento, a representação dos papeis sociais, coreografias que despertam a motricidade e o apresentam a importância do trabalho em conjunto, o pretexto para se iniciar no jogo amoroso, etc. Atualmente a brincadeira de roda é utilizada nas escolas com a finalidade de criar hábitos nas crianças e tendo seus textos modificados, fato que vem a reafirmar a mobilidade temática que a música folclórica apresenta.8 Brincadeiras de roda são danças. O lúdico se sobrepõe ao estritamente musical, que é o foco principal dessa comunicação. Já os acalantos têm outra função. Eles procuram deixar a criança relaxada para poder dormir, mas igualmente revelam uma predominância melódica sobre a textual. O modelo de Luiz Tatit Para realizar-se a análise de cantigas de roda e acalantos escolheu-se o modelo semiótico de Luiz Tatit (1951).9 O autor elabora uma gramática lingüística aplicada à música popular 6 Ibidem, p. 17. Ibidem, p. 18. 8 Ibidem, p. 18. 9 Luiz Tatit é Professor do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade e São Paulo. Tem desenvolvido seu trabalho na “Semiótica da Canção”. 7 188 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 brasileira. Dita gramática visa a estabelecer a relação existente entre melodia, harmonia e texto dentro da canção. Esse modelo foi escolhido segundo sua aplicabilidade decorrente da semelhança entre a música folclórica e a música popular urbana, na sua realidade estrutural10. Um fator importante para compreender o modelo de Tatit, é o vínculo constante que ele estabelece entre fala coloquial e canto, que segundo o autor, é o aspecto principal de toda a canção popular, quando depreende sua origem da fala cotidiana11. O modelo de Tatit baseia-se nos postulados do semioticista francês Algirdas Julien Greimas (1917–1992). Para uma melhor compreensão desse modelo, é conveniente buscar entender, ao menos em linhas gerais, o que se conhece como Quadrado de Greimas, que explica as relações entre dois termos. “Consiste na representação visual da articulação lógica de uma categoria semântica”.12 Pode-se situar o quadrado semiótico de Greimas na semântica fundamental,13 que é o começo também do processo gerativo, entendido como o percurso de “produção do objeto semiótico”, neste caso a cantiga e a canção de ninar, desde um ponto complexo até um ponto simples:14 s1 s2 ñs2 ñs1 Fig. 1 Quadrado de Greimas Existe uma relação entre s1 e s2 que se estabelece na negação de um pelo outro reciprocamente. Desta forma, s1 vai se negar, provocando uma contradição (ñs1), o que vai gerar uma incompatibilidade entre ambos os termos (s1 e ñs1), pois eles não podem coexistir Publicou até a data, sempre sobre semiótica, suas duas teses e cinco livros. Em 1986 “A Canção: Eficácia e Encanto” (Ed. Atual), em 1994 “Semiótica da Canção: Melodia e Letra” (Ed. Escuta), em 1996 “O Cancionista: Composição de Canções no Brasil” (Edusp), em 1997 “Musicando a Semiótica: Ensaios” (Ed. Anna Blume) e em 2001 “Análise Semiótica Através das Letras” (Ateliê Editorial), além de numerosos artigos no Brasil e no exterior. 10 É importante sinalar que é só na sua parte estrutural pois as características de gênero fazem delas dois “formas” diferentes. 11 Tatit, Luiz. O Cancionista, composição de canções no Brasil. São Paulo. Udesp. 1996. p. 12. 12 Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06 de abril de 2005. 13 “A semântica fundamental estuda as estruturas elementares da significação e cobre conjuntamente com a sintaxe fundamental o estudo das estruturas designadas pelos conceitos de língua (Saussure) e de competência (Chomsky)”; Fidalgo, António. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06 de abril de 2005. 14 Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06 de abril de 2005. Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 189 juntos. A afirmação de ñs1 vem logo, obtendo-se s2. O processo é repetido agora com s2 com relação à s1, como representa o gráfico (Fig. 1).15 As relações que vão se estabelecer como conseqüência deste processo podem ser denominadas de relação de contradição (linhas bidirecionais contínuas); relação de contrariedade (linhas bidirecionais segmentadas) e; relação de complementaridade (linhas unidirecionais), tal como mostra o gráfico (Fig. 2.).16 s1 s2 ñs2 ñs1 Fig. 2 A partir deste quadrado semiótico, é possível: Indexar todas as relações diferenciais que determinam o nível profundo do processo gerativo. A combinação das relações de identidade e alteridade, figuradas pelo quadro semiótico, constitui o modelo ou esquema a partir do qual se geram as significações mais complexas da textualização.17 Tatit adverte que desta relação do processo gerativo do objeto lingüístico, vai surgir um termo complexo (S), que vem a determinar que s1 só fará parte da complexidade S encontrando um equilíbrio em s2, sem que o grau de importância, ou melhor, de dominância, afete este processo, como explica o gráfico18 (Fig. 3.) S s1 ≠ s2 Fig. 3 15 O modelo foi extraído de: Tatit, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo. Ateliê Editorial, 2001, p. 23. 16 O modelo foi extraído de: Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06 de abril de 2005. 17 Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06 de abril de 2005. 18 Tatit, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo. Ateliê Editorial, 2001, p. 24. 190 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Tatit explica de uma maneira bastante didática como se articula o processo gerativo do nosso objeto semiótico canção por parte do “cancionista”,19 além de introduzir ao leitor na compreensão global dos mecanismos que nele participam. Partindo da primeira escuta, sem prestar atenção nos detalhes e sim no conjunto, aquela escuta leiga na teoria musical e na semiótica, o ouvinte consegue reconhecer alguns elementos. Ele começa “cantarolar” uma melodia e com isso pode identificar uma canção. Tatit faz o leitor reparar neste detalhe. Esse é o ponto inicial do estudo das correlações numa canção. Para ele, “todas as designações de gênero denotam a compreensão global de uma gramática” (Tatit, 1997, p. 101), ou seja, que o ouvinte consegue juntar elementos sonoros com outros e reconhecer o contexto onde eles funcionam de uma determinada forma. O ouvinte, então, tem consigo um background de dados incorporados na forma como ele escuta a música. Mesmo fazendo generalizações – misturando, às vezes, estilos que são próximos, como pagode e samba – consegue identificar um paradigma. Este processo é denominado pelo autor como apreciação empírica. Os mecanismos de reiteração, ou seja, aqueles que se fazem freqüentes num discurso musical, operam também como outro mecanismo de apreciação empírica. As reiterações são, nas palavras do autor de A Canção: eficácia e encanto, um mecanismo de gramática melódica que atinge principalmente a memória, ou seja, facilita a retenção de elementos, frases, células, motivos, palavras, etc., e para as possibilidades de prever o que a música, na sua temporalidade, pede. A memorização de refrões e estribilhos das canções entra neste parâmetro de entendimento, sendo também uma forma de apreciação empírica. “A reiteração torna significativo o fluxo inexorável do tempo. Basta um ligeiro apuro musical do ouvido para se depreender reiterações” (Tatit, 1997, p.101). Um outro aspecto é o reconhecimento das relações tonais do discurso musical. A percepção de que uma seção de música é mais ou menos tensa no contexto tonal, não tem direta relação com a teoria que estamos tratando. Esta percepção tem a ver com uma determinada forma de escuta e, até, com fatores físicos. O elemento melódico e o narrativo, vão tendo igual importância na estrutura analítica levantada, mesmo que a narrativa seja menos explícita. A fala vem cobrando importância no processo discursivo, assim como as rítmicas impostas pelas consoantes e pela acentuação vocálica imprimem um sentido narrativo à canção e às vogais, mais ou menos esticadas, o que nos leva pelo caminho da paixão e do sentimental. A mistura destes elementos, mais a interpretação (timbre) do discurso definem o estilo e gênero da canção. Podemos definir estes elementos como entoação. Na primeira parte do seu livro O Cancionista,20 o autor diz que a junção do fator melódico e do fator textual fica evidente em três elementos que, tanto se separam, aparecendo praticamente isolados numa canção, como se misturam, situação mais comum, para dar maior força entoativa. Entramos aqui no âmbito das categorias persuasivas. Essa reiteração, que foi mencionada em parágrafos anteriores manifestando-se como uma grande unidade textual, agora pode ser vista em fragmentos menores. 19 O cancionista é quem cria e/ou canta uma canção. Na obra homônima ao conceito, Tatit sobrepõe a figura do compositor à do cantor, mesmo outorgando mérito a este último. 20 Tatit, Luiz. O Cancionista, composição de canções no Brasil. São Paulo. Udesp. 1996. Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 191 Se a reiteração e as tensões de altura servem para estruturar a progressão melódica, esses mesmos recursos podem ser transferidos ao conteúdo, de modo a construir uma significação compatível (Tatit, 1997, p. 102). O primeiro de ditos elementos diz relação à extensão ou prolongamento das tensões21 mediante a prolongação vocálica e a utilização dos sons mais agudos, e que o autor chama, numa primeira estância de paixão (posteriormente denominado de passionalização). Esta vem lixar as asperezas que a música apresenta, deixando os contornos da música suaves. É o que Tatit chama de /ser/. Este elemento outorga ao discurso uma cara mais de paixão, ligada diretamente aos sentimentos, tornando “a canção mais lenta e adequada à introspecção” (Tatit, 1997, p.102). O segundo fator diz referência ao movimento contrario ao apresentado pela paixão, qual é o “encurtamento” ou segmentação do discurso canção. Aparece então a ação (mas tarde denominada de tematização). Este elemento representado pela predominância consonantal sobre a vocálica, da à música um caráter mais ágil, mais racional, ligando-a mais ao discurso. É o que Tatit chama de /fazer/. Ao reinterpretar o “Quadrado de Greimas”, é possível fazer a comparação e a substituição dos valores por conceitos reais, onde paixão pode ser s1 e ação pode ser s2. Ambos os fatores são teoricamente opostos e funcionam de forma contraria. Não podemos esquecer que será o cancionista que vai imprimir e manobrar entre estes dois conceitos para gerar diferentes estados no receptor. A negação da paixão pela ação, e/ou vice-versa, gera o terceiro elemento representado por S. Este equilíbrio será determinado pela dicção (também denominada de figurativização enunciativa). Ela é a responsável pela naturalidade do discurso. Ela é a que imprime o coloquial à canção popular, deixando ela mais perto do ouvinte. A relação de personificação deste segmento tem direta relação com o texto da canção. O diálogo exposto na letra lembra diretamente um diálogo coloquial, fazendo evidente a relação entre um eu locutor e um tu ouvinte. Cobram importância unidades gramaticais como verbos no modo imperativo, vocativos, demonstrativos, etc. Eles são os responsáveis de imprimir tal caráter ao discurso. Neste ponto, o intérprete adquire uma importância fundamental, pois é ele que dará a entoação ao discurso, imprimindo, a cada execução, um caráter diferente.22 Tatit, em outro artigo publicado no mesmo texto (Musicando a Semiótica), expõe estes elementos denominando-os como duração, altura, e timbre, fazendo direta referência aos elementos do som e da música.23 Análise Foram escolhidas duas músicas representativas do cancioneiro folclórico infantil. Um acalanto (Iaiá) e uma brincadeira de roda (O trem de ferro). Para grafar as curvas melódicas das canções analisadas, foram usados os gráficos semelhantes aos propostos por Tatit. Cada 21 Tatit entende a tensão como os pontos mais importantes do discurso canção. Eles são os que determinarão o caráter da mesma. 22 Ibidem. p. 103. 23 Ibidem. pp. 117–127. 192 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 uma das linhas representa um semitom, e as linhas mais grossas são os limites da tessitura superior e inferior, como mostra o exemplo. C aaai aaai iiiii diiii nha aaia iiiii iiiiii dos Si Sib Va A ci ran mos Ab Semitons diatônicos. G to Gb F AA E da, Limites superior e inferior (extensão). Fundamental. Eb D Db C AA Fig. 4 Primeiro Exemplo – Iaiá Iaiá, que lindas são as flores Da primavera! Iaiá, comigo vem dançar, Para festejar A primavera que chegou Este acalanto apresenta uma linha melódica rica, uma letra simples e curta, que exalta as belezas da primavera. Fontoura e Silva explicam que a palavra Iaiá vem da antiga forma usada para se referir as filhas dos seus patrões. Esta palavra está presente reiteradas vezes no cancioneiro popular brasileiro.24 Chama à atenção a métrica dos versos nesta cantiga de ninar. Ela não é regular como a grande maioria das canções do gênero, mesmo que a divisão dos compassos seja simétrica. Isto acontece porque a acentuação prosódica está deslocada, o que gera a impressão de assimetria. A movimentação melódica é grande. Começa com um salto de uma oitava que é sustentado, seguido por um movimento 24 Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 116. Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 193 oscilatório suave por intervalos de segundas e terças, as vezes lento, as vezes um pouco mais rápido, e descansando em estiramentos das vogais na metade e no final da música (Fig. 5 e 6). O texto, de caráter alegre, porém sereno, complementa esta movimentação da melodia criando um clima de introspecção e com uma alta carrega emotiva. Parte 1 são as Iá, que das flo lin Da pri 8a res ma ve ra! Ia Fig. 5 194 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Parte 2 que che co mi go ra ve vem Ia Iá, Pa ra dan fes çar ma te jar pri A Fig. 6 Nas duas partes nas que é possível dividir a música, é evidente passionalização no discurso representado nas prolongações das vogais, no nome da personagem Iaiá e no final do acalanto. O fato que seja o nome onde se produze esta tensão reafirma a idéia de diálogo. Esta representação simulada fica de manifesto em frases como “... comigo vem...” ou na mesma invocação do nome. b) O trem de ferro O trem de ferro, Quando sai de Pernambuco, Vai fazendo fuco-fuco, Até chegar no Ceará. Rebola, bola, Você diz que dá, que dá, Você diz que da na bola, Na bola você não dá. Rebola o pai, Rebola a mãe, rebola a filha, gou Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda 195 Eu também sou da família, Também quero rebolar. O trem de ferro tem muitas versões, como comentam Silva e Fontoura. A letra muda no nome do trem, na onomatopéia do barulho da locomotiva e os vagões passando pelos trilhos, etc.,25 mas não em partes importantes do discurso. Será analisada, assim, a versão apresentada pelos autores. É possível até discutir se esta é realmente uma cantiga de roda, simplesmente porque ela tem estrutura rítmica fortíssima, o que a assemelha com as parlendas. É neste ponto onde radica a maior particularidade desta música, na sua forte predominância consonantal. Isso imprime na cantiga um caráter de fala. Mas numa análise mais profunda pode-se constatar que o simulacro criado pela figuratização enunciativa está presente de uma forma pouco clara. O diálogo entre personagens não existe, e o discurso é apresentado sem destinatário claro. É um relato para muitos e não a “encenação” de um colóquio. Primeiros versos fer ro, Quan do sai de de bu trem co, Per O nam Segundos versos Rá. Vai fa Zen do fu co,_A té che gar a fu ce co 25 Ibidem. p. 82. no 196 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Pela marcada presença do ritmo que não pára e que sempre leva ao ouvinte dentro de um “trem” imaginário, é complicado fazer uma divisão das partes desta música. A separação dos dois primeiros versos dos segundos responde só a uma questão de organização. Desta maneira, A oscilação apresenta-se só como um recurso cadencial harmônico sem que o movimento nunca seja maior a uma terça maior. A insistência na fundamental e o deslocamento à sétima maior, cria, com o mínimo esforço a tensão. A passionalização está ausente neste exemplo. Entender a estrutura lingüística do gênero da música infantil, vem a ser um importante avanço na compreensão de como é recebida a mensagem canção por parte da criança, no seu papel de receptor. A interação que esta criança terá com a cantiga tem direta relação com o valor simbólico que esta tem, o que significa ou pode chegar a significar para ela, sob a premissa de entender a canção como fala. O natural desdobramento de uma pesquisa em semiótica aplicada implica aprofundar os estudos anteriores na elaboração de estruturas que suportem a complexa relação existente entre texto e música (entendidas como elemento comunicador), seu emissor e finalmente o seu receptor. Porém, é possível dizer que existem alguns padrões recorrentes, e estes padrões dizem respeito a determinados estilos. Nos textos das cantigas e acalantos encontra-se a tendência ao privilégio da representação (figurativização enunciativa). A presença do diálogo e da história contada por um terceiro reforça este aspecto, provavelmente pela sua empatia com a criança e pela fácil assimilação das idéias principais por parte da mesma. Referências bibliográficas FIDALGO, António. 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A musicoterapia como auxílio físico-psicológico a portadores do HIV Cristiano Steenbock (FAP) Resumo: Esse trabalho é resultado de um estudo feito a partir de uma nova visão sobre a AIDS. Foram reunidos relatos, textos e citações de pesquisadores renomados no que diz respeito a uma nova teoria sobre esta doença. É também apresentado os aspectos psicológicos, sob a ótica da psicologia, aos quais estão sujeitos os portadores dessa doença. Estudado esses dados, foi feito uma abordagem dos processos musicoterápicos, analisando a maioria dos aspectos físico-psicológicos relacionados à doença. Esses processos consistiriam em emanações de freqüências específicas para a estimulação de energia do corpo, juntamente com um trabalho musicoterapeutico e podendo se estender também à expressão corporal de cada individuo ou em processos grupais. Palavras-chave: AIDS, chakras, depressão, HIV, musicoterapia. Histórico da AIDS Em 1984, foi encontrado um retrovírus, considerado como o agente etiológico de uma doença que já havia infectado pessoas pelo mundo e que posteriormente seria designada como Aids. Dois grupos de cientistas reclamaram ter sido o primeiro a descobri-lo, um do Instituto Pasteur de Paris, chefiado pelo Dr. Luc Montangnier e o outro dos Estados Unidos, chefiado pelo Dr. Robert Gallo. O fato é que uma das pesquisadoras do Instituto Pasteur de Paris, Françoise Barre-Sinoussi, conseguiu cultivar um retrovírus em laboratório e enviou o material para o laboratório de Robert Gallo, para que este confirmasse o seu achado, por se tratar de um eminente cientista. Com base neste material, Gallo divulgou a descoberta como se fosse sua, vindo a retratar-se somente no início da década de 90. Gallo é um importante virologista, e já havia identificado outros dois retrovírus, o HTLV – 1 e o HTLV 2 (Human T Leukemia-limphoma vírus type 1 and 2) e, por isso, o agente etiológico da AIDS foi inicialmente conhecido, nos Estados Unidos, como HTLV – 3. Na França, ele foi reconhecido como LAV, associado a linfadenopatia. Depois das disputas da comunidade científica serem devidamente esclarecidas, chegou-se ao consenso de denomina-lo HIV, ou, em português, vírus da imunodeficiência humana. Em 1986, foi aprovada pelo órgão norte-americano de controle sobre produtos farmacêuticos FDA (Food and Drug Administration), a primeira droga antiviral, a azidotimidina ou AZT. Este revelou um impacto discreto sobre a mortalidade geral de pacientes infectados pelo HIV. Em 1994, um novo grupo de drogas para o tratamento da infecção passou a ser estudado, os inibidores da protease. Estas drogas demonstraram potente efeito antiviral isoladamente ou em associação com drogas do grupo do AZT (daí a denominação "coquetel"). Houve diminuição da mortalidade imediata, melhora dos indicadores da imunidade e recuperação de infecções oportunistas. Ocorreu um estado de euforia, chegando-se a falar na cura da AIDS. Entretanto, logo se percebeu que o tratamento combinado (coquetel) não eliminava o vírus do organismo dos pacientes. Somese a isso também os custos elevados do tratamento, o grande número de comprimidos tomados por dia e os efeitos colaterais dessas drogas. A despeito desses inconvenientes, o coquetel reduziu de forma significativa a mortalidade de pacientes com AIDS. 198 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Atualmente, na área, há duas linhas principais de pesquisa: uma busca uma vacina eficaz, visando imunizar os indivíduos pertencentes a populações sob risco; e outra visando buscar drogas antivirais mais potentes e com menos efeitos colaterais, visando erradicar o vírus do organismo de pacientes infectados. Os resultados com os antivirais têm sido melhores, entretanto dificilmente a AIDS será curada farmacologicamente. As esperanças depositamse no desenvolvimento de uma vacina eficaz. Infelizmente, até o momento não há relatos promissores sobre vacinas. Uma nova visão sobre a doença Porém há alguns anos, alguns pesquisadores e médicos começaram a questionar a idéia de que o HIV seria o responsável pela transmissão da AIDS e possível causador da morte de pessoas infectadas por ele. A definição original para a AIDS, consistia em um conjunto de 12 doenças: pneumonia por Pneumocystis carinni , sarcoma de Kaposi, toxoplasmose, estrongiloidiase, citalomegavírus, herpes simples, leucoencefalopatia multifocal progressiva, aspergilose, criptococose, candidíase, criptosporidiose e linfoma cerebral. Em 1985, houve uma revisão da definição da AIDS, sendo adicionada mais 7 doenças, as 12 iniciais: complexo de Mycobacterium avium, histoplasmose, isosporíase, linfoma de Burkitt, linfoma imunoblástico, candidíase dos brônquios, traquéia e pulmões, além de um teste positivo para anticorpos do HIV.Em 1987, mais uma vez ocorre o aumento das doenças, para o diagnóstico da AIDS, são mais 6 doenças: encefalopatia, tuberculose por micobactéria, síndrome de definhamento, coccidioidomicose, retinite por CMV e septicemia por salmonela. Em 1993, novamente há um acréscimo de mais 3 doenças: pneumonia bacteriana por repetição, câncer cervical invasivo e tuberculose pulmonar.Foi acrescentado também uma contagem de células T<200 ou <14% do total de linfócitos. Portanto, a uma primeira estância, podemos analisar que as definições para uma correta avaliação sobre quem era portador do vírus HIV, foram sendo alteradas e acrescentadas novas doenças, para abranger um maior número de pessoas. Um exemplo muito interessante que ocorre é quando há ou não a presença do HIV. Analisando que uma pessoa tem tuberculose. Se ela tem só a tuberculose, ela é considerada tuberculosa, porém se nela estiver presente o vírus HIV, seu estado passa a ser como uma pessoa aidética. O HIV entra na definição de vírus como retrovírus citotóxico, ou seja, não tem mecanismos para atacar células. Durante a década de 60 e 70, ele foi meticulosamente estudado, pois os cientistas achavam que ele poderia ser a causa do câncer. Um dos principais cientistas que estava envolvido nessas pesquisas era Robert Gallo, o mesmo que em 23 de abril de 1994, convocou a imprensa internacional, anunciando a descoberta da possível causa da AIDS. Ao anunciar a sua hipótese para o mundo, ele violou uma regra fundamental do processo científico. Os pesquisadores precisam, antes de mais nada, publicar dados comprovando a hipótese em revista médica ou científica, documentando a pesquisa ou ensaios usados para formulá-la. Posteriormente, a hipótese é analisada e discutida por outros peritos no assunto, que tentam repetir os ensaios originais, para confirmar as idéias. Robert Gallo ignorou todas essas regras, e ainda foi acusado por Luc Montagnier de ter furtado sua amostra de HIV. Gallo e Montagnier entraram em um acordo, no qual eles dividiriam os créditos pela descoberta, como também os direitos sobre a patente do teste. Atualmente, Montagnier afirma não acreditar que o HIV sozinho seja capaz de provocar a AIDS. O próprio Gallo A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 199 citou uma frase bem interessante, ele disse “Às vezes nós, virólogos temos um vírus em busca de uma doença”. Os testes que são usados para a contagem de carga viral também são duvidosos. O PCR(Polymerase Chain Reaction), também conhecido como teste de quantificação viral, aparece com algumas controvérsias.O PCR detecta e multiplica genes isolados, não o vírus, e mais freqüentemente, fragmentos de genes.Quando detecta dois ou três fragmentos de vírus genéticos de talvez uma dúzia de genes completos, isto não é uma prova de que todos os genes, ou o genoma completo, estão presentes ou que uma partícula viral completa do HIV esteja presente. Além disso, uma pessoa pode trazer um genoma retroviral inteiro em suas células por toda a vida, sem nunca produzir um único vírus. Os testes que detectam o HIV no corpo humano tem em seus kits escrito assim, “Atualmente não existe um padrão reconhecido para estabelecer a presença ou ausência de anticorpos do HIV-1 e do HIV-2 no sangue humano”, e sobre os testes de carga viral, “Não se destina a ser usada para triagem ou como diagnóstico para confirmar a presença de infecção por HIV”. Além disso, os testes para detecção do HIV, apresentam 68 tipos diferentes de alteração, como: artrite reumatóide, gripe, hepatite, malária, cálculos renais, vacina contra tétano, hemofilia, entre outras. Ou seja, pessoas que tem algum desses 68 tipos de alteração, podem estar infectadas e receberem o resultado negativo para a infecção, podendo também, acontecer o contrário. O pesquisador que criou o PCR, e que ganhou o prêmio Nobel de química de 1993, Kary Mullis, disse “Não é sequer provável, muito menos cientificamente provado, que o HIV provoca a AIDS. Se existe alguma prova de que o HIV causa AIDS, deveriam existir documentos científicos que comprovem esse fato. Não existem tais documentos.” Os cientistas até hoje, não conseguiram de maneira satisfatória, comprovar o ataque fulminante do vírus HIV em células defesa. O HIV só consegue atacar as células, quando utilizados elementos químicos nas culturas onde ele está inserido. E mesmo assim, ataca um número mínimo de células, que não poderiam afetar o sistema imunológico a ponto de causar danos a saúde. Na medicina, existe um parâmetro que se usa para identificar as causas e de como essa doença se manifesta. Ele é conhecido como os Postulados de Koch, que foi formulado para estabelecer uma relação de uma bactéria ou vírus com uma provável doença. São 4 postulados que se resumem em: o patógeno deve ser identificado em todos os casos da doença; o patógeno deve ser isolado do hospedeiro e deve crescer em cultura pura; o patógeno deve reproduzir a doença original quando inoculado em um hospedeiro suscetível. (capacidade para transformações); o patógeno deve ser identificado no hospedeiro experimental infectado. Em nenhum desses 4 casos o HIV se encaixa. Esse próximo parágrafo talvez abra a verdadeira resposta sobre o que causa a AIDS. Juntamente com esses outros aspectos já mencionados, o uso de medicamentos pode ser a principal causa da doença. O tratamento convencional para a AIDS é chamado de tratamento anti-retroviral, ou mais popularmente conhecido coquetel para a AIDS. Há uma variedade grande desses remédios, que podem ser tomados combinados entre si, fazendo com que o paciente possa se adaptar ao melhor “coquetel”. Ou seja, para que ele possa ter menos reações adversas no tratamento, podendo assim ter uma melhor qualidade de vida. Porém, há muitas controvérsias sobre a utilização desses medicamentos. Vamos analisar aqui apenas 3 tipos desses medicamentos, como forma de exemplificar o que é, discutido severamente sobre os pesquisadores que adotam a opinião de que a causa da doença está nesses medicamentos. 200 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 O primeiro medicamento seria a Didanosina. A Didanosina (DDI), um nucleosídeo análogo a Deoxiadenosina, é inibidor in vitro da replicação do HIV em culturas de células humanas. A Didanosina é rapidamente degradada em pH ácido. É por esse motivo que as formulações orais, contém agentes tamponantes, de modo a aumentar o pH do meio gástrico. As reações adversas citadas na sua bula são: pneumonia, anorexia, perda de peso, infecções, ascite, edema facial, aumento do abdomem, indisposição, dispepsia, distúrbios gastrintestinais, anormalidades hepáticas, flatulência, hemorragia gastrintestinal, disfagia, monilíase oral, colite, esofagite, siadenite, convulsões, pensamentos estranhos, demência, agitação, ataxia, amnésia, distúrbios cerebro-vasculares e da fala, confusão, ansiedade, nervosismo, apoplexia, miopatia, tosse, dispepsia, faringite, apnéia, sinusites, bronquites, derrame pleural, rinite, pneumotórax, hipertensão, síncope, insuficiência cardíaca congestiva, derrame pericárdico, vasodilatação, cardiomiopatia, palpitação, ambliopia, distúrbios visuais, surdez, insuficiência renal, poliúria, sudorese, herpes e acne. Nas crianças as reações adversas ocorreram em cerca de 5% das crianças, nos estudos de fase I, e foram semelhantes às reações observadas nos adultos, acrescendo-se: febre, desidratação, alterações de apetite, melena, estomatite, equimoses, petéquias, atrofia muscular, mialgia, artrite, arritmia, letargia, descoordenação, asma, hipoventilação, congestão nasal, rinorréia, impetigo, eczema, escoriações, eritema, otite, fotofobia, estrabismo e aumento da freqüência urinária. Além de derrames neurológicos, pneumonia e diabetes mellitus ou insipidus. O segundo medicamento é a Estavudina. A Estavudina não representa uma cura para a infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Adquirida (HIV). Assim, poderão ocorrer as doenças oportunistas associadas a AIDS, ou infecções pelo HIV. Os pacientes devem permanecer sob orientação médica durante o tratamento com Estavudina. O tratamento com Estavudina não demonstrou reduzir o risco da transmissão do HIV, tanto por via sexual, quanto por via sangüínea. Por se tratar de um fármaco recentemente aprovado, ainda não existem avaliações de seus efeitos a longo prazo. A Estavudina (2',3'-didehidro-3'deoxitimidina), chamada de D4T em sua fase de desenvolvimento, é um nucleosídeo sintético, análogo da timidina. As reações adversas que ele apresenta são: insuficiência renal, não existem pesquisas em insuficiência hepática, dormência nas extremidades, formigamento, sensação de queimação e dores nos pés e nas mãos, neuropatia periférica, pancreatite, doença hepática, anemia, carcinogênese, mutagênese, diminuição da fertilidade e aumenta a ocorrência de aberrações cromossomais em linfócitos humanos. O terceiro medicamento é a Zidovudina, conhecida também como AZT, é um medicamento antivirótico, com ação sobre alguns retrovírus como o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). A ação se inicia em cerca de uma hora após a administração. A Zidovudina não reduz o risco de transmissão do HIV através de contato sexual ou contaminação do sangue, além de poder ocorrer infecções oportunistas durante o tratamento. A Zidovudina (3'-azido3'desoxitimidina; comumente denominada AZT) é um análogo da timidina com atividade antiviral contra o HIV-1, o HIV-2, o vírus linfotrópico T humano (ou da leucemia) HTLV-1 e outros retrovírus. A Zidovudina é atualmente, o agente inicial preferido para o tratamento da infecção por HIV em pacientes com contagem de CD4 inferiores a 500/mm3. A Zidovudina é contra-indicada em pacientes que, potencialmente, apresentem hipersensibilidade ao fármaco, com risco de vida. Outras reações adversas são: anemia, neutropenia, leucopenia, infecções microbianas, retardo na cicatrização, hemorragias gengivais, carcinogênese, mutagênese, aumento do VCM(volume corpuscular médio), A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 201 depressão da medula óssea, deficiência de ácido fólico ou de vitamina B12, comprometimento da função hepática, desconforto abdominal, náusea, perda de apetite, mal estar, atrofia muscular, prostração, fraqueza, confusão mental, manias, cefaléia, insônia, mialgia, hiperpigmentação das unhas, persistência de febre, calafrios, dor de garganta, palidez, cansaço incomum ou fraqueza, alterações na percepção do sabor, inchaço dos lábios e língua e feridas na boca. Em um antigo rótulo do AZT estava escrito que ele é um produto tóxico, não poderia entrar em contato com a pele ou ser ingerido. Quem tivesse contato com ele, deveria usar roupas protetoras apropriadas. Era de uso exclusivo de laboratórios e que não devia ser usado para medicamentos, uso doméstico ou outros fins. Esse rótulo era para frascos de 25 mg. A dosagem diária de um portador de HIV é de 500mg a 1500 mg. A Associação Farmacêutica do Canadá, diz que “As conseqüências a longo prazo da exposição do recém-nascido a zidovudina no útero e após o parto são desconhecidas. Os efeitos a longo prazo do uso prematuro ou breve de zidovudina em gestantes também são desconhecidos”. O jornal americano The New York Times, de 14 de fevereiro de 1995, relatou “Um estudo federal prolongado do AZT, que começou em agosto de 1991 com 839 crianças em 62 hospitais, foi suspenso. Elas tinhas uma progressão mais rápida de doenças, infecções relacionadas a AIDS, desenvolvimento neurológico prejudicado e morte”. A Glaxo-Wellcome, fabricante do AZT, informou que faturou 2,35 bilhões de dólares com a venda do AZT e outros medicamentos antivirais em 1997. Ela cita ainda no anúncio do Combivir(comprimidos de lamivudine/zidovudine), “Não existem estudos adequados e bem controlados sobre o Combivir em gestantes”. A agência Reuters de notícias, em 8 de junho de 1998, trouxe a seguinte notícia “Pesquisadores de Nova Iorque comunicam um caso de anemia profunda em recém-nascido, provavelmente causada pelo tratamento da mãe soropositiva com uma combinação anti-retroviral de zidovudine, lamivudine e zalcitabine”. A pesquisa Concorde, foi um ensaio acidentalizado duplo-cego, controlado, de uso imediato e retardado de Zidovudine para infecção por HIV assintomática realizado pelo Medical Research Council. O resultado foi assustador. Um total de 172 participantes morreram(169 que tomavam AZT e 3 que tomavam placebo). Representantes da Fundação Wellcome, que também eram membros da Comissão de Coordenação se recusaram a assinar o relatório da pesquisa. Então, muitas perguntas ficam no ar. Como um pesquisador registra um teste/exame sem nem saber como o faria? Como e por que os remédios para esta doença foram aprovados, em média, 4 meses a 1 ano, sabendo que precisam ser feitos muitos testes anteriores que no mínimo durariam 5 anos? Por que os médicos receitam um remédio que já é tóxico na dosagem mais básica, e que ministrados para esta doença passam do limite de toxicidade em 20 a 60 vezes? Como um exame pode dar falso-negativo com 68 tipos diferentes de alterações? Como existem pessoas que não tem o vírus dessa doença, mas mesmo assim são diagnosticadas como tendo AIDS? Por que os cientistas não conseguem até hoje, constituir de maneira satisfatória, o que eles dizem acontecer com o corpo humano, em culturas isoladas? As respostas dessas perguntas e muitas outras que com certeza virão, podem estar nas multinacionais que ganham 2.400 dólares por paciente diagnosticado com tendo AIDS; pela procura da fama de pessoas que a perseguem a vida inteira, sem medir esforços; pela venda extraordinária de remédios que vem incorporada nas doenças sexualmente transmissíveis e tantas outras que estão inseridas na definição de AIDS; etc. 202 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Por essa teoria apresentada, seus defensores afirmam que a AIDS é decorrente de uma série de fatores inter-relacionados e não pela simples infecção pelo HIV. A AIDS pode ser uma co-relação de diversos fatores, entre eles: uso de drogas(inclusive remédios, como o próprio AZT); sexo sem proteção, não pela AIDS, mas pelas DSTs , por sua destruição em parte do sistema imunológico; má alimentação; pouco descanso; estresse; depressão; angústia; falta de exercícios; etc. Essa teoria que foi estudada e analisada tem como principais encorajadores: Peter Duesberg(professor titular da cadeira de biologia molecular e celular da Universidade da Califórnia e foi eleito membro da Academia Nacional de Ciências em 1986, devido ao mapeamento da estrutura genética dos retrovírus); Charles Thomas(Phd, antigo diretor do departamento de biologia celular do Scripps Research Institute); Rob Hodson(Ex-professor de anestesiologia da Universidade do Alabama); Kary Mullis(Prêmio Nobel de Química em 1993, pela invenção do exame PCR); entre muitos outros, em todo o mundo. Leon Tolstoi, escritor russo nascido em 1828, nos indaga com o seguinte pensamento: “Sei que a maioria dos homens, incluindo aqueles que se sentem à vontade com problemas muito complexos, têm dificuldade em aceitar a verdade simples e óbvia se isso vai obrigá-los admitir que suas conclusões, explicadas com tanto prazer aos colegas e ensinada com orgulho a outros, são falsas”. Aspectos psicológicos Os pacientes portadores do HIV têm um aspecto psicológico deteriorizado, por conta de toda a informação que a mídia e os profissionais de saúde colocam em sua vida. Depressão. Síndrome do pânico e transtornos afetivos são algumas das variantes desse contexto psicológico que estão presentes no comportamento do indivíduo portador. Aqui vamos somente tratar da depressão específica em pacientes com AIDS. O termo Depressão pode significar um sintoma que faz parte de inúmeros distúrbios emocionais sem ser exclusivo de nenhum deles, pode significar uma síndrome traduzida por muitos e variáveis sintomas somáticos ou ainda, pode significar uma doença, caracterizada por marcantes alterações afetivas. A sintomatologia depressiva é muito variada e muito diferente entre as diferentes pessoas. A psicopatologia recomenda como válida a existência de três sintomas depressivos básicos, os quais darão origem a variadíssimas manifestações desta alteração afetiva. Essa tríade sintomática da Depressão seria: sofrimento moral, inibição global e estreitamento vivencial. É comprovado que relacionamentos pessoais insatisfatórios e a falta de apoio social podem afetar intimamente o sistema imunológico. Na Quarta Conferência Anual Brasil em HIV/AIDS, o Dr. Thomas Koenig faz uma interessante explicação sobre a depressão em pacientes com HIV. Há muitas razões porque é importante tratar a depressão em pacientes com HIV. Primeiro, eu acho o mais importante, é porque é possível melhorar a qualidade de vida de nossos pacientes. A depressão impõe ao paciente fardos enormes. Na área psicológica, a depressão influi em como a pessoa vê o mundo. É como se estivesse olhando para o mundo por óculos escuros - tudo parece mais difícil; os desafios crescem e podem parecer inconquistáveis. A depressão rouba da pessoa a motivação e, até mais importante, a esperança, a capacidade de acreditar que as coisas podem melhorar. Neste estado psicológico o paciente pode perder o A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 203 desejo de lutar contra a infecção. Finalmente, além do benefício ao paciente, há evidência na literatura, que o tratamento de depressão em pacientes com HIV traz benefícios ao sistema de saúde. A síndrome do medo da AIDS pode ser muito similar, em seus sintomas psicológicos, à própria doença nos estágios iniciais, já que a depressão e a ansiedade podem ser salientes em qualquer dos casos. No caso da AIDS, o indivíduo portador sente-se letárgico, perde apetite e peso e transpira excessivamente. A pessoa que recebe esse diagnóstico, já está em um estado psicológico debilitado, pois ela está indo fazer o exame de detecção, já com alguma idéia ou situação que possivelmente ela possa ter entrado em contato com o vírus. Quando ela entra em contato com um diagnóstico positivo, aquele estado emocional que já estava em declínio passa a ser persistente e contínuo. Pois ela sabe que contraiu uma doença na qual, não há cura e as estimativas de vida são muito variáveis e não menos animadoras. Portanto, há de se fazer um trabalho de acompanhamento psicológico desse indivíduo, pois do contrário, isso refletira em seu físico como forma de redução de células de defesa, infecções diversas, etc. Emanações específicas de freqüência É um trabalho que estou desenvolvendo em paralelo a aplicação da musicoterapia tradicional. Ela consiste em aplicar uma freqüência determinada em pontos energéticos específicos do corpo humano conhecidos como chakras. Chakras são pontos de energia espalhados pelo corpo, onde 7 deles são os mais conhecidos. A seguir eu faço uma pequena explicação desses chakras, com conceitos de localização, notas musicais correspondentes e o que eles afetam na parte física e na parte psicológica. chakra(1): básico, esplênico. nome: muladhara (raíz). localização: no final da coluna vertebral, entre os genitais e o ânus. cor: vermelho (cor quente). indicações: anemias, asma, bronquites, resfriados, congestões, debilidade física, doenças do sangue, doenças do frio, paralisia, pneumonia, prisão de ventre, tuberculose, melancolia, depressão, indiferença, descongestiona as mucosas, descontrai os músculos. contra-indicações: hipertensão, febres, inflamações, insanidade, neurites(inflamação dos nervos), temperamento agitado. mantra: lam. som: ã. glândulas: glândulas supra-renais que produzem a adrenalina. órgão do conhecimento: nariz/odor. órgão de ação: pés/andar. órgãos físicos: supra-renais, coluna vertebral, rins, bexiga, parte final do intestino, pernas, pés, ossos. sistema fisiológico: reprodutivo. nota musical: dó. equilíbrio emocional: impulso para agir, proteção contra doenças virais e contagiosas, força, dinamismo, agressividade controlada, coragem para produzir e conquistar, 204 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 criatividade, generosidade, devoção, rapidez de percepção, resolução de conflitos internos, satisfação, disposição. virtudes: serenidade, força, confiança, pureza, exatidão, equilíbrio, amor ao próximo. desequilíbrio físico: anemias, resfriados, paralisias, sexualidade reprimida ou excessiva, problemas de coluna, hemorróidas, depressão, ira, desajustes, agresssividade, pressão alta ou baixa, fraqueza, melancolia, insuficiência renal, cansaço, dores lombares. chakra(2): sacro, coccigiano, fundamental, sagrado. nome: swadhistana (o fundamento de si – morada do sol). localização: na raíz dos órgãos genitais, 4 dedos abaixo do umbigo. cor: laranja (cor quente). indicações: asma, bronquite, vesícula, rins, bexiga, cálculo biliar, gota, hipotiroidismo, resfriados, reumatismo crônico, fraturas, tumores, alergias, câimbras, fígado, pâncreas, ovários, trabalha a alegria de viver e a extroversão, afasta o medo, aviva as emoções, traz cordialidade, fortalece o pulmão e os ossos. contra-indicações: inflamações dos nervos. mantra: vam. som: u. glândulas: glândulas sexuais(gônadas). órgão do conhecimento: língua. órgão de ação: mãos. órgãos físicos: rins, bexiga, sistema reprodutor, sistema circulatório. sistema fisiológico: genital e urinário. nota musical: ré equilíbrio emocional: capacidade de união sexual, procriação, coragem de viver, alegria instintiva, prazer físico, capacidade de planejamento e construção, poder de evoluir. virtudes: tolerância, compaixão, alegria de viver, senso comum, precisão, compartilhamento, idealismo. desequilíbrio físico: doenças dos rins, distúrbios gástricos e intestinais, medo, alergias, má adaptação, incapacidade de construir, problemas hormonais, infertilidade, doenças do fígado, pâncreas, vesícula, bexiga, insegurança, problemas de menstruação, doenças sexuais. chakra(3): plexo solar. nome: manipura (a cidade da jóia). localização: um pouco acima do umbigo. cor: amarelo (cor quente). indicações: digestão lenta, problemas no baço, no fígado e no pâncreas, diabetes, problemas de pele, esgotamento, depressões, hemorróidas, indigestão, prisão de ventre, remove imperfeições da pele, paralisias, verminoses, gordura no fígado, estimulante dos nervos motores, vermífuga. contra-indicações: inflamações dos nervos. mantra: ram. som: ó. A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 205 glândulas: pâncreas(que secreta o suco pancreático, cujas enzimas ajudam a digestão de proteínas, carboidratos e gorduras). órgão do conhecimento: olhos. órgão de ação: ânus. órgãos físicos: sistema digestivo, fígado, vesícula biliar, baço, estômago, intestino delgado, sistema nervoso. sistema fisiológico: digestivo. nota musical: mi. equilíbrio emocional: impulso para vivenciar emoções, tomar conhecimento do outro, vontade forte para comando e liderança, poder de se relacionar e digerir o meio assimilando e aprendendo, amor a vida, intuição, ternura, boa vontade, reverência, lealdade. virtudes: tolerância, serenidade, equilíbrio, flexibilidade, força, bons relacionamentos, pureza, abnegação. desequilíbrio físico: má digestão, ansiedade, diabetes, toxinas, problemas de pele, de fígado, de pâncreas, úlceras, hérnia de hiato, gastrites, problemas de assimilação, cálculos de vesícula. chakra(4): cardíaco. nome: anahata (o som não produzido). localização: na região do tórax e está conectado com a glândula timo. cor: verde (cor neutra). indicações: asma, dores de cabeça, problemas de fígado, problemas de coluna, hipertensão, insônia, doenças nervosas, doenças de pele, doenças intestinais, diarréias, febres, nevralgias, sinusites, úlceras, problemas do coração, irritabilidade, hemorróidas, doenças venéreas, estados de cólera, reduz problemas mentais e emocionais, cntra infecções, inflamações, intoxicações, bactericida, reconstrutora de células e tecidos, alivia tensões e emoções. contra-indicações: o uso do verde pode acarretar fadiga e cansaço. mantra: yam. som: a. glândulas: timo (responsável pelo sistema imunológico). órgão do conhecimento: pele. órgão de ação: órgãos genitais. órgãos físicos: coração, sistema circulatório , sistema imunológico. sistema fisiológico: circulatório. nota musical: fá. equilíbrio emocional: amor próprio e pela humanidade, compaixão, benevolência, aceitação, perdão, ajuda ao próximo, bondade, sabedoria, pacificação, fé na vida e nas pessoas, temperamento ameno, inteligência transparente. virtudes: amor, aceitação, compaixão, amor pelo próximo. desequilíbrio físico: doenças cardíacas, problemas em veias e vasos, distúrbios circulatórios e de pressão, problemas pulmonares, asma, bronquite, depressão, angústia, dores de cabeça, constipação intestinal(prisão de ventre). chakra(5): laríngeo 206 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 nome: vishuddha (o grande purificador) localização: sobre a garganta. cor: azul (cor fria). indicações: miopia, cólica, febre, coceira, dor de garganta, dor de ouvido, dor nos olhos, dor de dente, cólera, diarréias, úlceras, doenças gastrointestinais, histeria, doenças renais, gastrites, cataratas, glaucoma, gonorréia, insônia, laringite, cólicas menstruais, palpitações, problemas de coluna, problemas na pele, queimaduras, reumatismo, sarampo, caxumba, papo, sífilis, vômitos, estados alterados de emoção, epilepsia, antiinflamatória, regeneradora, protege o sistema nervoso. contra-indicações: taquicardia, hipertensão, paralisia, reumatismo crônico, contração muscular. mantra: ham. som: ai. glândulas: tireóide(responsável pelo crescimento e processos oxidativos e em estágios negativos, dores por todo o corpo). órgão do conhecimento: pele. órgão de ação: boca. órgãos físicos: pulmões, brônquios, voz, tratamento digestivo. sistema fisiológico: tireóide. nota musical: sol. equilíbrio emocional: sensibilidade e criatividade artística, dom da palavra, do conhecimento, clarialdiência, independência, justiça imparcial, idealização, entendimento, construção sábia a partir da fala. virtudes: expressa a energia criadora única, unindo corpo mental e o corpo astral, entendimento, devoção, compaixão, amor, abertura para o espiritual e para o novo, transformação, calma. desequilíbrio físico: doenças de garganta, laringite, faringite, problemas de tireóide e paratireóide, doenças mentais, depressão, problemas de coluna cervical, de dentes, distúrbios da fala, calo nas cordas vocais, falta de criatividade, covardia, timidez, doenças nervosas, fobias. chakra(6): frontal. nome: anja (o chakra do comando). localização: entre as sobrancelhas, em cima da raíz do nariz. cor: azul índigo (cor fria). indicações: dor de garganta, dor no ouvido, dor nos olhos, apatia, apendicite, asma, bronquite, pneumonia, catarata, convulsões, tosses, coqueluche, sinusite, dor ciática, dor na coluna, nevralgias, cólicas abdominais, reumatismo agudo, traumatismos, edemas, sangramentos, hemorragia, nefrite, caxumba, hipertireoidismo, paralisia facial, surdez, obsessões, estimula a intuição, acalma a excitação mental, eleva a consciência, aumenta a defesa imunológica, purifica a corrente sanguínea, tônica muscular e depressora respiratória. contra-indicações: não há. mantra: om. som: ei. glândulas: pituitária (responsável pela produção de endorfina). A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 207 órgão do conhecimento: nenhum. órgão de ação: nenhum. órgãos físicos: ouvido, nariz, maxilar superior, seios da face, parte do cérebro. sistema fisiológico: sistema nervoso autônomo. nota musical: lá. equilíbrio emocional: entendimento do próprio caminho, compreensão da motivação do outro, percepção, intuição, visão desenvolvida, fé, concentração, clarividência, erradicação dos erros, devoção, força, perseverança, autoconfiança, carisma, magnetismo. virtudes: mentalidade aberta, expansiva, crescimento espiritual, entendimento dos erros, tolerância, humildade, suavidade, amor, liderança com grande poder magnético. desequilíbrio físico: renite, sinusite, alergias, enxaqueca, problemas de ouvido, surdez, problemas nos olhos, cegueira, catarata, insanidade, depressão, rigidez, insônia, pesadelos. chakra(7): coronário. nome: sahasrara (o lótus das mil pétalas). localização: no alto da cabeça, como uma coroa. cor: violeta (cor fria). indicações: dores na coluna, dor ciática, meningite, perturbações mentais, perturbações nervosas, reumatismo, rins, tumores, crescimento dos ossos, problemas na bexiga, epilepsia, pele, choques, alcoolismo, vícios, indigestão crônica, cistites, raquitismo, tosse seca, queda de cabelos, cicatrizante, estimula o baço, a leucocitose, depressor cardíaco, alimenta o sangue, alimenta a região superior do cérebro, ameniza os estados de irritação. contra-indicações: não há. som: i. glândulas: pineal (responsável pela produção de melanina). órgão do conhecimento: nenhum. órgão de ação: nenhum. órgãos físicos: sistema imunológico, parte superior do cérebro, olhos, ouvido, sistema endócrino, epífese, pituitária. sistema fisiológico: sistema nervoso central. nota musical: si. equilíbrio emocional: capacidade de transformações, espiritualização, acesso ao eu superior, fé profunda, força, coragem, firmeza, poder de comandar, liderar, servir com amor universal e dedicação. virtudes: libertação do ego, desapego, liberdade da materialidade, sabedoria iluminada, perda do medo da morte, coragem, entendimento da imortalidade da alma. desequilíbrio físico: depressão, insônia, problemas endócrinos, tumores, inflamações dos nervos, problemas nos ouvidos e nos olhos, problemas imunológicos, envelhecimento precoce. Portanto, os chakras tem uma importância essencial em nosso organismo. Eles regulam o fluxo de energia no corpo, e regularizam todas as funções corpóreas. A partir desses estudos analisados, seria utilizada uma freqüência sob forma de emanação, diretamente a cada chakra, que seria a nota musical correspondente àquele chakra. 208 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 O papel da musicoterapia Depois de ter abordado o tema AIDS sob uma nova visão, os aspectos psicológicos do indivíduo portador da doença e um possível tratamento através das emanações de freqüência, veremos agora como a musicoterapia pode ajudar nesse conjunto variável de aspectos. A música sempre foi uma constante na vida do homem desde os primórdios das civilizações. Era com ela que os povos conseguiam intervir perante os deuses, curar doenças, tanto físicas, quanto psicológicas, além de todo o aspecto religioso que tinha uma interação íntima com a música. A musicoterapia é processo no qual o indivíduo entra em contato com o seu ISO (Identidade Sonora), e é aonde ele começa a ser trabalhado junto com os aspectos psicosocio-culturais da pessoa. No princípio do ISO, o indivíduo se identifica com os primeiros sons, ruídos, barulhos, melodias no qual ele ouvia quando era criança. A utilização da musicoterapia é de extrema importância para esse primeiro contato com o indivíduo que se encontra com algum déficit psicoemocional. O Dr. Aschoff, criador do método dos ritmos biológicos, considera os principais ritmos como: cardíacos, celulares, digestivos, hormonais, metabólicos, entre outros. Esses ritmos têm relação com os ritmos externos, onde se criou uma especialidade chamada cronoterapia. Já o Dr. Gardner, usa os efeitos do som para aliviar as dores em pacientes de consultórios odontológicos. Conhecida como audioanalgia, o método se explica porque qualquer impulso sensitivo passa obrigatoriamente pelo tálamo, ou seja, se este estímulo for aumentado, um grande número de neurônios que ali estão, se retiram por não ter uma passagem suficiente de impulsos algésicos(via tálamo), para o córtex cerebral. André Brandalise, musicoterapeuta brasileiro, trabalha com um método chamado de musicoterapia músico-centrada. Nesse método, ele coloca a importância da música, como ela, em muitas vezes, sendo a própria terapia. A musicoterapia atualmente, se encontra inserida nos mais diversos campos da medicina e da psicologia, podendo se estender à psiquiatria. Doenças como sendo consideradas novas, estão tendo uma boa aceitação e ótimos resultados quando tratadas pela musicoterapia. Síndrome do pânico, transtornos afetivos, câncer, AIDS, e outras, têm um efeito benéfico e duradouro na qualidade de vida dos pacientes expostos a essas doenças. No caso específico da AIDS, no qual estamos trabalhando nesse artigo, o paciente que é acometido pelo contágio desse vírus, e posteriormente pela doença, deve receber um tratamento especial. Sua condição psicológica está debilitada a ponto de uma fácil instalação da depressão em seu organismo. Essa depressão está tanto em âmbito psicológico, quanto no físico. A palavra depressão parece estar relacionada somente ao estado psicológico, porém ela é definida também como um abaixamento de nível, que também pode se estabeler a nível corpóreo. Portanto, deve se fazer o processo musicoterápico, levando em consideração tudo que deve estar se passando no psicoemocional do indivíduo. A musicoterapia como auxílio físico-psicológico 209 A musicoterapia, no caso específico desta doença, deve ir de encontro não só como ferramenta para auxiliar o processo de ajuda ao indivíduo, concretizando a sua identidade, mas também como fonte indagadora e assistencial de como se formou esse indivíduo, a nível consciente e inconsciente, e de como isso refletiu e reflete em sua vida. Concluo esse artigo analisando que a musicoterapia pode e deve ser usada nos casos referentes a AIDS, com uma nova forma, talvez ainda coadjuvante, mas de extrema importância na melhoria da qualidade de vida à pacientes portadores do vírus HIV. Referências bibliográficas CAMPADELLO, Pier. Musicoterapia na autocura. São Paulo: Maltese, 1995. GERBER, Richard. Medicina vibracional. São Paulo: Cultrix, 1988. GOLEMAN, Daniel. Equilíbrio mente corpo. Rio de Janeiro: Campus, 1997. GUYTON, Arthur C. e HALL, John E. Tratado de Fisiologia Médica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan , 2002. HALPERN, Steven. Som saúde. Rio de Janeiro: Tekbox, 1985. LOWEN, Alexander. Bioenergética. São Paulo: Summus ,1982. ORTIZ, John M. O tao da música. São Paulo: Mandarim, 1998. MAGGIORE, Christine. E se tudo o que você ouviu sobre a AIDS estiver errado? São Paulo: Paulus, 2000. SALVO,Salvatore de. Sinfonia da energética. São Paulo: Schmidt,1992. SIMS, Andrew. Sintomas da mente. Porto Alegre: Artmed, 2001. TAME, David. O poder oculto da música. São Paulo: Cultrix, 1984. WEBER, Augusto. Música e Acupuntura. São Paulo: Roca, 2004. http://www.lafepe.pe.gov.br/medicamentos/medicamentos/Anti-retrovirais Cristiano Steenbrock: Estudante do segundo ano do curso de Musicoterapia da FAP, Faculdade de Artes do Paraná. Participação no Primeiro Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais, com a apresentação na seção pôster, com o tema “A musicoterapia e a utilização das tonalidades”. Participação no Primeiro Seminário de Pesquisa em artes da FAP, com a apresentação oral dos temas “Redução de dores através da emanação de freqüências específicas” e “Como a música auxilia o aspecto visual na recepção de informações”. Participação no simpósio “Paradigmas da Saúde”, como ouvinte. Participação no simpósio “Ciência e Espiritualidade”, como ouvinte. Participação do ciclo de palestras “O Efeito da Música sobre o Homem”, como ouvinte. Compositor, arranjador e músico autodidata. A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense Lílian Nakao Nakahodo (UFPR) Resumo: Esta comunicação aborda o aproveitamento de elementos folclóricos regionais em obras de autores paranaenses ou radicados no Paraná, da primeira metade do século XIX, destacando neste grupo obras de Benedito Nicolau dos Santos Filho, Bento Mossurunga, Antonio Melillo e Brasílio Itiberê da Cunha Luz. O trabalho tem sido realizado no âmbito do projeto “Acervos de Música Paranaense”, desenvolvido no Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná em parceria com a Casa da Memória e Museu da Imagem e do Som. O primeiro século de existência política da Província—posteriormente Estado—do Paraná corresponde cronologicamente ao florescimento dos ideais nacionalistas na arte brasileira. Estudos musicológicos reconhecem tentativas, a partir das últimas décadas do século XIX, de delinear uma fisionomia nacional1 nas “obras executadas em salões da sociedade” – a música erudita – através do emprego de elementos com sabor patriótico e exótico, oriundos da cultura popular. O estudo das manifestações folclóricas e sua utilização como matéria prima composicional, apesar de não ser uma novidade na época - pois ocorrências no início do século já podem ser conferidas no país, tornam-se recorrentes e mais aceitas, gerando uma corrente estética na música que perdura até meados do século XX.. Uma das precursoras desta tendência é a peça de Brasílio Itiberê, de 1869, “A Sertaneja”, construída sobre estrutura básica da habanera (ritmo de música popular em voga na época) em cuja seção intermediária, mais movimentada, está inserida a melodia popular do sul do país, conhecida como “balaio, meu bem, balaio”. Segundo Helza Cameu2, à esse pioneirismo se deve a valorização da obra por musicólogos e historiadores, já que, mesmo no início do século XX ainda era perceptível a resistência, por parte do público musical, à valorização do “popular” nas artes, que se desenvolveu sob forte influência da tradição européia. Fragmento de “A Sertaneja” de Brasílio Itiberê (extraído de Brasílio Itiberê, de José Maria Neves) 1 José Maria Neves se refere, dessa forma, ao que posteriormente denominou-se “música erudita”- termo que, no período citado, vale mais pelo contexto em que a obra é executada do que um gênero. 2 A musicóloga Helza Cameu realizou análise profunda desta obra no estudo “A importância histórica de Brasílio Itiberê da Cunha e da sua fantasia característica A Sertaneja”. (NEVES, 1996, p. 59) A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense Fragmento de “Balaio, meu bem, balaio” (extraído de Brasílio Itiberê, de José Maria Neves) Compositores paranaenses ou radicados no Paraná, da primeira metade do século XIX, acompanham esta tendência e nos mostram indícios de aproveitamento de elementos folclóricos, principalmente regionais. No âmbito do acervo da Biblioteca Renné Devrainne Frank, incluído no Museu da Imagem e do Som de Curitiba, destacamos a produção de Benedito Nicolau dos Santos Filho, Bento Mossurunga, Antonio Melillo e Brasílio Itiberê II. Todos eles realizaram, em algum período da vida, estudo galgado nas tradições populares. Folclore Regional Por folclore regional refere-se às manifestações tradicionais que assumiram, no Paraná, características únicas. Cláudio Alfredo d´Almeida cita, no boletim da comissão paranaense, a existência, atualmente, de 264 danças e folguedos folclóricos no estado, sendo as mais recorrentes a folia de reis, a dança de São Gonçalo, o cateretê ou catira, o fandango, a congada, as cavalhadas e o folguedo do boi. Das danças citadas, restringiuse este estudo ao fandango - expressão popular que hoje sobrevive no litoral paranaense, e que reúne uma série de danças coreográficas - por maior representatividade no universo pesquisado. Sobre os costumes populares do Paraná antes do final do século XIX, Magnus Pereira analisa a mudança de olhares na questão das tradições. A exaltação do progresso e da modernidade – sinônimo de adoção de posturas morais e hábitos burgueses - é substituída pelo lamento à “perda da singeleza e pureza de antigamente”, inclusive das danças populares, que eram vistas, no início do século, como lascivas. Numa província em processo de firmação e modernização, os “batuques e fandangos” foram reprimidos e adquirindo aspectos de dança adotados pelos bailes da burguesia, e cujos remanescentes são as expressões atuais dos fandangos. Além das danças, foram encontradas, no acervo, as temáticas expressas em lendas e mitologia nativas, bem como aspectos da cultura indígena e sertaneja. Inúmeros títulos, como “caboclo”, “canção ao pinheiro”, “campeiras”, “cantares do sertão paranaense”, “chimarrão”, “guairacá”, “saudade do caboclo”, “toada sertaneja”, chamaram a atenção para este estudo, demonstrando a valorização da temática regional como material de criação. Outras obras, apresentadas no catálogo do acervo com subtítulos (gênero) como “folclore”, “toada tingui”, “toada a moda caipira”, “canção regional”, “toada paranaense” também indicam a intenção de aproximação com a cultura popular. Dentro do universo pesquisado, foram escolhidas as obras que atenderam, da forma mais explícita, aos propósitos deste trabalho.3 3 Infelizmente uma partitura que poderia acrescentar conhecimentos aqui propostos não pôde ser, até então, encontrada, intitulada “No sertão: cateretê quasi uma canção”, de Bento Mossurunga. 211 212 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Fandango Paranaense Tida como a mais autêntica manifestação cultural popular do Paraná, o fandango é objeto de crescente interesse no campo de pesquisas musicológicas e artísticas locais, fazendo parte, também, da cultura litorânea paulista e da cultura gaúcha, com as quais compartilha algumas similaridades. No Paraná, adquiriu sentido genérico de festa ou reunião com danças e é atualmente vivenciado no litoral, apesar de encontrarmos evidências de que o baile, em tempos remotos, ocorria também no interior paranaense e nos centros urbanos. Fernando Azevedo aponta, em estudo realizado na década de 70, a existência de cerca de 30 “marcas” - como são tipicamente chamadas cada dança coreográfica - divididas em batidas e bailadas, acompanhadas instrumentalmente por viola, rabeca e adufe, além dos cantos. Entre as mais recorrentes, citamos: anu, queromana, cana-verde, vilão de lenço, marinheiro, domdom, xará, andorinha, chamarrita e serrana. (Fandango do Paraná, 1978). Praticamente todas as músicas são apresentadas em compasso binário. Suas origens, de acordo com Roselys Roderjan, remontam às danças dos salões aristocráticos europeus do século XVIII, principalmente do norte de Portugal, de onde partiram muitos migrantes ao Paraná. A historiadora observa a afinidade das danças populares portuguesas às dos demais países europeus, conferindo-lhes uma origem comum na Idade Média, ocorrência que explicaria as constâncias melódicas comuns ao canto gregoriano presente no fandango e em outras músicas folclóricas. Apesar dos primeiros relatos de prática do fandango datarem do séc. XVIII, não há conhecimento de registros sonoros até a década de 30. Oneyda Alvarenga confirma a escassez de documentação musical sobre o fandango, especialmente do Paraná (Música Popular Brasileira, 1950). Se tal panorama ocorria já nos anos 50, poucos exemplos do fandango tradicional foram preservados ou resgatados. Restam algumas iniciativas, iniciadas na década de 60, como a criação do “Grupo de Folclore e Arte Gralha Azul de Curitiba” (fundada em 1969) por pesquisadores e artistas interessados, pesquisas atuais baseadas, principalmente, no conhecimento empírico dos “caboclos”, e o estudo das obras que utilizaram o fandango e que estão, hoje, alocadas nos acervos de música paranaense. Uma dessas obras, utilizada por Renato Almeida, é a transcrição de duas canções recolhidas por Antonio Melillo e Odilon Negrão. As canções pertencem a uma querumana e um anu, ambas sem data. Do anu, diz-se ser a primeira dança do baile, onde “só os homens sapateiam, como, aliás, acontece com todas as marcas. Os tamancos batem fortes no chão, uníssonos, numa cadência perfeita e substituem o batido.” (Azevedo, 1978). A queromana é também batida e valsada, considerada das mais difíceis e por isso pouco dançada. Há, também, a peça “para canto, piano e sax em Mi bemol” intitulada “Fandango”, cuja letra, de Odilon Negrão, infelizmente não pode ser encontrada. A data também não é descrita. Apesar de apresentar harmonia diatônica simples, recorrente na música popular, não foi encontrado parentesco próximo à música de alguma marca particular de fandango. Mas esboça claramente, através do ritmo, um tempero regional, como pode ser atestado pelo fragmento seguinte: A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense Fragmento de “Fandango”, de Antonio Melillo (Acervo Renné Devrainne Frank) Outra obra a utilizar, de forma mais explícita, elemento folclórico é o n∞ 8 do 3o ato da opereta “Marumby” denominada “Fandango caboclo”, uma comédia musicada encomendada para descrever “as riquezas naturais do Paraná”, escrita e dirigida por Benedito Nicolau dos Santos e estreada com 28 músicos no Teatro Guairá em 1928. Em artigo da Gazeta do Povo (15/12/28) sobre a estréia, seu autor exalta a ausência de preocupação com modelos estrangeiros e o fato da música e do assunto ser “nosso”. O fragmento a seguir foi transcrito da parte para piano e vozes. Fragmento de “Fandango caboclo”, de Benedito Nicolau dos Santos (Acervo Renné Devrainne Frank) Pela análise dos versos, parece tratar-se da música de uma “tirana”, um tipo de marca de fandango no Paraná sobre o qual se sabe pouco. Assim é afirmado: “tanto no seu aspecto de dança cantada quanto no de canção, a tirana parece estar em desuso. Seu desaparecimento, ou sua quase extinção, foi há muito tempo assinalado por vários autores. A documentação musical existente sobre ela é muito escassa.” (Alvarenga, 1950). No mesmo livro, Oneyda reproduz o que diz ser o “único exemplo registrado em livro (...) colhido no Rio Grande do Sul”, “eu amei uma tirana”: 213 214 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Fragmento de “Eu amei uma tirana” (extraído do livro “Música Popular Brasileira, de Oneyda Alvarenga). De fato, além deste exemplo, são conhecidos também os registros das músicas de sete tiranas realizada por Antonio Vieira no códice “Cifras para Saltério”, do fim do século XVIII (Budasz, p. 25). Nos estudos recentes sobre o fandango, são escassas as alusões à tirana e nulos os registros coreográficos ou musicais. Já alusões à “tiraninha” aparecem com maior freqüência, porém ainda são raras as informações mais detalhadas a respeito de sua música. Tal constatação torna ainda mais interessante o “fandango caboclo”, que possui algumas semelhanças à “eu amei uma tirana” - como é possível constatar comparando os dois fragmentos – o compasso ternário, o tratamento melódico-rítmico e o tema poético. Porém, difere completamente da tiraninha, que se trata de uma dança em compasso binário, exposto a seguir: Fragmento de uma tiraninha (extraído do livro Fandango paranaense de Fernando Azevedo) Examinando o programa do 3o ato, sabemos que a peça está inserida no contexto de uma festa, onde é convidado aos “sertanejos a baterem a fandango caboclo”. É possível, portanto, que o compositor,4 estudioso das tradições locais, para musicar a cena com maior fidelidade, tenha utilizado - e não criado – uma melodia de fandango, o que faz ampliar o interesse histórico por essa obra. Lendas e mitos Compositor com grande número de obras editadas no Paraná, Bento Mossurunga se aproveita amplamente da temática regional, fato que pode ser, em partes, deduzido pelo “contato com violeiros populares, com a música produzida numa colônia de negros 4 Benedito Nicolau dos Santos escreveu, dentre outros, o livro “Lendas e Tradições do Paraná” lançado pela Imprensa oficial da UFPR em 1973. A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense libertos (...)”.5 Exemplo disso é o álbum que traz 14 peças sob a seguinte inscrição “Bento Mossurunga, interpretando temas de lendas, crenças e costumes regionais descritos por poetas paranaenses, apresenta, neste álbum, canções de sua autoria.” Nas obras desse álbum, há recorrências constantes ao universo caboclo, como se verifica nos versos de “Festa Ensombrada”: “É noite de são João / Em torno de uma fogueira, / A caipirada faceira / Dança o fandango e o baião. / Sapecada, estala o pinhão / Ao lado, numa braseira / Ferve a água na chaleira / Para o mate chimarrão” com letra de Correia Junior, e nos versos e textura melódica de “Trova Rústica”: Fragmento de “Trova Rústica”, música de Bento Mossurunga e letra de Silveira Neto (Acervo Renné Devrainne Frank) A partitura para piano e voz de “Naipí e Tarobá”, nesta versão editada, traz em sua última página a transcrição de um trecho do livro “Paiquerê”, escrito pelo paranista Romário Martins em 1940, do qual foram inspirados os versos da obra. Trata-se do aproveitamento de uma lenda indígena em torno das Cataratas do Iguaçu. As figuras melódico-rítmicas remetem a um caráter folclórico bem como a alteração em Ré bemol sobre acorde de Mi bemol (intervalo de sétima menor), no 4o compasso. Fragmento de “Naipí e Tarobá”, música de Bento Mossurunga e versos de Milton Condessa (Acervo Renné Devrainne Frank). Obras de Brasílio Itiberê da Cunha Luz não poderiam ser excluídas deste estudo. Integrante da segunda geração nacionalista, dedicou-se ao estudo do folclore tornandose catedrático desta disciplina na Universidade do Distrito Federal em 1938. Apesar da intimidade com o assunto, proporcionada pela direção profissional, as obras do acervo examinadas não demonstram uma relação clara de aproveitamento de material folclórico local. Podem ser ressaltadas, nas obras, constâncias do populário musical folclórico, como células melódico-rítmicas sincopadas, títulos que remetem à cultura regional ou gênero descrito como “folclore”. A peça que mais se aproxima do propósito deste trabalho é “Pescador da Barquinha (folclore)”, datada de 1948. 5 Moçurunga Bento. In: Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular. São Paulo: art, 1977. v.1, p. 492. 215 216 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Fragmento de “Pescador da barquinha”, ambientado por Brasílio Itiberê (Acervo Renné Devrainne Frank) A temática do pescador é recorrente nas manifestações tradicionais litorâneas, locais onde ocorrem os fandangos. O subtítulo folclore nos remete à intenção do compositor em demonstrar que há um caráter popular nesta peça para canto e piano e pode referirse tanto ao texto poético que faz alusão à cultura litorânea, como ao ritmo característico, constante na melodia e no acompanhamento. Considerações finais A frente de pesquisa “Patrimônio Musical: arquivística e organologia” desenvolvido no Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná contempla estudos ligados à preservação do patrimônio musical paranaense, como o projeto “Acervos de Música Paranaense”, âmbito no qual este trabalho tem sido realizado. Restringida aos acervos da 6Casa da Memória de Curitiba e da Biblioteca Renné Devrainne Frank, no Museu da Imagem e do Som, esta pesquisa deverá se estender aos outros acervos compreendidos pelo projeto, a fim de possibilitar maior contextualização do nacionalismo na música paranaense e compreensão dos usos e costumes, bem como as mudanças transcorridas nas manifestações folclóricas desde o século XIX: 6 ∑ Escola de Música e Belas Artes do Paraná: música impressa da primeira metade do século XX. ∑ Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá: inclui obras corais e pianísticas de compositores parnanguaras de fins do século XIX e primeira metade do século XX. ∑ Banda da Polícia Militar do Estado do Paraná: contém música de banda do final do século XIX e início do século XX, na grande maioria em cópias recentes. ∑ Faculdade de Artes do Paraná: contém um pequeno conjunto de obras de Antonio Melillo, além de música de banda de compositores diversos das décadas de 1930 e 40. Este estudo foi realizado no âmbito dos acervos da Casa da Memória de Curitiba e Museu da Imagem e do som, compreendidos no projeto de catalogação “Acervos de Música Paranaense”. Porém, para adequar-se ao objetivo proposto, foram utilizados apenas exemplos do acervo do Museu da imagem e do som, com exceção de “A sertaneja”, de Brasílio Itiberê, que pertence ao acervo da Casa da Memória, e cujo fragmento, entretanto, foi extraído do livro de José Maria Neves. A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense ∑ Acervo particular de Marisa Sampaio: inclui composições de membros da família Frank, das primeiras décadas do século XX. ∑ Acervo particular de Anita Canale Raby: composições doadas por herdeiros de Maneco Viana, contendo música religiosa e pianística. ∑ Biblioteca Nacional: acervos doados por Brasílio Itiberê II e Andrade Muricy. Referências Bibliográficas ALMEIDA, C. A. de. Levantamento de danças e folguedos no Paraná. In: Boletim da Comissão Paranaense de Folclore. Campanha de Defesa do Folclore brasileiro, DAC/MEC. Curitiba: FUNARTE, 1980. Ano 4, n. 4. ALVARENGA, O. Música popular brasileira. Porto Alegre: Ed. Globo, 1950. ANDRADE, M. de. ALVARENGA, O.; TONI, F. C (Coord.) Dicionário musical brasileiro. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; [Brasília, DF]: Ministério da Cultura; São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1989. (Reconquista do Brasil, 2); vol. 162. AZEVEDO, F. C. de. Fandango do Paraná. (Cadernos de Folclore: Nova Série), Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. BRITO, M. L. S. (org.). Fandango de mutirão. Curitiba: Milearte, 2003. ITIBERÊ Brasílio. In: ENCICLOPÉDIA da Música Brasileira : erudita, folclórica e popular. São Paulo: art, 1977. v.1, p.366. MARCHI, L.; SAENGER, J.; CORRÊA, R. Tocadores: homem, terra, música e cordas. Curitiba: Palloti, 2002. MARIZ, V. História da música no Brasil. 5 ed. 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(Campanha de Defesa do Folclore brasileiro), DAC/MEC. Curitiba: FUNARTE, 1980. Ano 4, n.4. ZAGONEL, B. Constâncias melódicas do fandango paranaense. In: Boletim da Comissão Paranaense de Folclore. (Campanha de Defesa do Folclore brasileiro), DAC/MEC. Curitiba: FUNARTE, 1980. Ano 4, n. 4. Lílian N. Nakahodo é graduada Turismo pela Universidade Federal do Paraná e atualmente estuda Produção Sonora na mesma universidade. Foi bolsista, em 2001, do programa kenshu em Okinawa (Japão), monitora da disciplina de História da Música Popular Brasileira em 2004 e desde então, participa do 217 218 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 projeto “Acervos de música paranaense” do grupo de pesquisa “Música Brasileira: Estrutura e Estilo; Cultura e Sociedade”, do Departamento de Artes da UFPR. Além dos estudos, se dedica à interpretação em grupos de câmara de música popular e erudita instrumental. Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC), Maiara Felippe Moraes (UDESC) Resumo: Nesta comunicação procuramos refletir sobre alguns aspectos que relacionam etnomusicologia, musicologia brasileira e música popular brasileira. De início, discutiremos questões das nascentes musicologias, como a exclusão das músicas populares como objetos de estudo, exceto quando consideradas “folclóricas”. Em seguida, discutiremos aspectos da musicologia brasileira, destacando o pensamento de Mario de Andrade, Luiz Heitor Correa de Azevedo, Vasco Mariz, José Ramos Tinhorão e Hermano Vianna, procurando comentar suas diferentes abordagens do mundo da música popular. Concluímos que atualmente há uma grande abertura na musicologia brasileira para os estudos da música popular, mas o estudo das estruturas musicais deste repertório nem sempre é realizado com o mesmo vigor, tal fato sendo interpretado como uma persistência de um pensamento modernista. Palavras-chave: musicologia; etnomusicologia; música popular. Alguns comentários sobre o panorama histórico da musicologia O termo “musicologia”, originalmente entendido como a designação de uma disciplina que cobria o conhecimento de todos os aspectos possíveis da música (acústica, harmonia, estética, história, etc.), abrangendo tanto a música ocidental quanto a chamada música “primitiva”, foi sofrendo ao longo do século XX uma restrição quanto ao seu âmbito, passando a referir apenas ao campo da música ocidental.1 Este percurso tem relação profunda com o próprio desenvolvimento do pensamento ocidental, com a criação da alteridade,2 com a negação das músicas “exóticas” e da música popular como objeto de estudo, com as ideologias que sustentam as dicotomias “arte superior/inferior” e “erudito/popular” que apontam, de um lado, para as idéias de cultivo e erudição, e, de outro, para rudeza e crueza (ver Bastos, 1996). Na visão de muitos musicólogos e também no senso comum, a musicologia é mais restrita não só quanto ao seu objeto de estudo, mas também no que se refere a seus métodos. Assim, a musicologia empregaria muito mais recursos de análise e teoria musical, enquanto que outras disciplinas dariam conta dos aspectos histórico-sociológicos e culturais. Talvez esta divisão tenha a ver com o espírito positivista que imperou na musicologia do século XX, pois, como diz Kerman, “a musicologia é percebida como tratando do factual, do documental, do verificável e do positivista” (Kerman, 1987, p. 2). Retomaremos esta questão adiante. Por ora, vamos comentar alguns marcos históricos da formação das musicologias (o plural adiante se explicará). Inicialmente, a Musikalische Wissenschaft (“Ciência Musical”), pensada em meados do século XIX, voltou-se para a música ocidental do passado, constituindo estudos sobre o espírito de época e a correta forma de execução destas peças, estudos estes que tinham um viés etnográfico (cf. Bastos, 1995). Em 1885, Guido Adler sistematizou a nascente musicologia em três tipos: histórica, comparada e sistemática. Nascida já no plural, portanto, esta disciplina parece opor história e teoria tanto quanto música ocidental e música não-ocidental (“folclórica” e “exóticas”; inclua-se: populares). Estas rupturas marcarão a trajetória e a constituição acadêmica da disciplina. Vamos agora rever alguns pontos sobre a chamada musicologia comparada. Apesar de já se ter algum conhecimento de culturas diversas, é apenas em meados do século XIX que grupos de cientista alemães se unem para sistematizar questionários com assuntos que deveriam ser abordados em viagens de descobertas, ou expedições científicas. Antes 1 Para maiores detalhes nesta trajetória da Musicologia, ver Kerman (1987). Bastos (1995) mostra como a música desempenhou um papel importante na distinção “nós”/”outros” na história do Ocidente. 2 220 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | disso, quase todas as anotações de que se dispunha eram, de forma geral, informações assistemáticas (Lühning, 1991). Essas expedições científicas davam atenção especialmente às diferenças raciais entre os diversos povos, e eram feitos estudos das características morfológicas do ser humano: altura, estatura, etc. Além disso, ainda que de forma superficial, também foram estudadas questões ligadas à esfera social, incluindo assuntos como religião, rituais e artes e mesmo que a comissão de cientistas fosse formada quase que apenas por especialistas na área das ciências exatas, foram recolhidos alguns exemplos de cultura material, que foram então guardados em museus de antropologia. Lembre-se que o pensamento social, nesta época, é marcado pelo paradigma do evolucionismo. Com o surgimento do fonógrafo, em 1887, inventado por Thomas Edison, surgiu a possibilidade pela primeira vez da fixação de um som e sua reprodução.3 A partir de então, todas as expedições cientificas passaram a levar fonógrafos consigo, para gravar músicas e línguas desconhecidas. Estas gravações, consideradas inicialmente simples complementos das pesquisas, num primeiro momento não mereceram grande atenção por parte dos pesquisadores, ficando assim guardadas sem qualquer comentário ou descrição. Somente no início do século XX, pesquisadores começaram a se interessar por estes documentos sonoros que continham músicas tão diferentes de tudo que se conhecia na época: Erich Von Hornbostel, Carl Stumpf, Curt Sachs, entre outros.4 Curiosamente, nenhum deles era da área da música.5 A partir deste interesse em compreender os sons gravados, estes cientistas desenvolveram métodos de trabalho que são importantes até hoje, como a transcrição musical. Inicialmente, nas transcrições era utilizada a escrita ocidental com alguns símbolos adicionais, mas com a diferença de que a partitura resultante não tinha como função a execução, mas sim a anotação descritiva do som para criar uma visualização da música gravada. Talvez por serem ligados às ciências exatas, estes cientistas tentaram analisar a música com um espírito analítico, como se a música fosse apenas uma acumulação de elementos mensuráveis. Além disso, estavam influenciados pela teoria de Darwin e voltados para uma busca das origens e para a evolução da música, sempre convencidos de ser a música ocidental o auge de toda a arte musical, isto de forma coerente com o pensamento evolucionista. Essas idéias foram as diretrizes dessa primeira fase em que se estuda a música “extraeuropéia” (ressaltamos: inclua-se aqui o universo popular) através desta chamada musicologia comparada. O nome se dá justamente porque um de seus métodos principais é a comparação dos diversos parâmetros constitutivos da música, como escalas, tonalidades, ritmos, sempre em relação ao modelo ocidental. Este primeiro momento duro até as décadas de 30 e de 40, e pode ser resumido como uma tentativa de compreensão das culturas musicais do mundo através das gravações contidas em arquivos de fonogramas É importante ressaltar que as análises destas gravações não foram feitas por quem as coletou: ou seja, os cientistas não conheciam pessoalmente os músicos e nem a cultura do povo que estavam estudando. Porém, havia a consciência de que, além das questões diretamente ligadas ao nível sonoro, existiam muitas outras que pertenciam mais à área da antropologia e que somente pelas gravações não se era possível abordar (cf. Lühning, 1991). O termo “musicologia comparada” foi abandonado em prol de “etno-musicologia”, termo cunhado por Jaap Kunst em 1950 (Kunst, 1950), isto acompanhando uma transferência do centro de excelência de Berlim para os Estados Unidos, onde a disciplina se consolidou. Este hífen posteriormente foi cancelado, e surgiu o termo “etnomusicologia”, isto nos 3 Para Bastos, “congelar” os sons é uma idéia arquetípica do Ocidente, apontando para a tentativa de suprimir a distância (Bastos, 1995, pp. 18–20). 4 Estes pesquisadores trabalharam em torno do arquivo de fonogramas de Berlim (ver Christensen, 1991; Bastos, 1995; Lühning, 1991 e Pinto, 2001). 5 É importante ressaltar que o fato destes pesquisadores não serem originalmente da área de música é significativo, sendo este um fato importante até hoje, como comentaremos adiante. Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira 221 Estados Unidos em 1955, durante o 1º encontro anual da Society for Ethnomusicology (SEM), associação que até hoje é uma das mais importantes do mundo na área. Dentre os estudos mais importantes deste período destacam-se Merriam (1946) e Nettl (1956), sendo que ficou definido que os objetos de estudo da Etnomusicologia seriam as músicas orientais, folclóricas e “primitivas”. Em 1977, John Blacking retoma uma proposta de Harrison (1963) de que a função de toda musicologia é ser etnomusicologia, afirmando que “toda musicologia é uma musicologia étnica”, isto no sentido de que admite o viés étnico nos seus objetivos e métodos analíticos, e que “a música ocidental deve igualmente ser tratada como estranha ou exótica” (Blacking, 1981). A partir daí, a etnomusicologia se abre para a música ocidental e, importante ressaltar, as músicas populares. No entanto, mantêm-se até hoje uma fronteira entre etnomusicologia e musicologia, pois esta última desenvolveu-se firmemente voltada quase que exclusivamente para as tradições eruditas euro-americanas e, diga-se, quase como sinônimo de musicologia histórica, ou seja, sempre estudando o passado e não as tradições vivas do presente (Neves, 1995). Cristalizou-se também o discurso de que a etnomusicologia, por aprofundar o olhar no contexto sóciocultural, necessariamente “despreza” a análise das estruturas musicais, esta sendo um método muito mais próprio da musicologia. Este discurso, apesar de incoerente se levarmos em conta vários estudos etnomusicológicos,6 faz algum sentido quando olhamos para as recentes publicações sobre música popular, que pouco ou nada tratam dos elementos musicais, sendo que é pertinente notar que muitos não foram escritos por musicólogos.7 Em contrapartida, na musicologia tradicional (voltada especialmente para o universo erudito e constituída por pesquisadores com formação musical), parece haver uma supervalorização do conhecimento técnicomusical em detrimento de uma abordagem mais antropológica e/ou sociológica. Ou seja, o discurso acima referido parece fazer sentido quando o objeto é a música popular. Talvez o desinteresse pela música popular tenha relação com o fato de ela ser considerada “pobre” se tratada apenas em seus aspectos estritamente musicais, o que pode ter incentivado o maior interesse quanto às suas questões sócio-culturais. Tudo isto tem relação com o que foi dito acima sobre a negação das músicas “exóticas” e da música popular como objeto de estudo e sobre as dicotomias “arte superior/inferior” e “erudito/popular”. É claro que a musicologia não é o único discurso legítimo para se falar sobre música: diversas outras perspectivas interessadas pela música enriquecem o conhecimento a respeito, cada uma a seu modo, como é o caso de disciplinas tais como antropologia, história, jornalismo, e muitas outras. Atualmente, os chamados popular music studies começam a utilizar ferramentas de análise musical, ao mesmo tempo em que o território da musicologia se abre para a música popular (ver Middleton, 1993). Após este breve panorama, passaremos para o cenário brasileiro, apresentando aspectos da musicologia no país e a questão da presença ou ausência da música popular nesta área. 6 Por exemplo, estudos antropológicos da música indígena, repletos de transcrições e análises musicais, como Bastos (1990), Mello (2004), Montardo (2002) e Piedade (2004). 7 Veja-se, por exemplo, as diversas publicações da editora 34 sobre música popular (por exemplo Calado, 1997; Dreyfus, 1999; Giron, 2001). 222 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | A Musicologia no Brasil e os estudos sobre música popular Para falar da musicologia no Brasil, é necessário falar algumas palavras sobre obras e idéias de autores importantes como Mario de Andrade, Bruno Kiefer, Luiz Heitor Correa de Azevedo e Vasco Mariz. Mario de Andrade foi um dos precursores da musicologia brasileira, principalmente quando esta se debruça sobre a música popular. Apesar de ainda se ter pouco conhecimento da história da musicologia no Brasil,8 a obra de Mario de Andrade é bastante conhecida e estudada, sendo reconhecidamente de enorme importância para o que foi o desenvolvimento da musicologia brasileira até os dias atuais. Andrade foi o principal articulador do movimento musical modernista que, apesar de manter a tradicional hierarquização entre o erudito e o popular, propõe um movimento de valorização do chamado “populário” (Naves, 1998). Quando Mário despontou como pensador e crítico musical no Brasil, o movimento modernista estava já em sua fase nacionalista, que se firmou como estética hegemônica até meados dos anos 1940. Para Travassos (2000), tal estética pode ser resumida em cinco proposições: “1) A música expressa a alma dos povos que a criam; 2) a imitação dos modelos europeus tolhe os compositores brasileiros formados nas escolas, forçados a uma expressão inautêntica; 3) sua emancipação será uma desalienação mediante a retomada do contato com a música verdadeiramente brasileira; 4) esta música nacional está em formação, no ambiente popular, e aí deve ser buscada; 5) elevada artisticamente pelo trabalho dos compositores cultos, está pronta a figurar ao lado de outras no panorama internacional, levando sua contribuição singular ao patrimônio espiritual da humanidade” (Travassos, 2000, pp. 33–34). Mário de Andrade expõe estas idéias no célebre Ensaio Sobre a Música Brasileira (Andrade, 1962). Deve-se lembrar que o pensamento do início do período republicano no Brasil foi marcado pela busca do progresso e da modernização, com o modelo dado pela Europa ocidental. Neste ambiente pouco propício a populismos, Mário inova com sua ideologia modernista nacionalista expressando sua admiração pela música popular brasileira, dela, entretanto, ainda exigindo uma série de desenvolvimentos, já que a vê destituída de maiores elaborações formais (ver Naves, 1998). Como é expresso no Ensaio, a música popular se encontra em um estado bruto, necessitando ser cultivada pela arte erudita para então “elevarse” ao nível de “música artística”. No cerne do nacionalismo musical modernista, portanto, estabelece-se, de forma congênita, a ideologia que sustenta, ao lado da riqueza e da “autenticidade” do mundo popular, sua inferioridade artística. Este pensamento paradoxal é resistente, e ainda hoje reflete na sociedade brasileira. Se, por um lado, não há dúvida que Mario foi um defensor convicto da música popular, por outro há que se olhar com cuidado para seu pensamento, já que a busca do popular a que Mario se refere é uma busca do Brasil profundo (Piedade, 2005) que parece excluir a chamada “música popular urbana” que, eventualmente, pode encaixar no que Mário chama de música “popularesca”, uma denominação claramente pejorativa para esta música, que era ligada ao mercado cultural e vista com desconfiança pelos modernistas. Um motivo para este repúdio à música “popularesca” ou “semiculta” era devido às suas influências internacionais, o que, conforme o ideário modernista, poderia atrapalhar no processo de nacionalização. Pode-se dizer que todo este pensamento é persistente não apenas no Brasil, mas que se encontra encapsulado em narrativas que ainda circulam o mundo (ver Hamm, 1995). Apesar da ambigüidade do termo “popularesco”, a linha que separa este termo de “popular” é muito tênue, o que gerou grandes dificuldades na classificação e na busca da autenticidade da música brasileira. As reflexões de Mário de Andrade tiveram grande repercussão tanto na musicologia brasileira, especialmente na produção de compositores que seguiram os princípios 8 De fato, uma História da Musicologia Brasileira ainda é um projeto em elaboração (Castagna, 2004). Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira 223 modernistas. Vasco Mariz é um importante musicólogo brasileiro que, como muitos outros, teve forte influência de Mario de Andrade.9 Comentaremos aqui um aspecto desta influência. Para observar isto mais de perto, comentaremos um aspecto desta influência. Em um artigo chamado A Música Brasileira em Crise (Mariz, 1997), publicado pela primeira vez no Jornal do Brasil, em 1991, Mariz coloca como dois dos mais graves problemas da crise da música brasileira os seguintes fatos: a diminuição acelerada do status do músico erudito e a crescente internacionalização da música popular brasileira. Os temores do autor eram de que até o final da década (de 90) não houvesse mais compositores eruditos no Brasil, e também que o “nosso samba” fosse substituído pelo rock ou por algum outro gênero estrangeiro. Segundo Mariz, a principal causa da desvalorização do músico erudito (tanto compositores quanto intérpretes) foi a supervalorização do músico popular, sendo o músico erudito completamente marginalizado pelos meios de comunicação de massa.10 Mariz afirma que “tudo é sacrificado ao gosto do povão – é o nivelamento por baixo”, alegando que, sob este aspecto, o Brasil estaria se distanciando do primeiro mundo e “afundando cada vez mais no terceiro mundo”. O autor utiliza um conceito de “popular” que, na verdade, tem dois sentidos: o primeiro está ligado às origens da música brasileira, ao que existe de autêntico e que deve ser preservado, enfim, ao Brasil profundo; o segundo diz respeito ao que é do "povão", ou seja, o que é consumido pela grande maioria dos brasileiros e que é imposto pelos meios de comunicação de massa. Ecoa aqui o pensamento modernista de Mário quando este trata dois sentidos de “música popular” e “música popularesca”. Quando abordada a questão da crise na música popular com mais aprofundamento, o autor parece diferenciar com mais clareza este conceito antes colocado nos mencionados dois sentidos. A idéia de música popular defendida por Mariz aparece nos termos de “música regional” e “música nacional”, músicas que, segundo ele, são baseadas no folclore do país, que estaria por desaparecer. A causa do desaparecimento desta música popular, abarcada por estes conceitos, é a força de uma outra música popular, novamente exemplificada pelo rock, imposta por empresas multinacionais da música a fim de produzir mercadorias vendáveis em todo o mundo. Mariz coloca essa tendência da internacionalização da música popular como “impatriótica”, devendo ser revertida, o autor achando que o governo assiste de braços cruzados a este domínio cada vez maior da comercialização. Esta questão do nacionalismo como estratégia de defesa patriótica do “nacional” também é bastante convergente com a obra de Mário de Andrade: esta tendência “impatriótica” da internacionalização da música remete às premissas modernistas sobre o nacionalismo na música. Porém, a “verdadeira música popular brasileira” tem o seu valor não enquanto arte, mas sim enquanto “produto autêntico”, “original”, da cultura brasileira que, se lapidado pela arte culta, pode vir a se transformar em uma obra artística. Eis a narrativa da riqueza bruta do popular. Estas questões aparecem também quando o autor discorre sobre a educação musical. Para Mariz 9 Dentre suas principais obras, podemos destacar (Mariz, 1983; 1985; 1997). Esta é uma narrativa ainda muito freqüente que reflete uma espécie de ciúme pela vivacidade da música popular brasileira. Trata-se de um nexo importante que navega na dicotomia popular/erudito no Brasil: o que está em jogo é o “reconhecimento” ou a falta de reconhecimento público. O outro lado da moeda, aquele que vai reconhecer ou deixa de fazê-lo, é, na verdade, o cenário internacional, palco onde o Brasil se espelha e onde anseia refletir sua profundidade interior. Esta questão está imersa naquilo que Bastos (1995) chama de “concerto das nações”. Veja uma recente aparição deste tipo de queixa, no caso do ano do Brasil na França (2005), quando diversos artistas da música erudita brasileira lamentaram a ausência da “música brasileira de concerto” no evento, em contrapartida com a abundância de apresentações das músicas populares do Brasil. 10 224 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | (op.cit.), uma formação musical apropriada iria ajudar na formação de “platéias de concerto”. Citando alguns países onde existiria uma educação musical efetiva, o autor afirma que, nestes, as crianças são condicionadas a ouvir a “boa música”: ou seja, a música erudita. Em nenhum momento, quando trata do tema educação, Mariz toca no assunto “música popular”, como que afirmando a necessidade apenas da música erudita na “boa” formação musical de um indivíduo. Já o musicólogo e compositor Bruno Kiefer mostra sua preocupação com a falta de obras didáticas atualizadas sobre música brasileira, afirmando ser esta o principal objetivo de seu pequeno livro sobre a história desta música, com o qual pretende contribuir para a formação de uma “consciência musical brasileira” (Kiefer, 1982). É digno de notar que Kiefer desconsidera completamente a música indígena, afirmando que esta música não “deixou vestígios” na música brasileira e até hoje é um fenômeno “exótico”. Lembrando de Luciano Gallet, Kiefer afirma que a cultura indígena é “mais fraca” e sucumbiu aos esforços civilizatórios e missionários.11 Não apenas a música popular, portanto, mas também a indígena foi sistematicamente excluída da formação musical dos brasileiros, que se volta unicamente para o universo erudito europeu como modelo, apesar do discurso nacionalista. Dos autores importantes da musicologia brasileira, estamos destacando alguns nomes que, de alguma forma, se dedicaram ao mundo popular. Cabe mencionar aqui, ainda que sem espaço suficiente para o merecido detalhamento, outros autores que foram importantes nos estudos sobre música popular brasileira, tais como Sílvio Romero, que em 1883 publicou a obra Cantos Populares do Brasil (Romero, 1954), Ary Vasconcelos (Vasconcelos, 1964), Oneyda Alvarenga (Alvarenga, 1950), Zuza Homem de Mello (Mello, 1976), Valter Krausche (Krausche, 1983), entre muitos outros. Um dos recortes possíveis nesta bibliografia é sugerido por Eugênio (2000), que busca analisar como a questão das origens é pensada na música popular brasileira, para tal focalizando duas grandes correntes historiográficas: a primeira diz respeito à busca do que é “autêntico” na música popular brasileira, e a segunda procura questionar a própria origem desta autenticidade. Já de início, o autor se coloca nessa segunda perspectiva, crítica, entendendo a categoria da autenticidade não como inerente ao evento ou objeto, e sim como “uma convenção que deforma parcialmente o passado, mas que nem por isso deve ser pensada sob o signo da falsidade” (op.cit: p. 1). O antropólogo Hermano Vianna, em seu estudo sobre o samba, é outro autor que se enquadra nesta mesma linha. Vianna estuda a questão da eleição do samba como símbolo de identidade musical brasileira (Vianna, 2002), isto não como algo que ocorreu por acaso, mas sim sendo relacionado ao momento no qual estava em construção a idéia de brasilidade, que até hoje integra nossa concepção do que é entendido como “legitimamente” brasileiro. Em outra obra (Vianna, 1990), este autor comenta as teorias que pensam a indústria cultural como causadora da homogeneização da cultura. Sua hipótese é de que a indústria cultural tende a se adaptar à heterogeneidade dos diversos públicos, fragmentando-se ao máximo para satisfazer estes vários grupos. Vianna questiona a busca pelo “autêntico”, afirmando que “tudo pode ser ‘nosso’ e do ‘outro’ ao mesmo tempo”. Ou seja, nenhum fenômeno social é puro, e nesse caso a preocupação com o que é “autêntico” deixa de fazer sentido, assim como a separação que é feita entre produtos da indústria cultural, da cultura popular e da cultura erudita. 11 Percebe-se aqui outra questão da musicologia brasileira que foi a completa desconsideração da música indígena na história da música brasileira, merecendo poucas menções por parte destes autores que escrevem sobre o assunto (digna exceção: Cameu, 1977). No caso de Kiefer (op.cit), isto se torna bastante problemático pelo caráter didático do livro, que reproduz um preconceito que somente nas últimas décadas está sendo reconhecido. Não é nosso objetivo aqui oferecer contrapontos a esta visão, que já foi tão criticada e, pode-se dizer, atualmente foi quase abandonada (ver Bastos, 2000). Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira 225 Para concluir estes comentários, lembramos de José Ramos Tinhorão, autor que parece diferir desta linha mais crítica mencionada por Eugênio (2000). Tem sido um importante colaborador na construção da história da música brasileira, com muitos livros publicados sobre o assunto (Tinhorão, 1997; 1998), além de ser organizador de um grande e importante acervo de dados sobre a música brasileira. Tinhorão se aproxima mais da linha historiográfica, que está em busca da origem, da preservação do “autêntico”, e, desta forma, se afina mais a Mario de Andrade. Também quando trata da indústria cultural, Tinhorão discorda radicalmente das teorias de Vianna, vendo esta indústria como uma instituição que promove a homogeneização em escala planetária, pondo em risco a preservação das músicas verdadeiramente brasileiras. Aí se manifestam, portanto, pressupostos já presentes no início da musicologia no modernismo. Mapeamentos Destacamos agora os esforços de construção de mapas da música no território brasileiro. Estes mapeamentos da música brasileira constituem buscas etnográficas da musicalidade do Brasil profundo: ou seja, um território, imaginado como qualquer outro, entendido como interior, que abriga as mais profundas raízes da musicalidade (Piedade, 2005). Em 1928 e 29, Mário de Andrade faz sua primeira viagem ao nordeste e, em 1938, o Departamento de Cultura do Estado de São Paulo, chefiado por este pesquisador, enviou ao nordeste uma Missão de Pesquisas Folclóricas. Esta missão representou um fato histórico importante nos estudos sobre música brasileira. Na década de 1940, Luiz Heitor Correa de Azevedo, compositor e estudioso do folclore brasileiro, realizou quatro expedições a quatro regiões do Brasil, alcançando um estado em cada uma delas. Nas regiões centro-oeste, nordeste, sudeste e sul, foram visitados os estados de Goiás (1942), Ceará (1943), Minas Gerais (1944) e Rio Grande do Sul (1945). Estas expedições revelam a aspiração deste autor de construir um mapa da musicalidade brasileira em suas várias manifestações regionais: retratos da musicalidade do Brasil (Azevedo, 1943; 1950; 1954). Na década de 90, enquanto o espírito da world music imperava no cenário internacional, músicos e musicólogos retomaram a busca do Brasil profundo. No Brasil, ocorre o ressurgimento de práticas musicais tradicionais que estavam relegadas ao mundo tradicional e que ganharam a mídia e o universo jovem: gêneros nordestinos, chorinho, entre muitos outros. Neste período surgiram grupos musicais que praticaram suas próprias pesquisas, como, por exemplo, o grupo paulista “A Barca”, que viajou pelo país coletando informações sobre ritmos e danças como jongo, carimbó, coco e samba de roda, servindo de 12 base para o repertório de seus próprios discos. A partir desta década começa a se falar em “resgate”, conceito importante e revelador,13 justamente como aquele de “tradições ameaçadas”, idéias que hoje fundamentam ações de Estado e políticas culturais internacionais14. Um esforço de mapeamento é o caso da série de programas para televisão “Música do Brasil”, produto de expedições a várias regiões do Brasil sob o patrocínio da 12 A este respeito, ver Travassos (2003). “Resgate” implica em salvamento: salvar da mudança. A ideologia do resgate se opõe à aceitação das mudanças culturais, procurando congelá-las em sua autenticidade (imaginada). 14 Por exemplo, o registro e tombamento do patrimônio imaterial e programas da UNESCO (ver Londres et al., 2004). 13 226 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | Abril Cultural15. Surgem também mapeamentos regionais, como o projeto “Bahia Singular e Plural”.16 Os mapeamentos, portanto, continuam sendo entendidos como algo que deve ser feito, que tem utilidade representacional na construção da brasilidade. Nesta primeira década do século XXI, o Brasil volta-se para dentro mais uma vez, acreditando na autenticidade das raízes e na profundidade de sua musicalidade. Estes esforços “musicográficos” merecem uma abordagem musicológica mais fina e uma reflexão antropológica, no sentido de alcançar os nexos sócio-culturais e os diversos significados envolvidos.17 Comentários finais Pode-se observar que grande parte da nova e crescente bibliografia sobre música popular publicada no Brasil é escrita por profissionais de áreas como jornalismo, estudos literários, comunicações, ciências sociais. O interesse pelo estudo da música popular urbana no Brasil se deu primeiramente entre radialistas, produtores, jornalistas, já que os musicólogos que se interessavam pelo assunto se voltavam geralmente para o folclore, herança do início da musicologia brasileira no modernismo (Ikeda, 2000). O envolvimento de musicólogos (de formação) com os estudos sobre música popular ainda é incipiente, já que estes continuam tendo um maior interesse na área da música erudita. Mesmo quando se torna objeto de estudo acadêmico, a música popular brasileira continua sendo objeto de estudo preferencialmente de áreas como estudos culturais, antropologia, sociologia, história, e a música erudita continua a ser estendida como província de estudos da musicologia. Alguma mudança neste cenário vem ocorrendo nos últimos anos, com a consolidação da superação do positivismo e de uma postura mais reflexiva e relativizadora na pesquisa em música (Lucas, 1995). Longe de ser um fenômeno da musicologia brasileira, podemos perceber esta questão já em Kerman (1987). Este autor afirmou que a música popular tem que ser entendida, em primeiro lugar, em termos de uso e valores sociais, afirmação esta que até hoje é compartilhada por muitos musicólogos. Mas podemos nos perguntar: por que o estudo da música popular em especial deve ter essa abordagem sociológica? No início do capítulo de introdução, quando o autor fala sobre o impulso de musicólogos em seus estudos, a paixão pela música aparece como principal motivo para o mergulho nas estruturas musicais. Mas será que essa justificativa não é suficiente também quando se trata de música popular? Esta abordagem especialmente sócio-antropológica que têm os estudos em música popular talvez se deva ao fato de que uma partitura de música erudita em geral pareça muito mais “rica” do que uma de música popular. Porém, isto se deve não a uma falta de complexidade, mas a escolhas de elementos para transcrição: se fossem transcritos com precisão todos os eventos sonoros de uma peça de música popular, incluindo acentuações especiais, variações microtonais, escrita para percussão, etc., a partitura se tornaria igualmente “rica”. Portanto, não é preciso que se aplique conhecimentos da sociologia ou da antropologia como que para preencher uma “lacuna de música” na música popular: não há esta “falta”. As perspectivas sócio-culturais são fundamentais na compreensão de um repertório musical, independentemente de se utilizar ou não partituras, seja música erudita ou popular. Como 15 Destacamos também a série de vídeos “Som da Rua”, da Zero Produções, e a “Cartografia Musical Brasileira” (2000/2001), projeto coordenado pelo músico Benjamim Taubkin e produzido pelo Itaú Cultural. 16 Coordenado por Fred Dantas, este é um projeto do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (IRDEB), tendo produzido até o momento oito CDs. 17 Para Ikeda, “musicografia” é um procedimento pré-científico, mera descrição do objeto estudado ou coleções de música e documentos de interesse geral (1998). Este autor argumenta que o material musical per se não revela as redes de significado que envolvem sua produção enquanto objeto histórico e o cultural (Lucas, 1998). Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira 227 afirmou Harrison (1963), “a função de toda musicologia é ser, de fato, etnomusicologia, ou seja, ampliar sua gama de pesquisa de forma a incluir material que é qualificado como sociológico”. A chamada “nova musicologia” dos anos 90 já vem praticando esta inclusão, utilizando conhecimentos da semiótica, teoria da recepção, narratologia, relações de gênero e antropologia (Agawu, 1996; Rosand, 1995), aproximando-se notadamente da abordagem etnomusicológica, cujo cerne parece se manter como sendo a etnografia da música (Seeger, 1992). Diante deste quadro, percebe-se que dentre os estudos dirigidos para música popular no Brasil, poucos são os estudos que abordam com profundidade a música popular em seus aspectos musicais, trabalhando, no nível técnico, detalhes estruturais-sonoros. Não há dúvida que estudos com perspectivas diversas fornecem reflexões importantes sobre as questões histórico-culturais. Entretanto, com raras exceções, o aspecto musical fica relegado a um plano secundário. Pode-se dizer, com isto, que no Brasil a música popular não tem sido estudada em sua plenitude cultural-musical. Espera-se que, a exemplo do que vem acontecendo em outros países e com outros repertórios,18 as musicologias brasileiras encontrem em breve formas de investigar o plano sonoro da música popular. Referências bibliográficas ALMEIDA, Renato. Compêndio de história da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1958. ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1950. AGAWU , Kofi. “Analysing music under the New Musicological Regime”. Music Theory Online, 2 (4), par. 7, 1996. ANDRADE, Mario. Aspectos da música brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1965. ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1962. AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 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Acácio Tadeu de Camargo Piedade: Doutor e Mestre e Antropologia (UFSC), Bacharel em Música (UNICAMP); professor e pesquisador nas áreas de musicologia/etnomusicologia e composição/arranjo no Departamento de Música da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); membro dos grupos de pesquisa MUSICS (Música, Cultura e Sociedade)-UDESC/CNPq e MUSA (Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe)-UFSC/CNPq; membro d o International Council for Traditional Music (ICTM), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) e da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET). Congadas da Lapa: as músicas de um folguedo na educação musical1 Márcio Horning (UFPR), Guilherme Romanelli (UFPR) Resumo: Este artigo apresenta elementos do trabalho de graduação homônimo, do curso de Educação Musical da Universidade Federal do Paraná em 2005. Trata-se de um estudo da Congada da Lapa, realizado entre março e outubro deste ano, que objetivou levantar a história do folguedo, suas características mais marcantes, a transmissão entre gerações, desvelando processos ‘nativos’ de ensino-aprendizagem (etnopedagogias) e especialmente a sistematização de algumas de suas músicas, compondo um material relevante para uma possível aplicação nas aulas de artes da Lapa. Palavras-chave: congada lapeana, educação musical, etnopedagogia. Introdução A cidade da Lapa, por conta de sua importância histórica e sua participação heróica na história do Brasil, apresenta neste início de século um potencial turístico crescente. Com uma história de 236 anos, também é cenário de destaque no campo da cultura popular e religiosa, especificamente na manifestação folclórica devocional da Congada “... folguedo2 de formação afro-brasileira, em que se destacam as tradições históricas, nos usos e costumes tribais da Angola e do Congo, lembra coroação do rei Congo e da rainha Ginga (Cascudo, 2000, p. 149)”. Por meio do projeto de revitalização3 ocorrido em 2004, este folguedo tem acontecido com mais freqüência, ganhando espaço e destaque no cenário atual. A Congada da Lapa faz parte da história deste município, sendo apresentada de costume, no dia 26 de dezembro de cada ano,4 na tradicional festa em louvor a São Benedito5, além de outras datas.6 Entretanto, apesar de sua importância, apenas uma pequena parcela da população lapeana conhece em detalhes a Congada além dos próprios participantes (Terno de Congos). Assim, o objetivo desta pesquisa foi levantar à história do folguedo, suas características mais marcantes, a transmissão entre gerações, desvelando processos “nativos” de aprendizagem “etnopedagogias” entre os Congos, e a sistematização de algumas de suas músicas, compondo um material conciso que venha a servir de consulta para possível aplicação nas aulas de artes da Lapa. Justificando esta pesquisa, por se tratar de uma manifestação regional e importante (Congada), entende-se que suas músicas consistem em 1 Formalmente este artigo traz um recorte de um trabalho mais amplo, homônimo, elaborado como pré-requisito para conclusão do curdo de Educação Musical da Universidade Federal do Paraná, realizado neste corrente ano. 2 “Manifestação folclórica que reúne juntos os seguintes elementos: letra, música, coreografia e temática ex: Congada (Cascudo, 2000, p. 241)”. 3 Projeto realizado em 2004 que teve como objetivo principal o resgate e a continuação das Congadas no município da Lapa, dando-a condições de subsistência (DVD Congadas da Lapa, 2005). 4 Segundo dona Laura Baron, diretora da cultura da Lapa, “... ainda na época da escravidão, todo o dia 26 de dezembro - dia do santo preto São Benedito - os senhores davam as sobras da ceia de natal aos negros para que festejassem ao seu modo (Stival.; Mota.; Markus.; 2005, p. 1)”. 5 Também chamado "Santo Preto", este santo é objeto de devoção dos Congos, os quais, segundo a história, foram os responsáveis pela construção da primeira capela para abrigar a sua imagem. (Fernandes, 1977, p. 4). 6 A Congada, após o projeto de revitalização, também vem sendo apresentada em datas cíveis e comemorativas como o aniversário da cidade da Lapa, o que a tornou atração turística do município. 232 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 um material relevante para o ensino da arte, especificamente na educação musical, pois ao mesmo tempo em que se resgata o folclore local que é rico pela sua diversidade cultural, ensina-se música partindo de um universo próximo dos alunos. A metodologia empregada para esta pesquisa constou de três fases distintas: Coleta de dados: Esta primeira fase constou no levantamento de todo material disponível encontrado para elaboração do trabalho. Dentre as técnicas utilizadas no levantamento dos dados, foram empregadas à documentação indireta e a documentação direta, seguindo a classificação de Lakatos e Marconi (1991): A documentação indireta implicou no levantamento de dados de fontes primárias (pesquisa documental) e fontes secundárias (pesquisa bibliográfica). A pesquisa documental levantou arquivos públicos (pasta de documentos sobre Congadas), guardados em pasta separada na biblioteca municipal da Lapa. Na pesquisa bibliográfica, foram encontradas inúmeras fontes sobre o assunto em jornais e revistas, na Internet, em meios audiovisuais, como o dvd Congada da Lapa, 2005, e publicações em livros, teses e pesquisas, como o material coletado na década de cinqüenta pelo antropólogo Jose Loureiro Fernandes (1903-1977).7 Estes dois últimos decisivos para construção do referencial teórico. A documentação direta consistiu nos dados coletados diretamente pelo pesquisador em campo, por meio da observação direta intensiva.8 O levantamento de campo ocorreu entre meses de abril a julho do ano de 2005, quase todos feitos no local de ensaios do grupo. Processamento do material coletado: A segunda fase esteve concentrada na seleção do material utilizado para elaboração de todo referencial teórico. Foram feitas as transcrições e editorações das músicas das Congadas relacionadas pelo pesquisador para estudo com o auxílio do software Finale 2005, que permite conferir por meio da reprodução eletrônica, a acuidade da transcrição. Análise das informações recolhidas: Nesta fase, constaram as análises da forma (foram verificados os temas, introduções e refrões), harmonia (apurou as tonalidades das musicas) e Instrumentação (constatou os instrumentos e respectivas funções dentro da música). Constam ainda desta fase as análises rítmica e melódica, cujos processos ainda estão em andamento e não foram aqui dispostos. As Congadas da Lapa Breve histórico do folguedo As Congadas se difundiram no Brasil em meados do século XVII (Cascudo, 2000, p. 149). No Paraná, “... as mais antigas referências das Congadas remontam ao século XIX durante o Império Brasileiro (Festas Religiosas e Populares. Congadas in http://www.lapa.pr.gov.br 7 “... Fernandes formou-se médico em 1927 pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Entre os cargos que ocupou, se destacou como professor da UFPR. Foi fundador do Museu de Arqueologia e Artes Populares, da UFPR. Dr. Loureiro era ainda membro da Academia Paranaense de Letras e do Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico do Paraná (Garcia, 2000, pp. 205–207)”. 8 De acordo com as autoras Lakatos e Marconi (1991), consiste nas técnicas de observação (fotos e anotações em diários), e entrevista (feitas neste caso de forma mais aberta, em conversas informais nos ensaios e na casa dos participantes). Congadas da Lapa 233 /lapa_folk1.html. Acessado em 06/06/05”.9 Este folguedo poderia ser encontrado nos municípios de Curitiba, Castro, Lapa, e na antiga região povoada no norte do Estado, conhecida como Vale do Ribeira (Fernandes, 1977, p. 1). Atualmente, neste estado a Congada é mantida somente no município da Lapa. Segundo Dr. Antônio Garcia, professor e pesquisador paranaense, “... quando Loureiro Fernandes assumiu o cargo de Secretário da Educação e Cultura, entre 28/02/48 e 03/01/49, ele empenhou-se na realização da primeira Congada da Lapa10 (Garcia, 2000, p. 205)”. Ainda de acordo com o autor, em 1976, “... uma segunda edição da Congada da Lapa foi realizada durante festejos de abertura do teatro São João. Reorganizada por Roselys Vellozo Roderjan, com patrocínio da Campanha em Defesa do Folclore Brasileiro (ibid, 2000, pp. 205–206)”. Por motivos de abandono, falta de recursos e desinteresse das autoridades locais, as Congadas da Lapa ficaram esquecidas a partir de 1980 permanecendo por 17 anos sem apresentação. Por ocasião da comemoração dos 228 anos da cidade da Lapa, as Congadas foram reapresentadas no ano de 1997, sendo Benedito Arcanjo, também conhecido por "seu Barraca", filho do antepenúltimo Rei do Congo, um dos responsáveis pela reunião do grupo novamente. A partir do ano de 2003, novos horizontes vieram quando o grupo de Congada da Lapa foi convidado a participar do filme Cafundó, dirigido por Paulo Betti e Clóvis Bueno. Por meio do filme, as Congadas foram projetadas nacionalmente e em 2004, um grande projeto de revitalização foi feito, visando à continuidade do grupo de forma independente. Algumas de suas características mais acentuadas As Congadas da Lapa “...constituem-se de diálogos declamados, danças e cantos, sendo representadas, só por homens, com exceção acompanhado de representações, com todos os personagens caracterizados com roupas vistosas (Filho, 1979, p. 103)”. O folguedo conta com cinqüenta e dois integrantes atualmente, dentre eles, quatorze são crianças, chamados Conguinhos (DVD Congadas da Lapa, 2005). São todos negros e mulatos de origem afro-brasileira, pertencentes em sua maioria a uma única família, a dos Ferreira. A Congada da Lapa é formada por três textos conhecidos dos Congos, mas pela dificuldade de ensaio, há muitos anos apenas um é apresentado: ... Há recordações, cheias de orgulho, da Congada de 1883, na Lapa. Eram conhecidos três "papés" de Congada; o da atual denominado Dia Solene; outro chamado Dia Grandioso e finalmente o Ilustre Vassalo. Este ultimo texto também é conhecido por Africanada, pela abundancia de termos africanos nas suas falas. Pela grande dificuldade de ensaiar os dois últimos, pela extensão e 9 Após inúmeras pesquisas, esta foi à única fonte encontrada pelo pesquisador que informa a data da chegada deste folguedo ao Paraná. 10 Garcia provavelmente referiu-se a 1ª montagem das Congadas feita para gravação e documentação, ou ainda, a primeira montagem após o fim da escravidão, o que parece sensato, visto que uma das formas encontradas pelos congos para manutenção do folguedo, foi recorrer aos órgãos públicos. 234 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 pelo vocabulário, há muitos anos a apresentação limitá-se ao Dia Solene (Fernandes, 1977, p. 5). O texto original das Congadas é conservado em um caderno antigo,11 “... tratá-se de um manuscrito repassado de geração a geração pelos Congos desde 1935, antes disto, as evoluções e os textos eram passados por meio da transmissão oral (Lanza, Beto, 2001, p. 1)”. Ele é tratado com grande apreço pelos Congos, e recorre-se a ele sempre que se há qualquer dúvida de alguma passagem do texto, do bailado ou da música. Há também outras relíquias que são guardadas com orgulho pelos Congos, como chapéus, espadas e outras indumentárias (roupas). Após a revitalização ocorrida em 2004, estes passaram a ser usados nos ensaios do grupo. A devoção de fé dos congos a São Benedito Um dos principais motivos da continuação das Congadas aos dias atuais, se dá pela grande devoção popular de fé a São Benedito, o "Santo Preto". Esta devoção já é antiga e pode ser verificada pela primeira capela construída para abrigar a imagem do santo,12 construída no século passado por escravos (negros que são ancestrais dos atuais protagonistas das Congadas). De acordo com a história, a fé está ligada à esperança de dias melhores, vinda desde os tempos de escravidão aos dias atuais (visto que ainda hoje se trata de famílias de classe social menos favorecida). O culto ao santo se dá de maneira tão grande, que ocorre além das fronteiras da cidade da Lapa, como conclui Fernandes: ... inegável a influência espiritual que a cidade da Lapa exerce através do culto de São Benedito, não só no próprio município da Lapa, mas também nos municípios vizinhos e alguns do estado de Santa Catarina Basta olhar a localização de destaque do Santuário de São Benedito da Lapa, para notar que está edificado no lugar mais alto e aprazível da cidade (Fernandes, 1977, p. 4). Nos versos do enredo, a presença do santo negro permeia toda encenação: ... Meu São Benedito Vós fostes cozinheiro Hoje ele é um santo De Deus verdadeiro Meu São Benedito Santinho dos Pretos Ele fala na boca 11 Também chamado de Caderno do Embaixador, este manuscrito é guardado a sete chaves pelos congos remanescentes, que não o emprestam mais de maneira alguma, segundo seu Ney (embaixador da Congada da Lapa), em entrevista ao pesquisador, o motivo se dá pelo fato da conservação do mesmo (Ney, abril de 2005). 12 “... A primitiva imagem venerada no Santuário é de madeira, imagem dos tempos coloniais, rústica com pequeno resplendor de prata, medindo 70 centímetros de altura, em torno dessa imagem formaram-se lendas (Fernandes, 1977. p. 4)”. Congadas da Lapa 235 Responde nos peito (Fernandes, 1977, p. 7). As festas de São Benedito da Lapa, sempre muito concorridas na comunidade, contaram para sua realização com o auxílio da Irmandade do Milagroso Santo, da qual participavam ativamente alguns membros figurantes da própria Congada (ibid, 1977, p. 1). A este fato, se deve provavelmente, a não-dissociação das Congadas à devoção que os Congos consagram a São Benedito, como relatou Fernandes: ...É uma representação profana, mas profundamente impregnada de religiosidade, e a simples leitura do texto demonstra, a sobejo, como vem impregnada de respeito e amor e traduzindo profundo sentido religioso do auto. Lá estão os versos de admirável louvor ao Santo e a alva bandeira estrelada de prata, objeto de tantas reverências, a ostentar no seu centro a esfinge do Santo Negro, trazendo nos braços o Menino Deus. (ibid, 1971, p. 5). Como símbolo de destaque, a bandeira anuncia o santo, o sagrado, a fé e a festa. Ao seu lado, são prestadas homenagens a este conjunto, além de agradecimentos por graças recebidas e realização de novas promessas. Ela esta presente durante toda encenação e tem importância fundamental no desenrolar do folguedo. Apesar de não encenarem todos os anos, como já ocorreu em tempos anteriores, os Congos continuam devotos e a interrupção não significa o rompimento do compromisso, se pudessem dançariam a Congada anualmente, pois “... no Congo uma promessa é paga com participação direta do devoto da dança. A dança é, portanto eficaz em si mesma. Seja como condição e milagre seja como atualização do compromisso feito na promessa (Brandão, 1983, p. 78)”. Entretanto, neste folguedo nem sempre os participantes dançam para pagar promessas ou fazê-las. Em algumas ocasiões eles dançam apenas porque gostam e as pessoas também gostam de vê-los dançar. Atualmente (após a revitalização), os Congos da Lapa passaram a fazer apresentações em troca de cachês aos participantes, o que vem dando mais entusiasmo ao grupo, especialmente tratando-se de pessoas economicamente desfavorecidas. O bailado e sua indumentária: conflito de duas cortes com marqueação de costumes portugueses O bailado da Congada é organizado basicamente em duas cortes: Rei Zumbi do Congo com a sua fidalguia13 e a Embaixada da Rainha Ginga do Reino de Metícola na Angola, também com sua fidalguia. Estes grupos são ordenados de dois modos distintos: os vassalos do rei Congo ficam dispostos em filas duplas paralelas, em frente de seu soberano, já os vassalos da rainha Ginga ficam dispostos em filas quadruplas paralelas e também em circulo, conforme a evolução das cenas e das musicas, e se posicionam mais ao fundo (obedecendo ao fato de não participarem dos instantes iniciais da dança). 13 Fidalguia se refere à representação das pessoas que freqüentam a corte, incluindo príncipes, vassalos e serviçais. 236 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Sintetizando o enredo da Congada, a história representa um mal entendido entre ambas (do rei e da rainha). O conflito é travado por meio de diálogos agressivos, na forma de versos, ditos pelos participantes e simulando uma guerra: ... Oi lá vois secretário. Vai me vê que gente é essa. Entrando meu Reino adentro. Sem ordem e sem licença. (Filho, 1979, p. 103). As falas são intercaladas com danças14 e evoluções com espadas e lanças ao som dos instrumentos. Após os “desentendimentos”, a embaixada da rainha Ginga é dominada e tem seus integrantes presos. Ao final, desfaz-se o mal entendido, os membros da embaixada da Ginga são perdoados e todos cantam e prestam louvores a São Benedito, que se torna a razão principal da Congada, como o santo que influenciou o perdão do rei. Nas Congadas apresentadas na Lapa, nota-se influência dos costumes portugueses: ... O Rei e sua corte constituem sem dúvida uma marqueação da monarquia portuguesa. Há na Congada da Lapa, uma influência muito acentuada dos costumes da nobreza portuguesa, influencia que provavelmente se exerceu através dos conhecimentos que tinham dos antigos hábitos da nossa corte, que se refletiam os dos antigos fidalgos portugueses. (Fernandes, 1977, p. 5). Esta influência também ocorre nas indumentárias usadas para encenação do folguedo, que sofreram mudanças após a escravidão (deixando de ser vistosas e luxuosas): ... É a vós unanime [SIC], que, antigamente, fino era o vestuário, pois, quando eram cativos, vestiam-se melhor que agora, que são forros. Sente-se nessas narrativas, a influência da instituição social que era a escravidão, na realização e no desenrolar da Congada. Era a emulação, entre os senhores, a melhor apresentarem seus negros, com a colaboração das sinhás [SIC], para que, nos festejos públicos, os Congos representantes da escravaria de casa louvassem o auto, não só pelo fiel desempenho de seu papel, mas pelo apuro da indumentária com a qual se apresentavam. (Fernandes, 1977, p. 5). Atualmente (após revitalização em 2004), novas roupas puderam ser adquiridas, elaboradas de acordo com as antigas, dando um brilho complementar ao espetáculo. Revitalização das Congadas da Lapa: um projeto de resgate do folguedo Ao final do ano de 2004, a agência de desenvolvimento Lux,15 através da lei de incentivo à cultura e com o patrocínio da estatal Petrobrás, elaborou um grande projeto de revitalização 14 A dança caracteriza-se “... por uma performance multi-expressiva de cores, formas, movimentos, sons, palavras, gestos, disputas, união, competitividade, ... (Arroyo, 2003, p. 15)”. 15 “... agência de desenvolvimento, uma entidade que desenvolve projetos na area da cultura (Correio Metropolitano, 15 de outubro de 2004, p. 6). Congadas da Lapa 237 para as Congadas da Lapa. O projeto foi apresentado ao Terno de Congos e discutido em longas reuniões e conversas envolvendo toda a comunidade de Congos. A proposta do projeto foi manter a Congada lapeana “o mais original possível”, mas com nova estrutura, roupas, adereços e outros elementos. O projeto, patrocinado pela Petrobrás, investiu R$ 1.000.000,00 em recursos que foram divididos de maneira igual entre Congadas e reforma do Teatro São João.16 Por meio da revitalização, foi possível aprimorar os passos do bailado com assistência de um coreógrafo, que estudou toda a dança e posteriormente auxiliou nos ensaios. Novas roupas puderam ser providenciadas de acordo com as originais, com o apoio de uma estilista e das costureiras do grupo. Novos adereços foram adquiridos (jóias e acessórios), e o grupo agora conta com aparelhagem completa e moderna de som para apresentações em lugares abertos, o que levou a necessidade do recrutamento de um técnico de som para auxilio nas montagens. O projeto inicial ainda previu o aprimoramento dos músicos, que tiveram aulas na Casa da Música da Lapa com professores renomados, entre os quais Rogério Gullin, professor de violão/viola caipira e o professor de acordeom, gaita ponto e de botão conhecido pelo apelido de “Mancha”. Com a revitalização, as Congadas da Lapa ganharam maior brilho e destaque, e estão cada vez mais integradas ao roteiro turístico da cidade como um dos “espetáculos que só a Lapa tem”,17 Ainda falta um local para os ensaios, mas já existe um projeto de reforma de um barracão em andamento. O objetivo principal do projeto, segundo os organizadores, “foi dar condições aos Congos da Lapa de manterem viva esta manifestação folclórica no decorrer dos anos vindouros (DVD Congadas da Lapa, 2005)”. Congos e Conguinhos: a continuidade se dá pela transmissão entre gerações (etnopedagogias) A Congada da Lapa provém das primeiras famílias de Congos do município, que chegaram à região há mais de cinco gerações (Santos, 1979, p. 104). A sua tradição vem sendo mantida ao longo dos anos pelo aprendizado da transmissão oral, ou seja, de pai para filho, Congo para Conguinho. A necessidade de se manter a tradição do folguedo, pode ser notada na preocupação dos mais velhos em manter a identidade cultural do grupo (herança delegada por seus pais). Eles levam seus filhos (Conguinhos), desde muito cedo para os ensaios, para que possam aprendera cultura herdada dos antepassados.18 16 “... Construído em estilo elisabetano, o Teatro São João continua sendo o centro cultural da Lapa. Com capacidade para 212 espectadores, foi construído em 1873 e possivelmente inaugurado em 1876. Dádiva dos tropeiros. (Revista Cidades do Brasil, junho/2002)”. 17 Frase do encarte das Congadas para distribuição turística, elaborado pela secretaria da cultura da Lapa. 18 Os pais dos conguinhos de hoje, herdaram este costume de seus pais, que por sua vês também herdaram de seus pais e assim sucessivamente, o que evidencia a importância do parentesco na conservação do folguedo, pois são os mais novos que vão perpetuar a tradição. 238 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Nas Congadas da Lapa, “seu” Miguel Ferreira (rei Congo) e seu irmão Ney (embaixador), ambos nascidos e residentes neste município, são os responsáveis principais pelos encontros, reuniões e ensaios do grupo, tarefa às vezes desafiadora, como contou Miguel: ... A jornada longa de trabalho semanal às vezes dificulta bastante os ensaios do grupo, que encontra muita dificuldade em reunir todo pessoal (Miguel, abril de 2005). Os textos, as falas e definições de papeis ficam por conta do Rei da Congada,19 que possui lugar de destaque na hierarquia. Segundo informações dos próprios Congos, por ocasião dos ensaios, ele pode anotar em um pedaço de papel a fala de cada um dos participantes, que devem decorá-las, assim o rei reconhece nos ensaios o papel de todos e pode ajudá-los. Geralmente os mais velhos já sabem suas falas décor, repassando-as aos mais novos. Da mesma forma dos textos e da dança, as músicas também são ensinadas aos mais novos nos ensaios, como o caso do filho de seu Ney Ferreira, de apenas cinco anos de idade, que já possui e toca um tambor (especialmente desenvolvido para ele, em tamanho menor), em todos os ensaios e apresentações do grupo. Sempre acompanhado dos mais velhos, o menino vai aprendendo o batido pelo ato da escuta, da imitação gestual e do fazer musical dos músicos mais experientes. De acordo com Arroyo, ocorrem aí processos “nativos” ou “informais” de aprendizagem, “etnopedagogias” (Arroyo, 2003, p. 16). A educação não está subordinada a professores e educadores na escola, ela acontece em locais diferentes, de acordo com os ensaios do grupo. Nestes múltiplos espaços, os mais velhos por meio da imitação e do fazer musical e gestual, procuram demonstrar aos mais novos seus conhecimentos do folguedo. Souza (2001), falou desta real possibilidade de aprendizado em seu artigo ‘múltiplos espaços e novas demandas’, apresentado no X encontro anual da abem, onde relatou: ... Na área especifica da educação musical, a tarefa de ensinar e aprender música também já não é exclusividade da escola. Crianças e jovens talvez “aprendam” musica, hoje, mais em seus ambientes extra-escolares do que na escola propriamente dita, pois não há dúvida de que é possível aprender e ensinar música sem os procedimentos tradicionais a que todos nós provavelmente fomos submetidos (Souza, 2001, p. 85). A Congada é um exemplo de aprendizado extra-escolar, onde os mais novos aprendem música (entre outras coisas), no ato do fazer musical implícito no ritual. Arroyo (1999), em sua tese de doutorado, estudou de maneira aprofundada estes processos de educação ocorridos no contexto do congado, segundo a autora: ... na linha interpretativa do ritual como veiculador de mensagens, conforme Leach (1992), estas são constituídas e constituidoras no cenário cultural. Esta dialética traz implícito um processo de aprendizagem em permanente ação. A teoria do ritual aponta para seu caráter pedagógico (Arroyo, 2003, p. 15). 19 "... OS REIS CONGOS sempre foram muito respeitados na comunidade e mesmo as pessoas mais gradas tinham-lhes grande consideração. Sua presença na CONGADA era solicitada com empenho e indispensável era a sua orientação nos ensaios (Filho, 1979, p. 101)”. Congadas da Lapa 239 A autora exemplifica citando dois autores, Damatta e Brandão: “... o ritual é um dos elementos mais importantes não só para transmitir e reproduzir valores (Damatta, 1990, p. 26 in Arroyo, 2003, p. 15)”. “... tudo o que acontece (no ritual) ensina (Brandão, 1984, p. 35 in Arroyo, 2003, p. 15)”. Para Arroyo, o fazer musical ocupa lugar de destaque no ritual, tornando-se um dos símbolos dominantes20. Segundo a autora “... por meio das ações de tocar, dançar, cantar, fazer música, sentidos de continuidade, identidade, resistência, pertencimento são constituídos, reafirmados e aprendidos (ibid, 2003, p. 15)”. Música das Congadas da Lapa Coleta do material Feitos exaustivos levantamentos bibliográficos não foi encontrada pelo pesquisador a data das músicas relacionadas para o estudo. O primeiro registro foi feito por Fernandes (1951), que as transcreveu e editou. Para levantamento das musicas, foi utilizado o DVD Congadas da Lapa (elaborado, gravado e lançado pela agência Lux em março de 2005), e o material recolhido por Fernandes, fundamental para elaboração das transcrições. As quatro músicas selecionadas para estudo foram: Calunga. Não queremos guerra. Dança dos bastões. Chamada dos Conguinhos. Transcrição e Editoração das Músicas. Como a gravação foi feita ao vivo e ao ar livre, apesar dos novos recursos tecnológicos adquiridos (aparelhagem), e um técnico de som (auxilio e montagem), uma das dificuldades principais encontradas pelo pesquisador, foi que em alguns trechos não é possível reconhecer auditivamente parte das letras cantadas, a gravação não traz legenda. Então foi de grande valia o material coletado na década de cinqüenta por Fernandes. Com ajuda de um violão (como referencial de afinação), ritmos e notas foram escritos na partitura. Feitas as transcrições, a próxima etapa foi a editoração das músicas para partitura, feita com por meio do software Finale 2003 (que permite ao redator através dos meios eletrônicos conferir a veracidade daquilo que se está transcrevendo). Como exemplo, segue abaixo uma das transcrições feitas: 20 A autora explica que “(...)como símbolo, ele participa do processo dialético de veiculação de mensagens(...)”. (Ibid, p. 15.). 240 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Fig. 1: exemplo de transcrição de uma das músicas selecionadas para estudo. Dando seqüência aos processos de seleção, transcrição, e editoração das musicas selecionadas, o próximo passo elaborado foi à análise. Propondo uma possível aplicação na escola, o estudo de vários aspectos permitiu que um material mais elaborado fosse levantado, para dar subsídio a um ensino de música que leve em consideração as manifestações culturais do município da Lapa. A análise compreendeu cinco aspectos, dos quais apenas três foram abordados neste artigo: a análise da forma, da harmonia e da instrumentação utilizada. A análise melódica e as questões rítmicas não foram abordadas pelo fato de ainda não estarem concluídas pelo pesquisador. Analise da forma Levantou em cada uma das músicas as frases musicais, que foram representadas por vogais (A, B, a’). A tabela traz ainda a determinação do número de compassos, introdução ou refrão, como segue: Música Forma Refrão Introdução Número de Compassos Calunga A / a’ Não Não 08* Não queremos guerra A / a’ Não Não 08* Dança dos bastões A / a’ / a” Não Não 12* Congadas da Lapa Chamada dos Conguinhos Intro. / Ref. / A / Ref. / A / B. 241 Sim Sim 26 Tabela 1: Forma; relação das musicas estudadas e suas respectivas formas. * Para estes temas, ocorrem repetições até o final da cena, que varia de acordo com a apresentação. Nas musicas analisadas notou-se um certo padrão de composição em sua forma. Das quatro musicas transcritas, apenas uma possui introdução e refrão, nas outras apenas ocorre uma variação do tema principal. Harmonia A análise harmônica apresentou as tonalidades de cada musica. A tabela a seguir mostra as tonalidades praticadas nas Congadas de 1951 (transcritas por Fernandes) e as praticadas em 2005 (selecionadas e transcritas pelo pesquisador), para fins de comparação: Tonalidades Músicas 1951 2005 Calunga Mi bemol maior (Eb) Sol maior (G) Não queremos guerra Fá maior (F) // Dança dos Bastões Lá maior (A) // Chamada dos Conguinhos Fá maior (F) // Tabela 2: Harmonia; relação das tonalidades encontradas nas musicas em 1951 e em 2005. Apesar das tonalidades permanecerem maiores, nota-se que foram transpostas todas para sol maior (2005). Segundo os músicos do grupo, esta transposição para mesma tonalidade foi um meio encontrado para facilitar a prática de conjunto entre ambos. Instrumentação Utilizada. As Congadas da Lapa atualmente contam com os seguintes instrumentos: uma viola, um violão, duas sanfonas (sendo uma delas um acordeom e um a gaita ponto), uma rabeca21, três xeques-xeque,22 três tambores, sendo dois maiores (adultos) e um menor, (infantil), distribuídos e organizados conforme Tabela 3: Instrumento Função Família Nº de Instrumentos. Viola Harmonia Cordofones 01 21 É uma espécie de violino, de timbre mais baixo, com quatro cordas de tripa, afinadas em quintas, sol, ré, lá, mi, e friccionadas com arco de crina, untado no breu. Tem sonoridade ranfenha, melancólica e quase inferior (Cascudo, 2000, p. 567). Vale lembrar que a rabeca utilizada na Congada é a do Fandango do Paraná, possuindo apenas três cordas, mas as características são idênticas. 22 Caracteriza-se “... por uma cabaça grande, envolta num trançado semelhante à rede de pescaria, tendo presos pequenos búzios nos pontos de intersecção das linhas. Também é conhecido por xaquexaque, cabaça, ágüe, piano-de-cuia (Cascudo, 2000, p. 10)”. 242 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Violão Harmonia Cordofones 01 Rabeca Melodia Cordofones 01 Acordeom Melodia/harmonia Aerofones 01 Gaita Ponto Melodia Aerofones 01 Xeque-xeque Rítmica Idiofones 03 Tambor Rítmica Membranofones 03 Tabela 3: Instrumentos; relação dos instrumentos utilizados, suas famílias e suas respectivas funções no conjunto. Como se pode notar na tabela acima, o único instrumento a variar em função é o acordeom, que em algumas musicas cumpre a função da harmonia e em outras da melodia. Os tambores juntamente com os xeques-xeque fazem à marcação rítmica e são eles que conduzem o andamento de todas as músicas. Geralmente tocam em ostinato (a não ser quando há improviso de um músico mais experiente), e são considerados muito importantes em função no do folguedo, pois em algumas das cenas do bailado, o ritmo da dança segue o ritmo dos tambores. A viola e o violão são responsáveis pela base harmônica (acordes), e finalmente a rabeca e a gaita ponto fazem à linha melódica, geralmente em uníssono. Considerações finais Ao auge de seus 239 anos, a cidade da Lapa (importante marco histórico do Paraná), vive um período calmo de conquistas no campo social. Recentemente ganhou sua primeira faculdade, a FAEL (Faculdade Educacional da Lapa), e está no roteiro turístico do Paraná, com um potencial crescente. Um de seus destaques é a Congada (que ganhou novo impulso após o projeto de revitalização [2004]). Este folguedo apresenta resistência à cerca de dois séculos na cidade, sendo o único do Paraná a ainda ser apresentado. Ao longo do trabalho de campo, com o estudo detalhado do folguedo, algumas questões de grande relevância foram surgindo: A Congada faz parte da identidade cultural do lapeano; Na Congada ocorre um processo informal de educação; O folclore é uma possibilidade real de ensino de música; Estas questões foram verificadas após contato direto do pesquisador com os Congos em seus ensaios. A primeira questão é sobre identidade cultural lapeana. Apesar de não se saber a data exata da 1ª congada realizada na Lapa, por meio dos estudos de várias fontes, a probabilidade maior é que remontam a meados do século XIX neste município, na época colonial, visto que trata-se de um auto trazido pelos ancestrais escravos das primeiras famílias de Congo da Lapa. Congadas da Lapa 243 A Congada da Lapa já ultrapassou cinco gerações, ou seja, sua história é quase tão antiga quanto a história do próprio município. Por esta razão, atualmente são consideradas como parte da identidade cultural dos lapeanos, tratadas por alguns pesquisadores como raiz no município. Este fato é motivo de orgulho entre os Congos remanescentes da Lapa. Outra questão se refere ao processo implícito de educação que ocorre a cada ensaio realizado pelo grupo (no qual as gerações de agora estão sendo ensinadas). Esta discussão vem ganhando forca entre os educadores, que a cada dia, estão mais atentos aos “múltiplos espaços e novas demandas do mercado” (Souza, 2001, p. 85). Como já falado anteriormente, o aprendizado “informal”, ou seja, fora da escola, pode se dar de maneira muitas vezes mais eficiente que o escolar( ibid, 2001, p. 85). Arroyo (2003) também explana a este respeito, e vai além, a autora desenvolve uma parte de sua tese de doutorado estudando os processos de ensino-aprendizagem no contexto do Congado. A autora relata que ao se estudar estes processos que chama de “nativos” de educação (etnopedagogias), o pesquisador está ampliando seu próprio universo como educador. A terceira questão é referente a uma velha discussão que abrange desde folcloristas a cientistas sociais. É sabido que o folclore é dinâmico, ele atravessa gerações e se mantém vivo entre nós, os folguedos são prova disto (exemplo, cirandinha). Entretanto, ao se pretender trabalhá-lo na escola, algumas questões básicas devem estar bem claras ao educador, por exemplo: O que se quer trabalhar ao usá-las em sala de aula e quais ferramentas devem ser utilizadas pelo educador para repassar este conhecimento. Estas questões são fundamentais para que o processo de ensino não ocorra em vão, e possa estar a serviço da educação. Este é um dos desafios do educador, possuir habilidade para trabalhar tais processos e aproveitá-los no ambiente escolar. Por fim, este trabalho não possui pretensões de nenhum método prático sobre Congadas. A intenção deste estudo foi levantar alguns aspectos do folguedo para uma possível aplicação em sala de aula, como material de apoio para consulta. Referências bibliográficas. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Festa do Santo Preto. Rio de Janeiro - Funarte/Instituto Nacional do Folclore - Goiânia - Universidade Federal de Goiás, 1853. CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global editora, 9ª edição 2000. GARCIA, Antonio. Dr. Loureiro Fernandes: Médico e Cientista: Antropologia e Etnologia. Curitiba, 2000, pp. 205–207. MAY, Elisabeth. Music’s of Many Cultures: An introduction. Editor Foreword by Mantle Hood. Los Angeles, Londres: University of California Press Berkley, 1980. SOUZA, Jusamara. Múltiplos espaços e novas demandas profissionais: reconfigurando o campo da Educação Musical. Uberlândia: Anais do X encontro anual da Associação Brasileira de Educação Musical. 2001. 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Atualmente é professor auxiliar no curso de musicalização infantil do departamento de música desta universidade. Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva Marcus Vinícius Marvila das Neves (UFES) Resumo: Esta comunicação é uma exposição inicial do trabalho que pretende estudar a convergência de idéias entre o musicólogo nacionalista Mário de Andrade e o grupo Música Viva, tendo como base O Banquete, (último trabalho do autor), no qual observamos vínculos com a concepção do Manifesto de 1946 e, a posteriori, apontar as sínteses geradas por este encontro entre duas posições distintas e marcantes na música brasileira. Palavras-chave: Música Viva, Manifesto 1946, Mário de Andrade, Banquete. Esta comunicação é uma exposição inicial do trabalho de pesquisa que estamos realizando sobre a importância do Manifesto de 1946 do grupo Música Viva na história da música brasileira do século XX e está sendo desenvolvido no âmbito do Núcleo de Estudos Musicológicos1 coordenado pela Profª. Dr.ª Mónica Vermes da Universidade Federal do Espírito Santo. O interesse pela produção de um trabalho de pesquisa com uma temática relacionada ao grupo Música Viva foi despertado durante o curso da disciplina de História da Música I, na qual abordava-se também a história da música brasileira. Como trabalho final da disciplina, apresentamos um trabalho expositivo e uma monografia sobre a história do Música Viva. O contato com o tema e a descoberta de afinidades com as idéias adotadas pelo grupo e principalmente por Koellreutter, nos levaram a dar prosseguimento a uma pesquisa acadêmica mais profunda sobre este tema, que, por sua vez, só recentemente tem sido abordado de forma mais ampla pelos pesquisadores nacionais. Chegar à decisão de trabalhar com o cruzamento das idéias de Mário de Andrade e do grupo Música Viva2 foi fruto de um extenso trabalho de leitura, visto que a possibilidade de estudar apenas o histórico do grupo seria algo redundante, já que o musicólogo Carlos Kater publicara um trabalho bastante detalhado sobre o assunto. Nesta comunicação, apresentemos dois tópicos que pertencem à redação oficial do projeto: Introdução e Justificativa, e Objetivos. Logo em seguida, já começaremos a expor alguns tópicos desenvolvidos no trabalho. Introdução e Justificativa As três primeiras décadas do século XX da história da música brasileira são marcadas pelo embate entre o modernismo nacionalista e a cultura musical da época, centrada em posturas provenientes do período romântico, com uma estética ainda voltada apenas para a beleza, e para a aceitação e apreciação da obra pelo público. O surgimento do Movimento Modernista, principalmente com a Semana de Arte Moderna de 1922, teve fundamental importância para o início do desenvolvimento de um processo de reflexão e atualização em todos os campos das artes e da literatura brasileira. Mais tarde, no campo musical, o modernismo provocaria um novo embate, agora, entre as 1 Este trabalho foi concebido de forma independente e mediante à criação do Núcleo de Estudos Musicológicos, foi incorporado ao mesmo. Lembramos que o Núcleo está em processo de registro no CNPq e na Pró-reitoria de Pesquisa da UFES. 2 Durante a comunicação será exposto o porquê do cruzamento de duas idéias aparentemente tão contraditórias. 246 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 suas idéias para a formação de uma música nacional e as novas correntes que surgiriam a partir da década de 1930. Mas o florescer das novas idéias modernistas foi essencial para acabar com o marasmo na vida artística brasileira no começo do século XX. Graça Aranha, um dos grandes nomes do movimento, na sua conferência proferida na abertura da Semana de Arte Moderna, no dia 13 de fevereiro de 1922, afirmou (Teles, 2000, pp. 280–286): A remodelação da estética do Brasil iniciada na música de Villa-Lobos, na escultura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti, Anita Malfaltti, Vicente do Rego Monteiro, Zina Aita, e na jovem e ousada poesia, será a libertação da arte dos perigos que a ameaçam do inoportuno arcadismo, do academismo e do provincialismo. As idéias modernistas pautadas no processo destruição/construção, na transitoriedade, na negação do academismo, tinham a proposta de romper com o passado, mas, não excluíam sua devida importância até aquele presente. Os literatos propunham o fim do parnasianismo, ou seja, o fim de um movimento já solidificado e saturado no seu campo de atuação, a literatura. A música, estava representada unicamente, num primeiro instante, pela figura de Villa-Lobos, que na década de 1920, tinha uma postura semelhante às idéias modernistas (vale lembrar que a concepção musical de caráter nacional já estava presente em sua obra pelos menos desde 1917). O maestro junta-se à “balbúrdia modernista” e rompe com o academismo, o conformismo e com certas concepções herdadas do romantismo. Aproveitando temas folclóricos, empregando técnicas composicionais ligadas a experiências musicais mais recentes e esquemas harmônicos enriquecidos por superposição de tonalidades, recusando normas cadenciais, convergindo a música popular e a música erudita, e introduzindo instrumentos típicos brasileiros nas suas orquestrações, Villa-Lobos amplia seu olhar sobre a forma de compor, e junto com outros compositores – Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Glauco Velasquez, Arthur Pereira, Assis Republicano, Jaime Ovalle, Camargo Guarnieri –, amparados pelas idéias da criação da música nacional de Mário de Andrade, passam a utilizar as proposições modernistas nos seus processos composicionais. Dá-se início ao movimento nacionalista na música brasileira. Nesse momento, a música do país começa a sua solidifição como movimento, mesmo que ainda não articulado de forma plenamente organizada, mas, que buscava um objetivo em comum que era a construção da música nacional. Porém, mesmo com o movimento musical modernista, a música brasileira ainda transitava por caminhos distantes das novas concepções estéticas de composição que surgiam naquele momento na Europa e não conseguira romper totalmente com as concepções românticas. Coube a grupos minoritários de renovação introduzir esses novos recursos no meio musical do Brasil. Dentre eles, o mais importante foi o Música Viva, considerado por vários musicólogos, como: Vasco Mariz, José Maria Neves e Carlos Kater, como o grupo que deu vida a uma nova escola de composição brasileira. O Música Viva é criado em 1939 pelo alemão Hans-Joachim Koellreutter (1915–2005), que chegou ao Brasil no ano de 1937, e liderado também por Cláudio Santoro (1919–1989) e César Guerra-Peixe (1914–1989). Junto com a proposta musical dodecafônica – introduzida no Brasil por Koellreutter –, o grupo também apresenta novos posicionamentos (ou princípios) perante a situação musical daquele momento. Os mesmos eram divulgados através de programas de rádio, revistas e Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 247 manifestos. Entre os documentos produzidos, destaca-se a Declaração dos Princípios, mais conhecida como Manifesto de 1946. Este faz parte de um terceiro momento na curta história do Música Viva (o grupo se dissolve em 1950), no qual o movimento, nesse período, estava realmente centrado na função da música e do artista no meio social. No grupo, então, aflora (principalmente no Manifesto de 1946) uma aglutinação das idéias do musicólogo e literato Mário de Andrade (1893–1945), que influenciou toda uma geração de músicos nacionalistas que, ou convivem em paralelo com o Música Viva, ou o antecedem. Parece paradoxal, mas passam a coexistir num mesmo documento princípios andradeanos (nacionalismo) e princípios que o grupo assumira desde o seu começo (universalismo), ainda que os princípios andradeanos não sejam citados diretamente ou estejam ligeiramente adaptados ao posicionamento do grupo (Kater, 2001, p. 92). O Música Viva, com essa aglutinação das idéias de Mário de Andrade, viria a fortalecer as idéias propostas ainda em 1922 pelo movimento modernista num contexto geral. Porém, com relação ao nacionalismo musical proposto por Mário de Andrade para a música brasileira, havia uma divergência de idéias entre o próprio escritor e o movimento modernista, do qual ele era um dos líderes. Neves (1981, p. 83) traduz esse desencontro entre a idéia modernista geral e a de Mário de Andrade: Tal postura do líder do modernismo contrasta frontalmente com certas afirmações do grupo modernista na época da Semana de 1922, o que mostra que este escritor (e o grupo em geral) tinha duas medidas de julgamento: avançadíssima no que se refere à literatura e às artes plásticas, e reacionária que tocava à música. Pois o regionalismo literário, o cultivo romântico do tipo brasileiro (altamente caricaturado) foi um dos alvos favoritos do modernismo, enquanto que este mesmo modernismo incentivava o desenvolvimento exclusivo do nacionalismo musical pelo emprego da temática folclórica e de clara orientação regionalista. A atuação do grupo Música Viva e a divulgação das suas principais idéias no Manifesto de 1946 se mostraram como uma extensão atualizada das propostas modernistas direcionadas às artes plásticas e à literatura, porém, desta vez adaptadas à música. Já as propostas de Mário de Andrade, manifestadas também n’O Banquete, acabaram por influenciar músicos adeptos ao nacionalismo a rechaçar qualquer aproximação com as novas propostas que surgiam, atentando-se apenas ao folclore. Mas, não era essa a verdadeira proposta do autor, pois o próprio sempre afirmara ser a temática do folclore nacional apenas o primeiro passo na estruturação de uma música brasileira: “A reação contra o que é estrangeiro deve ser feita espertalhonamente pela deformação e adaptação dele. Não pela repulsa” (Andrade, 1972, p. 21). O fato é que isso gerou um dos maiores conflitos estéticos e filosóficos da história da música brasileira. De um lado, os músicos nacionalistas liderados por Camargo Guarnieri, seguidores das idéias andradeanas – mesmo que de forma inconsciente eles não as interpretassem como o proposto –; e do outro, o grupo Música Viva, tendo à sua frente H.J. Koellreutter, defendendo a postura de absorção do universal. Ora, percebe-se que as propostas de Andrade foram muito melhor interpretadas pelo grupo Música Viva do que pelos seus próprios seguidores. Neves (1981, p. 96) reforça a falta de entendimento do ideal nacional pelos compositores nacionalistas: 248 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Os jovens compositores do “Música Viva” tinham, na verdade, mais respeito pelos documentos folclóricos que os nacionalistas tradicionais; para eles, o folclore devia ser estudado a fundo e seu aproveitamento feito na medida de sua assimilação e de sua articulação à linguagem pessoal do compositor. Mesmo o grupo demostrando repulsa pelas idéias nacionalistas, da forma como elas estavam sendo aplicadas à música brasileira, é nítido a absorção dos propósitos de Mário de Andrade. Essa síntese de idéias divulgadas através do Manifesto de 1946 se tornaria um pilar fortíssimo na música brasileira, pois, logo após o fim do grupo, surgem novas correntes que viriam a reforçar a importância destes princípios, como o Grupo Música Nova (1960), que mais tarde teria grande importância e influência no trabalho do movimento Tropicalista, principalmente com a atuação dos maestros Rogério Duprat e Júlio Medaglia como arranjadores. Consideramos, então, que o estudo da ligação entre Mário de Andrade e o Música Viva, principalmente no Manifesto de 1946, constitui uma vertente fértil para a reflexão sobre a música brasileira do século XX. Objetivos Existe, já publicado, o trabalho de Teca Alencar de Brito, Koellreutter educador (2001), na área de educação musical, relacionado à forma como H. J. Koellreuter propõe a educação e os seus métodos de trabalho, baseados nas suas premissas filosóficas, que o acompanham desde o grupo Música Viva, e o trabalho do compositor e musicólogo Carlos Kater, Música Viva e H. J. Koellreuter: movimentos em direção à modernidade (2001), que retrata a história do grupo e as atividades que este desempenhava. Tanto Brito (2001) como Kater (2001) trazem ao público trabalhos que representam uma nova faceta para a discussão sobre a importância de H.J. Koellreuter e do grupo Música Viva para a história da música brasileira contemporânea. Visto que antes havia uma carência de material que abordasse esses temas, do ponto de vista educacional e do ponto de vista musicológico histórico, salvo alguns autores como Mariz (1970, 1994) e principalmente Neves (1981), que dedicaram pequenos capítulos a Koellreutter e ao Música Viva em seus respectivos livros de história da música nacional. Até onde chegamos em nossa pesquisa, ainda não encontramos trabalhos que abordem de forma aprofundada a importância dos princípios adotados pelo movimento de Koellretteur para outros músicos e grupos pertencentes à história da música brasileira pós-Música Viva. Também é fato que ainda não observamos a existência de estudos sobre a importância que outros movimentos brasileiros anteriores ao grupo exerceram sobre a concepção de sua postura vanguardista. Kater (2001, p. 92, nota 97), alerta: A influência de Mário de Andrade, especialmente através de seu O Banquete, aflora muitas vezes citações diretas e ligeiramente adaptadas (várias das quais sem menção explícita do autor original). Carece ainda um estudo detalhado e profundo da pregnância das idéias de Mário sobre seus contemporâneos, em especial Koellreutter, pois ela parece ser bem maior do que temos considerado. Baseando-se na indicação do maior especialista no grupo Música Viva do país, Carlos Kater, e também em um comentário de etnomusicóloga Maria Elizabeth Lucas sobre o Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 249 texto de Koellreuter “Nos Domínios da Música: a propósito de O Banquete”,3 este trabalho pretende estudar esta convergência de idéias entre o musicólogo nacionalista Mário de Andrade e o grupo, tendo como base O Banquete, último trabalho de Andrade, e o Manifesto de 1946 do Música Viva, e apontar as sínteses produzidas pelo encontro entre duas posições distintas e marcantes na musicologia histórica brasileira. A partir deste momento passamos a expor alguns tópicos que já estão sendo trabalhados. O Manifesto e o Diálogo A palavra Manifesto vem do latim manifestu e significa declaração pública ou solene das razões que justificam certos atos ou fundamentam certos direitos, declaração pública de idéias ou de novas doutrinas literárias ou artísticas. Esse tipo de texto é a marca principal dos movimentos de vanguarda que surgiram nas primeiras décadas do século XX. Basbaum (1995, p. 381) diz: “o artista moderno adota, basicamente, o manifesto como principal modalidade discursiva – que soma às obras mas não se confunde com elas.” Teles (2000, p. 10) fala sobre o que este típico texto dos movimentos de vanguarda trouxe de novo: Os seus manifestos ... acabaram fundando um gênero novo, nem poesia, nem ficção e nem crítica, mas um discurso misto de linguagem e metalinguagem, pois, ..., trata-se de um texto novo e conotativo que se vale da linguagem poética para apresentar e divulgar idéias teóricas e críticas sobre as artes e a literatura, como nos manifestos futuristas nos dadaístas e nos de Oswald de Andrade. O surgimento dos movimentos de vanguarda e a publicação de seus princípios em manifesto, tomava conta do terreno artístico no começo do século XX, vide o futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo, espiritonivismo, que acabaram por influenciar na concepção e proposição de idéias do movimento modernista brasileiro. No âmbito literário, o modernista Oswald de Andrade destaca-se com sua produção de manifestos que são até hoje referências para a literatura brasileira. Através de suas idéias e atitudes condizentes com o seu tempo, o movimento modernista foi considerado vanguardista e erroneamente chamado de futurista, pois naquela época, o que era novo seria considerado futurista. Na música brasileira, a chegada de H.J. Koellreutter em 1937 e a criação do grupo Música Viva em 19394 são momentos que marcam um novo rumo para a música contemporânea nacional. Seus princípios estéticos e filosóficos foram fortemente combatidos pelos músicos tradicionais, que por vezes não compreendiam e desprezavam a nova música. Estava aplicado, então, o status de vanguarda ao movimento de Koellreutter. O grupo, como todo movimento de vanguarda, começa a divulgar seus princípios através da publicação de textos e emissões radiofônicas. Assim, destacam-se entre as principais 3 O comentário de LUCAS e o texto original de Koellreuter foram publicados no Caderno de Estudos: Educação Musical. Ver bibliografia completa em referências bibliográficas. 4 Para saber maiores detalhes sobre a História do grupo Música Viva ver: Kater (2001), Neves (1981), Mariz (1970). 250 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 publicações a Revista Música Viva n.º 1, e os manifestos de 1944, 19455 e o mais complexo e mais importante, o Manifesto de 1946. O Música Viva então escolheria como seu principal meio de diálogo com os adeptos de seu pensamento a publicação de manifestos. Observando a forma como foi redigido o Manifesto de 1946, que é o objeto de pesquisa deste trabalho, percebemos como ele se encaixa em uma das três maneiras que Teles (2000, p. 10) aponta para o desenvolvimento de um discurso dentro de um manifesto. Verifica-se que: “A linguagem poética e a linguagem crítica de um texto novo, fragmentário e descontínuo, que constitui em si mesmo um exemplo de renovação e vanguarda,...” Já a palavra Diálogo nos remete ao conceito de fala alternada entre duas ou mais personagens, uma conversação sobre um determinado assunto qualquer. Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas, que assinam o prefácio intitulado “Sobre O Banquete”, publicado junto com os textos que formam O Banquete de Mário de Andrade, assim falam sobre o uso da forma dialogada numa exposição temática (Andrade, 2004, pp. 13–14): (...) a forma dialogada, na sua história, acomodar-se-á em funções menores: facilitação pedagógica (...) ou exposições de argumentação, ocasionais e secundárias, como os diálogos de Berkeley ou Leibniz. Nos dois casos, entretanto, ela depende de um corpo filosófico já solidamente estabelecido, e no fundo a forma do diálogo não é senão um meio... formal. E que justamente reaparecerá, vívida e necessária, num pensamento que se ajeita mal com tratados, que faz apelo continuamente a experiência para se alimentar, que não gosta de falar abstratamente e construir sistemas áridos: será o meio de expressão de Diderot, por excelência, por vezes mesmo se distinguindo um pouco do teatro. Mário de Andrade utiliza-se deste artifício para expor suas idéias n’O Banquete6 a respeito de uma temática variada que permeia o campo musical da época, sem se preocupar em ser essencialmente pedagógico ou expositivo. Ele não pretende criar uma filosofia, mas deixase levar por um desenvolvimento dialético do texto e usufrui desse meio para proferir seu pensamento pragmático, concreto. Temos, então, dois textos: um diálogo, sutil, irônico, bem-humorado e escrito de forma simples, mas que expõe assuntos que foram cruciais para o amadurecimento da música brasileira e que acaba desembocando num manifesto, escrito com extrema seriedade e que propõe de forma muito mais agressiva a ação dos músicos em relação, principalmente, à utilidade social da arte. Guardados os devidos problemas contraditórios dos dois textos7 e os devidos conflitos entre nacionalismo vs. universalismo, é perceptível que esta transfusão de idéias de Mário de Andrade para o grupo Música Viva (e aqui leia-se também para o trabalho de Koellreutter) 5 Resgatado por Kater (2001) que afirma não ter obtido informação suficiente para se certificar de que ele tenha vindo a ser veiculado ou se foi apenas um esboço pessoal de Koellreutter para a elaboração do Manifesto de 1946. 6 Idéias estético-filosóficas que remetem o leitor à obra Banquete de Platão, porém são longínquas as ligações entre os dois textos (Andrade, 2004, p. 13). 7 Durante o trabalho os dois textos serão analisados em tópicos separados e serão apontadas algumas situações contraditórias de cada escrito. Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 251 será atingida na publicação do Manifesto de 1946, e que este, por sua vez será refletido, mesmo que involuntariamente, no trabalho de artista posteriores, principalmente no debate sobre a função social da arte. Será então o Manifesto de 1946 uma continuação do inacabado O Banquete? Mapa d’O Banquete O Banquete destaca-se na obra de Mário de Andrade como o seu último momento de debate sobre a arte, assunto que sempre freqüentou os questionamentos do literato. Foi lançado trinta anos depois de sua morte em forma de livro. Na realidade, O Banquete é uma série de textos publicados na Folha da Manhã, na coluna intitulada de “Mundo Musical”, onde Mário de Andrade expunha suas idéias regularmente às quintas-feiras entre maio de 1943 até o seu falecimento em 1945. O projeto inicial do autor era de escrever dez capítulos para a série, mas a obra foi interrompida na primeira parte do capítulo 6 devido à sua morte, restando somente a anotação dos tópicos que ele pretendia abordar nos capítulos posteriores. Esta foi a mais longo série de textos do autor. Mário de Andrade cria um banquete fictício com cinco personagens de diferentes níveis sociais e culturais para promover um diálogo provocador de cunho estético-filosófico sobre a problemática da música, da arte e da criação na sociedade brasileira dos anos 40. Ele aproveita a forma dialogada para lançar mão de suas ambigüidades e às vezes insegurança no texto, fazendo com que as falas das personagens nasçam das contradições, do processo dialético que ele promove, ou melhor, em que as personagens se envolvem, já que o autor inicia o texto afirmando categoricamente (Andrade, 2004, p. 47): Oh meus amigos, si lhes dou este relato fiel de tudo quanto sucedeu e se falou naquela tarde boa, boa e triste, não acreditem não, que qualquer semelhança destes personagens, tão nossos conhecidos, com qualquer pessoa do mundo dos vivos e dos mortos, não seja mais que pura coincidência ocasional. E é também certo, certíssimo, que ao menos desta vez, eu não poderei me responsabilizar pelas idéias expostas aqui. Não me pertencem, embora eu sustente e proclame a responsabilidade dos autores, nesse mundo de ambiciosas reportagens estéticas, vulgarmente chamado de Belas Artes. Assim, esquiva-se da responsabilidade de assumir os posicionamentos adotados no transcorrer do texto. Talvez esse tenha sido o primeiro ato contraditório do autor na série, pois freqüentemente as idéias expostas pelas personagens condizem com a sua postura adotada em relação à temática abordada e proclamada em seus outros textos, vide as suas mais importantes obras do período modernista, Prefácio Interessantíssimo (1921) e A escrava que não era Isaura (1924). O ponto alto d’O Banquete é o capítulo V – “Vatapá” – em que a personagem Janjão lidera uma discussão sobre o problema da composição, é neste momento que as contradições surgem de forma mais perceptível. Mário de Andrade no começo do capítulo alerta (Andrade, 2004, p. 133): “Mas é incrível como os meus personagens já estão agindo sem a minha interferência”. Dada esta colocação, o autor mais uma vez tenta se esquivar da responsabilidade das falas que ele cria posteriormente sobre a música brasileira. Desta maneira, Janjão emite suas opiniões a respeito da situação da música de Mentira (cidade onde se passa o banquete e não localizada no Brasil) e utiliza a música brasileira como um 252 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 pilar para a comparação com a música de sua cidade, porém em alguns momentos em que a discussão toma um teor mais tenso, Andrade, mesmo tentando omitir-se do texto, reflete sua opinião pessoal na voz da personagem, ou seja, confunde-se ela. Ao perceber essa confusão, faz o texto voltar a realidade de Mentira. Um exemplo bem claro é quando Janjão fala sobre o princípio de utilidade, e Sarah Ligth o traz à realidade (Andrade, 2004, p. 144): (..) Toda arte brasileira de agora que não se organizar diretamente do princípio de utilidade, mesmo a tal dos valores eternos: será vã, será diletante, será pedante e idealista. Que bem me importa agora si eu não fico que nem um Racine, que nem um Scarlatti?... Que bem me importa si não vou ser bustificado num jardim público, dentro de cem anos?... Que bem me importa não ficar eternamente redivivo, se vivi...? Mas meu amigo, nesse caso sempre você também esta fixando o Brasil como elemento da relação, para os seus julgamentos, de valor. Percebemos que quando Janjão diz: “Que bem me importa agora si eu ...”, ele coloca-se como cidadão brasileiro, e isso ocorre em vários momentos do texto, mas logo no capítulo 1 – “Abertura” – , quando o autor está apresentando a personagem Siomara Ponga e expondo sua vontade de cantar em Mentira, ele mostra a nacionalidade de Janjão, até então omitida no texto (Andrade, 2004, p. 55): “(..)E si eu desse ao menos um recital das primeiras cantatas italianas, das primeiras pastorais?... Si eu desse em Mentira, afinal pátria dele, ao menos uma parte de recital dedicada às canções de Janjão?(...)” Desta maneira, Mário de Andrade se torna Janjão ou Janjão se torna Mário de Andrade? De fato, o autor provoca este tipo de confusão para o leitor. Durante o texto, ele às vezes também assume o papel da personagem Siomara Ponga, principalmente no capítulo 3 “Jardim de Inverno” – quando ela disserta sobre as sensações estéticas. Fica claro que ele tenta omitir-se, mas a força de seus questionamentos o faz, mesmo sem querer, entrar no texto e ao perceber, retira-se, usando como ponto de fuga as próprias personagens para alertá-lo. Apontando alguns pontos contraditórios do texto, confirmamos que o mesmo desenvolve-se de forma dialética. Todavia, o que importa é que a contradição que toma conta d’O Banquete é o primeiro ponto em comum com o Manifesto de 1946, outro texto bastante contraditório. Óbvio que o âmbito das contradições funcionam de forma diferente nos dois textos, mas, o desenvolvimento dialético dos pensamentos tanto de Mário de Andrade quanto do Música Viva é que chama a atenção para como seus princípios foram elaborados e apresentados à sociedade. Após esta pequena análise do texto, levantamos um mapa das temáticas abordadas durante as discussões das personagens, para mais à frente, compararmos com as idéias propostas pelo Manifesto de 1946 do Música Viva. Seguem abaixo relacionados os pontos a serem comparados: ∑ O combate ao conformismo, academismo, virtuosismo, prazer estético da técnica e a “arte pela arte”; ∑ A postura adotada pela crítica e pelo público em relação à arte; Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 253 ∑ A transitoriedade, o processo destruição/construção, o princípio do “fazer melhor” e da “não existência do erro”; ∑ A postura frente à utilização do folclore na formação da música nacional; ∑ Os questionamentos a respeito do ensino musical; ∑ A funcionalidade da arte, O Princípio da Utilidade; e ∑ A função do artista. Entre os pontos destacados, os dois últimos são de grande importância: O Princípio da Utilidade, por estar diretamente citado no texto do Manifesto de 1946 e a função do artista, pois gera n’O Banquete outro grande embate contraditório na fala do personagem Janjão (o centro da contrariedade no texto), o dualismo individualismo vs. servidão social, o si vs. o meio. Estes dualismos serão discutidos no tópico destinado à análise e convergência dos pontos selecionados nos dois textos, que está destinado à conclusão do trabalho geral e não desta comunicação, lembrando ser esta a apresentação do começo da pesquisa. Mapa do Manifesto de 46 Escrito em 1º de novembro de 1946, sob o título de “Declaração dos Princípios”, ele foi publicado na revista Música Viva, n.º 12, datada de janeiro de 1947, momento marcante em que o grupo retoma suas atividades de publicação, que estavam estagnadas desde 1941. Também foi publicado sob o título de “Manifesto Música Viva”/ Declaração dos Princípios na Revista Paralelos, n.º 5, em junho de 1947. Esse manifesto marca o início do terceiro momento no grupo – que se estenderia até a sua dissolução –, no qual o Música Viva se firma como um grupo musical na vanguarda estética e movimento de frente sociocultural, já que em 1939, data de sua criação, era apenas um grupo de compositores que ansiavam por discutir sobre a estética e a evolução da linguagem musical, e atualizar seus estudos. Assim, a valorização das questões ligadas fundamentalmente à realidade social de seu tempo se torna a força motriz das suas atividades e de seus engajamentos e rupturas (termo usado por KATER, 2004), que agora são feitos de forma intensa e são refletidos na construção do texto do manifesto pelo uso de palavras como: escolhendo, acreditando, compreendendo, ou ainda, repelindo, combatendo. O furor desses posicionamentos gerou diversas reações na comunidade musical brasileira desde a publicação do Manifesto de 1944. O que a Declaração dos Princípios proporciona em seu texto é uma amplificação das temáticas já previamente desenvolvidas pelo grupo desde suas primeiras publicações: combate ao academismo, valorização à busca do novo e à criação; só que desta vez de forma mais complexa. Kater (2004, p. 68) resume a concepção do manifesto: Uma simples leitura do manifesto, referência oficial do momento, torna evidente o grau de complexidade com que é tratado o fato musical. Enfoques estéticos, sociais e econômicos se mesclam, refletindo, antes de uma coerência propriamente, um mosaico de flashes intensos de consciência. 254 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Este grande painel de idéias , verdadeiro mural de intenções da modernidade musical brasileira, retrata com perfeição os engajamentos assumidos. Contém já em seu bojo as contradições que no grupo provocarão abalos consecutivos até sua ruptura definitiva. Quando Kater fala em mosaico de flashes intensos de consciência, ou ainda, grande painel de idéias, nos remete à citação de Teles feita anteriormente,8 na qual fala sobre uma das formas como os movimentos de vanguarda concebiam seus textos-manifestos. A publicação do Manifesto de 1946 teve o aval dos seguintes participantes do grupo: Egydio de Castro e Silva, Eunice Katunda, Gení Marcondes, Guerra Peixe, Heitor Alimonda, Koellreutter, Santino Parpinelli e Cláudio Santoro. Sua redação foi inicialmente feita por Koellreuter e Jenny Pereira (que teve atuação de “secretariado” no grupo), e foi apresentada ao grupo que, após debater as idéias propostas, definiu o texto. Cláudio Santoro, que estava ausente do grupo naquele momento, só teve acesso ao texto quando este foi publicado na revista n.º 12, e, apesar de ter dado o seu aval a qualquer posicionamento que o grupo tomasse, discorda de alguns tópicos apresentados no manifesto e aponta tópicos contraditórios a Koellreutter em carta direcionada ao alemão9. É fato que apesar das evidentes influências do pensamento andradeano na Declaração dos Princípios, individualmente Mário de Andrade não era unanimidade. Vejamos o que diz Kater (2004, p. 93): Mário entretanto é múltiplo (desde a Paulicéia Desvairada, ele já se dizia “ser muitos”). Veremos cada qual tomar dele o que mais lhe convém: para os nacionalistas é referência máxima e bastante; aos propósitos de Koellreutter, serve de maneira particular pela reflexão dilacerante que oferece; por sua vez, as opiniões dos membros do grupo Música Viva em relação às suas teses não são unânimes. Por um lado Guerra Peixe considera que “a música brasileira começa em Carlos Gomes e termina... em Mário de Andrade” e Eunice Katunda tem no Ensaio sobre a música brasileira seu livro predileto de cabeceira. Santoro, por sua vez, não reconhece nenhuma virtude nas formulações políticas e estéticas, do poeta modernista, muito ao contrário. (...) Inicia-se então um abalo na estrutura do grupo que culminaria mais tarde em divergências de idéias mais sérias, principalmente, entre Cláudio Santoro e Koellreutter, mas a intenção agora é mostrar que assim como n’O Banquete de Mário de Andrade, o Manifesto de 1946 é um grande foco de contradições, palavra que permeia os movimentos de vanguarda, salvo que esses sempre se posicionam na contrariedade do momento e acabam por completar o processo tese/antítese, proporcionando, através da dialética, o surgimento de novas proposições a respeito do campo artístico no qual estão submetidos. Após esta exposição sobre a Declaração dos Princípios, fizemos, assim como no texto d’O Banquete, um mapeamento inicial dos assuntos que serão aproximados à obra de Mário de Andrade e ponderados juntamente com ela. Dada a reflexão que Neves (1981, p. 94) faz 8 Ver tópico O Manifesto e o Diálogo. Tanto o Manifesto 1946 quanto esta carta citada foram publicados no livro de Kater, ver referência completa no fim desta comunicação. 9 Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva 255 sobre o manifesto resolvemos adotar como pontos básicos para o trabalho os cincos tópicos em que ele resume a exposição do grupo: ∑ A música como produto da vida social; ∑ A música como expressão de uma cultura e de uma época; ∑ A necessidade de se educar para a nova música; ∑ A concepção utilitária da arte; ∑ A postura revolucionária essencial (associamos à função do artista). ∑ E acrescentamos mais dois pontos que são: ∑ A postura da crítica com relação ao movimento; ∑ A postura do movimento quanto à música popular. Próximos passos Depois de avaliar os dois textos de forma individual, pretendemos aprofundar ainda mais a análise desse material para validar os pontos selecionados em cada tópico e observar como os pensamentos de Mário de Andrade e do Música Viva se desenvolviam em relação aos temas propostos para cada texto central de pesquisa. Depois desta avaliação, partiremos para a aproximação das idéias selecionadas nos dois textos a fim de estudar o que de fato foi absorvido e repelido pelo grupo em relação às idéias sugeridas por Andrade em seu último trabalho, e como elas foram traduzidas para um posicionamento considerado antagônico ao do escritor modernista. Referências Bibliográficas: AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22: subsídios para uma história da renovação nas artes no Brasil. 4. Ed. São Paulo: Perspectivas, 1979. ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 2 Ed. São Paulo: Martins, 1972. _____. Introdução à estética musical. São Paulo: Hucitec, 1995. _____. 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Marcus Vinícius Marvila das Neves é estudante do 7º período do curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), membro do Núcleo de Estudos Musicológicos coordenado pela Profª. Dr.ª Mónica Vermes. O desenvolvimento histórico da “música instrumental”, o jazz brasileiro Marina Beraldo Bastos (UDESC); Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC) Resumo: Esta comunicação trata da chamada “música instrumental”, que é conhecida internacionalmente como jazz brasileiro. Inicialmente, o objetivo é discutir esta designação ambígua, “música instrumental”. Trataremos, então, das oposições cantor/instrumentista e letra/música neste gênero musical. Procuraremos mostrar as relações entre a “música instrumental”, a música popular brasileira (MPB) e o jazz norte-americano. Este artigo procura trazer um esboço do desenvolvimento histórico da “música instrumental” a partir de suas fronteiras com outros gêneros, para então localizar no período da bossa nova a gênese deste gênero musical. Palavras-chave: música instrumental; jazz brasileiro; música popular; choro. Introdução Este artigo é sobre a chamada “música instrumental”, ou seja, a música popular instrumental brasileira. Chamada de “instrumental brasileiro” ou “música instrumental” pelos músicos e apreciadores, este gênero da música popular brasileira, além de ser instrumental, tem como característica fundamental uma tensão com o jazz norte-americano e uma tensão com a MPB, conforme os estudos de Piedade (1997, 1999, 2003, 2005). A “música instrumental” é também conhecida como “jazz brasileiro”, principalmente no cenário internacional, e doravante será referida pela sigla MI. Neste artigo, inicialmente comentaremos a tensão entre MI e MPB, que envolve a dicotomia música/letra, elementos importantes na compreensão da MI. Em seguida, este artigo traça um esboço do desenvolvimento histórico da MI. A voz, a canção e a música instrumental: MI vs. MPB O termo “música instrumental” aponta para uma música tocada exclusivamente por instrumentos, ou seja, sem texto ou letra. Esta parece ser uma identidade básica da MI, porém há comentários a se fazer. Primeiramente, o fato desta música ser instrumental não exclui o uso do canto, mas apenas da letra. A voz não está fora da MI justamente porque ela é ali utilizada como um instrumento: no circuito da música instrumental há diversos trabalhos com voz, como no disco “Mundo Verde Esperança”, de Hermeto Pascoal (Pascoal, 2002) e “Meu Brasil”, de Teco Cardoso, (Cardoso, 1997). A voz na MI exerce um papel diferente do que na MPB, onde existe uma distinção clara entre o cantor e os instrumentistas. Isto envolve uma questão de hierarquia que denuncia um aspecto da tensão entre a MI e a MPB: a posição “superior” em que se encontra o cantor em relação aos instrumentistas que o acompanham. Esta proeminência do cantor parece incomodar os instrumentistas, na medida em que é ele que ganha mais visibilidade e popularidade. Haveria, na MI, uma tentativa de diluir esta hierarquia? Ou ela migra, ali, para a dicotomia “instrumentos melódicos/instrumentos harmônicos”, ou “instrumentistas solistas/ instrumentistas de base”? Isto seria mais plausível, pois não é possível um igualitarismo completo em música, onde é constante o jogo entre frente e fundo, significado literal e profundo.1 O esforço de retirar o peso da hierarquia cantor/instrumentista está muito presente na consagração do termo “música instrumental”, que aponta inicialmente para a exclusão do canto. Porém, como vimos, na MI a voz aparece como um outro instrumento, dobrando a 1 Lembramos aqui do dodecafonismo como tentativa de instaurar um igualitarismo no âmbito das alturas musicais, mas que resultou em uma música de difícil compreensão para os ouvintes não iniciados. Mais uma pista para a necessidade de desigualdade e hierarquia na música. 258 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 melodia ou fazendo contracantos, o que parece deixar o canto no mesmo patamar hierárquico que os outros instrumentos. Aparentemente, a diferença marcante entre a MPB e a MI está na ausência de letra, ou seja, na exclusão da canção. Paradoxalmente, há cantores e cantoras que são tidos como artistas da MI, como Joyce e Dori Caymmi. Apesar de comporem e cantarem canções, estes artistas vivem imersos muito mais no universo da MI do que no da MPB.2 No caso de grande parte das composições e interpretações de Toninho Horta, por exemplo, podemos dizer que a voz está bastante presente. Este guitarrista usa a voz com letra (como solista) ou sem letra (cantando ou dobrando a melodia nas introduções, temas e/ou improvisações). Estes artistas transitam no mundo da canção, mas mantêm um lastro indelével de pertencimento à MI: dentre tais marcas, podemos ressaltar o destaque dos músicos acompanhantes e suas improvisações, a concepção harmônico-melódica das canções, os arranjos que empregam técnicas e formas jazzísticas, etc.3 Portanto, mesmo na instrumentalidade da MI é possível o uso da voz, ainda que quase sempre como uma parte instrumental, mas também ocorrendo que uma canção (com letra, evidentemente) seja entendida como uma peça musical na concepção da MI. Apesar destas exceções, o que parece estar em jogo aqui é que a presença de letra dá à música uma condição de significação muito mais direta do que no caso da MI: o significado (imediato assinalado na letra) é um privilégio da MPB que a MI parece procurar afastar, como se constituísse uma ameaça à sua pureza instrumental, cujo processo de significação seria necessariamente autônomo em relação ao verbal.4 Ou talvez porque, havendo letra, instaura-se uma gestalt hierárquica que coloca os instrumentistas em segundo plano, na condição de acompanhantes, na qual se sentem inferiorizados. Por outro lado, é comum que músicos instrumentistas nem considerem alguns cantores como músicos, isto por não dominarem a linguagem musical formal, as partes da música, a harmonia, as convenções, etc. Estes são alguns aspectos da relação MI/MPB, sendo que há muitos outros que não serão desenvolvidos aqui. Note-se que muito do que foi dito pode valer para outros repertórios instrumentais, o que valeria ser investigado. Passaremos agora para uma outra forma de compreender a MI, que é um esboço de sua formação histórica e sua relação especial com o mundo do choro. O desenvolvimento histórico da música instrumental Vamos tratar de alguns aspectos do início da música popular brasileira (sécs. XVIII e XIX). Em especial, vamos salientar alguns pontos sobre os repertórios instrumentais. Segundo Kiefer (1986), é ponto pacífico entre os musicólogos que a modinha e o lundu são as raízes principais da música popular brasileira. Seguindo este pensamento, apresentaremos algumas considerações sobre estes dois gêneros musicais. O termo “modinha” é o diminutivo de moda, usada para diferenciar a modinha (brasileira) da moda (portuguesa). Segundo Mozart de Araújo (1963, apud Kiefer, 1986) a origem da 2 É importante notar que a oposição MI/MPB tem a ver com a dicotomia música/letra. É importante lembrar que estes cantores de música instrumental são em geral compositores e intérpretes de suas próprias composições, e não somente intérpretes propriamente falando. O perfil destes artistas parece mais com o de compositor-cantor do que com o de cantor-intérprete. 4 Apontando para um desejo (ou ilusão) de universalidade tipicamente atribuído ao repertório erudito ocidental, tanto no senso comum quanto na musicologia a partir de Hanslick (1996). Note-se que, para Hamm (1995), o discurso da autonomia musical constitui uma narrativa modernista. 3 O desenvolvimento histórico da “música instrumental” 259 modinha é questionada, sendo que alguns autores afirmam que ela é portuguesa. Conforme este autor, as modinhas brasileiras são análogas às portuguesas no que confere à melodia, mas a modinha brasileira teria uma característica rítmica acentuada que lhe é vital, característica compartilhada pela maior parte da música popular urbana do Brasil. Na origem da modinha encontra-se o compositor e tocador de viola Domingos Caldas Barbosa, figura importante da música popular brasileira (Bastos, 2000; Tinhorão, 2004). Este músico levou a modinha brasileira à Europa, mostrando seu caráter essencialmente amoroso. Muitas das modinhas eram tocadas em duos, com linhas melódicas em terças ou sextas paralelas, com acompanhamento de viola. Surgida nos salões da elite, em pouco tempo a modinha já estava nas camadas populares (cf. Kiefer, 1986). É claro que a modinha não é música instrumental, porém seu lirismo melancólico constitui uma importante faceta da musicalidade brasileira que se faz presente no choro e na MI, aparecendo ali claramente em temas e improvisos. O lundu descende diretamente do chamado “batuque” das populações afro-brasileiras. Segundo Tinhorão (1975), a palavra “batuque” era aplicada de forma genérica a todos os ritmos produzidos à base de percussão. No final do século XVIII, devido ao fracasso das medidas repressivas tomadas pelas autoridades colonizadoras e pela igreja em relação às música afro-brasileira, a metrópole acabou “cedendo” e as “danças dos pretos” passaram a ser toleradas, ao contrário das danças “gentílicas e supersticiosas”. Neste período, o lundu surge como uma adaptação da coreografia do fandango ao “batuque dos negros”, realizada por brancos (Kiefer, 1986). Tanto o ritmo quanto as chamadas “umbigadas” permanecem no lundu como marcas de sua africanidade. Apesar da confusão entre batuque e lundu, o aparecimento do lundu não eliminou o batuque (op.cit.). Note-se que o lundu era um gênero instrumental, somente mais tarde se tornando vocal. No início do século XVIII, o lundudança instrumental inicia sua ascensão à classe dominante, percorrendo o caminho contrário do que seguiria, mais tarde, a modinha. Kiefer (op.cit.) levanta a hipótese de que foi Caldas Barbosa quem transformou o lundu-dança em lundu-canção, isto pela impossibilidade de vê-lo dançado em Portugal (em sua forma instrumental) e para que, lá vivendo, pudesse “matar as saudades do Brasil”. Para Oneyda Alvarenga (1950), o lundu deu à música brasileira características musicológicas importantes, como a sistematização da síncope e o emprego da “sétima abaixada”, ou seja, acordes de sétima menor. Na segunda metade do século XIX o lundu perde a força, fundindo-se com a polca, dança instrumental importada da França. A “polca-lundu” tomou conta do Rio de Janeiro na época. Por outro lado, o lundu-dança foi desembocar, juntamente com elementos de outras danças, no maxixe, gênero que foi, por algum tempo, expoente máximo da dança urbana brasileira. Além disso, o lundu-dança manteve-se, em manifestações esporádicas, até o século XX (Moura, 1983). Vejamos, então, alguns pontos sobre a polca e o maxixe. A polca foi lançada no Brasil pelas companhias teatrais. Sua semelhança com o lundu na divisão rítmica fez com que acontecesse uma “fusão” entre os dois e que surgisse uma forma moderna de dançar que teria seu desdobramento no maxixe. Moura (1983) sugere que, em 1873, com um anúncio no Jornal do Comércio sobre a polca-lundu intitulada “Quem não tem ciúmes não ama”, surge a música popular brasileira moderna. Vindo dos bailes negros e das gafieiras da Cidade Nova (bairro que fazia a fronteira entre o Rio de Janeiro da elite e aquele dos subalternos) o maxixe era uma dança marcada pela corporalidade africana, interpretada como sensual ou erótica, passando a atrair o público masculino de classe média. O maxixe, que começou ao som dos chamados “tangos 260 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 brasileiros”, foi inicialmente mais um modo de dançar do que um gênero musical. O ápice do maxixe se deu na segunda década do século XIX, continuando depois com menos peso até ficar praticamente desaparecido a partir da chegada do fox-trot no Brasil e, depois, com o surgimento do samba. O conceito de maxixe chegou a se confundir com o de samba, aparecendo em composições como “Pelo telefone” (cf. Moura, 1983), de Donga e Mauro de Almeida. O maxixe é um elemento muito importante na formação da música instrumental do choro, como veremos. Com estes breves apontamentos sobre modinha, lundu, polca e maxixe, procuramos destacar que se tratam de gêneros fundamentais da musicalidade brasileira, e que se encontram presentes na MI. Um estudo musicológico do repertório da MI poderá revelar como ali se encontram nexos com o lirismo melancólico da modinha e a sensualidade do lundu. Passaremos agora para o choro, que constitui um gênero instrumental da música brasileira que se prolonga até o presente momento. Para o folclorista Luís da Câmara Cascudo, a palavra “choro” viria de “xolo”, baile de escravos, que teria se modificado até chegar em “choro”. Já Vasconcelos afirma que a origem do termo está nos chamados “choromeleiros”, músicos do período colonial brasileiro, sendo que na época passou-se a chamar qualquer agrupamento instrumental de “choromeleiros” e, depois, teria surgido a abreviação “choro” (Vasconcelos, 1964). Tinhorão menciona outra origem: o termo viria da impressão de melancolia gerada pelas “baixarias” do violão (Tinhorão, 1998). Se a idéia de melancolia, ou mais propriamente nostalgia, é coerente com o espírito do choro, as linhas de baixo do violão de sete cordas não parecem abrigar este ethos: parecem muito mais surgir como emulação do papel de instrumentos de sopro como tuba ou bombardino5. Lembre-se que, desde a segunda metade do século XIX, as bandas de sopros eram uma formação muito popular e, portanto, tuba e bombardino eram instrumentos comuns. A palavra “choro” apareceu, portanto, com diversos significados no decorrer da história. “Choro” podia significar grupo de chorões, a festa aonde se tocava choro, um modo de tocar. Somente na década de 10 é que o termo passa a designar uma forma musical fixa e a significar um gênero musical (Cazes, 1998). Segundo Oliveira (2000), a origem do choro está na nova classe formada no Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX, que ele chama de “pequenos burgueses”. Nesta época eram comuns, principalmente na capital do império, os chamados grupos de “pau e corda”, constituídos por violão, cavaquinho (cordas) e flauta (“pau”, pois eram de ébano).6 Devido à carência de eventos públicos para o divertimento dessa classe, os funcionários públicos faziam encontros nas suas próprias casas. Para animar estes encontros, os próprios participantes da festa tocavam em trios de “pau e corda”, e foi nesses encontros que o choro nasceu. No final do século 5 A origem do violão de sete cordas é intimamente relacionada ao desenvolvimento desta linha de baixo no gênero. Aparentemente, tem relação com uma comunidade de ciganos na chamada “Pequena África” (ver Moura, 1983). Após entrarem em contato com esta comunidade, China, irmão mais velho de Pixinguinha e integrante dos Oito Batutas, bem como o músico Tute, teriam sido os primeiros a usar este instrumento no choro. Mas foi somente com “Dino 7 Cordas” que este instrumento e sua função polifônica típica se desenvolveram completamente no universo do choro, isto a partir dos anos 50. Os princípios básicos das “baixarias” foram ali cristalizados: frases que ligam mudanças de acordes através de escalas em grau conjunto, em geral em espaços intermediários de frases do tema, qual comentários melódicos deste, algumas vezes em terças paralelas com um violão de seis cordas. 6 É possível que esta designação esteja relacionada aos nordestinos da Pequena África e ao carnaval de Recife. O desenvolvimento histórico da “música instrumental” 261 XIX, o trio mais conhecido era “O Choro Carioca”, do qual Antônio da Silva Callado fazia parte. Callado foi um dos muitos flautistas virtuoses da sua época (Diniz, 2002) e contribuiu com o seu grupo no abrasileiramento da polca e na afirmação do choro como gênero musical (Oliveira, 2000). O choro nasceu da mistura de estilos e sotaques: partindo das danças européias (principalmente da polca), do acento português (o nostálgico toque metálico da guitarra portuguesa) e da influência negra (essencialmente no âmbito rítmico). Note-se que o processo de desenvolvimento das músicas populares urbanas, como o choro, aconteceu de forma similar em diversos países: por onde houve colonização portuguesa, a música popular se desenvolveu basicamente com o mesmo instrumental, cavaquinho e violão, nem sempre com flauta. (Cazes, 1998). Em termos formais, o choro tem normalmente três partes e se caracteriza por ser necessariamente modulante. Um tipo de forma rondó (seções diferentes intercaladas pela repetição do “A”), sendo também característica a improvisação e o espírito de competição (cf. Cazes, 1998). A competição, no choro, acontece em dois patamares: entre os grupos e entre os músicos de um mesmo grupo. A competição entre os grupos tem uma herança dos trios de pau e corda, que tocavam no mesmo recinto, disputando sucesso. A competição entre os músicos do mesmo grupo funciona como uma espécie de jogo do solista, que tenta “derrubar” os acompanhadores, e vice-versa (Oliveira, 2000). Comentaremos a seguir aspectos da improvisação no choro. O improviso no choro deve ser entendido como uma variação da melodia do tema principal. No jazz, o improviso é muito mais a criação de novas melodias em cima de uma harmonia fixa (cf. Oliveira, 2000). De fato, no choro o solista improvisador toca a melodia com liberdade para interpretá-la, floreá-la, variá-la, mantendo seus traços temáticos sempre claros. Pode-se dizer que o solista, assim como o acompanhamento de base, especialmente as linhas de baixo, estão improvisando (variando) durante a música inteira. Atualmente, temos notado choros com improvisos em seções do tipo chorus, ou seja, o foco no improviso de um músico solista sobre a base harmônico-polifônica do tema. Este tipo de improviso com chorus é provavelmente uma influência do jazz no choro.7 Um aspecto comum entre o jazz e o choro é, sem dúvida, a improvisação generalizada e o caráter de interação entre os músicos na performance (para o caso do jazz, ver Monson, 1996). Um exemplo de grande improvisador de choro é Pixinguinha, que ainda adolescente tocava flauta na Orquestra do Teatro Rio Branco e já era conhecido como grande improvisador, pois “floreava” as melodias (Oliveira, 2000). Pixinguinha foi um grande instrumentista (tocava flauta e saxofone), arranjador e compositor. Segundo Cabral (1978), houve um momento em que Pixinguinha trocou a flauta pelo sax: foi aí que, tocando com Benedito Lacerda e desprovido da condição de solista, passou a compor e improvisar contracantos. Abaixo comentaremos aspectos deste momento importante no choro. Pela sonoridade que tirava do saxofone e pelo seu estilo, Pixinguinha acabou tendo muitos seguidores da sua música, criando uma verdadeira escola do saxofone no Brasil. Além disso, a sua forma de arranjar influenciou e continua influenciando grandes músicos brasileiros, sem falar nas suas composições consagradas, 7 Note-se que nos primórdios do jazz não havia improvisação tipo chorus, mas sim variações, a exemplo do choro. 262 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 que são tocadas até hoje em qualquer roda de choro e por muitos instrumentistas (Cabral, 1978). Falar de Pixinguinha é falar dos chamados “Oito Batutas”. Surgido em 1919, este grupo possuía em seu repertório músicas instrumentais e cantadas: maxixes, lundus, canções sertanejas, batuques, cateretês. A estréia dos Oito Batutas foi na sala de espera do renomado Cine Palais, no Rio de Janeiro, e no fim de 1919, já estavam fazendo viagens pelo interior do Brasil (ver Cabral, 1978). Em 1922, são convidados para ir a Paris, ali ficando em torno de seis meses, em contato com o jazz do cenário francês dos anos 20. Quando voltaram foram acusados de terem sofrido influência das jazz bands (Oliveira, 2000). De fato, o saxofone entrou para o mundo do choro com a volta de Pixinguinha, que trouxe um sax de Paris (Coelho, 2004), e neste mundo ele foi incorporado de modo impressionante.8 Tanto que um dos maiores expoentes atuais do choro, Paulo Moura, é saxofonista. Em geral, estes instrumentistas tocam clarinete, e o papel do saxofone no choro está ligado a este outro instrumento. Já comentamos a importância da entrada do saxofone no choro, ligada ao papel polifônico de contracantos. Coelho (2004) notou que Pixinguinha passa gradualmente da primeira para uma segunda voz, criando uma textura polifônica no choro, fundamental no desenvolvimento deste gênero (ver também Oliveira, 2000). Os contrapontos de Pixinguinha eram tão bem feitos que acabam muitas vezes roubando a cena do tema principal, que nos Oito Batutas era tocado por Benedito Lacerda na flauta (Coelho, 2004). Os Batutas voltaram ao Brasil com algumas novidades: uma delas, bem marcante, é que, ao invés de percussão, os ‘Oito Batutas’ agora tinham também uma bateria. O grupo passou, então, a se chamar “Bi-orquestra Os Batutas”, com bateria e trombone. Seria ao mesmo tempo um grupo de choro e uma jazz band. De fato, a idéia de jazz band, ao menos para o jazz francês do início do século XX, estava ligada à formação instrumental de banda de sopros com piano e bateria (ver Cabral, 1978 apud Coelho, 2004). As jazz bands tocavam marchas, emboladas, maxixes, choros e músicas latino e norte-americanas (Cabral, 1978). Por volta de 1933, foi criada uma orquestra nos moldes norte-americanos para tocar ao vivo na recém-inaugurada Rádio Tabajara, na cidade de João Pessoa. Esta orquestra foi montada com a “nata” musical paraibana da época, e tocavam arranjos trazidos da Europa e dos Estados Unidos. Em 1936, Severino Araújo foi convidado a integrar esta orquestra e, logo em seguida, substituiu o falecido regente Olegário. Severino tinha apenas vinte e um anos quando assumiu a regência da Orquestra Tabajara e mesmo assim fez exigências para aceitar o cargo: quis modificar o som da orquestra de salão e fazer dela uma big band brasileira. Severino assumia a influência norte americana: nesta época, já admirava Benny Goodman (clarinetista e arranjador que fez muito sucesso no início dos anos 30). Quando a Orquestra Tabajara veio para o Rio de Janeiro, em 1944, Araújo passou a escrever arranjos de peças do repertório de música popular brasileira conforme a linguagem americana de orquestração de jazz. O novo repertório incluía músicas de K-Ximbinho, importante compositor e arranjador que fundia muito bem o choro e os elementos harmônicos do jazz. Segundo Cazes, K-ximbinho compunha choros que sugeriam acompanhamentos do tipo daquele da futura bossa nova (Cazes, 1998). 8 Para um aprofundamento na importância musical e sócio-cultural dos Oito Batutas na música brasileira, ver Bastos (2005). O desenvolvimento histórico da “música instrumental” 263 Além da concepção de arranjo na música destas orquestras, músicos importantes como Radamés Gnatalli, Garoto e Laurindo Almeida também se influenciaram pelo jazz (Cazes, 1998). Gnattali escrevia choros para serem tocados em naipe de saxofones ou para piano e sax tenor, sempre inteiramente escritos em partitura. Quando conheceu o clarinetista Paulo Moura, Radamés compôs um samba-canção em sua homenagem chamado “Monotonia”, e logo depois Paulo Moura gravou um LP chamado “Paulo Moura Interpreta Radamés Gnattali”. O nome de Paulo Moura é, ainda hoje, muito importante no mundo do choro e da MI. Nos anos seguintes a este contato com Gnatalli, Paulo Moura se afastou do choro, levado pela onda da bossa nova, só voltando em meados dos anos 70, marcando a fase de obscurecimento e a reaparição do choro, que comentaremos adiante. A tradição de orquestras do tipo jazz band não foi abandonada, continuando viva no âmbito da música instrumental brasileira. Um exemplo é a Banda Savana, liderada pelo maestro Laércio de Freitas. Outro exemplo é a Banda Mantiqueira, formada por treze excelentes músicos atuantes no cenário de gravações e concertos na cidade de São Paulo. É liderada pelo compositor, arranjador e instrumentista Nailor Azevedo, apelidado “Proveta”. Nota-se que Proveta é um ótimo arranjador e improvisador, e seu nome circula no âmbito da música instrumental como um de seus mais importantes expoentes, apesar de pouca projeção internacional, se comparada com a de Hermeto Pascoal ou Egberto Gismonti. Segundo Nelson Ayres (1996), referindo-se à banda Mantiqueira, “os arranjos e a interpretação usam todas as técnicas da história das big bands, mas tem os pés firmemente fincados nos coretos do interior onde muitos dos músicos tocaram em público pela primeira vez. E cada solista abandona o caminho fácil de ser apenas mais um imitador dos grandes jazzistas para procurar sua própria verdade”. Este testemunho é bastante significativo para a compreensão da música instrumental enquanto gênero musical pleno, independente do jazz (ver Piedade, 2003). Neste período das grandes orquestras instrumentais, e entre as décadas de 50 e 70, ocorreu um momento de obscurecimento do choro: foi uma época em que praticamente não havia jovens tocando este gênero. O sucesso das bandas de dança e o surgimento e esplendor da bossa nova marcaram o período. Muitos chorões migraram do choro para as jazz bands (que também tocavam choro, porém com uma outra concepção musical, com arranjos e formações bem diferentes das tradicionais) e para grupos de bossa nova. O choro, entretanto, nunca deixou de existir: com o sucesso do grupo “Novos Baianos”, na década de 70, volta o interesse por instrumentos como cavaquinho, violão de sete cordas e violão tenor (Cazes, 1998). Foi nesta época que começaram a surgir grupos de choro formados por jovens, sendo o mais importante “chorão” desta geração de 70 o violonista Rafael Rabello (cf. Cazes, 1998). Atualmente, o choro parece ter duas escolas: uma “mais conservadora” e outra mais “jazzística” (Oliveira, 2000). Talvez não sejam propriamente duas escolas, mas duas tendências que dialogam entre si. Na tendência mais conservadora, os improvisos mantêmse como variações da melodia (para o solista), acontecendo durante a música inteira (para todos os músicos). Na tendência mais “jazzística”, as harmonias ganham tensões características do jazz e os improvisos muitas vezes nada têm a ver com o tema melódico, mas a harmonia se mantém, como na idéia de chorus. Há muitos músicos, atualmente, que tocam choro mas não são entendidos como “chorões”. Estes são aqueles mais tradicionais defensores de um afastamento crítico em relação ao jazz. Parece haver, no pensamento dos chorões, o temor da perda da “autenticidade” do choro, conquistada por décadas de dedicação. Pode-se dizer que a linha que separa o choro e a MI é muito tênue no caso dos 264 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 grupos de tendência jazzística. Pode-se dizer, em termos da estrutura formal, que a forma de improvisar é um demarcador importante entre choro e MIl: enquanto o primeiro é calcado em princípios de variação, o segundo segue o modelo de criação e articulação de frases-padrão em estrutura do tipo chorus. Assim, a MI se mantém como MI, mesmo quando se toca choro. É claro que estas duas tendências do choro atual não são separadas com tanta clareza. Existem intersecções e trocas entre as duas categorias9. Podemos citar aqui o nome de algumas pessoas que estão no campo do choro e que atuam em uma ou ambas tendências: Isaías, Israel, Maurício Carrilho, Pedro Amorim, Paulo Moura, Proveta, Jorginho do pandeiro, Altamiro Carrilho, Luiz Otávio Braga, Paulinho da viola e Yamandú Costa. Mas se há uma preocupação em distinguir MI e choro, e se o choro não é a matriz básica de onde surgiu a MI, onde ela se encontra? Para Piedade, no mundo instrumental em torno da bossa nova (Piedade, 1997, 1999, 2003). A bossa nova surgiu nos anos 50, na zona sul do Rio de Janeiro. Ali, cantores, instrumentistas e compositores amantes do jazz americano, da música brasileira e da música erudita se reuniram e criaram este gênero que viria a influenciar a música mundial (Castro, 1990). Esta triangulação está expressa por Scarabelot (2004) na divisão da bossa nova em três pilares: João Gilberto com seus sambas peculiares, Tom Jobim com sua experiência erudita e jazzistas de Copacabana. Nos anos 60, com Laurindo de Almeida, Charlie Byrd e Stan Getz, a bossa nova é apresentada ao público norte americano. Foi nesta época que o jazz começou a incorporar elementos da bossa nova, assim como nos anos 40 incorporou elementos da música cubana. Se o samba e a música de Carmem Miranda representavam para os americanos a criatividade “exótica”, a bossa nova penetrou intensamente na cultura americana, mas pela inovação na mescla de refinadas harmonias, espírito cool e batida rítmica típica (Scarabelot, 2004). Embora a influência do cool jazz na bossa nova seja reconhecida pelos próprios bossa-novistas, as raízes da bossa nova podem estar muito mais fortemente estabelecidas na própria música brasileira, na dimensão dos arranjos (ver Pinheiro, 1992) e mesmo na melódica das modinhas (Bastos, 1996). Ao mesmo tempo em que a bossa nova se tornava conhecida no mundo, toda uma geração de instrumentistas influenciados pelo jazz se envolvia com este gênero no Brasil. Estes instrumentistas formaram grupos que tocavam um repertório de bossa nova e jazz instrumental, sendo que muitos eram na formação clássica jazzística de trio (piano, contrabaixo e bateria), como o Tamba Trio, Zimbo Trio, Milton Banana Trio, Jongo Trio, Bossa Três, Sambalanço, e outras formações, como o Quarteto Novo (de Hermeto Pascoal), samba-jazz (de J.T. Meireles) e os Copa 5. Para Piedade (1997, 1999, 2003), é neste universo instrumental da bossa nova que surge a MI. O jazz brasileiro cresce apoiando-se, portanto, menos no choro e mais na bossa nova, aí destacando o encontro entre a bossa e o jazz norte-americano. O encontro real entre Stan Getz e João Gilberto simboliza um diálogo entre as musicalidades da bossa nova e do jazz norte americano que é, para este autor, uma característica fundamental da música instrumental brasileira. Assim, chegamos ao momento no qual o esboço da história da música instrumental brasileira está traçado, da modinha à bossa nova. A partir daí, o gênero se consagrou pouco a pouco. De início, através de músicos brasileiros que moravam nos Estados Unidos, como 9 O choro tem sido objeto de diversos estudos recentes, tais como Freitas (2005) e Oliveira (2003). O desenvolvimento histórico da “música instrumental” 265 Airto Moreira, Eumir Deodato, Flora Purim, Oscar Castro Neves, entre outros. Através da atuação destes músicos e dos expoentes da bossa nova, elementos da música brasileira foram incorporados à música norte-americana, daí se difundindo para o mundo. E, especialmente no caso do jazz, estas leituras e apropriações acabaram voltando para fertilizar a música instrumental brasileira, no movimento reflexivo entre duas musicalidades globais. Apesar da cultura brasileira ter sido bastante afetada pela ditadura militar, no Brasil (anos 70) surgem alguns selos no eixo Rio/São Paulo que veiculam a MI, como o Lira Paulistana. O selo Lira Paulistana tinha também um teatro para apresentações musicais, o que contribuiu para a consagração da MI. Em outros centros urbanos do país o gênero também se desenvolveu significativamente, como, por exemplo, em Minas Gerais, onde surge o Clube da Esquina. Clube da Esquina é o nome de dois LPs de Milton Nascimento (Clube da Esquina e Clube da Esquina II) que reuniam diversos instrumentistas, cantores e letristas mineiros como: Lô Borges, Tavinho Moura, Beto Guedes, Toninho Horta, Fernando Brant, Wagner Tiso e Márcio Borges. Segundo Caetano Veloso (BORGES, 1996), “Milton Nascimento foi -é- o elemento catalisador, o próprio lugar de inspiração do movimento”. Para este autor, a música de Milton Nascimento e do Clube da Esquina é “um desdobramento da bossa-nova (...), uma continuidade em relação ao samba-jazz carioca, uma fusão que – partindo de premissas muito outras e de uma perspectiva brasileira – confluía com a ‘fusion’ inaugurada por Miles Davis”. Em 1964, além de cantar em bailes, Milton Nascimento tocava baixo acústico em um trio de bossa nova e jaz com Wagner Tiso e Paulinho Braga, o Tempo Trio. Fica claro que a relação do Clube da Esquina com a MI, independentemente da letra ou da voz, está fincada em uma relação de continuidade com a bossa nova e no diálogo com o jazz e os jazzistas. A partir dos anos 80, o jazz brasileiro entra no circuito internacional de festivais de jazz (por exemplo, o de Montreux). A partir deste momento, as obras de Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti têm sido muito importantes para a formação da MI como um gênero pleno, com termos temáticos, estruturais e estilísticos relativamente estáveis. Com a maturidade do jazz brasileiro nos anos 80, os anos 90 representaram um período de impressionante crescimento e vigor. Atualmente, a produção da MI gira em torno de gravadoras que são, na maioria das vezes, administradas pelos próprios músicos (p. ex. Núcleo Contemporâneo, Maritaca, entre outras). Ou seja, a MI continua inscrita em um circuito alternativo, havendo um mercado restrito para o gênero no Brasil. Faz parte deste mundo da MI festivais e oficinas periódicas, realizadas em várias cidades brasileiras. Estes encontros reúnem nomes como: Proveta, Daniel Sá, Mané Silveira, Vinícius Dorin, Arismar do Espírito Santo, Cizão Machado, Paulo Moura, Lea Freire, Raul de Souza, entre outros instrumentistas conceituados. Comentário final Neste artigo, pretendemos focalizar, inicialmente, uma característica da música instrumental brasileira que se relaciona justamente com o fato de ser uma música instrumental e, portanto, que exclui a letra e o cantor, sendo que procuramos destacar as questões da hierarquia e da ambigüidade destes fatores. Em seguida, o artigo apresentou um breve panorama histórico da MI, especialmente em contraste com a história do choro. Com os subsídios até aqui obtidos, acreditamos que seria importante investigar mais a fundo a 266 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 MI, principalmente no que toca à profundidade antropológica de toda esta faceta da música brasileira. Ao mesmo tempo, justamente com estes nexos sócio-culturais e históricos em mãos, a análise musical propriamente dita de peças do repertório da MI poderá consolidar uma musicologia deste importante gênero da música brasileira, e revelar toda a sua riqueza e interesse. Referências bibliográficas ALVARENGA, Oneyda. Música Popular Brasileira. Porto Alegre: Ed. Globo, 1950. AYRES, Nelson. Texto de encarte de CD. MANTIQUEIRA, Banda. Aldeia. Pau Brasil PB 003. 1996: São Paulo, Brasil. BASTOS, Rafael José de Menezes. A “origem do samba” como invenção do Brasil (Por que as canções têm música?). Revista Brasileira de Ciências Sociais, 31, pp. 156–177, 1996. _____. “Brazilian popular Music: An Anthropological Introduction”. 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Marina Beraldo Bastos: Estudante de graduação em Música (UDESC); bolsista de iniciação científica (PROBIC/UDESC); Membro do grupo de pesquisa MUSICS/UDESC/CNPq; Atua na cidade de Florianópolis (S.C.) nos grupos “Poré Poré” e “Quarteto Sonoroso”, como flautista, no “Poliphonia Khoros”, como cantora, e na Escola Livre de Música Compasso Aberto, como professora. Acácio Tadeu de Camargo Piedade Doutor e Mestre e Antropologia (UFSC), Bacharel em Música (UNICAMP); professor e pesquisador nas áreas de musicologia/etnomusicologia e composição/arranjo no Departamento de Música da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); membro dos grupos de pesquisa MUSICS (Música, Cultura e Sociedade)-UDESC/CNPq e MUSA (Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe)-UFSC/CNPq; membro do International Council for Traditional Music (ICTM), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) e da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET). |resumos de pôsteres| Desconstruindo o “ursozinho de algodão” de Villa-Lobos Marcos Mesquita (Universidade de Karlsruhe) Resumo: O artigo situa sucintamente a Próle do Bébé n. 2 tanto no contexto da criação villalobiana quanto no cenário mais amplo da vanguarda da década de 1920, apontando ainda os problemas de datação de algumas obras do compositor. Em seguida, é feita uma análise detalhada da peça “O ursozinho de algodão” da Próle n. 2 que visa resgatar de sua esfera microestrutural os elementos constitutivos que garantem à mesma uma unidade e uma coerência “discursiva”. Cognição musical como enacção e algumas possibilidades de implicações metodológicas em educação musical. André Luiz Gonçalves de Oliveira; Sabrina L. Schulz; Patrícia Mertzig (UEM) Resumo: Discutir cognição musical tem sido um importante ponto de convergência para diferentes pesquisadores e mesmo para diferentes áreas do conhecimento humano. A própria ciência cognitiva, de natureza interdisciplinar, acaba propiciando tais características ao estudo da cognição musical e da percepção, tão importante nesse contexto. Este artigo apresenta uma nova perspectiva no entendimento de cognição musical, a partir da concepção de conhecimento como a história das condutas de um corpo em um mundo. Para apresentar alguns princípios dessa nova perspectiva de cognição musical, em primeiro lugar, iremos investigar as possibilidades de definição de conhecimento musical, depois vamos apresentar a noção de conhecimento como atuação. Posteriormente esperamos descrever o conhecimento musical como um tipo de ação perceptivamente orientada de um corpo em um mundo específico. Por fim iremos apresentar uma reflexão sobre os limites e alcances das possíveis conseqüências trazidas por uma nova perspectiva da noção de conhecimento musical como conhecimento corporificado e situado. A organização do discurso musical em Psappha, de Iannis Xenakis Arthur Rinaldi; Edson Zampronha (UNESP) Resumo: A organização do discurso musical na música contemporânea figura entre os temas de maior interesse e complexidade dentro do âmbito da musicologia. Seu estudo pressupõe a reflexão sobre diversos elementos que vão da organização dos materiais sonoros aos princípios estéticos que fundamentam uma determinada composição. Nesse artigo apresentamos uma visão analítica sobre a organização do discurso musical de uma peça importante dentro do repertório de percussão do século XX: Psappha, para percussão solo, de Iannis Xenakis. Em nossa visão enfatizamos que Psappha transcende a construção de uma linguagem musical tipicamente Resumos estocástica, estabelecendo relações entre as massas sonoras e seus elementos constituintes, no caso destacando-se especialmente as células rítmicas utilizadas pelo compositor, com uma série de referenciais pertencentes à escuta. E por causa desse diálogo com o repertório tradicional, combinando-o com elementos contemporâneos da linguagem musical, o discurso musical em Psappha adquire uma riqueza e densidade que a caracterizam como uma obra importante dentro do repertório musical contemporâneo. Investigações acerca da música de hoje Caio Manoel Nocko (PUC–PR) Resumo: Vivemos em uma era em que a economia tem importância central em toda a vida da sociedade. É em torno do capitalismo que tudo gira, inclusive a música. Não se pretende, com esse artigo, fazer juízo de valor quanto a essas relações econômicas, mas investigar alguns pontos sobre a música que é feita nessa era e as críticas e soluções que alguns autores apresentam. Caminharemos na direção da ‘solução’ apresentada por Habermas, representante da Escola de Frankfurt, sob a forma do conceito de ‘razão comunicativa’. Tal estudo de Habermas não enfoca pontualmente a música e nem a estética, mas todas as manifestações culturais, sociais e políticas da sociedade. Sendo assim, a música enquanto expressão cultural, se encaixa em tais observações habermasianas. Analisaremos, ainda, a criação musical contemporânea do ponto de vista da crescente individualização/ globalização do gosto, seja técnico ou subjetivo, seja puramente objetivo e voltado à comercialização. A influência positivista na música paranaense Charlene Neotti Gouveia Machado (UFPR) Resumo: A influência do pensamento positivista na política e cultura brasileira durante os primeiros anos do século XX, fenômeno amplamente discutido por vários historiadores, repercutiu de forma notável no Estado do Paraná, principalmente nas artes plásticas, poesia e música. Esta comunicação apresenta um panorama de tal influência no campo da música paranaense, demonstrando a influência positivista e seus diálogos com a poesia simbolista em obras do início do século XX. Serão abordadas as maneiras pelas quais tal influência é manifestada, quer seja quanto à temática, ao uso de textos de poetas simbolistas por compositores, ao contato ou ligação efetiva de certos compositores a organizações ou movimentos filosóficos e literários, ou ainda à utilização de tais músicas ou outras durante as reuniões ou cultos de tais organizações ou movimentos. Neste contexto, destacam-se as obras de Augusto Stresser, Brasílio Itiberê II e Benedito Nicolau dos Santos sobre poemas simbolistas de Dario Vellozo, Jayme Ballão e Tasso da Silveira. Este trabalho está sendo realizado no âmbito do projeto "Acervos de Música Paranaense", desenvolvido no Departamento de Artes da UFPR em parceria com a Casa da Memória e MIS. 269 270 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 A influência da mensagem subliminar na música Cristiano Steenbock (FAP–PR) Resumo: A mensagem subliminar é um estímulo produzido abaixo dos níveis de percepção, tanto auditiva, quanto visual. Ela está presente em nosso cotidiano de uma maneira bem sucinta, em outdoors, música, televisão, etc. A psicologia define a palavra subliminar como sendo qualquer estímulo produzido abaixo do limiar da consciência, e que produz efeitos na atividade psíquica ou mental. O objetivo principal da mensagem subliminar é o controle da mente humana, violando assim o estado do inconsciente e revertendo-o para o consciente, em idéias e atos. O subconsciente não critica o que nele entra como faz a nossa mente consciente. Ele assimila as informações não pela sua racionalidade, mas pela insistência com que são apresentadas. Não há, portanto, uma forte influência subliminar numa mensagem que vemos ocasionalmente. Mas se formos submetidos dia após dia a uma informação subliminar, tenderemos a acreditar nela se a realidade não se opuser claramente à mesma. Esse trabalho visa apresentar e discutir também, as várias influências da mensagem subliminar no aspecto da música, nas quais são utilizadas estratégias de \"reverse-masking-process\"(processo reverso disfarçado), utilização de volume acima da tolerância pelo sistema nervoso e uso de ritmos específicos, para causar uma padronização das ondas cerebrais. Muitos exemplos de bandas nacionais e internacionais, além de cantores conhecidos, são citados nesse trabalho como apresentando fortes indícios do uso de mensagens subliminares em suas canções. Música e comunicação Cristine Roberta Piassetta Xavier (Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Curitiba) Resumo: Palavras-chaves: educação musical; indisciplina; música e comunicação. Este é um projeto de educação musical chamado Brincando com Sons, que está sendo desenvolvido na Escola Municipal CEI Eva da Silva. Observando a indisciplina que havia na escola e o interesse dos alunos pela música, estão sendo desenvolvidas atividades, como uma alternativa de ensinar e aprender de maneira lúdica e significativa. Este projeto tem como primícias melhorar a aprendizagem do aluno para um desenvolvimento global, estimulando e valorizando suas habilidades e competências, melhorando sua auto-estima e interesse através da música. O projeto surgiu com o intuito de trabalhar a música como forma de comunicação e suas propriedades em sala de aula, onde os alunos possam utilizar suas realizações musicais com maior precisão e significação. O projeto busca a sensibilização ao som através da Apreciação, Execução e Composição Musical utilizando canções folclóricas, brincadeiras de roda, brinquedos cantados, trava-línguas, quadrinhas, contos sonoros, composições coletivas, etc, manipulando instrumentos de percussão, sendo alguns confeccionados pelos próprios alunos. Resumos Algumas informações de interesse para o estudo da música paulista no século XVIII em “Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo” Dalton Martins Soares; Paulo Augusto Castagna (UNESP) Resumo: O artigo é resultado de pesquisa arquivística, consistindo esta do exame da coleção “Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo”, publicada pelo Arquivo Municipal de São Paulo. Foram examinados trinta volumes da coleção, referentes ao século XVIII. Os mesmos apresentam algumas informações sobre a atividade musical da capitania no período em questão. Relações dialógicas entre o sacro e o secular Elisabeth Seraphim Prosser (EMBAP–UFPR) Resumo: José Penalva, compositor, professor e regente, destacou-se, também como musicólogo. Seus principais escritos versavam sobre a música folclórica e colonial brasileira, Carlos Gomes, a música do século XX, a música sacra e o canto coral da Vanguarda. Ao examinar em detalhe as relações entre suas composições e os seus livros, artigos, estudos e apostilas, bem como com sua atuação como sacerdote e professor, percebe-se que o sacro e o secular formam uma unidade em constante diálogo, e que a pesquisa esteve solidamente presente na construção da sua trajetória e nas interfaces da sua obra e das suas atividades. Introdução à música microtonal Felipe de Almeida Ribeiro (UFPR) Resumo: No século XX um novo conceito de afinação revolucionou a história da música. Alguns compositores, habituados com o sistema de doze sons tradicional, experimentaram afinações não convencionais. A oitava foi explorada além da divisão de 12 semitons. Exemplo disto foi o compositor Harry Partch (1901-1976) que compôs peças usando uma escala com 43 notas. Isso trouxe inúmeras questões a serem resolvidas: como compor, como realizar uma notação e como executar. Para resolver esses problemas, compositores criaram instrumentos próprios (Harry Partch) ou limitaram a escrita a quartos-de-tom (Charles Ives). Além disso, contribuiu também, o desenvolvimento de softwares de notação adaptados (como o Finale e o Sibelius) e de tecnologias como síntese (Csound) e MIDI. A presente comunicação visa uma explanação sistematizada desta escola, o Microtonalismo, presente a mais de um século, mas ainda vista com receio. Tecnologias de gravação e fazer musical: algumas reflexões Frederico Alberto Barbosa Macedo (UDESC) Resumo: O presente artigo pretende discutir algumas das transformações ocorridas no processo de produção da música após o surgimento das tecnologias de gravação e 271 272 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 reprodução sonora. Antes do surgimento destas tecnologias, a forma pela qual a experiência musical poderia ser vivenciada se resumia às situações nas quais a música era feita ao vivo. Neste tempo, era possível ainda se considerar o processo de produção da música através da divisão tradicional pela qual existiriam três agentes principais, o compositor, o intérprete e o ouvinte. As tecnologias de gravação possibilitaram que a experiência musical pudesse ser vivida sem que os agentes produtores da música - cantores e/ou instrumentistas - estivessem fisicamente presentes. O surgimento destas tecnologias de gravação e reprodução sonora possibilitou o desenvolvimento da indústria fonográfica. Paralelamente se desenvolveram também as tecnologias de comunicação de massa – cinema, rádio, televisão -, bem como as telecomu nicações, que modificaram totalmente a sociedade e deram ao século XX a sua identidade característica. A partir do desenvolvimento da indústria fonográfica, foram surgindo várias atividades e funções associadas ao processo de produção da música que fizeram com que este processo ficasse muito mais fragmentado que antes, não permitindo mais que fosse descrito considerando-se apenas o compositor, o intérprete e o ouvinte. A primeira seção deste artigo apresenta uma breve discussão sobre os conceitos de indústria fonográfica e gravadora, bem como dos conceitos de grande gravadora – major – e gravadora independente. Menciono também a questão de se considerar a música gravada como uma mercadoria, e algumas das implicações deste status de mercadoria atribuído à música. Na segunda seção do artigo, apresento uma descrição da estrutura organizacional das gravadoras, mencionando e definindo as funções dos principais cargos e departamentos deste tipo de empresa, a saber: presidência, conselho, departamento artístico (A&R, ou artistas e repertório), direção de marketing, direção de divulgação, direção de promoção, direção de vendas, direção internacional, departamento jurídico, departamento gráfico, departamento de vídeo, divulgadores, músicos, produtores e artistas. Na terceira seção do artigo, menciono e descrevo algumas outras funções e atividades externas às empresas gravadoras que têm uma influência direta sobre o desenvolvimento da indústria fonográfica e da vida musical. São os intermediadores culturais, que influenciam diretamente, ou mesmo determinam se a música chegará ao ouvinte, o modo como chegará e que tipos de músicas chegarão. Inicio esta seção discutindo a função de mediação dos meios de comunicação de massa na veiculação da música ao ouvinte, descrevendo, em seguida, as atividades de alguns destes intermediadores culturais ligados à música, a saber, o produtor de shows, os empresários dos artistas e os selecionadores – profissionais diversos ligados a setores específicos da imprensa, televisão, rádio, que atuam filtrando e escolhendo que informações, produtos e produções culturais serão veiculadas pelos meios onde estão atuando. Na conclusão final do artigo procuro mostrar como todas estas transformações ocorridas na vida musical foram significativas, e como afetaram de forma profunda a maneira como o ser humano produz e recebe a música no mundo contemporâneo. Música, linguagem e a evolução da comunicação humana: uma tentativa de testar empiricamente modelos de evolução da comunicação humana com base nas vocalizações de bebês de até 12 meses de idade João Pedro Troncoso Caserta (UFPR) Resumo: Acredita-se hoje que a música e a linguagem oral possam ter tido uma origem comum, uma forma de comunicação classificada muitas vezes como protomúsica por musicólogos ou como proto-linguagem por lingüistas. O objetivo da presente pesquisa de caráter experimental é analisar esta possibilidade de um ponto de vista evolutivo, utilizando como objeto de estudo as vocalizações de bebês com idade Resumos menor ou igual a 12 meses. Alguns modelos de evolução da comunicação humana, bem como estudos sobre as relações entre a música e a linguagem oral serão revisados e utilizados para fundamentar a discussão. De acordo com a idéia de replicação, altamente conhecida na biologia, caso algum desses modelos seja válido para o desenvolvimento infantil, então talvez possamos generalizá-lo para a evolução da espécie humana. Apesar de ser um tema de interesse comum entre musicólogos, lingüistas e diversos outros especialistas, a falta de estudos interdisciplinares e de uma taxonomia comum muitas vezes prejudica os resultados e dificulta um avanço significativo. A presente pesquisa apresenta-se como interdisciplinar na medida em que busca em diversas áreas do conhecimento respostas para as questões relacionadas à origem da música e da linguagem oral e pretende com isso possibilitar a criação de termos que possam tornar possíveis pesquisas multidisciplinares futuras. Uma nova visão sobre o aquecimento e desaquecimento vocal Karissa Laiz Nuñez (FAP) Resumo: muito se fala, e pouco se pratica o aquecimento e o desaquecimento vocal. discutimos nessa pesquisa a relevancia dessa prática para os cantores populares, como também a própria prática, ou seja, que exercícios são efetivos? quando e como realizálos? e, em nossa visão, a pergunta mais importante: por que incorporar a prática do aquecimento e desaquecimento vocal. O Hip-Hop: suas oficínas e apresentações Kleber Tiago Gregorio (UFPR) Resumo: Uma das mais poderosas ferramentas de acesso na educação, fundamentada na formação através da metodologia “crítico-superadora” , do cidadão transformador da sua realidade. Vem mostrar que existem várias perspectivas na sociedade, pautando-se na superação da organização social e tanto na democratização do acesso aos bens culturais como na redistribuição da renda. Do processo de relações sociais, que vem resultando em desigualdade, homogeneização cultural e individualismo, tendo como conseqüência a alienação da sociedade. Para expor a indignação a essa situação, surgem movimentos como o Hip-Hop , forjados na coletividade e com função de informar o cidadão a respeito de sua situação na sociedade, mostrando que ele tem deveres e direitos. Assim é o movimento Hip-Hop, que com suas apresentações e oficinas vem instigando os participantes, a se tornam pensantes, pessoas que interpretam, julgam, e que direcionam a sociedade, substituindo a disputa pela solidariedade, o individualismo pela cooperação e enfatizando a liberdade de expressão. Música e nação-cosmos: o legado de uma utopia brasileira Luciana Rodrigues Gifoni; Alberto T. Ikeda (UNESP) Resumo: Embora seja quase um senso comum a afirmação de que a classificação erudito-popular na música é uma dicotomia ultrapassada, é possível identificar ainda hoje a presença do pensamento modernista dos intelectuais brasileiros, especialmente o pensamento de Mário de Andrade, em relação à produção de uma música erudita 273 274 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 genuinamente brasileira. Tal proposta inclui a busca de uma sonoridade popular “autêntica” aliada a técnicas “universais” de composição, e ao mesmo tempo rejeita a interferência do incipiente mercado fonográfico, das rádios e dos gêneros musicais urbanos, considerados popularescos e de mau gosto. Não seria arriscado afirmar que este pensamento não é residual, mas predominante dentro da pesquisa musicológica, cujo perfil temático aponta, em geral, para a música erudita na Musicologia Histórica, para a musica de tradição oral ou “folclórica”, na Etnomusicologia, e para a música de vanguarda no campo da Composição. Por outro lado, observa-se no trabalho dos músicos práticos, sejam de formação erudita ou popular, a inserção nas dinâmicas da indústria cultural e a fusão de gêneros considerados, à primeira vista, díspares do ponto de vista estilístico-musical. Parece, contudo, haver uma rejeição dos musicólogos em se investigar a música dentro da chamada cultura de massa, mesmo que admitam haver um mercado de bens simbólicos, inclusive na faixa temática que costumam abordar. Neste artigo, pretende-se fazer um diálogo com alguns autores, como Miguel Wisnik, Daniel Pécaut, Ênio Squeff, Eric Hobsbawm, Ariano Suassuna, Roberto Schwartz, Renato Ortiz, dentre outros, no sentido de expor uma reflexão panorâmica sobre o modo como algumas perspectivas nacionalistas na música erudita brasileira recriam, constróem e resignificam o universo sonoro simbólico capaz de legitimar determinadas tradições culturais do povo brasileiro, e em que medida a perspectiva modernista permanece nas pesquisas musicológicas atuais. Uma concepção de relação entre arte e vida sob a ótica da filosofia de Friedrich Nietzsche Marcel Sluminsky; Fernando Nicknich (UFPR) Resumo: Partindo de um dos pilares do pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, a saber, a assim considerada visão ontológica dos gregos e a relação destes com a sua arte e a sua religião, pretende-se mostrar até que ponto se torna possível prescrever uma separação entre a vivência artística e a própria vida, levando-se em conta as implicações desta separação no que se refere às possibilidades de relação do ser humano considerado em seus aspectos racionais, éticos, estéticos e filosóficos. Representações numéricas de tempo como geradores de timbre: o Calendário Maia como algoritmo musical Marcelo C. Velho Birck; Anselmo G. de Almeida (UFG) Resumo: O artigo descreve um algoritmo concebido a partir de uma representação numérica de tempo, a saber, o Calendário Maia. É discutida a abordagem do modelo como uma forma expandida de escuta, bem como comparações entre a síntese granular (técnica predominante na criação dos timbres utilizados) e o sentido do tato. Além disso, se especula sobre um paralelo entre o parâmetro timbre e o conceito de configuração. O Calendário Maia é demonstrado de forma a salientar a similaridade de funcionamento com um algoritmo musical, visando sua implementação através de meios computadorizados. Resumos A encruzilhada musical: vivendo entre o sagrado e o profano Miguel Locondo de Laet (MozarteumSP) Resumo: O presente artigo visa discutir – baseando-se nos trabalhos de filósofos, musicólogos, cientistas políticos e historiadores - alguns aspectos referentes à função da música na sociedade, a forma como vem sendo explorada pelos meios de comunicação e indústria fonográfica e entretenimento; o consumo desmedido dos produtos ofertados pela indústria cultural; e a figura do compositor diante de dois mundos distintos. De um lado, o desejo de transcender a própria música. Do outro, a missão de se comunicar com o grande público e a necessidade financeira. Neste sentido, se faz necessário repensar quais são os fatores que criaram este abismo na relação música erudita/ ouvinte, desde a coercividade do Poder Político em regimes totalitários até a liberdade conquistada pela mente criadora da música. Formação de professores e educação musical; traçando um perfil Mônica Zewe Uriarte; Paulo Chiesa (UFPR) Resumo: O artigo apresenta uma reflexão sobre os aspectos relacionados com o papel da Educação Musical e a formação dos professores, agentes na mudança das práticas educativas, na procura de procedimentos que favoreçam o desenvolvimento de habilidades e competências na constituição de sua profissionalidade docente. O enfoque teórico, a partir de materiais sobre cultura, educação, arte e música, inspira-se em idéias de Forquin, Gramsci, Nóvoa, Sardelich, Penna, entre outros, para ponderar sobre as condições de construção do docente e seu conhecimento pedagógico-musical, exigidos pelas demandas do atual mercado profissional e para o exercício de uma cidadania efetiva. Compara grupos de professores analisados por três pesquisas realizadas em diferentes estados brasileiros e traça um perfil desse profissional: sua formação, condições de trabalho, perspectivas e construções. A audição em quatro propostas de educação musical Patrícia Mertzig; André Luiz G. de Oliveira (UEM) Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal refletir sobre o papel da percepção auditiva em quatro propostas de educação musical. Iniciaremos realizando uma revisão das propostas de Violeta Gainza, Shinichi Suzuki, Murray Schafer e Hans J. Koellreutter. Na seqüência apontamos para a necessidade da descrição clara e adequada da noção de conhecimento musical segundo a tradição do estudo da ciência cognitiva e da filosofia da mente. Posteriormente nos ocupamos da descrição de diferentes atividades que envolvem audição em cada uma das propostas dos autores citados acima. Nossa intenção é investigar as possibilidades funcionais atribuídas à audição no processo de desenvolvimento musical dentro de cada abordagem metodológica. Também esperamos, com isso, destacar a importância da audição como fundamento para o desenvolvimento da cognição musical em todos os seus aspectos envolvidos em diferentes perspectivas de educação musical. 275 276 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 Significação Musical: sons que vibram enquanto materialidade sonora e na construção de significados e sentidos Patrícia Wazlawick; Glauber Benetti Carvalho (FAP) Resumo: Este trabalho discute a significação em música. É fruto de pesquisas dos autores e suas interlocuções, a saber: o trabalho de conclusão de curso sobre a “Percepção Estrutural da Música”, em base à Semiótica de Peirce (Carvalho, 2003), e a pesquisa de Mestrado em Psicologia sobre a produção de significados e sentidos expressos nas narrativas que os jovens constroem sobre suas histórias de relação com a música, em base à interface entre Musicoterapia (Ruud; Stige), Psicologia HistóricoCultural (Vygotsky) e a filosofia de Ludwig Wittgenstein (Wazlawick, 2004). Estar diante de um fato e poder dar-lhe uma significação é tarefa que o sujeito busca realizar constantemente, nos âmbitos científico, técnico, artístico e no cotidiano. Significação que permite tecer também compreensões ao que se vive, sente e se escuta na experiência musical. Pois, como dizem Deleuze e Guattari “nada é mais doloroso, mais angustiante que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem e desaparecem apenas esboçadas”(1). E tal como Vygotsky: “...uma palavra carente de significado não é uma palavra, é um som vazio...”(2). Isto é, a partir da discussão teórica e da inquietação que surge no embate com a realidade empírica, no que é vivenciado nas experiências musicais nas dimensões da Música e da Musicoterapia, é que pretendemos articular estes conhecimentos para discutir e tentarmos nos aproximar das possibilidades de significação em música. A música existe enquanto matéria musical em si, resultado da relação dos seus elementos. Possui em sua estrutura uma “narrativa de vida” própria, ou seja, própria do discurso e da forma musical tecida por alguém. Em sua trama possui uma significação musical interna, atrelada ao signo musical consigo mesmo, sendo fruto da “semiose musical” que configura o “pensar musical” de um sujeito – aquele que a faz – orientado por uma forma de pensar, agir e sentir, no que diz respeito as maneiras de organizá-la estruturalmente enquanto sistemas, formas e estilos. Um sujeito que ao produzir musicalmente objetiva, neste fazer, sua subjetividade, e registra na matéria musical a sua presença, o seu “pensar musical”. A música é criada pela utilização cultural e pessoal dos sons. Age sobre a cultura que lhe dá forma e de onde ela deriva, ao mesmo tempo em que se insere na estrutura dinâmica onde ela própria se formou(3). Está inserida nas várias atividades sociais, donde decorrem múltiplos significados. A cultura dá os referenciais, bem como os instrumentos materiais e simbólicos que cada sujeito se apropria para criar, tecer e orientar suas construções, neste caso, as atividades musicais. Por isso, ao se vivenciar a música, depara-se também com toda uma rede de significados construídos no mundo social, nos contextos coletivos e singulares. Assim, para nos aproximarmos de uma compreensão mais dinâmica e contextualizada da significação em música, o estudo aponta para a necessidade de buscar a compreensão da materialidade musical articulada aos significados e sentidos construídos a partir de vivências concretas e da “utilização viva” da música, por sujeitos em relação, articulando a dimensão reflexivo-afetiva. Resumos Um estudo técnico-pianístico do Mikrokosmos de Béla Bartók segundo a abordagem de Cláudio Richerme (1996) Sabrina Laurelee Schulz; André Luiz G. de Oliveira (UEM) Resumo: Cláudio Richerme em seu livro A técnica pianística – uma abordagem científica (1996) propõe um estudo fisiológico dos movimentos necessários á técnica clara e precisa, podendo ser aplicada tanto pelo pianista profissional quanto pelo estudante de piano. Sua abordagem científica e anatômica dos braços, das mãos e dos dedos, auxilia na compreensão e escolha dos movimentos e coordenações musculares mais adequados no ato da execução de cada trecho musical. Desse modo, a escolha dos movimentos mais corretos para cada pianista, faz com que o estudo da obra seja mais rápido e eficiente. No entanto seu livro não traz nenhum exemplo prático de aplicação ao repertório do instrumento. Assim, nosso trabalho realiza uma possível análise da técnica de Richerme aplicada ao livro de peças progressivas para piano Mikrokosmos de Béla Bartók, tendo em vista que, Bartók não apresenta uma metodologia para a aplicação de uma técnica pianística em seu método, fato este que se apresenta como sintomático na grande maioria dos métodos de aperfeiçoamento técnico. Atualmente, o método Mikrokosmos é muito utilizado nas escolas de música, como exercícios complementares ao aperfeiçoamento da técnica desejada, como método de leitura à primeira vista e também como uma iniciação ao estudo do repertório pianístico do século XX. Escolhemos tal método para o presente trabalho, não só porque apresenta inicialmente uma leitura musical simples, auxiliando na automatização dos movimentos e coordenações musculares descritas por Richerme, mais também por valorizar a sonoridade e estética contemporânea, o que pode contribuir para uma formação mais completa do pianista. No presente trabalho, elencamos alguns exercícios do Mikrokosmos para a aplicação da técnica de Richerme, de acordo com os movimentos que são os mais utilizados na execução musical ao piano. Cada pianista possui sua técnica individual, entretanto uma estudo sistemático de seus próprios movimentos ajudará em rápidas soluções técnicas para trechos musicais de maior dificuldade, dando subsídio para a interpretação pessoal e desenvolvimento para o estudo pianístico. Educação musical nas séries iniciais na perspectiva de professores generalistas Sérgio F. de Figueiredo; Vanilda Macedo Godoy (UDESC) Resumo: Música nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental é uma pesquisa que vem sendo desenvolvida em uma escola da rede pública municipal. Nas séries iniciais atuam professores generalistas, os quais devem mediar conteúdos de todas as áreas do conhecimento, sendo a música uma destas áreas. Entende-se que é fundamental que estes profissionais possuam uma vivência com os aspectos musicais, além de um conhecimento básico e fundamentado dos conteúdos de música a introduzir em suas aulas. O principal objetivo desta pesquisa é verificar a presença da música nas séries iniciais do ensino fundamental, especificamente relacionada à prática dos professores generalistas e com vistas ao estabelecimento de competências necessárias para que tais profissionais possam contribuir para o desenvolvimento musical nos primeiros anos escolares. A metodologia qualitativa foi empregada neste trabalho, pois o que se pretende é estudar a presença da música na escola pesquisada sob a visão dos profissionais atuantes nas séries iniciais, e não gerar dados estatísticos ou generalizações. Os dados foram obtidos através de questionários, entrevistas e 277 278 Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005 observações, e analisados à luz da literatura de educação musical. Estes dados foram estudados e classificados em cinco categorias para análise: a) Formação de professores das séries iniciais: inicial e continuada; b) A questão do talento; c) A importância da música nas séries iniciais; d) Professor especialista X professor generalista; e) Aprimoramento dos estudos musicais. Os resultados demonstram que as professoras receberam pouca ou quase nenhuma orientação musical em seus cursos de formação. Este quadro gera uma carência de aprofundamento para uma prática mais consistente no ensino de música das séries iniciais. Sem uma base concreta os professores generalistas sentem-se inseguros para lidar com conteúdos musicais em suas aulas, mesmo demonstrando interesse e potencialidade para realizarem esta tarefa. Sem a devida formação de professores generalistas em relação aos conteúdos musicais, alimenta-se um círculo vicioso quanto à desvalorização e à falta de conhecimento sobre a educação musical escolar, na medida em que a oportunidade de aprender música fica distanciada da maioria das pessoas. Evidencia-se, a partir destes dados, a necessidade de ampliação da formação musical das professoras, o que poderia ser feito através de programas de educação continuada. Tais programas não seriam substitutos da necessidade de estudos musicais na formação inicial de pedagogos que atuam nos anos iniciais da escola, mas contribuiriam para a continuidade e aprimoramento dos estudos musicais por parte dos professores generalistas. Os resultados da pesquisa também apontam para a relevância da presença de professores especialistas em música atuando na escola e realizando parcerias com professores generalistas, o que poderia favorecer uma mediação mais concreta de aspectos musicais nas séries iniciais. Aspectos do idioma pianístico de Heitor Villa-Lobos na peça Choros n. 5 - Alma Brasileira Tarcísio Gomes Filho; Mauricy Matos Martin ( UNICAMP) Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar um estudo sobre as características do idioma pianístico de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), por meio da análise dos aspectos pianísticos da peça Choros n.5 - Alma Brasileira (1925). Na busca pela compreensão deste idioma, em um primeiro momento, foram apontados aspectos biográficos que estão intimamente ligados à produção do compositor, mais precisamente, a obra para piano, para então seguir à abordagem da peça sob o ponto de vista da escrita e da técnica pianística, analisando questões como planos sonoros, uso de ostinatos e posicionamento das mãos. A conclusão deste artigo evidencia que esta peça representa uma síntese da obra pianística de Villa-Lobos e reflete uma escrita permeada de recursos técnicos extremamente bem elaborados, conferindo ao piano uma ampliação sonora singular.