See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/263504076 VOLPE, Maria Alice (org.). Anais do III Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ "Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso e Poder". Rio de Janeiro: Unive... Book · July 2013 CITATIONS READS 0 908 1 author: Maria Alice Volpe Federal University of Rio de Janeiro 51 PUBLICATIONS 24 CITATIONS SEE PROFILE Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Grupo de Pesquisa "Novas Musicologias" CNPq-UFRJ View project All content following this page was uploaded by Maria Alice Volpe on 30 June 2014. The user has requested enhancement of the downloaded file. MARIA ALICE VOLPE (ORG.) ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Carlos Levi Reitor Antônio Ledo Vice-reitor Debora Foguel Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa SUMÁRIO CENTRO DE LETRAS E ARTES Flora de Paoli Decana ESCOLA DE MÚSICA André Cardoso Diretor Marcos Nogueira Vice-diretor Afonso Barbosa Oliveira - Diretor Adjunto de Ensino de Graduação Celso Ramalho - Coordenador do Curso de Licenciatura João Vidal - Diretor Adjunto do Setor Artístico Cultural Miriam Grosman - Diretora Adjunta dos Cursos de Extensão Marcos Nogueira - Coordenador do Programa de Pós-graduação em Música Maria Alice Volpe - Editora-chefe Normalização: Maria Alice Volpe Projeto gráfico: Gustavo Costa Editoração e tratamento de imagens: Patrícia Perez Capa: Candido Portinari, Carnaval (1960); imagem cedida por João Portinari (Projeto Portinari) Anais do III Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ “Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso e Poder” Maria Alice Volpe (org.) Conselho Editorial André Cardoso Diósnio Machado Neto Ilza Nogueira Marcos Nogueira Maria Alice Volpe Mary Angela Biason Régis Duprat Robin Moore Copyright © 2012 by Autores Catalogação: Biblioteca Alberto Nepomuceno/EM/UFRJ 500 exemplares Catalogação: Biblioteca Alberto Nepomuceno/EM/UFRJ S612a Simpósio internacional de musicologia da UFRJ Anais do III Simpósio internacional de musicologia da UFRJ Patrimônio musical na atualidade: tradição, memória, discurso e poder / Maria Alice Volpe (org.). – Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Música, Programa de Pós-graduação em Música, 2013 . 196 p. : il. ; 21cm. Trabalhos originalmente apresentados no III Simpósio Internacional de Músicologia da UFRJ (3. : 13 a 16 de agosto de 2012 : Rio de Janeiro, RJ) ISBN: 978-85-65537-03-2 1. Patrimônio Musical – História e crítica. 2. Musicologia – História e crítica. I. Volpe, Maria Alice, org. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Música. Programa de Pós-graduação em Música. III. Anais do II Simpósio internacional de musicologia da UFRJ. CDD - 780.5 APRESENTAÇÃO Maria Alice Volpe 9 PREFÁCIO Maria Alice Volpe 11 AGRADECIMENTOS 13 INSTITUIÇÕES PATRIMONIAS E ACERVOS 15 Tributo biografia musical Guilherme de Mello: 80 anos de falecimento Marcos Santana 17 Patrimônio musical e memória: os manuscritos musicais do Museu Carlos Gomes Lenita W. M. Nogueira 25 Acervo Koellreutter: o passado é um meio e um recurso: ||de maneira nenhuma um dever||: O futuro, porém é Marcia E. Taborda 39 Centro de Referência Musicológica José Maria Neves: patrimônio e projeto de futuro Suely Campos Franco 49 Meneleu Campos: o catálogo da obra completa consolida os acervos BNRJ e UFPA Mário Alexandre Dantas Barbosa 59 Fontes para o estudo da música sacra em Goiás: o acervo do maestro Balthasar de Freitas Marshal Gaioso Pinto 67 UNIVERSO LUSÓFONO 79 A música religiosa de Marcos Portugal (1762-1830): o repertório luso-brasileiro António Jorge Marques 81 “Era uma vez um príncipe”: uma versão brasileira da ópera Il Guarany de Carlos Gomes Lucia de Fátima Ramos Vasconcelos, Alberto José Vieira Pacheco e Adriana Giarola Kayama 97 PATRIMÔNIO MUSICAL E IDENTIDADE 109 Eduardo de Borja Reis (1859-1896): um crítico musical a serviço da República do Brasil Clarissa Lapolla Bomfim Andrade 111 The Café and the Espectáculo: collective remembrance, musical materiality and Jewish performance at the Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA) Lillian M. Wohl 121 A prática da Hausmusik em Curitiba: uma perspectiva histórica, identitária e educativa Elisabeth Seraphim Prosser 137 DIVERSIDADES ETNOMUSICAIS 149 Preservação da rabeca na Marujada de Bragança, Amazônia, Pará: resultados de uma interferência pública no patrimônio cultural Mavilda Aliverti 151 Patrimônio imaterial no cavalo-marinho de Pernambuco Paulo Henrique Lopes de Alcântara 165 TRADIÇÕES REVISITADAS 173 Uma leitura da adaptação musical de Iannis Xenakis da tragédia grega Orestes de Ésquilo Pedro Bittencourt 175 O Órgão da Antiga Sé do Rio de Janeiro como patrimônio virtual: sua atualização hoje Daniel Vincent Birouste e Paulo Eduardo Martelli 189 APRESENTAÇÃO Os Anais do Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ seguem a proposta de coletâneas temáticas vinculadas ao evento científico de mesmo nome e tem por objetivo publicar os trabalhos selecionados mediante submissão. Os Anais complementam a Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ, dedicada aos conferencistas convidados, e conta igualmente com a colaboração estudiosos oriundos de instituições com diversidade geográfica, intensificando assim o diálogo entre as comunidades nacional e internacional. O Conselho Editorial empenha-se em contribuir para a catalisação do avanço do conhecimento científico na área e para a sistematização e aprofundamento da temática escolhida para cada volume. Maria Alice Volpe Editora ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 11 PREFÁCIO O presente volume Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso e Poder visa a uma reconceituação do tema em questão, bem como uma ampliação e aprofundamento das questões teóricas e metodológicas da pesquisa musical, buscando maior interseção com as políticas públicas e ações comunitárias relativas aos bens culturais, tangíveis e intangíveis, e as formas de saber, fazer e criar atinentes à música. O tema “patrimônio cultural” ou “patrimônio musical” tem envolvido ações e questões concernentes ao levantamento e a preservação dos bens culturais, a pesquisa, a promoção da diversidade e do valor cultural, a conceituação da distinção entre patrimônio material (tangível) e imaterial (intangível), a construção de identidades, a educação patrimonial, a democratização do acesso ao próprio patrimônio enquanto bem cultural e forma de conhecimento, a inclusão social, as economias criativas e a propriedade intelectual. Ao propiciar um diálogo frutífero entre pesquisadores musicais, compositores, dirigentes de instituições culturais e especialistas de áreas afins, o tema apresentado neste volume busca refletir em que medida a pesquisa e reflexão musicológica, juntamente com a criação musical e as inovações tecnológicas, podem contribuir para as políticas públicas e ações institucionais em atendimento às diversas demandas de construção de conhecimento novo em interseção com a sociedade. Maria Alice Volpe ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 13 AGRADECIMENTOS Aos membros do Conselho Editorial E aos apoios de Faperj Capes Banco do Brasil ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 15 INSTITUIÇÕES PATRIMONIAS E ACERVOS Tributo biografia musical Guilherme de Mello: 80 anos de falecimento Marcos Santana Centro de Estudos Miguel Santana Projeto Memória Musical da Bahia Os oitenta anos de falecimento daquele que é considerado o primeiro historiador da música no Brasil, Guilherme Theodoro Pereira de Mello (1867-1932), traz consigo a memória ancestral da própria musicologia brasileira. Com o perfil biográfico quase que ignorado nos meios acadêmicos, esse músico e pesquisador de formação militar, saído da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim em 1883, talvez fosse mais conhecido na antiga Capital Federal pela característica peculiar de sua intelectualidade, local onde receberia, postumamente, as louvações do musicólogo Luiz Heitor Correa de Azevedo, seu substituto na biblioteca da Escola Nacional de Música e editor da terceira edição do livro de Guilherme de Mello, A música no Brasil: dos tempos coloniais até o primeiro decênio da República.1 O fato é que passados oitenta anos do falecimento de Guilherme de Mello inexiste na atualidade um estudo crítico voltado para a sua importante obra e, complementarmente, para a sua trajetória biográfica e musical na Bahia, ampliada até o Rio de Janeiro. A citação fragmentária quase que obrigatória da referência bibliográfica que ele representa não tem contribuído suficientemente para que as sucessivas gerações de pesquisadores da música no Brasil conheçam, extensivamente, o perfil intelectual de Mello, tampouco a sua divisa de luta pela superação de obstáculos acadêmicos. Ao deixar a instituição que lhe dera abrigo e formação musical na condição de órfão, não satisfeito, buscaria mais conhecimentos para alimentar a semente que lhe plantara na mente fértil o seu mestre de banda Elisiário Epifânio Borges de Andrade. Esse aspecto da personalidade de Guilherme de Mello pode ser comprovado com o depoimento de seu editor expresso nos seguintes termos: Ávido de ciência musical, não encontrando no ensino desse modesto mentor tudo o que necessitava para esclarecimento de seu espírito, pôs-se a adquirir livros desde os anos da adolescência, constituindo pouco a pouco a importante biblioteca musical que teve a fortuna de possuir. (AZEVEDO, 1947, p. 9) Elucidativo, Luiz Heitor Correa fornece ao leitor dados importantes sobre o perfil biográfico e, sobretudo, o traço marcante da vocação intelectual levada a termo como prioridade na superação de limites e na consecução de objetivos práticos. Essa característica de tenacidade no preparo pessoal com o investimento prioritário nas faculdades intelectuais garantia a realização de um projeto editorial audacioso, cujo impacto inaugural ainda serve de discussões e debates na atualidade. Um estudo crítico sobre a publicação do livro A música no Brasil de Guilherme de Mello deverá esclarecer, futuramente, aos leitores as circunstâncias da reedição integral do seu texto no Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil [2ª edição]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922. 1 ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 19 Breve histórico da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim2 Fundada em 1799, pelo irmão leigo catarinense, Joaquim Francisco do Livramento, a Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim é considerada a mais antiga instituição educacional em funcionamento no Brasil. A sua trajetória multissecular distingue-se na história do país pela característica peculiar de acolher menores órfãos, dando-lhes formação educacional humanística, religiosa e profissional, preparando-lhes para o exercício pleno da cidadania através do trabalho qualificado e do protagonismo social. Instituição diretamente ligada ao Império, o pioneirismo da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim teria influenciado desde longa data o surgimento de outras instituições congêneres como o Colégio Pedro II e o Asilo de Meninos Desvalidos no Rio de Janeiro; o Instituto Amazonense de Educandos Artífices no Pará e a Escola de Aprendizes do Arsenal da Marinha em Salvador. Dentre os incontáveis nomes de órfãos que saíram da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim para exercer dignamente o ofício profissional e qualificado no mercado de trabalho de Salvador, um ficaria definitivamente associado à instituição que lhe transmitiu o saber e, sobretudo, a faculdade de refletir, pesquisar, produzir, disseminar, informar, historiar. Isto aconteceria com Guilherme Theodoro Pereira de Mello. Filho do alferes Pedro Theodoro Pereira de Mello e Helena Francisca de Pereira de Mello, ingressou na instituição como órfão de pai em 1876 e saiu qualificado em Primeiras Letras, Latim, Humanidades e Música em 1883, requerido pela sua genitora.3 Desse período em diante a trajetória artística e profissional de Guilherme de Mello ficaria reservada em grande parte ao anonimato, exceto alguns registros pessoais através dos quais ele circunstancia, institucionalmente, o seu trabalho como professor de música. Ao comentar sobre o declínio institucional do antigo Conservatório de Música da Bahia deixa transparecer a sua competência e o seu carisma aglutinador: Eu mesmo, durante os poucos meses que lá estive a pedido do Dr. Dotto, em nome da arte, substituindo a cadeira de Princípios de música, cujo lente fora licenciado em virtude da crise financeira que assolava o Estado, o qual já havia alguns anos, não pagava as subvenções, consegui povoar completamente o salão de minha aula a ponto de não haver mais lugares para os alunos. (MELLO, 1947, p. 278) Em outra passagem revela o seu compromisso com a instituição que lhe dera abrigo, contribuindo de forma solidário no desenvolvimento de projetos educacionais e profissionalizantes, assegurando lhe certa autonomia financeira: Como professor, presentemente, desta casa, trabalho incessantemente para que se ajunte a esta gloriosa tradição artística a outra glória dela ser a regeneradora de nossas orquestras. Para isso iniciei o ensino de violino e algumas noções de canto de que a casa já vai tirando, com os contratos, o pecúlio necessário para o seu sustento, bem como ainda da banda marcial que lhe é anexa e de seu instrumental. (MELLO, 1947, p. 278) O sentimento de gratidão e reconhecimento pelos conhecimentos adquiridos durante A instituição tem funcionado regularmente, na atualidade, com regime de internato e semi-internato. Ao perceber a importância da trajetória biográfica do ex-aluno Guilherme Theodoro Pereira de Mello e o seu reflexo na formação dos atuais alunos, foi criada em 2012, a comenda post mortem Medalha do Mérito Escolar Guilherme de Mello. 3 O levantamento de informações mais completas sobre o perfil biográfico de Guilherme de Mello integra as pesquisas recentes do Projeto Memória Musical da Bahia, Tributo Biografia Musical: 80 anos de falecimento. 2 20 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER os quase dez anos de permanência como asilado também ficaria registrado na sua obra como um relato autobiográfico de profundo sentimento de pertença: Cabe aqui uma glória para Casa Pia e Colégio dos Órfãos de S. Joaquim, bem como ao extinto Arsenal de Guerra o ter sido a escola donde saíram a maior parte dos nossos musicistas célebres, tanto na execução dos instrumentos de sopro, como na composição de músicas militares e na mestrança de sociedade filarmônicas. Enche-me neste momento a alma de júbilo, somente por ter sido educado em S. Joaquim, o alistar-me no meio destes artistas, não obstante a minha profissão particular ser o ensino de piano. (MELLO, 1947, p. 278) A poucas pessoas é dado o direito de registrar em livro as memórias sobre o aprendizado educacional e artístico. Tampouco, se lhes é facultada a oportunidade de traçar o perfil daquele ou daquela que foi responsável pelo desenvolvimento da vocação profissional. Pereira de Mello ao fazer memória do seu mestre de música deixaria em seu livro um relato sucinto, porém de grande valor musicológico sobre a experiência que teve no convívio quase diário com Elisiário: Quem foi este artista sé eu posso dizer, pois, que, como sucessor de Livino na aula de música do Colégio dos Órfãos de S. Joaquim, foi o único professor que tive. Labutei com Elisiário nove anos seguidos, a maior parte como seu contramestre, era de uma exigência transcendente, como instrumentista de uma bravura indômita, como compositor marcial de um inspiração heroicamente espartana. (MELLO, 1947, p. 253) Depreende-se desse comentário breve toda a formação obtida ao longo de sua permanência no orfanato. O jovem Guilherme de Mello sairia tão bem preparado para exercer o nobre ofício da música (termo adotado na instituição), que retornaria anos mais tarde como mestre de banda, substituindo Elisiário Epifânio Borges de Andrade. Por sua vez, a Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim ao completar 200 anos de fundação seria escolhida como objeto de estudo do pesquisador Alfredo Eurico Rodrigues Matta e o resultado desse importante trabalho acadêmico orientado pela historiadora Consuelo Novais Sampaio foi publicado em 1999 pela Secretaria da Cultura e Turismo e Empresa Gráfica da Bahia, através da Coleção Apoio, 46, com o título Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim: de recolhido a assalariado. Considerado um livro de referência para estudiosos do assunto não trata diretamente do ensino de música, classificado pela instituição como ofício nobre, muito menos faz qualquer alusão ao eminente ex-aluno Guilherme de Mello quando comenta sobre os alunos ilustres (MATTA, 1999, p. 150). Antes de transferir definitivamente o seu endereço residencial para o Rio de Janeiro em 1928, Guilherme de Mello trilharia o caminho de mestre de música na Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim (1892) e no Ministério da Guerra, integrando o Arsenal da Bahia (1899). Publicaria em 1909,4 o livro A música no Brasil: dos tempos coloniais até o primeiro decênio da República. Criaria, por conseguinte, conjuntos musicais vocais e instrumentais como a schola cantorum e a banda de música do Colégio São Joaquim. Ao deixar a instituição Guilherme de Mello seria substituído na função mestre de banda e de regente do coral pelo seu dileto aluno e contramestre Manoel Zeferino dos Santos (1896-1961). 4 Contemporâneo de Guilherme de Mello, Manuel Raymundo Querino (1851-1923), através de sua obra referencial Artistas Baianos (1909) oferece preciosas informações sobre o que seria o ano provável de publicação do livro A música no Brasil: dos tempos coloniais até o primeiro decênio da República, universalmente reproduzido como 1908; enquanto os dados “Bahia 1909”, esboçados no rodapé da capa original, encontrada em dois exemplares, um na Bahia e outro no Rio de Janeiro, chama a atenção do leitor que este e não aquele seria o ano de publicação da referida obra. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 21 Tributo biografia musical: revelando a face oculta de músicos O Projeto Memória Musical da Bahia5 tem sido o principal responsável pela realização de campanhas comunitárias sobre educação patrimonial, cultura e cidadania; tem promovido o lançamento de publicações, assim como a realização de simpósios temáticos sobre a tradição da música organística e sobre o acervo de música sacra na Bahia. Diretamente vinculado à Associação Amigos do Coral Renascer, Núcleo de Amigos do Canto Coral, Núcleo de Amigos do Órgão de Tubos e Centro de Estudos Miguel Santana já desenvolveu parceria institucional com a Universidade Católica de Pernambuco, Universidade Católica do Salvador, Universidade Federal da Bahia e Arquidiocese de São Salvador da Bahia, Instituto Feminino da Bahia (Centro de Fé e Cultura), Convento Nossa Senhora da Piedade, Câmara Municipal de Salvador, Associação Brasileira de Organistas, TV Pelourinho, Ordem Terceira do Carmo e a instituição educacional Hora da Criança. Baseada em iniciativa de caráter educativo e informativo a realização do Tributo Biografia Musical visa o reconhecimento comunitário de lideranças culturais e artísticas que atuam ou atuaram na cidade do Salvador e que permanecem de alguma forma, anônimas para o grande público. Sobre esse aspecto, caracterizado na Cidade da Bahia como cultura do esquecimento, o livro de Manuel Querino Artistas baianos (1909), introduz a temática de valorização dos mestres do passado, assegurando-lhes o conhecimento do perfil biográfico e artístico. Querino, procurando informar o seu leitor, justificaria a sua iniciativa baseada nos seguintes termos: Resolvi traçar o ligeiro esboço que se segue, no intuito de tornar conhecido, si [sic] bem que resumidamente, o merecimento incontestável de alguns artistas que floresceram nos séculos XVIII e XIX, a par de poetas, escritores e jornalistas que enalteceram as glórias desta terra, pois a Bahia possue [sic] muita preciosidade na poeira do esquecimento. (QUERINO, 1909, p. 8) Nesse mesmo raciocínio de solidariedade artística e de compromisso social é que se insere o tributo prestado à memória de Guilherme de Mello. Ao longo de 15 anos, aproximadamente, várias edições do Tributo Biografia Musical foram realizadas, contemplando professores, regentes, cantores, compositores, musicólogos, historiadores e instrumentistas. Agenor Gomes, Hamilton Carvalho Lima, Lindembergue Cardoso, Humberto Portugal de Lima, Eduardo Vieira de Melo, Maria Dulce Calmon Bittencourt Pinto de Almeida, Maria Angelina de Carvalho Mello, Maria de Jesus, Paulo Gondim, Pino Onis, Lindbergh Pires, Abigail Carneiro, Madalena Moreira Conceição, Elena Escariz, Djalma Rocha de Oliveira, Jaime Cavalcanti Diniz, Marieta Alves, Theodoro Serravalle Carda, Pedro Sinzig, Pedro Irineu Jatobá, Sílvio Deolindo Fróes, são alguns dos nomes que receberam o singelo reconhecimento de sua atuação no desenvolvimento musical da Bahia entre finais do século XIX e o decorrer do século XX.6 Ao registrar os 50 anos do falecimento do maestro Heitor Villa Lobos, seria realizado em 2009 o Ano Villa Lobos na Bahia. A ocasião seria propícia para difundir a lei 11.679/08, sobre obrigatoriedade do ensino de música nas escolas brasileiras, assim como destacar a trajetória biográfica e artística da professora de canto orfeônico Elíbia Moreira de Barreiro, do pianista Élsio Carvalho e do corista Sabino Torres. 5 Iniciado em 1998, integrou as atividades do Festival Renascer Cantando e do I Simpósio sobre a música coral no Nordeste, eventos realizados no auditório da Reitoria da UFBA, Salvador-Bahia. 6 Cf. SANTANA, 2007, p. 44-56. 22 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Em 2010, o professor santamarense Basílio Sant’Anna seria contemplado com o registro dos seus oitenta anos de idade. Já em 2011, foram alvo do Tributo Biografia Musical o organeiro e inventor francês Aristides Cavaillé-Coll e o organista belga radicado na Bahia Herman Coppens, juntamente com o flautista militar Rafael de Souza Barbosa; seguidos do religioso frei Gregório de Frei Paulo e do educador Adroaldo Ribeiro Costa. Nomes de representação comunitária escolhidos para receberem louvações e homenagens pela importante contribuição no desenvolvimento da música na Bahia. Desde 1998 essa dinâmica tem se repetido com certa regularidade.7 Considerações finais Guilherme Theodoro Pereira de Mello, ex-aluno e ex-mestre de banda da Casa Pia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim; escritor, historiador, musicólogo e co-Patrono da Academia Brasileira de Música ao se tornar o principal alvo do Projeto Memória Musical da Bahia, através do Tributo Biografia Musical 2012, recebe, por conseguinte, um tratamento crítico e musicológico na sua trajetória biográfica com alguns acréscimos nas informações que têm circulado em publicações impressas e digitais. Com essa singela iniciativa amplia-se ainda mais o alcance da memória musical de Pereira de Mello junto aos pesquisadores da atualidade, despertando o olhar crítico sobre uma obra escrita com base em princípios positivistas de etnografia, história e musicologia, que por sua vez apresenta as limitações naturais de um dado ambiente artístico e cultural e de uma dada época, cujas instituições ainda refletem resquícios do provincianismo criticado pelo autor. A biografia de Mello analisada sob a perspectiva histórica e social de um órfão que foi matriculado por sua mãe em uma instituição voltada para a caridade pública, que ao garantir a sobrevivência de seu filho dar-lhe-ia, por conseguinte, uma formação educacional de base militar e complementarmente humanística, para exercer o nobre ofício de músico com o mesmo preparo de quem exerceria um ofício com menos preparo intelectual, mais pragmático como marcenaria, carpintaria, caixeiro, alfaiate, atendendo às demandas de desenvolvimento do comércio local. Como teria acontecido com os seus dois irmãos Ricardo Theodoro Pereira de Mello e Alexandre Theodoro Pereira de Mello. Características peculiares de tenacidade e de determinação em alcançar o alvo perseguido desde a mais tenra idade marcariam a trajetória do jovem músico baiano. Esse aspecto intrínseco de sua personalidade teria assegurado, extensivamente, a sua permanência na luta e conquista de um ideal de vida projetado sobre a realidade concreta da então Capital Federal. Conviver no ambiente cultural e artístico do Rio de Janeiro deveria ter sido a sua meta maior enquanto esteve circunscrito no território baiano. Sede da nascente e conturbada Era Republicana, a antiga capital do Império, acolheria em 1928 o músico militar Guilherme de Mello, originário da Cidade da Bahia, que ao publicar os seus escritos, históricos musicológicos e etnomusicológicos passaria imediatamente a historiador. Conquanto a sua carreira profissional chegasse a um ponto de culminância mais elevado ao assumir o prestigioso cargo de bibliotecário do Instituto Nacional de Música, antes ocupado pelo eminente músico cearense Alberto Nepomuceno (1864 -1920). Os últimos registros sobre a trajetória biográfica de Guilherme de Mello ficariam registrados na seção obituária denominada “fallecimentos”, do Jornal do Commercio, datada 7 Algumas publicações temáticas foram produzidas nesse período como forma de assegurar a divulgação mais ampla do Tributo Biografia Musical. O periódico Aplauso e a série Cadernos de música são os principais veículos de informação através da divulgação impressa do Projeto Memória Musical da Bahia. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 23 6 de maio de 1932, expressos nos seguintes termos: “Maestro Guilherme de Mello – Faleceu ante-hontem e foi hontem sepultado o maestro Guilherme de Mello, bibliotecário do Instituto Nacional de Música. O extinto, que exercia o cargo há cerca de cinco annos, era autor de vários trabalhos, entre os quais a ‘Historia da Musica’. Deixa viuva a Sra. Maria Rosa Gonçalves de Mello e oito filhos, dentre elles. os Srs. Drs. Adherbal de Mello, medico, e Pereira de Mello, advogado”. Embora represente um acontecimento de cunho regional e com pouca repercussão no cenário nacional e internacional o Tributo Biografia Musical Guilherme de Mello, ora, parcialmente revistado neste artigo, procura contribuir direta ou indiretamente para a permanência do diálogo entre passado e presente, tradição e modernidade. De uma maneira extremamente singela, fica registrada nos anais da musicologia histórica brasileira, com este trabalho, a passagem dos 80 anos de falecimento do músico baiano Guilherme Theodoro Pereira de Mello, ocorrido no dia 4 de maio. Referências MATTA, Alfredo Eurico Rodrigues. Casa Pia e Colégio de São Joaquim: de recolhido a assalariado. Salvador: SCT/EGBA, 1999. MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A música no Brasil: dos tempos coloniais até o primeiro decênio da República. Salvador: Typografia São Joaquim, 1908. MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A música no Brasil: dos tempos coloniais até o primeiro decênio da República. In: Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil [2ª. Edição]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922. MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A música no Brasil: dos tempos coloniais até o primeiro decênio da República. 3ª edição. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1947. QUERINO, Manuel Raymundo. Artistas baianos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909. SANTANA, Marcos. Sobre órgãos, organistas e organeiros. Salvador: EGBA, 2007. SOTUYO BLANCO, Pablo. O patrimônio musical na Bahia. Salvador: EdUFBA, 2006. 24 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Patrimônio musical e memória: os manuscritos musicais do Museu Carlos Gomes Lenita W. M. Nogueira Universidade Estadual de Campinas O Museu Carlos Gomes, situado na cidade de Campinas, SP, pela quantidade de documentos musicais que possui, cerca de setecentos, pode ser colocado como um dos maiores acervos do gênero no Brasil. Mas sua formação foi bastante peculiar, já que, ao contrário da maioria dos acervos brasileiros, formados a partir de uma reunião de materiais de diferentes proveniências, este tem como uma característica a procedência familiar de sua documentação, que se deve basicamente a Manuel José Gomes (Santana de Parnaíba, SP, 1792 – Campinas, SP, 1868) e seus filhos José Pedro de Sant’Anna Gomes (Campinas, 1834 – 1908) e Antônio Carlos Gomes (Campinas, 1836 – Belém do Pará, 1896). Manuel José Gomes começou a aprender música com o mestre de capela de sua cidade natal e por volta de 1810 teria estudado em São Paulo com André da Silva Gomes. Em 1815 fixa residência em Campinas, então Vila de São Carlos, onde passa a exercer o cargo de mestre de capela, para o qual foi oficialmente designado em 1820.1 Exerceu essa atividade até sua morte em 1868 e durante este período, que ultrapassa meio século, produziu grande quantidade de manuscritos musicais, englobando composições próprias e cópias de obras de compositores diversos, hoje integrando o acervo do Museu Carlos Gomes. Figura 1 – Manuel José Gomes 1 O referido documento encontra-se no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 27 Como mestre de capela tinha que cumprir diversas tarefas como cuidar da música nas cerimônias religiosas, reger, compor, copiar música, atuar como professor e, por vezes, arregimentar e pagar cantores e instrumentistas. Dentro deste contexto, Manuel José Gomes pode ser tomado como um exemplo da atividade musical no Brasil na primeira metade do século XIX e não seria ingenuidade relevar a importância de seu trabalho como copista, já que várias peças de compositores brasileiros só sobreviveram graças às suas cópias. Em um período em que não havia impressão musical no Brasil e o papel era um bem de difícil acesso, a música manuscrita tinha grande valor e a circulação deste material foi o que permitiu que grande parte da música produzida no Brasil durante os séculos XVIII e XIX fosse preservada. Deve-se observar que as composições que chegaram até nós foram produtos da escolha de músicos como Manuel, que, por razões que não cabem aqui, optaram por copiar este ou aquele manuscrito, o que nos leva a lamentar a quantidade de obras que provavelmente foram perdidas nesse processo. Posteriormente foram agregados outros manuscritos à Coleção Manuel José Gomes, em especial provenientes de seu filho José Pedro de Sant’Anna Gomes, regente orquestral e de banda, professor e empresário no ramo da música. Ele deu continuidade à atividade do pai, mas é importante destacar que sua atuação ocorreu em condições diferentes. Seu trabalho já não era voltado exclusivamente para a igreja, mas sim ao público que frequentava teatros e salões. O que se pretende afirmar é que Sant’Anna, embora também tenha tido uma atividade musical longeva, já não tem uma atividade de copista tão intensa quanto Manuel. Na segunda metade do século XIX havia maior circulação de partituras, já que, além de maior acesso às peças publicadas na Europa, a edição musical no Brasil começava a se regularizar. Além disso, houve um declínio na atividade musical na igreja católica e o músico teve que buscar sua sobrevivência através em sua relação com um público, em geral pagante. Figura 2 – José Pedro de Sant’Anna Gomes Cabe utilizar aqui a expressão cunhada por Norbert Elias (1994) em seu livro sobre Mozart. Neste texto o autor, ao estudar a vida deste compositor, vai inseri-lo na transição entre o que chama arte de artesão, num período em que o músico era empregado da 28 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER nobreza ou da igreja, e arte de artista, na qual o mesmo, já sem patrão fixo e com poucos patronos à disposição, é obrigado a ir ao encontro do público, que é fundamental não só para sua sobrevivência, mas também para que sua obra e seu nome fossem reconhecidos. No caso de Carlos Gomes isso vai ao extremo, já que durante toda a sua trajetória, teve pouca relação com a música religiosa, exceto por algumas de juventude (no tempo do artesão), sendo seu nicho a ópera e a música vocal profana (no tempo do artista). Esta pequena digressão tem com objetivo reforçar a diferença entre a prática musical de Manuel Gomes e seus filhos, o que redunda em uma distinção entre os materiais produzidos por eles no decorrer do século XIX e que hoje formam o acervo do Museu Carlos Gomes. Ao invés da produção abundante de missas e peças religiosas, características da produção de Manuel José Gomes (que também produziu obras profanas, mas em menor quantidade), o que predomina na produção de seus filhos são peças instrumentais, ópera, música de câmara, de salão e canções não religiosas. Não se sabe exatamente como Manuel José Gomes teria formado o seu arquivo de música. Em princípio não há nenhum registro de que tenha se deslocado para fora do Estado de São Paulo, exceto em 1861 quando foi ao Rio de Janeiro, mas seu propósito era extramusical, assistir à estreia da ópera A Noite do Castelo de Carlos Gomes. Embora alguns manuscritos de Manuel Gomes se encontrem no acervo do Museu da Inconfidência, é lícito supor que lá chegaram por outras vias e provavelmente no século XX, já que não existe qualquer registro de viagens de Gomes para este local. É possível que Manuel ampliasse seu acervo durante as viagens que fazia com sua banda pelo interior do estado, onde certamente entrava em contato com outros músicos e havia troca de manuscritos. Por outro lado, há registros de que a residência dos Gomes em Campinas era um ponto de parada para músicos de passagem pela cidade, que possivelmente traziam consigo partituras que Manuel se apressava em copiar. Outro fator que pode ter sido fundamental para a constituição deste acervo é que Campinas era um ponto de pouso para quem se dirigia para Minas Gerais e Goiás. Possivelmente alguns tropeiros transportassem partes musicais que, por haver apenas um único exemplar, deveriam ser copiadas no momento em que as caravanas paravam para descansar na cidade. Talvez isso explique o fato de haver neste acervo tantas obras de compositores mineiros. O inventário de Manuel José Gomes, falecido em 1868, encontra-se no Arquivo do Poder Judiciário, hoje sob a guarda do Centro de Memória da Unicamp. Neste documento encontra-se um documento assinado por Sant’Anna Gomes solicitando ao juiz que, na partilha dos bens do pai, fosse reservado a ele os instrumentos musicais e o arquivo de música. No mesmo documento há a aquiescência do juiz e Sant’Anna se torna o proprietário do material, o que talvez tenha sido fundamental para sua preservação. Ali encontramos os seguintes valores, o que demonstra que, se comparado aos instrumentos, o arquivo de música era um bem valorizado. Piano de armário Par de tímpanos Violoncelo com archo Violleta em bom uso Violleta velha 3 rabecas em bom uso 30$000 1$000 50$000 8$000 4$000 4$000 ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 29 1 bombo e caixa de rufo usado Pelo archivo de Muzica inclusive o armário em que se achão tudo pela quantia em [ileg.] vivo que sai 40$000 100$00 Figura 3 – Relação de bens no inventário de Manuel José Gomes Por volta de 1905, nove anos após o falecimento de Carlos Gomes, pensou-se em criar no Centro de Ciências, Letras e Artes, entidade particular com fins científicos e culturais fundada em Campinas em 1901 e em atividade até nossos dias, um arquivo dedicado a este compositor. A ideia foi encabeçada por um dos diretores desta entidade, César Bierrenbach, que começou a recolher diversos documentos sobre o compositor campineiro. Este material foi acondicionado em duas caixas de madeira decoradas e foi o embrião do Museu Carlos Gomes, fundado oficialmente em 1954, quando surgiu a ideia de criar um acervo mais amplo, que englobasse cartas, fotos, documentos, objetos diversos e partituras relativos a este compositor e até então dispersos. Não se sabe como e quando a atual Coleção Manuel José Gomes foi incorporada ao Museu Carlos Gomes, mas podemos supor que, após a morte de Sant’Anna em 1908, os seus manuscritos musicais teriam sido doados ao mesmo Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas (no qual atuava como diretor de música) e posteriormente incorporados ao futuro Museu Carlos Gomes. Como naquele primeiro momento da fundação do Museu o pensamento estava voltado exclusivamente para a reunião de documentos de e sobre Carlos Gomes, nem se cogitava que a coleção legada pelo seu pai e irmão poderia ter algum valor histórico e ou artístico-musical. Isso é compreensível, já que mal se cogitava em uma musicologia brasileira e não havia a ideia da importância da preservação de documentos musicais. Desta forma, o material, embora preservado, ficou relegado e sem organização até a década de 1990, quando foi realizada a limpeza, o acondicionamento adequado e a disponibilização deste acervo através da publicação de seu catálogo (Nogueira, 1998). A atual Coleção Manuel José Gomes só chegou a nossos dias por serem documentos relativos ao pai de uma ilustre figura nacional, caso contrário poderia ter perecido como grande parte da documentação musical brasileira produzida em regiões mais distantes da capital do império. O arquivo de manuscritos musicais MCG O livro Museu Carlos Gomes: Catálogo de Manuscritos Musicais foi publicado (Nogueira, 1998) e apresenta o resultado da catalogação do acervo dos manuscritos musicais que ali se encontram. Houve uma divisão ao acervo em duas partes, sendo uma delas dedicada exclusivamente a Carlos Gomes, formada por obras deste compositor, incluindo alguns manuscritos autógrafos, como a sua primeira composição conhecida, a valsa para piano Uma paixão amorosa, óperas, canções e a partitura de uma de sua única peça instrumental, a Sonata para cordas em Ré, conhecida como Burrico de Pau, além de partes e partituras realizadas por copistas diversos. Este conjunto é denominado Coleção Carlos Gomes. Figura 4 – Uma Paixão amorosa – Manuscrito autógrafo da primeira composição conhecida de Carlos Gomes O restante do material foi agrupado na Coleção Manuel José Gomes, da qual constam cerca de setecentas obras, sendo que no catálogo trezentas e setenta e nove são apresentadas com seus incipts e descrição. Esta coleção tem duas partes: além da referida acima, há outra, da qual constam apenas e referência e instrumentação, já que são composições bastante editadas, arranjos de ópera, ou peças que não necessitam descrição. Como a Coleção Manuel José Gomes é bem mais extensa e tem um aspecto musicológico ainda pouco explorado, sendo, portanto, um material menos divulgado e pouco editado, embora representativo para a música dos séculos XVIII e XIX no Brasil, dedicaremos a ela maior atenção a ela neste artigo. Com datas-limite que variam entre 1810 e início do século XX, esta coleção tem obras de compositores diversos, tanto brasileiros como europeus, estes em número reduzido. Como não poderia deixar de ser, a maior parte das peças foi produzida por Manuel José Gomes, seja como compositor ou copista. As suas composições somam sessenta e uma, sendo que algumas delas são atribuições, já que as indicações na partitura são pouco esclarecedoras. Este material necessita de um estudo aprofundado, mas até o momento foi pouco explorado pelos pesquisadores.2 2 Neste sentido temos a destacar a tese de doutorado de Vivian Lis Nogueira Ferreira Dias, defendida na 30 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 31 Figura 5 – Parte de primeiro violino de uma Missa de Capela de Manuel José Gomes Fisicamente, a classificação do acervo foi baseada no catálogo publicado em 1998, que segue a classificação em ordem alfabética por sobrenome do compositor3 e dentro de cada um deles, segue-se uma divisão por gênero. Como não dispomos de espaço neste artigo para falar de cada um dos noventa e um compositores que têm obras nesta coleção, destacaremos alguns que consideramos mais representativos. O primeiro compositor a figurar no catálogo é Antônio José d’Almeida, compositor paulistano que viveu entre 1811 e 1876. Foi aluno de André da Silva Gomes e mestre de capela da Sé de São Paulo a partir de 1849. A composição que abre o catálogo é um Hino Pange lingua para coro misto e pequena orquestra, a formação mais recorrente no conjunto da coleção. O segundo verbete também é de um paulista, Elias Álvares Lobo (Itu, 1834 – São Paulo, 1901), considerado o primeiro a compor uma ópera genuinamente nacional, A noite de São João. Viveu por alguns anos em Campinas e ainda possui descendentes nesta cidade. Na Coleção Manuel José Gomes comparece com apenas uma composição, As três horas de agonia. Na sequência aparece o compositor carioca Henrique Alves de Mesquita (Rio de Janeiro, 1830 – 1896), que, embora tenha se destacado no teatro musical, aqui aparece com cinco peças, sendo duas religiosas, Credo de São Francisco de Pádua e Missa Grande em Dó Maior. Outra composição sua é a Polca Carlos Gomes, escrita provavelmente em 1877, uma homenagem a este compositor, com dedicatória a Sant’Anna Gomes. Após alguns verbetes vamos encontrar o primeiro dos músicos do ciclo do ouro de Minas Gerais, no caso o tardio João de Deus Casto Lobo (Vila Rica [Ouro Preto], 1794 – 1832), que aparece com duas peças: Plorans Ploravit e uma Missa em Ré Maior. Unicamp sob nossa orientação em 2008, que trabalhou com a restauração e transcrição musicológica de três missas deste compositor. 3 No caso de dois sobrenomes, optou-se por classificar pelo primeiro deles. Por exemplo, André da Silva Gomes aparece na letra ”S” e não em “G”. 32 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Algumas páginas adiante temos outro mineiro, Manoel Dias de Oliveira (São José d’El Rey [Tiradentes], 1738 – 1813), com cinco entradas. É seguido por outro conterrâneo, José Roiz Domingues de Meireles (Nossa Senhora da Piedade/Pitangui?, ca. 1810-16). Após mais algumas páginas, nas quais aparecem alguns compositores italianos, estão os verbetes relativos a Manuel José Gomes que, como informado acima, somam sessenta e uma composições, todas religiosas. Após estes verbetes aparece o nome de Ormeno Gomes, neto de Manuel, filho da pianista Joaquina Gomes. Este compositor viveu em Florença e sua produção musical é mais dedicada à música ligeira. No caso temos o manuscrito da mazurca Ghilda, com dedicatória à tia Anna Gomes, filha caçula de Manuel. O verbete seguinte é relativo à Gomes Cardim, maestro português radicado no Brasil, que transitou entre a música erudita e a ligeira. Trata-se também de uma homenagem a Carlos Gomes, Marcha Fúnebre, composta no ano da morte deste, 1896. Logo aparece mais um membro da família Gomes, Joaquim José Gomes de Santana, também filho de Manuel, de uma geração anterior a Carlos e Sant’Anna. Sabe-se que nasceu em 1831 e ordenou-se padre em 1856. O seu Processo de Genere et Moribus, trâmite necessário para todo candidato a padre, encontra-se no arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo e é um documento relevante pois, para verificar os modos e costumes do candidato, foram tomados vários depoimentos, inclusive de seu pai, que deveria manter uma pensão para manter o futuro padre. Existem ali informações sobre a vida profissional de Manuel José Gomes e, consequentemente da atividade de um músico no século XIX. Há neste documento uma declaração de Manuel afirmando que se fixou em Campinas em 1815 e, pelos depoimentos, pode-se notar que a esta época já adquirira estabilidade financeira. Seguindo em frente na descrição do acervo, encontramos o músico português Antônio Leal Moreira (1758 – 1819) com três obras, seguido pela única representante do sexo feminino neste conjunto, Luiza Leonardo Boccanera, compositora nascida no Rio de Janeiro em 1858 e falecida em Salvador em 1926, que comparece com mais uma homenagem, o Hino Carlos Gomes. Com o mesmo propósito, aparece logo a seguir uma composição de Luiz Levy (São Paulo, 1861 – Rio de Janeiro, 1935), uma Marcha Fúnebre em memória de Carlos Gomes. Este compositor era filho de Henrique Luiz Levy, clarinetista e mercador de joias, responsável pela ida de Carlos Gomes ao Rio de Janeiro, onde este iniciou sua carreira. A relação dos Levy com Campinas perdurou e ainda meninos Luiz e Alexandre Levy costumavam se apresentar na cidade em duo ao piano. É importante destacar a atuação de Luiz Levy frente à Casa Levy, editora criada por seu pai e que teve importante atuação na edição de obras brasileiras. O verbete de número 139 nos leva novamente para Minas Gerais na figura de um de seus mais representativos compositores, Joaquim José Emerico Lobo de Mesquita (Serro, 1746 – Rio de Janeiro, 1835), que figura com cinco obras, inclusive o famoso Ofício das Violetas, sempre em cópias de Manuel José Gomes. O compositor que aparece na sequência é José Maurício Júnior (1850 – 1881), mas não se trata do filho do padre José Maurício Nunes Garcia, mas sim de um membro da família Maurício. Era natural de Pirassununga, SP, e morreu em Campinas aos 31 anos. São onze as suas composições, a maioria delas profanas, com destaque para Fantasia para Oficleide.4 Do compositor e mestre da Capela Real do Rio de Janeiro por volta de 1816, Fortunato 4 Peças deste compositor podem ser encontradas, por razões não esclarecidas, no Museu da Inconfidência de Ouro Preto. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 33 Figura 6 – “Suprano” – Ofício das Violetas de Lobo de Mesquita – Cópia de Manuel José Gomes Mazzioti, aparecem seis obras. Na sequência encontramos um caso muito eloquente da vida musical da época, que são as nove composições do padre Jesuíno do Monte Carmelo ( Jesuíno de Paula Gusmão, Santos, 1864 – Itu, 1819). Devido a ser este um caso peculiar, nos deteremos um pouco para nesta figura, misto de padre, compositor, escultor, pintor e entalhador. A ele Mário de Andrade dedicou uma de suas últimas produções, o livro Padre Jesuíno do Monte Carmelo publicado em 1945, ano da morte do escritor. Várias obras pictóricas do padre Jesuíno podem ser encontradas em igrejas de São Paulo, Santos e Itu. E é neste aspecto que o livro de Andrade insiste, pois embora o autor soubesse que Jesuíno era músico, não tinha subsídios para se aprofundar nesta questão, já que não havia na época qualquer documento musical à disposição. Estes documentos estavam no Museu Carlos Gomes, na ignorada pilha de papéis que hoje formam a Coleção Manuel José Gomes. Itu é uma cidade distante cerca de sessenta quilômetros de Campinas, conhecida como a Capital da República. Jesuíno ali chegou como auxiliar do pintor José Patrício da Silva Manso (1740 – 1801) e ainda não era padre. Após perder a esposa, com a qual teve quatro filhos, ordenou-se e fundou a congregação do Patrocínio, nunca reconhecida pela igreja oficial, talvez pelo “defeito de cor” de seu fundador. Jesuíno tinha uma ligação muito estreita com o futuro regente do império, Diogo Antônio Feijó, que nesta época residia em Campinas (ainda Vila de São Carlos). Segundo relatou Andrade (1945), Jesuíno costumava ir a pé de Itu até Campinas, descalço, papagaio no ombro, somente para se confessar com Feijó, que morava a poucos metros de Gomes, na rua que hoje leva seu nome (Regente Feijó). Nestas idas Jesuíno certamente conheceu o músico campineiro que, depois da morte do padre em 1819, participava anualmente como violinista nas festas do Patrocínio em Itu (Andrade, 1945). Gomes copiou diversas de obras de Jesuíno e somente por isso a produção deste (se não toda, ao menos parte dela) foi preservada. É importante destacar que se trata de um dos poucos compositores do período colonial paulista cujas obras sobrevivem até nossos dias e, como não foi localizado até o momento qualquer manuscrito original do padre 34 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Figura 7 – Capa do Hino Sacris Solemnis de Jesuíno do Monte Carmelo – Cópia de M. J. Gomes Jesuíno em Itu, fica claro que, se não fosse a decisão de Manuel José Gomes de copiar estas peças, a obra de Jesuíno teria se perdido definitivamente.5 Voltando à Coleção Manuel José Gomes, após dois verbetes dedicados ao pianista, compositor e editor português radicado no Rio de Janeiro, Arthur Napoleão (1843 – 1925), um ao músico austríaco que viveu alguns anos no Brasil e foi professor de D. Pedro I, Sigismund Neukomm (1778 – 1858), aparece o padre José Maurício Nunes Garcia (1867 – 1831) com dezoito obras, sendo que neste conjunto, segundo as pesquisas de Cleofe Person de Mattos (1970), existem obras únicas deste compositor, não localizadas em outro arquivo brasileiro. Continuando temos quatro composições do compositor napolitano radicado em Lisboa, David Perez (1711 – 1778), cujas obras aparecem em vários arquivos brasileiros. O verbete de número 216 marca a entrada de Sant’Anna Gomes, num total de trinta e cinco obras. Como observamos anteriormente, esta produção é em sua maioria composta por obras profanas, tais como peças para cordas (em sua maioria quintetos) valsas, polcas, canções e peças para piano, sendo que quatro são religiosas. Outro compositor que aparece fartamente no catálogo é Francisco Manuel da Silva (Rio de Janeiro, 1795 – 1865) com dezenove obras, todas sacras. Silva teve uma relação bastante próxima com Carlos Gomes, já que em 1863, quando este recebeu uma bolsa do Imperial Conservatório de Música para estudar na Itália, era diretor desta escola e foi supervisor dos estudos do jovem compositor em Milão até sua morte em 1865. Na edição de 1936 da Revista Brasileira de Música, ano do centenário de Carlos Gomes, existem várias cartas que Silva enviou ao bolsista, nem sempre muito assíduo aos estudos. O recordista de verbetes no catálogo (fora os Gomes) é o português radicado em São Paulo, André da Silva Gomes (1752 – 1844), com vinte e quatro peças. Ao que tudo 5 Dentro do mesma situação que apontamos anteriormente, obras do padre Jesuíno também são encontradas no Museu da Inconfidência. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 35 Figura 8 – Parte de “Baxo” – Jesu Dulcis memoria de Jesuíno do Monte Carmelo – Cópia de M. J. Gomes indica, enquanto era mestre de capela em São Paulo, foi professor de Manuel José Gomes por volta de 1810. Note-se que todos os manuscritos relativos a Silva Gomes foram, com apenas uma exceção, realizados por Manuel Gomes e têm data bastante recuada, em geral entre as décadas de 1810 e 1830. A obra mais antiga de todo o acervo é uma cópia de 1810 da Missa de Defuntos a quatro vozes e órgão de Silva Gomes, o que reforça a tese da ligação entre os dois Gomes (que não têm qualquer parentesco). Segundo Duprat (1995) pode-se, inclusive, notar certa semelhança entre as assinaturas de Manuel Gomes e de André da Silva Gomes. Voltando ao catálogo, temos a seguir mais um mineiro, Jerônimo de Souza Lobo (Vila Rica [Ouro Preto], 1729 – 1803), que comparece com quatro peças. Com seis peças figura Pedro Teixeira de Seixas, compositor de origem desconhecida, não se sabe se seria brasileiro ou português, mas que já atuava como músico no Rio de Janeiro antes da chegada de D. João VI. Era regente do Real Teatro São João em 1813 e foi admitido como músico da Capela Real em 1822. Este autor fecha catálogo das peças com autoria definida, seguindo-se uma segunda seção com sessenta e uma peças anônimas. Possivelmente, um estudo mais aprofundado neste conjunto pode revelar a autoria dessas obras. A Coleção Manuel José Gomes tem ainda uma terceira parte, que, apresentada de caráter diverso, que são descritos sem incipits no catálogo. Esse procedimento foi adotado para manuscritos de peças ligeiras, arranjos de ópera ou para compositores cuja obra é fartamente editada como algumas de Giuseppe Verdi, Chopin ou Haydn. Fazem parte desta coleção também algumas peças para banda de música. Um dado relevante ao se analisar os manuscritos do Museu Carlos Gomes é aquele referente aos copistas. Embora a maior parte seja de autoria de Manuel José Gomes, secundado por Sant’Anna Gomes, foram levantados outros cinquenta e dois nomes. Além dos já citados, destacam-se outro filho de Manuel, Tomás de Aquino Gomes, José Emigdio Ramos Júnior, flautista, amigo de Carlos Gomes, o padre de Itu Miguel 36 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Figura 9 – Missa de Defuntos de A. S. Gomes, cópia de M. J. Gomes, 1810 Arcanjo Ribeiro de Castro Camargo, o regente de banda Azarias Dias de Mello, Emilio Henking, cunhado de Manuel Gomes, entre tantos outros. É muito comum que uma mesma composição tenha a participação de vários copistas. O Museu Carlos Gomes pertence ao Centro de Ciências, Letras e Artes, entidade particular declarada de utilidade pública em nível federal, estadual e municipal. Apesar da importância de seus acervos (além do Museu Carlos Gomes abriga a Biblioteca César Bierrenbach, com um grande acervo literário, uma Pinacoteca com obras de importantes artistas brasileiros e o Museu Campos Sales), sobrevive com recursos próprios e raramente recebe algum apoio do poder público para a sua manutenção. Por esta razão aluga parte de seu espaço físico, o que reduz consideravelmente o espaço para seus acervos e atividades culturais. Dentro deste cenário, o Museu Carlos Gomes tem pouco espaço para exposição de seu acervo, que além dos manuscritos descritos aqui, tem um acervo de música impressa, que revela a música que era consumida entre os séculos XIX e XX. Em outros suportes o museu possui um arquivo histórico da maior importância como fotografias, certidões, cartas, documentos diversos relativos a Carlos Gomes, além de uma série de objetos como o piano e uma harpa que pertenceram a ele. Parte deste material encontra-se acessível ao público em uma Sala de Exposições. O arquivo de documentos musicais encontra-se em uma reserva técnica numa sala ao lado e em boas condições de consulta e manuseio. Apesar das dificuldades financeiras e do pouco espaço disponível para ampliação do acervo, todo este material está à disposição da comunidade e os pesquisadores têm encontrado acolhida para desenvolver seus estudos a partir dele. Não se trata aqui de um patrimônio de Campinas, ele diz respeito a todo o país, já que ali se encontram obras de alguns dos mais significativos compositores brasileiros dos séculos XVIII e XIX e que tem conteúdo e capacidade para dar importante contribuição à musicologia e à história cultural brasileiras. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 37 Referências ANDRADE, Mário. Padre Jesuíno do Monte Carmelo. São Paulo: 1945. DUPRAT, Régis. Música na Sé de São Paulo colonial. São Paulo: SBM/Paulus, 1995. ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo das obras do Padre José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1970. NOGUEIRA, Lenita W. M. Maneco Músico, pai e mestre de Carlos Gomes. São Paulo: Arte & Ciência, 1997. NOGUEIRA, Lenita W. M. Museu Carlos Gomes: Catálogo de Manuscritos Musicais. São Paulo: Arte & Ciência, 1998. REVISTA BRASILEIRA DE MÚSICA. Edição comemorativa ao centenário de Carlos Gomes. Rio de Janeiro, 1936. 38 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Acervo Koellreutter: o passado é um meio e um recurso: ||de maneira nenhuma um dever||: O futuro, porém é Marcia E. Taborda Universidade Federal do Rio de Janeiro Antecedentes Em julho de 2006 a Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) estabeleceu um novo marco para a consolidação do processo de expansão: criou o Curso de Música, destinado a atender à latente demanda da região e a constituir em curto espaço de tempo, um centro integrador da cultura musical do Campo das Vertentes. Nove professores recém-concursados deram início ao Departamento de Música que então contava com total apoio da reitoria para o estabelecimento de projetos e de iniciativas. Incentivada pela criação do curso de música e certamente pela estreita amizade ao então reitor Helvécio Luiz Reis, Margarita Schack, viúva do maestro e compositor Hans Joachim Koellreutter, que há anos havia se estabelecido na cidade de Tiradentes (MG), decide passar à Universidade todo o acervo do músico. Koellreutter A importância da atuação de Hans-Joachim Koellreutter para a vida cultural brasileira é inestimável. Compositor, professor e musicólogo alemão (Freiburg, Alemanha, 2 de setembro de 1915 - São Paulo, 13 de setembro de 2005), mudou-se para o Brasil em 1937, tornando-se um dos artistas mais influentes na vida musical no País. Estudou composição com Paul Hindemith e Kurt Thomas em Berlim e flauta com Marcel Moyse no Conservatório de Música de Genebra. Foi aluno do importante regente Hermann Scherchen, personalidade cujo pensamento lhe marcaria profundamente. Participou da criação dos Círculos de Música Nova de Berlim e de Genebra. Começava sua carreira de regente quando Adolf Hitler ascendeu ao poder. Exilou-se então no Brasil, onde estabeleceu profundas relações com a cultura musical. Em 1938 realizou o primeiro recital e ministrou seu primeiro curso, no “Conservatório Mineiro de Música” (atual Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais), centro onde, posteriormente, teve atuação marcante. No ano seguinte, fundou o grupo Música Viva, que tinha como participantes os compositores Luiz Heitor, Brasílio Itiberê, Luis Cosme, Otávio Bevilacqua e o pianista Egydio de Castro e Silva. O grupo adotava a composição serial e o expressionismo musical que influenciou toda uma geração de artistas. Entre seus alunos de composição constaram grandes nomes da música de concerto brasileira como Cláudio Santoro, Guerra-Peixe, Edino Krieger, Eunice Catunda, Esther ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 41 Scliar. Envolveu-se numa polêmica com o compositor Camargo Guarnieri, que em 1950 publicou a Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil, na qual criticava as propostas do grupo Música Viva. Trata-se de uma passagem emblemática na trajetória da música no Brasil, cuja documentação consta do acervo Koellreutter. Além de compositor, regente e flautista, Hans-Joachim Koellreutter foi antes de tudo um professor. Ensinou e influenciou toda uma legião de músicos, populares e eruditos, como Djalma Corrêa, Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Mendes, Marlos Nobre, Tim Rescala, Clara Sverner, Gilberto Tinetti, Marcelo Bratke, Nelson Ayres, Paulo Moura, Roberto Sion, José Miguel Wisnik, Diogo Pacheco, Isaac Karabtchevsky e Júlio Medaglia. O segredo de tamanha variedade foi seu método, baseado na liberdade de expressão e na busca da identidade de cada aluno. Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, sentenciou: “Aprendo com o aluno o que ensinar. São três preceitos: 1) não há valores absolutos, só relativos; 2) não há coisa errada em arte; o importante é inventar o novo; 3) não acredite em nada que o professor disser, em nada que você ler e em nada que você pensar; pergunte sempre o por quê”. A importância da atuação de Koellreutter foi sinteticamente descrita pelo musicólogo José Maria Neves: Desde 1937, quando chegou ao Brasil, Hans-Joachim Koellreutter ocupa lugar único no panorama da música brasileira. Sua chegada e a conquista de real liderança no nosso meio musical coincidem com os últimos anos de ação de Mário de Andrade, parecendo significar que cabia a Koellreutter ocupar, na área da música, o espaço deixado vago com o desaparecimento do líder modernista. E a pregação de Koellreutter, desde o início, vai respondendo aos principais postulados modernistas de renovação da inteligência brasileira, com recolocação de princípios técnicos e estéticos e na busca de funcionalidade para a música e para a ação do músico. De fato, Koellreutter foi mais que um compositor: ele foi o mestre de várias gerações de músicos, criadores e intérpretes; e em sua ação no magistério, ele foi mais que um professor: ele foi um animador cultural de excepcional qualidade e eficácia”. (NEVES, Encarte do LP Tacape 0012) O Espaço Koellreutter Recebida a doação de Margarita Schack, decidiu-se que no dia seguinte ás comemorações do aniversário do maestro, seria inaugurado no Solar da Baronesa – Centro Cultural da UFSJ, o Espaço Koellreutter, sendo a mim designada a função de curadoria da exposição permanente. Estávamos há dois meses da inauguração e eu, apenas uma intérprete de música contemporânea, que tive com Koellreutter, não obstante a profunda admiração, breve relação social posto que era muito próxima a alguns de seus alunos, me vi não apenas frente a quantidade de caixas espalhadas pela sala da Biblioteca da Universidade, mas ao espanto de dessacralizar aquela imponente personalidade e ao pudor de remexer seus guardados. Neste exato momento a consciência do desconhecimento do ofício estabeleceu os maiores conflitos: Mas eu posso mexer nisso? Será que simplesmente ao abrir as caixas e escolher materiais não estarei já incorrendo no erro de abordagem de um acervo? Por que eu? Para além das questões internas havia ainda o desafio: Será que dessas caixas sairão materiais que justifiquem a criação de um espaço expositivo? Naturalmente não havia tempo para dialogar com os conflitos. Passei então a organi42 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER zar encontros com as arquitetas responsáveis pelo projeto do espaço e de alguma forma tentei fazê-lo compreender a personalidade daquele que daria nome à sala. Sabia que seria no mínimo injusto com a memória de Koellreutter separar cachimbos, seu relógio e alguns diplomas e dispô-los à observação pública. Percebi imediatamente que o espaço só se justificaria se estivesse afinado à atitude vital e instigadora que marcaram a atuação do mestre. Ainda assim, tratei de saciar a curiosidade alheia, claro com a exposição de seu cachimbo, do relógio, e de alguns diplomas, além de sua bíblia, do exemplar da Arte da Fuga de Bach e do Fausto de Goethe companheiros de toda a vida. Mas a proposta norteadora na montagem do Espaço foi a de estabelecer com o visitante uma parceria criativa. Neste sentido, cabe a ele, por exemplo, a execução em tempo real da obra Concretion 1960 (oboé, clarinete, trompete, carrilhão, celesta, xilofone, vibrafone, piano e tantam), que segundo as palavras do compositor trata-se: Do primeiro ensaio de estruturação planimétrica. Por planimetria entende-se uma técnica de composição que organiza os signos musicais em planos multidirecionais, os signos de um idioma musical que renuncia à melodia e à harmonia, pontos fixos de referência, assim como dualidades dialeticamente opostas, ou seja: consonância e dissonância, tempos forte e fraco, primeiro e segundo tema etc. A palavra Concretion (concreção) não se refere ao oposto à abstração ou a um processo qualquer de solidificação, mas sim às manifestações de uma consciência nova, que revelam um processo de o espiritual concrescer com um novo conceito de tempo (temporismo). Pois somente quando o tempo deixar de ser percebido como dividido nas três fases do passado, presente e futuro, ele se torna concreto. (Nota de programa) Koellreutter informa ainda que a forma de Concretion 1960 é monoestrutural e variável. Todos os módulos componentes foram extraídos de um só módulo fundamental e submetidos a um processo de transformação. É música sem início nem fim, por assim dizer, música cuja duração varia entre 8 e 20 minutos; música cujo início parece ocorrer por acaso e cujo fim acontece por interrupção – interrupção sancionada pelo som do tam-tam. Partindo dessa premissa, o público poderá assumir a função de intérprete e regente da obra, ao despertar sensores que possibilitem executar a música individualmente, sequenciada no tempo, ou numa atividade musical camerística, fazendo-a soar, simultaneamente, em conjunto com outros visitantes, na ordem por eles determinada. Decidiu-se também pela reprodução da série de doze sons que deu origem à obra Música 1941. O visitante será convidado a brincar com as ideias musicais do compositor ao rearranjar a série por ele criada, ouvi-la e executá-la no teclado onde as notas estão indicadas com etiquetas coloridas. O vasto universo de ideias de Koellreutter está às mãos do público nas frases provocadoras por ele perpetuadas ao longo de seu ofício de educador; da mesma forma que biscoitinhos chineses nos surpreendem com a mensagem do dia o visitante será fisgado ao eleger do grande baú, sua provocação: “Ideias são mais fortes do que preconceitos” “O risco, o experimento, a negação das regras inveteradas e caducas, são elementos essenciais da atividade artística”. “Tudo o que choca, conscientiza”. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 43 O Espaço Koellreutter disponibiliza, ainda, o registro de obras e de imagens do mestre. Como não poderia deixar de ser, lá está também a curiosa partitura da obra Ácronon, disposta numa esfera de plástico transparente. Para a compreensão do grafismo da obra, as cores do diagrama - preto, vermelho e verde sugerem os andamentos lento, moderato e rápido. O tamanho das figuras informam a dinâmica, gradação de intensidade dos sons. Os símbolos – círculo, triângulo e quadrado representam a duração: sons de curta, média e longa duração, respectivamente. As linhas significam a duração das trajetórias de silêncio e direções possíveis. Segundo Koellreutter: Ácronon significa ser independente, livre do tempo medido, do tempo do relógio, do metrônomo e, portanto, em termos musicais, da métrica racional, da duração definida e determinada, e do compasso. A forma da peça (ternária) é a do ten-chi-jin japonês, forma variável, assimétrica, de equilíbrio dinâmico, por assim dizer. A estrutura é serial, obedecendo aos princípios de uma estética relativista do impreciso e paradoxal (conceitos estéticos aparentemente contraditórios fundem-se), que delega aos intérpretes um alto grau de liberdade. No segundo e terceiro movimentos, uma esfera transparente permite ao pianista distinguir os signos musicais através de sua espessura, e considerar, assim, no momento da seleção das unidades estruturais a serem tocadas por ele, o caráter complementar das mesmas. A partitura está planimetricamente estruturada – o “plano” da esfera, multidirecional e, praticamente, ilimitado, substitui as “vozes” da partitura tradicional – e compõemse exclusivamente de pontos, linhas, campos e simultanóides (complexos sonoros cujos componentes não podem ser dispostos em terças sobrepostas). (Nota de programa) Figura 2. Entrada do Espaço Koellreutter Privilegiado o enfoque interativo, respeitou-se também a concepção tradicional de museu, na qual a memorabilia deve ser destacada. Nas gavetas estão alguns de seus pertences - objetos, condecorações, documentos, peças meramente ilustrativas da brilhante trajetória desse cidadão do mundo. Figura 3. Partitura de Ácronon Figura 1. Prédio do Centro Cultural da UFSJ 44 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Figuras 4 e 5. Espaço Koellreutter ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 45 Figura 6. Fundação Koellreutter – Parte do acervo A Fundação Koellreutter Data de 10 de julho de 2007 a escritura pública de instalação e transcrição de ata e de estatuto da Fundação Koellreutter. Margarita Schack consta como presidente de honra e legítima representante dos bens do acervo pessoal e dos direitos autorais do compositor. Foi estabelecido um conselho denominado curador embora tivesse apenas funções administrativas e fui designada Presidente da Fundação.1 Como finalidades estatutárias da instituição constavam: 1. Apoiar e promover o desenvolvimento de atividades culturais, especialmente as relacionadas à música; 2. Apoiar as atividades de promoção da música nos campos do ensino, pesquisa, extensão; 3. Viabilizar o acesso, a recuperação, conservação e exposição do acervo de H. J. Koellreutter, de conteúdo misto através do Espaço Koellreutter 4. Obter recursos destinados à manutenção de suas atividades; 5. Desenvolver atividades culturais e artísticas de caráter inovador ou experimental; 6. Promover a difusão cultural, no âmbito municipal, estadual e nacional; 7. Realizar estudos, pesquisas, intercâmbio de conhecimentos e instituir banco de dados sobre o acervo; 8. Administrar bens e empreendimentos que tenham objetivos de serventia social, cultural ou turística; 9. Criar condições que facilitem o desenvolvimento das artes em geral, em especial ao estudo das obras de H. J. Koellreutter; 10. Desempenhar outras atividades que lhe sejam cometidas pelo Conselho Curador. Criada a Fundação, a primeira meta estabelecida foi a de ter o acervo abrigado no mesmo Centro Cultural onde está localizado o Espaço Koellreutter. No âmbito da documentação, a Divisão de Biblioteca da UFSJ tem hoje, sob sua 1 Em março de 2009 assumi a função de docente na Universidade Federal do Rio de Janeiro e por este motivo me desliguei formalmente da Fundação Koellreutter. 46 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER guarda, três acervos: Acervo de Obras Raras e Antigas da Biblioteca Municipal Baptista Caetano de Almeida, Acervo do Clube Teatral Artur Azevedo e o Acervo da Academia São-joanense de Letras. Os esforços desenvolvidos para conservação e disponibilização de arquivos e fontes primárias da região, através da produção de instrumentos informatizados de pesquisa que possibilitem o mais amplo acesso às fontes, representam um compromisso da instituição com a divulgação de documentos e com a preservação da memória. Nesse sentido era objetivo do Reitor agrupar o acervo Koellreutter junto aos acima relacionados. Sabendo que futuramente o Espaço Cultural da UFSJ que ainda hoje abriga a Pró-reitoria de Extensão será destinado apenas a ser um centro de cultura, me pareceu fundamental deixá-lo junto à sala expositiva. A iniciativa deu certo e após algumas reuniões com as arquitetas que desenvolveram o espaço, conseguimos uma pequeníssima sala anexa onde está reunido todo o acervo; composto por fontes documentais de naturezas diversas tem por mais frequentes os suportes celulósicos: papéis de variados tipos e formatos, tais como correspondências, partituras, livros, periódicos, recortes de jornais e revistas. A biblioteca do compositor possui cerca de 800 volumes referentes à música europeia, música brasileira, filosofia, obras que abrangem as diferentes áreas de conhecimento e interesse do mestre; foi catalogada e encontra-se disponível para consulta na página eletrônica da UFSJ. Há grande número de partituras de trabalho com obras que marcam desde a trajetória do Koellreutter flautista aos interesses do regente e do especialista em repertório contemporâneo. A produção musical do compositor está estimada em 77 obras, algumas editadas e muitos manuscritos; além destes, há no acervo materiais fotográficos, objetos pessoais, textos inéditos, livros não publicados, cartas, palestras, cursos. Registros sonoros como discos de vinil, fitas cassete e CDs; há também instrumentos de trabalho como a máquina datilográfica em que produziu inúmeros textos, além de objetos pessoais. Não foi possível estimar o conteúdo e volume de documentos abrigados. Como primeira medida visando a organização do acervo foi encaminhado à Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais – Fapemig o projeto “Acervo Koellreutter: tratamento, organização e criação da biblioteca digital” com o objetivo final de constituir um banco de dados a ser disponibilizado a estudiosos, pesquisadores e interessados em geral. O projeto foi aprovado e foi então organizada a visita da museóloga Maria Cristina Mendes, vinculada ao Museu Villa-Lobos, para orientação dos procedimentos básicos relativos à organização e posterior acesso ao acervo; foi também convidado o técnico Eduardo Lara Coelho representante do Laboratório de Conservação e Restauração de Documentos e Obras Raras da UFSJ, LABDOC, referência na recuperação e conservação de fontes primárias, estreitamente articulado aos projetos e às linhas de pesquisa desenvolvidas pelos diferentes departamentos. A partir da orientação especializada foram empreendidos os processos de higienização, tratamento técnico de conservação, identificação e arranjo, descrição e catalogação. Foi também realizada a digitalização da obra e de alguns documentos. A aprovação do projeto previu, com recursos da Fapemig, a compra de equipamentos desde então incorporados ao acervo, computadores, impressora, scanner e máquina fotográfica. Neste primeiro momento de constituição a Fundação não contou com recursos próprios, senão com pequena verba de instalação. Com o objetivo de promover atividades culturais foi submetido ao Fundo Estadual de Cultura projeto que teve reconhecimento ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 47 de mérito mas que não veio a se concretizar por falta de captação de recursos. Assim sendo a Fundação realizou atividades apenas relacionadas à comemoração da data de aniversário de Koellreutter. Com recursos providos pela Reitoria foi realizado em setembro de 2007 o espetáculo “Koellreutter: A música Viva”, evento apresentado no Solar da Baronesa que contou com a participação de alunos do curso de música da UFSJ e da Companhia de Inventos. Foi ainda encenado no Teatro Municipal de São João del-Rei, o Concerto – Programa de Rádio Música Viva – a partir do roteiro do programa apresentado por Koellreutter no sábado, 26 de janeiro de 1946 na PRA2 cujo texto está reproduzido no livro Música Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade, de Carlos Kater. Participaram do evento Marilane Santos Sotani (atriz), José Mário de Araújo (radialista), Antonio Carlos Guimarães (flauta), Iura de Rezende (clarineta), Carla Reis (piano) e Marcia Taborda, Flávio Barbeitas, Michel Maciel e Rafael Ávila (violão). Em agosto de 2008 foi promovido o espetáculo “Koellreutter a Música Viva” com texto de Tim Rescala e encenação da Companhia de Inventos – Teatro de sombras apresentado no Teatro Municipal de São João del-Rei. Participaram do espetáculo os atores Tim Rescala, Guida Vianna e Luis Salém e os músicos Carla Reis, Marcelo Parizzi e Marcia Taborda. Considerações finais Este breve relato suscita questões fundamentais sobre o que vem sendo feito em nosso país na organização e conservação de acervos, responsabilidade que nem sempre é atribuída, como vimos, à profissionais especializados. A região de Minas Gerais onde se estabeleceu o acervo Koellreutter destaca-se no panorama nacional pela atividade musical de instituições centenárias como a Orquestra Ribeiro Bastos e a Lira São-joanense detentoras de precioso arquivo relacionado à produção musical feita em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. São acervos constituídos por famílias que ainda hoje os mantém em uso e em condições impostas pelas limitações financeiras e ideológicas. O acesso é em geral restrito àquela comunidade. No caso da Fundação Koellreutter partiu-se de um arquivo em que há, aparentemente, muitas lacunas, o que torna fundamental o contato com músicos e pesquisadores visando a incorporação de materiais que se encontram dispersos. O compromisso de organização tem por meta possibilitar o acesso a fontes primárias, textos inéditos, cartas, periódicos, documentos que registram parte fundamental da história contemporânea da música brasileira, que deverão ser consultados e confrontados a partir dos enfoques propostos por diferentes linhas de pesquisas e abordagens, desde a Musicologia Histórica, História Cultural e Social, a Antropologia da Música, a Etnomusicologia. Mais que um cidadão brasileiro, Koellreutter foi um cidadão do mundo. Com o movimento Música Viva introduziu o que hoje é considerada a “segunda fase da modernidade brasileira”, impondo uma dinâmica ao meio musical ao determinar a tomada de posição de artistas e a reflexão sobre o papel criador e o exercício da música na sociedade brasileira. Como observou o musicólogo Carlos Kater, “H. J. Koellreutter criou com esse nome um movimento musical e cultural, um grupo de compositores, uma escola de formação e um conjunto amplo e diverso de atividades”. No Brasil, a semente plantada por Koellreutter foi cultivada especialmente nos centros de ensino que fundou ou desenvolveu em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo 48 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Horizonte e Bahia. Não obstante, coube ao Campo das Vertentes, a missão e o privilégio de receber este acervo. Território neutro, tem por compromisso estimular a criação, o interesse, ao fornecer as ferramentas de pesquisa que irão manter acesa a chama do conhecimento e da criatividade, princípios fundamentais do ensinamento de Koellreutter. Reiterando as palavras do mestre, “o passado é um meio e um recurso:||de maneira nenhuma um dever||:O futuro, porém é”. Bibliografia AMADIO, Ligia. Koellreutter: um caminho rumo à estética relativista do impreciso e paradoxal. Tese de Doutorado. Campinas, São Paulo, 1999. ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. São Paulo: Martins, 1975. ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, s.d. KATER, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Musa & Atravez, 2001. KATER, Carlos. Catálogo de Obras de H. J. Koellreutter. Belo Horizonte: FEA / FAPEMIG, 1997. v. 1. 55. KATER, Carlos. KOELLREUTTER, H. J. “Encontro com H. J. Koellreutter”. Cadernos de Estudo: Educação Musical, v. 6, 1997. KATER, Carlos. “H. J. Koellreutter: música e educação em movimento”. Cadernos de Estudo: Educação Musical, v. 6, p. 6-25, 1997. KATER, Carlos. “O Manifesto Música Viva 1945”. Cadernos de Estudo: Educação Musical, v. 6, 1996. KATER, Carlos. “Nota Sobre H. J. Koellreutter”. Música Hoje, v. 2, p. 26-26, 1995. NEVES, José Maria. Mestre Koellreutter. Funarte, Rio de Janeiro, 1987. NEVES, José Maria. H. J. Koellreutter. Encarte do LP Tacape 0012, São João del-Rei, 1983 NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi, 1981. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985. SCHWARZ, Roberto. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão – tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2003. TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. WISNIK, José Miguel. “Getúlio da Paixão Cearense (Villa Lobos e o Estado Novo)”. In: SQUEFF, Enio & WISNIK, José Miguel. Música: O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 49 Centro de Referência Musicológica José Maria Neves: patrimônio e projeto de futuro Suely Campos Franco Universidade Federal de São João del-Rei / CEREM A música em São João del-Rei A cidade de São João del-Rei tem sua história fincada em fins do século XVII, quando da descoberta de veios auríferos na região. Em 1713 o arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar transformou-se em Villa de São João Del Rei e foi definida como sede da Comarca do Rio das Mortes. A importância administrativa para a Capitania de Minas Gerais promoveu um rápido crescimento urbano e já neste período a vila possuía uma paisagem urbana formada por ruas, casarios, igrejas e monumentos com expressivas manifestações artísticas. Em 1738 é elevada à condição de cidade, constituindo-se uma das mais importantes das Minas. Sabemos que a música foi, desde os primórdios, um dos aspectos fundamentais da identidade cultural dos habitantes desta cidade. Como demonstra José Maria Neves, o registro documental de atividade musical por ocasião da visita do governador da Capitania confirma que a tradição da música em São João del-Rei remonta aos primórdios da vida do arraial. A primeira notícia escrita de atividade musical em São João del-Rei data de 1717, quando o Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma visita a antiga vila.O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata minuciosamente a recepção, descrevendo desde a marcha de entrada da comitiva na vila até a solenidade na Igreja Matriz, ‘ao som de música organizada pelo mestre Antônio do Carmo. Na Igreja foi entoado o Te Deum, ‘que foi seguido por todo o clero e música, o que provavelmente indica uma forma alternada de canto em polifonia com os padres cantando um verso gregoriano e o conjunto musical respondendo com um verso musical, tal como se faz, ainda hoje, na cidade. (NEVES, 1984, p. 7) Vindo o Imperador D. Pedro II a São João del-Rei, em agosto de 1881, para a inauguração da Estrada de Ferro Oeste de Minas, após assistir a uma cerimônia religiosa, anotou em seu diário de viagem: “A música do Te Deum foi a melhor que ouvi em Minas; dizem ser composição do Padre José Maria” (TIRADO, 2011). Há ainda outros relatos do elemento musical observado por viajantes que por esta cidade passaram. Vale referir aos comentários do poeta modernista francês Blaise Cendras a propósito da música ouvida nas cerimônias da Semana Santa de 1924, quando esteve nesta cidade mineira acompanhado pelos brasileiros vanguardistas, fomentadores do ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 51 Movimento Modernista. Conta Tarsila que na viagem, Cendrars passava da surpresa ao entusiasmo; ao ouvir a música mineira cantada em São João del-Rei, disse que era “o mais belo cantochão” que já ouvira. Fizeram parte do grupo que viajou para Minas: Mário de Andrade, Oswald de Andrade e seu filho Nonê (Oswald de Andrade Filho), Tarsila do Amaral, d. Olívia Guedes Penteado, René Thiollier René Thiollier escreveu igualmente em breve relato intitulado “De São Paulo a São João del Rei” em seu livro O homem da galeria. Godofredo da Silva Telles também relata momentos da experiência passada na cidade mineira em depoimento a Aracy Amaral: “Fomos direto a em São João del-Rei e lá nos demoramos toda a Semana Santa, assistindo às tradicionais comemorações, tão populares no interior mineiro” (AMARAL,1997, p. 59). A história nos revela que alguma das diversas práticas musicais período colonial atravessaram séculos e foram mantidas desde aquele período e sobrevivem notadamente no âmbito religioso. A organização das festas religiosas, tendo a música sacra como elemento dos mais destacados tanto nas missas quanto nas procissões, é fator preponderante na manutenção destas práticas, favorecidas pela presença das Associações Religiosas – Irmandades, Confrarias e Ordens Terceiras – promotoras e guardiãs de uma tradição bem específica na cidade e também na região. A microrregião dos Campos das Vertentes é caso particular no panorama cultural brasileiro, preservando costumes que permitiram a permanência viva de quatro corporações musicais, setecentistas. Existindo como organismos vivos, estas corporações não atuaram exclusivamente no âmbito religioso, mas alimentaram de música todos os acontecimentos da vida cultural. (NEVES, 1997, p. 17) As corporações musicais Orquestra Lira Sanjoanense e a Orquestra Ribeiro Bastos, remanescentes do século XVIII e as oitocentistas Lira Ceciliana de Prados e a Orquestra Ramalho de Tiradentes, são exemplos vivos desta permanência. Os dois grupos de São João del-Rei atuaram sempre de forma complementar, dividindo entre si as funções musicais das irmandades religiosas e do Senado da Câmara. A presença e atuação ininterruptas das Orquestras Lira Sanjoanense e Ribeiro Bastos nas principais cerimônias religiosas católicas celebradas em São João del-Rei, atravessam séculos e chegam até os dias atuais com vitalidade e energia, embora na condição de amadores, prometem continuidade. Figura 1. Parte musical do programa da Semana Santa de São João del-Rei, 2010. 52 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER O Centro de Referência Musicológica José Maria Neves / CEREM Figura 2. Logomarca do CEREM. A intenção de se criar um Centro de Referência Musicológica e Cultural surgiu na década 1980, período em que ações e reflexões sobre o destino da música em São João del-Rei tiveram especial destaque. A intenção tornou-se realidade em 2003, com a criação do Centro de Referência Musicológica José Maria Neves / CEREM, produto do esforço e determinação de um grupo de pessoas, liderados por Anna Maria Parsons. O projeto teve como objetivo norteador e finalidade primordial a preservação da memória musical brasileira e especialmente de São João del-Rei e região. Esta iniciativa implicou na recuperação de um imóvel localizado no centro histórico e adaptação para abrigar um importante acervo de documentos – partituras manuscritas e impressas, correspondências, recortes de jornais, programas de concertos, monografias e teses, fotografias, instrumentos musicais, objetos e diversos outros documentos. A instalação do CEREM nesta cidade de Minas Gerais, vislumbrado pelo seu patrono, o musicólogo José Maria Neves, justifica-se pela presença de uma significativa atividade musical herdada do período colonial e mantida pelas diversas corporações musicais na atualidade, bem como pela vasta produção musical abrigada em seus arquivos. José Maria Neves (1943 - 2002) foi um dos mais influentes musicólogos que estiveram em atuação no Brasil. Natural de São João del- Rei, encontrou em sua cidade natal vasto acervo musical ao qual dedicou boa parte de sua vida como musicólogo e como regente da Orquestra Ribeiro Bastos, herdeira de grupos criados certamente no século XVIII. O grupo mantém, ainda hoje, a maioria de seus compromissos tradicionais com a Ordem Terceira de São Francisco de Assis e com as irmandades de Nosso Senhor dos Passos e do Santíssimo Sacramento feitos naquela época. Os esforços de divulgação do fazer musical na região mineira do Campo das Vertentes traduziram-se em diversas ações como registros fonográficos, concertos da Orquestra Ribeiro Bastos através do Brasil, revisão e edição de catálogos e partituras. O CEREM possui biblioteca especializada em música, arquivos sonoros com gravações raras, videoteca musical, sala de reuniões, cafeteria, sala de conferência e concertos, sala expositiva sobre a atividade musical em São João del-Rei que conta a história dos diversos grupos musicais atuantes à partir do século XVIII. O espaço expositivo abriga ainda objetos e instrumentos do ofício de luteria. O acervo do CEREM é composto de dois fundos principais (www.cerem.ufsj.edu.br): ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 53 1. Acervo pessoal do musicólogo José Maria Neves 2. Acervo de livros, partituras e discos do pianista Tarcísio Nascimento Teixeira Figura 3. Gavetas dos compositores - Sala expositiva do CEREM. Projeto de futuro “não vamos deixar que isto acabe em nossas mãos” (Depoimento do Ademar Campos Filho, musicólogo e maestro da Orquestra Lira Ceciliana de Prados, 1988) Em 2006 foi criado o curso de música na Universidade Federal de São João del-Rei. Professores vindos de diversas localidades do Brasil trabalham no sentido de formar músicos e professores de música. Neste sentido, podemos afirmar que passados quase cinco anos, reconhecemos o efeito multiplicador desta ação que promove direta e indiretamente a qualificação, o aperfeiçoamento das diversas agremiações musicais existentes na cidade e a continuidade da atividade musical na região. Atualmente, através de convênio firmado com a Universidade Federal de São João del - Rei em novembro de 2010, o CEREM inicia uma nova fase implantação de iniciativas que possibilitem a execução de planos integrados e cooperação mútua com outras instituições. O convênio com a UFSJ visa desenvolver e apoiar todas as ações referentes à pesquisa em música e do fazer musical, em todas suas manifestações e promover e organizar cursos, encontros artísticos e culturais e outras modalidades de cooperação. Em 2008, o projeto “Plataforma Jovem”, iniciativa do Departamento de Música da UFSJ e coordenado pela professora Márcia Taborda, levou música ao CEREM com apresentações de alunos e professores. Consultando a programação do IX Congresso de Produção Científica realizado pela Universidade Federal de São João del-Rei, de 25 a 28 de outubro de 2010, verificamos que estavam nela incluídas um número significativo de trabalhos de pesquisas e ex54 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER tensão tendo como temas e objetos as práticas musicais na região de São João del-Rei. Propusemos, então, a realização de um encontro entre os pesquisadores nos espaços do CEREM. A I Jornada de Divulgação de Pesquisas e Extensão, realizada no dia 18 de novembro de 2010 pelas Pro - Reitorias de Extensão e de Pesquisa da UFSJ em parceria com o Departamento de Música / DMUSI e primeira iniciativa de cooperação entre as duas instituições após a implantação do convênio demonstraram a pertinência de um diálogo entre músicos, pesquisadores, agentes culturais e demais interessados da esfera pública e privados. Durante todo dia, a sala de conferências do CEREM esteve repleta, havendo espaço na programação para discussões e cruzamentos temáticos. A jornada multidisciplinar ofereceu a divulgação de pesquisas e iniciativas de docentes e estudantes nas áreas de história, musicologia, psicologia, filosofia, todas voltadas ao tema musical. A equipe do CEREM acolheu os participantes com entusiasmo e sua diretora aproveitou a ocasião para disponibilizar os espaços e a logística do Centro para algumas atividades ali mencionadas, como por exemplo, os projetos Laboratório de edição e digitalização de partituras e manuscritos musicais desenvolvido pela aluna do curso de Música Simone Ellem Fonseca Nascimento e pelo professor/orientador do Departamento de Música da UFSJ Marcos Edson Cardoso Filho (DMUSI) e o Programa Música XXI, programa da Pró-Reitoria de Extensão em conjunto com o Departamento de Música da UFSJ que promove apresentações musicais de docentes, alunos e convidados em diversos espaços da cidade e nos Campi avançados da UFSJ. Na ocasião, Anna Maria Parsons então Diretora Geral do CEREM referiu-se à memória do musicólogo são-joanense José Maria Neves, lembrando o seu constante interesse em promover ações como estas que ora se concretizam em sua cidade natal. Criou-se a partir daí, o início de um intercâmbio profícuo entre as duas instituições. O sucesso do evento deveu-se à grande adesão dos participantes, demonstrando a importância e a necessidade destas ocasiões de troca entre pesquisa e extensão e da disponibilização dos resultados á comunidade em geral. Não é demasiado citar aqui alguns dos trabalhos apresentados: A música e o processo grupal: tradição e representações em corporações musicais dos Campos das Vertentes – Sérgio Rossi Ribeiro / Marcos Vieira Silva (DPISC); O Conservatório Estadual de Música Padre José Maria Xavier na manutenção e transformação da tradição no contexto histórico e sociocultural de São João del-Rei – Wevert Emmanuel Tomaz Benedito / Marcos Vieira Silva (DPISC); Música popular e música erudita na percepção dos músicos de São João Del-Rei: uma análise á partir da filosofia de Adorno – Fabiano Leite França / Paulo César de Oliveira (DFIME); A Música e suas articulações identitárias nas corporações musicais de São João del-Rei e região: os jovens e a música sacra nos dias de hoje – Rodrigo Manuel Frade / Marcos Vieira Silva (DPISC); A manutenção da tradição através de suas transformações: jovens músicos e a construção de projetos de vida – Aline Moreira Gonçalves / Marcos Vieira Silva (DPISC); As transformações das Corporações Musicais de e Região: desde a identidade de seus componentes às diferenças de gênero – Mayara Pacheco Coelho / Marcos Vieira Silva (DPISC); Programa Música XXI - Rafael Dias Belo / Antônio Carlos Magalhães (DMUSI); Jovens Músicos para São João Del-Rei: Núcleos “Ribeirinhos” – Arthur Yanai Barduche / Maria Amélia Viegas (DMUSI); além de projetos de extensão que implicam no estímulo à formação e manutenção de grupos musicais. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 55 Figura 4. Participantes da Jornada de Divulgação de Extensão e Pesquisa em Música da UFSJ novembro de 2010 – São João del-Rei – MG. Atualmente, o CEREM trabalha na implantação de ações de preservação do patrimônio material – manutenção do imóvel e dos equipamentos; tratamento e conservação do acervo documental – e de fomento suas atividades fins – levantamento detalhado, quantitativo e qualitativo, do acervo documental, digitalização de todos os documentos do acervo, divulgação e disponibilização para pesquisa; apoio a projetos de pesquisa a partir do fundo documental depositado ali depositado. Entre os projetos citamos “Cartas de José Maria Neves: um olhar sobre o desenvolvimento da musicologia a partir de São João del-Rei”, projeto de iniciação científica (PIBIC/CNPQ), coordenado por Edilson Assunção Rocha, professor do Departamento de Música da UFSJ, que visa o estudo da correspondência pessoal de José Maria Neves com importantes músicos e estudiosos, tais como Marlos Nobre, Hans Joachim Koellreutter, dentre outros. Para além da preservação do seu acervo material, o CEREM como objetivo a promoção da memória musical e atividades educativas e culturais. Além disso, o CEREM estabelece estreita ligação com as diversas corporações musicais de São João del-Rei e região e instituições de arquivos musicais de Minas Gerais e o Brasil. Vale destacar que os objetivos e metas do CEREM dialogam com aqueles da Fundação Koellreutter, inaugurada em 2006 e instalada no Centro Cultural da UFSJ / Universidade Federal de São João del-Rei que disponibiliza fontes documentais de naturezas diversas do acervo pessoal de Hans Joachim Koellreutter, além de um espaço museológico interativo. Em abril de 2012, o CEREM inaugurou o programa “Ciclos de Conferências sobre Musica”, coordenado por Suely Franco, com a Mesa Redonda “A música da Semana Santa de São João del-Rei: repertório e liturgia ao longo dos séculos”. Para o ano, estão previstos encontros com diversos pesquisadores, eventos e atividades relacionados às comemorações de 10 anos de morte do musicólogo Jose Maria Neves e 100 anos de morte do compositor Martiniano Ribeiro Bastos, ambos nascidos em São João del-Rei. Os projetos têm como perspectivas a continuidade, a regularidade e sustentabilidade das atividades da instituição. 56 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Figura 5. Mesa redonda “A música da Semana Santa de São João del-Rei: repertório e liturgia ao longo dos séculos”– São João del-Rei, abril de 2012. O CEREM é um lugar simbólico que abriga as questões relacionadas à música, elemento fundamental de expressão de identidade, do sentimento de pertencimento e da memória coletiva e individual desta região de Minas Gerais e que representam parte importante da historia musical do Brasil. Figura 6. CEREM, fachada. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 57 TIRADO, Abgar. “Padre José Maria Xavier”. Disponível em http://www.saojoaodelreitransparente.com.br/projects/view/156. Acesso em 04/02/2011. VIEGAS, Augusto. Notícia de São João del-Rei, 3 ed.. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1969. Figura 7. CEREM, interior. A paisagem sonora de São João del-Rei pode ser apreendida pelos sentidos e se revela nos toques de sinos que veiculam uma linguagem musical própria, no apito do trem “Maria Fumaça” e na sonoridade de seus diversos grupos musicais. Todos os elementos que unem o passado musical de São João del-Rei com os projetos de futuro empreendidos na atualidade fazem de São João del-Rei um centro musical de referência obrigatória para pesquisadores e musicólogos da música nacional. O CEREM participa do esforço nacional de preservação da memória cultural através da produção, divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos relacionados às atividades musicais. Referências AMARAL Aracy A. “A viagem a Minas”. In: Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. São Paulo: Ed. 34/ Fapesp, 1997. ESTATUTO do Centro de Referência musicológica José Maria Neves. São João del-Rei, 2006. MAGGIOLI, Flávia; FRANCO, Suely. “Concerto Barroco”. Revista Veredas, CCBB, Ano 3, n. 31, Rio de Janeiro, 1993. NEVES, José Maria. A orquestra Ribeiro Bastos e a vida musical em São João del-Rei, 1984. NEVES, José Maria. Música Sacra Mineira. FUNARTE: Rio de Janeiro, 1997. NEVES, José Maria. “Tradição Musical de São João del-Rei”. [Ref. 19 Avril 2007]. Disponível em http://www.cidadeshistoricas.art.br/hac/artmus_03_p.php. SANTOS, Jose, FRANCO, Suely. “Cidades da Música”, documentário realizado no 4º Inverno Cultural da UFSJ, 1988. 58 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 59 Meneleu Campos: o catálogo da obra completa consolida os acervos BNRJ e UFPA Mário Alexandre Dantas Barbosa Universidade Federal do Rio de Janeiro O Catálogo Geral da Produção Musical de Meneleu Campos (1872-1927) é fruto dos esforços da pesquisa realizada no âmbito do curso de mestrado em música (musicologia), sob orientação da Profª Drª Maria Alice Volpe, no Programa de Pós-graduação da Escola de Música da UFRJ. Tal pesquisa foi por mim desenvolvida como continuidade do estudo sobre um tema que já vinha estudando desde o período da graduação quando, como bolsista de Iniciação Científica CNPq, tive a oportunidade de travar os primeiros contatos com a obra deste compositor e apresentar o resultado em dois trabalhos que abordavam peças particularizadas (BARBOSA, 2006; BARBOSA, 2007). Desde então fui me deparando com as lacunas sobre o tema, dentre as quais a questão da catalogação. O desejo de ter a obra deste compositor devidamente catalogada num trabalho de caráter musicológico foi ganhando dimensão de dívida historiográfica à medida que um procedimento metodológico padrão ao se iniciar a pesquisa sobre determinado compositor é verificar se existe um catálogo de suas obras. No caso do músico paraense que foi o foco principal dos meus estudos desde então, foi possível contar com os valorosos trabalhos do pioneiro da pesquisa sobre a música do Pará, Prof. Dr. Vicente Salles, que, principalmente em sua publicação por ocasião das comemorações do centenário de Meneleu Campos (SALLES, 1972), forneceu informações mais detalhadas sobre aquele cuja efeméride era alusiva naquela ocasião. Esse trabalho traz como apêndice o que se pode chamar de primeiro esboço de catalogação da produção musical de Meneleu Campos, crédito de Marena Salles. Sem dúvida esse trabalho, que foi referido em pesquisas posteriores, tem incontestável importância, pois, embora careça de um maior rigor metodológico, consegue dar ao consulente uma ideia das dimensões da obra que abordou. Em sua dissertação de mestrado, a musicóloga Maria Alice Volpe apresentou o Catálogo da Música de Câmara do Período Romântico Brasileiro, no qual pode ser encontrada catalogada a respectiva parcela da obra de Meneleu Campos, totalizando vinte títulos (VOLPE, 1994). Esse é, inclusive, o trabalho que proveu o referencial teórico-metodológico para a consolidação do Catálogo Geral das Obras Musicais de Meneleu Campos. Outros trabalhos que se dedicaram mais recentemente ao tema Meneleu Campos abordaram obras particularizadas deste compositor, a Fantasia para violino e orquestra (REINERT, 2007), o Concerto para piano e orquestra (COSTA, 2011) ou a uma parcela especifica de sua produção (Ó de ALMEIDA, 2007). Em projeto patrocinado pela PETROBRÁS e coordenado pelo Prof. Dr. Márcio Páscoa (Universidade do Estado do Amazonas), dedicado exclusivamente à produção operística dos compositores amazônicos na Época da Borracha, um dos volumes é deANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 61 dicado à edição da versão para canto e piano de Gli Eroi, ópera em 4 atos de Meneleu Campos e no volume Ópera em Belém, o compositor e sua obra foram contemplados com capítulos nos quais o referido musicólogo apresenta suas considerações (PÁSCOA, 2009). A iniciativa de apresentar um catálogo geral aguardou, portanto, quarenta anos após ter sido esboçado por Marena Salles e representa a concretização de um avanço na pesquisa sobre o compositor, mormente no que tange à sistematização de informação mediante a extensa consulta às fontes primárias. Um patrimônio dividido em dois acervos geograficamente distantes O trabalho de catalogação foi iniciado no acervo da Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (DIMAS/BNRJ). A consulta ao catálogo deste importante arquivo especializado revela a presença de duzentas e trinta e seis entradas referente a obras de Meneleu Campos, entre manuscritos e edições de época. Este total representa, aproximadamente, oitenta por cento das fontes musicais referentes a composições de Meneleu Campos. O histórico desta coleção também está ligado às comemorações do centenário do compositor em 1972, momento em que o pesquisador Vicente Salles localizou o espólio junto a familiares, que por ele foram instruídos a depositar as partituras na referida instituição. Em meio ao material podem ser encontrados exemplos de partituras em perfeito estado, enquanto algumas já requerem cuidados especiais em vista do seu estado de deterioração, como é o exemplo do Prelúdio “Anoitecendo” para quarteto de cordas com piano, de 1924, e da Marcha Militar “25 de Setembro” versão para orquestra e banda reunidas da peça composta em 1904. Interessante notar entre as edições alguns exemplares oriundos da Coleção Guerra Peixe. Outra preciosidade que temos em meio à parcela referente às edições de época é a presença de exemplares que trazem dedicatória manuscrita de próprio punho do compositor aos seus entes queridos, onde a data constante em tal texto permite saber aproximadamente a época em que se deu a respectiva composição. As partituras, tanto manuscritos quanto edições foram vistas uma a uma e a transcrição dos dados a serem integrados nos verbetes do Catálogo foi feita in loco. O acervo de fontes musicais referente a composições de Meneleu Campos sob a guarda da Biblioteca de Museu da Universidade Federal do Pará (BM/UFPA), por seu turno, é proporcionalmente bem menor com relação ao da DIMAS/BNRJ. Num total de cinquenta e sete partituras, onde também se encontram manuscritos e edições de época. Essa coleção representa em torno de vinte por cento das fontes musicais disponíveis. Quantitativamente menor, porém não menos importante, esse conjunto possui fontes muito caras à pesquisa sobre a produção musical do compositor enfocado nesta pesquisa. Em projeto patrocinado pela PETROBRÁS e coordenado pelo Prof. Jonas Arraes, o acervo da Coleção Vicente Salles foi tratado de forma a oferecer condições ótimas de consulta. Embora tenha sido possível examinar cada uma das partituras presentes naquela instituição, foram cedidas imagens em arquivo digital de todo o material, através do que a catalogação do mesmo foi feita sem requerer a permanência no referido arquivo. A consulta a esse acervo se deu mediante a viagem à capital paraense viabilizada com recursos próprios no final de janeiro deste ano. A consolidação em um único catálogo Uma vez integrados no mesmo catálogo os verbetes e subverbetes oriundos da catalogação das fontes disponíveis em arquivos geograficamente distantes – DIMAS/BNRJ 62 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER e BM/UFPA – foi possível constatar certas situações peculiares: a) certas fontes presentes em um dos arquivos completam o conjunto referente a uma mesma peça O Hino-Marcha em Fá para vozes infantis, por exemplo, que possui versões com acompanhamento de orquestra e com acompanhamento de banda, tem a parte vocal ausente nos dois conjuntos que fazem parte do acervo da DIMAS/BNRJ. Tal parte, entretanto, pode ser encontrada no acervo da Coleção Vicente Salles, sob a guarda da BM/UFPA. Similarmente, a Ladainha em Sol para vozes femininas e órgão, que no acervo da BM/ UFPA apresentava-se apenas por duas partes de soprano e uma de mezzo, no arquivo da DIMAS/BNRJ traz a partitura onde o parte instrumental do acompanhamento está presente, além de completar o conjunto das partes cavadas com mais um exemplar da parte de mezzo. Um terceiro exemplo é a Cantilena árabe em Fá lídio para a voz de baixo com acompanhamento de orquestra, composta em 1897. Um conjunto de partes pode ser encontrado no acervo do Rio de Janeiro no qual a parte vocal está ausente. A única fonte capaz de permitir uma reconstituição da peça é um manuscrito cópia, datado “Brasília 3.4.[19]48” presente no acervo de Belém, numa versão para canto e piano onde a linha vocal encontra-se presente com seu respectivo texto. b) fontes que completam o conjunto de múltiplas versões de uma mesma peça O Tango, composto por Meneleu e dedicado ao maestro Andrea Guarneri, além de apresentar versões para orquestra e para banda, possui diferentes versões destinadas a piano solo. Enquanto as fontes do Rio de Janeiro documentam as últimas versões para piano que a peça recebeu, datadas de 1913, os manuscritos de Belém trazem as versões mais antigas, datadas de 1897. Dentre as peças originalmente compostas por Meneleu em Paris/1913, as Valsas “Rêve-bleu”, “Infiniment” e “Tendrement” caracterizam-se por apresentar-se em versões vocais com acompanhamento de piano, de conjunto de câmara ou de orquestra, bem como de versões instrumentais diversas. No caso de “Tendrement”, especificamente, faltava a versão para piano solo, que ausente em meio ao acervo sob a guarda da DIMAS/BNRJ, pode ser localizada junto ao acervo sob a guarda da BM/UFPA, completando o conjunto de versões que a identifica com “Rêve-bleu” e “Infiniment”. c) dados presentes na bibliografia especializada encontram base documental mais consistente Este é o caso, principalmente, dos Quartetos de cordas em Mi e em Ré, cuja referência no catálogo de Volpe (1994) é feita a partir de fontes bibliográficas. Os respectivos manuscritos não chegaram a ser localizados no âmbito desse trabalho dedicado à música de câmara brasileira do período romântico. Com a devida localização no acervo da Coleção Vicente Salles (BM/UFPA) os dados dos respectivos verbetes já atualizam a informação constante em trabalho anterior. Também é o caso da Fuga em Sol e da Cena lírica “Carlota”. Através dessas duas partituras recentemente encontradas no acervo da DIMAS/BNRJ, em cujas páginas é possível ler anotações deixadas pelo compositor, fica mais bem documentado o episódio enfaticamente referido nas obras da historiografia tradicional e nos estudos regionais, bem como nas iniciativas mais recentes em termos de abordagem do tema Meneleu Campos – o êxito nos exames de conclusão do curso feito no Conservatório de Milão. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 63 Algumas contribuições do catálogo geral aos estudos sobre o compositor 1) Identificação de peças inéditas na bibliografia especializada No âmbito da produção camerística o trabalho ora comentado acrescenta cinco títulos ao já referido catálogo de Volpe (1994), a saber: Fantasia de concerto para violino solista com quinteto de cordas e piano; Marcha Militar em Láb para quinteto de cordas com piano “Allons-Y!”, Tango em mib para quinteto de cordas com piano “Duque-Gaby”, Valsa em ré para quinteto de cordas com flauta e piano “Amor” e Valsa em Sol para violino, flauta, trompete, oficleide, contrabaixo e piano “Cecy”. No âmbito da produção vocal foi localizado um grupo de quatro cenas líricas compostas em 1898 que, além de acrescentar esses títulos ainda inéditos nos estudos sobre o compositor testemunham acerca de procedimentos didáticos do mestre Vincenzo Ferroni, sob cuja orientação encontrava-se Meneleu Campos na condição de aluno do Conservatório de Milão à época. Dentre as cenas líricas, em cujos manuscritos encontra-se indicado “Licções de composição”, duas – “Tristi amori” e “La Tilda” – possuem uma versão completa e duas versões incompletas. Fontes inéditas também foram encontradas no que concerne à produção com fins didáticos da lavra de Meneleu Campos. Dentre as composições deste gênero estão solfejos a duas e três vozes, lições de canto. Estes itens se acrescentam às já abordadas no projeto em andamento sobre Meneleu Campos e a educação musical, desenvolvido também pelo autor deste trabalho (BARBOSA, 2008). 2) Fornecimento de subsídios para o entendimento mais apurado de sua trajetória A presença de múltiplas versões de grande parte da produção ora em foco revela a capacidade do compositor em adaptar suas peças a condições específicas de performance. Também permite associar versões com a mesma formação instrumental a determinados períodos caracterizando as fases da carreira do compositor. Tal abordagem de cunho sociológico exemplifica o rendimento que já demonstra a sistematização de dados consolidada no Catálogo Geral das Obras Musicais de Meneleu Campos. 3) Economia no acesso às fontes para estudos futuros O rigor metodológico pretendido na elaboração desse Catálogo, o que inclui a indicação da localização das partituras, a identificação de cada peça/versão através de incipt abstrato, a transcrição diplomática das informações contidas nos frontispícios, capas e últimas páginas dos conjuntos, tende a economizar a quantidade de acessos in loco para trabalhos futuros, evitando dessa forma desgaste das fontes e dos pesquisadores, além de favorecer o desenvolvimento das respectivas pesquisas com menor investimento de tempo. 4) A integração da produção de Meneleu Campos aos estudos dedicados a determinados gêneros: No Catálogo de Música Brasileira para Orquestra (RIPPER, 1988) publicado pela FUNARTE não se encontra referida a produção orquestral de Meneleu Campos. O Catálogo Geral das Obras Musicais de Meneleu Campos, entretanto, revela-o como compositor de música orquestral representativa. Enquanto os demais compositores do período romântico que constam no Catálogo FUNARTE – Francisco Braga (34 títulos), Alberto Nepomuceno (31 títulos), Henrique Oswald (26 títulos), Leopoldo Miguez (14 títulos) e Alexandre Levy (6 títulos) – Meneleu conta com uma produção orquestral equivalente a 31 títulos colocando-o, quantitativamente, como o segundo maior compositor para este meio de execução dentre os do mesmo período. O Catálogo de Música Sacra Brasileira: obras dos séculos XVIII e XIX, projeto 64 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Alberto Figueiredo e disponibilizado on line, adota entre seus critérios de delimitação catalogar obras datadas e publicadas, o que excetua a produção de Meneleu Campos para este gênero quer por um motivo ou por outro. Embora não seja a parcela mais significativa do compositor, não deixa de ser importante como reveladora de mais uma faceta deste músico de sólida formação atuante no meio paraense durante o primeiro quartel do século XX. Alguns desafios lançados pelo Catálogo Geral 1) Localização de peças mencionadas na bibliografia e fontes não musicais, mas que continuam não localizadas. Exemplo de obras importantes nesta situação são as composições referidas como primeiras de Meneleu Campos, a Valsa “Pétalas Esparsas” e a Quadrilha “Graphira”, a sua Sonata para violino e piano composta para os exames finais no Conservatório de Milão e, ainda, os vários arranjos de obras de outros compositores que figuram com frequência nos anúncios de concertos do Conservatório Carlos Gomes durante o período em que Meneleu estava na direção. 2) Datação das edições de época e manuscritos não datados A maioria das fontes musicais compulsadas traz data. Dentre os manuscritos, porém cinquenta e sete encontram-se ainda não datados. O total das edições de época de peças de Meneleu Campos que se encontram localizadas – trinta e quatro, dentre elas a maioria por editores italianos e algumas por editores brasileiros -, também não trazem informada a data da edição. Embora se trate de um trabalho musicológico que requeira o domínio de metodologia especializada, a datação desta significativa parcela muito contribuirá para o avanço dos estudos sobre o compositor. 3) Finalização de peças inacabadas Em meio às obras de Meneleu Campos que constam no Catálogo Geral há dezesseis casos de partituras cuja escrita musical se encontra incompleta. Não é possível afirmar com certeza absoluta se tratam-se de projetos abandonados pelo compositor ou se tais trabalhos foram concluídos em fontes não localizadas. Alguns deles são exemplos únicos do gênero dentre a variada produção deste músico paraense como é o caso do Poema Sinfônico “Os Lusíadas”, a Mazurka “As serpentinas” e a Sonata em Réb para piano. Há também o caso de uma obra que recebeu múltiplas versões em termos de instrumentação, porém uma delas encontra-se inacabada, o Romance sem palavras “T’Amo!”. A conclusão desses trabalhos composicionais parece um interessante exercício que exigiria uma análise prévia do estilo de Meneleu Campos. 4) Redimensionamento da importância do compositor consoante às parcelas de sua produção O trabalho de Volpe (1994) é exemplar no que concerne a apresentar um balanço da produção camerística brasileira do período romântico. Nele fica patenteada a importância de Meneleu Campos como produtor de obras para este meio de execução, devidamente confrontado com seus contemporâneos não só em termos numéricos, mas também consoante às tendências estéticas que seguiu em seu labor e das iniciativas que teve na propagação da prática camerística nos contextos de sua atuação. O repertório sinfônico e de canto coral e canto solista ainda aguardam por uma abordagem similar. 5) Priorização das iniciativas de preservação de acervo Diante do estado de preservação em que se encontra o material que resistiu ao desgaste ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 65 do tempo como fonte primária para o estudo sobre um dos mais importantes músicos do Pará, urge frisar que esta documentação ainda se encontra muito vulnerável e seria muito interessante que projetos de digitalização dessas fontes recebessem o devido incentivo a fim de se tornarem viáveis institucionalmente. Esperamos que o Catálogo ora apresentado (DANTAS, 2012) represente mais uma contribuição ao lado da de outros pesquisadores dedicados ao patrimônio cultural do Norte do país no sentido de integrar mais essa parcela ao que temos conhecido sobre o nosso passado musical. Referências bibliográficas BARBOSA, Mário Alexandre Dantas. “Notturno e Allegro scherzando, de Meneleu Campos: contexto de composição, transcrição musicológica e história da recepção”. In: Anais do XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Brasília: ANPPOM, 2006, p. 467-470. BARBOSA, Mário Alexandre Dantas. “Meneleu Campos: Contexto de criação e recepção de duas peças líricas de câmara”. In: Anais do XVII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. São Paulo, 2007. BARBOSA, Mário Alexandre Dantas. “Meneleu Campos e a educação musical: as publicações de caráter didático”. In: Anais do XVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Salvador: ANPPOM, 2008, p. 275-279. BARBOSA, Mário Alexandre Dantas. Meneleu Campos (1872-1927), um compositor paraense: trajetória profissional e catálogo geral. Dissertação (Mestrado em Música, Musicologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Música. Rio de Janeiro, 2012. COSTA, Dayse Dias Silva e. Duração e memória: Bergsonismo e o Piano no Concerto em Lá Maior para piano com acompanhamento de orquestra de Octávio Meneleu de Campos. Dissertação (Mestrado em Música). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011. Ó DE ALMEIDA, João Augusto de Lima. Meneleu Campos e a música vocal no ocaso da belle époque paraense. Dissertação (Mestrado em Música), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Música. Rio de Janeiro, 2007. PÁSCOA, Márcio Leonel Farias Reis. Ópera em Belém. Manaus: Valer Editora, 2009. REINERT. Gina. Fantasia de concerto para violino e orquestra, de Octavio Meneleu Campos: uma proposta pedagógica. (Dissertação de Mestrado). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007. RIPPER, João Guilherme. Música brasileira para orquestra: catálogo geral. Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto Nacional de Música, 1988. SALLES, Vicente. Centenário de Meneleu Campos. Revista de Cultura do Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 2 (8/9): 167-202, jul./dez., 1972a. VOLPE, Maria Alice. Música de câmara do período romântico brasileiro, 1850-1930. Dissertação (Mestrado em Música, Musicologia). Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 1994. 66 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Fontes para o estudo da música sacra em Goiás: o Acervo do Maestro Balthasar de Freitas Marshal Gaioso Pinto Instituto Federal de Goiás Desde meados do século XX, quando Francisco Curt Lange publicou os primeiros trabalhos chamando a atenção da comunidade acadêmica para a importância do repertório musical colonial brasileiro, muitas iniciativas vêm sendo realizadas para a preservação e divulgação de acervos de manuscritos musicais dos séculos XVIII e XIX, especialmente nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Dentre os pesquisadores que responderam ao chamado de Lange, destacam-se as obras de Cleofe Person de Mattos (1970 e 1996), José Maria Neves (1997) e Régis Duprat (1985 e 1995). Em Goiás, as pesquisas que visam resgatar a herança musical de séculos anteriores estão ainda em seus estágios iniciais. Após os primeiros passos, dados por pesquisadores ilustres como Braz de Pina Filho (1975 e 1986), Belkiss Mendonça (1981) e Maria Augusta Rodrigues (1982),1 surge no início do presente século uma nova geração de musicólogos dedicados ao estudo da música em Goiás. Um dos desafios que se apresenta para essa geração é a identificação e o estudo de fontes primárias, ou seja, acervos contendo manuscritos musicais dos séculos XVIII e/ou XIX, ou acervos contendo documentos referentes às atividades musicais propriamente ditas ou às atividades de outra natureza exercidas por músicos. Sabe-se da existência de vários acervos contendo manuscritos musicais dos séculos XVIII ou XIX no estado de Goiás. Dentre esses temos o acervo da família Pina, de Pirenópolis – certamente o mais célebre de Goiás; o acervo Dorvi/Moreyra, da Cidade de Goiás; o acervo de Antônio César Pinheiro, de Itaberaí; e o acervo do Maestro Balthasar de Freitas, de Jaraguá. A presente comunicação tem por objetivo fazer uma apresentação do acervo do Maestro Balthasar de Freitas. Balthasar Ribeiro de Freitas Balthasar de Freitas foi um músico atuante em Goiás nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX. Freitas nasceu em 1870, na cidade de Jaraguá, tendo também ali falecido em 1936. Nos seus 66 anos de vida, foi compositor, copista, advogado, político, e, o mais importante para o presente trabalho, herdeiro de um valioso acervo de obras copiadas e compostas por músicos de gerações anteriores, alguns deles também representantes da família Ribeiro de Freitas. Esse conjunto de documentos é o que tem sido designado “Acervo do Maestro Balthasar de Freitas” (Pinto, 2006 e 2010). 1 Faz parte também dessa geração de pioneiros da historiografia musical goiana a Dra. Yara Moreyra, que atualmente se dedica à pesquisa de manuscritos musicais oriundos da Cidade de Goiás coletados pelo também historiador Frei Simão Dorvi. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 69 O Acervo O acervo Balthasar de Freitas pertence à família Ribeiro de Freitas e sua atual responsável é a professora Ivana de Castro Carneiro, bisneta de Balthasar de Freitas. O acervo está dividido em quatro séries distintas: a) música sacra, b) música instrumental, c) música impressa e d) outros documentos. A série música impressa contém obras escritas para várias formações instrumentais, de peças para instrumento solo à obras para banda sinfônica. A maioria delas é constituída de pequenas danças, mas existem também algumas marchas, músicas sacras e métodos para instrumento. A série outros documentos é formada por todos os manuscritos não musicais encontrados no acervo. Estão nessa série as cartas pessoais de Balthasar de Freitas, documentos relacionados à sua atividade como advogado, bem como listas de pagamentos de músicos, e também páginas título e capas de música das quais nenhuma partitura ou parte foi encontrada. Existem 507 obras musicais preservadas em manuscritos no acervo, divididos por sua vez em duas séries: música sacra e música instrumental. O manuscrito datado mais antigo do acervo é uma página título de um Solo Para Nossa Senhora, de propriedade de Gabriel Raymundo de Lima, que foi copiado em Bonfim (atual Silvânia), em 3 de maio de 1836. Infelizmente, nenhuma parte ou partitura dessa obra foi encontrada. Os manuscritos mais recentes são das décadas de 1930 e 1940, sendo que o mais recente produzido ainda durante a vida de Balthasar de Freitas é sua própria cópia da Novena Para Nossa Senhora da Penha, feita em 1935, menos de um ano antes da sua morte. O período em que a maioria dos manuscritos foi produzida, no entanto, compreende as duas últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do século XX. A maioria desses manuscritos é proveniente das cidades goianas de Jaraguá, Cidade de Goiás, Itaberaí e Silvânia. Existem também cópias de Niquelândia, Pirenópolis, São Francisco, Inhumas, Trindade, Campinas (GO), Bela Vista e Corumbá (GO). São ainda encontradas cópias produzidas fora de Goiás, oriundas de Uberaba, Araguarí e Mariana, do estado de Minas Gerais; e Carolina, estado do Maranhão. Todos os manuscritos são escritos em conjuntos de partes cavadas; não existe no acervo uma única partitura manuscrita em forma de grade. Esses manuscritos foram produzidos com o intuito de serem utilizados por instrumentistas e cantores em celebrações religiosas e eventos sociais, e, de fato, todos apresentam vários sinais de uso. Na verdade, muitas obras foram recopiadas diversas vezes com o passar dos anos. Em alguns casos os manuscritos mais antigos foram pelo menos parcialmente preservados. É interessante ressaltar que cada vez que essas obras eram recopiadas, modernizações e adaptações eram feitas pelos copistas, com o intuito de tornar o velho repertório adequado às condições vigentes na ocasião. Do total de 507 obras, a maioria, ou 449 peças, foi preservada em manuscritos que não trazem qualquer referência à autoria da obra. Em apenas 58 casos existe alguma indicação de autoria, e, ainda assim, muitas dessas indicações são incompletas ou contraditórias. Apesar disso, até o presente momento foi possível identificar cerca de cinquenta compositores diferentes com obras preservadas em manuscritos do acervo Balthasar de Freitas. Entre esses compositores estão nomes ilustres da música brasileira, como José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita e Antônio Carlos Gomes, bem como importantes compositores goianos, como Antônio da Costa Nascimento (o Tonico do Padre), Balthasar de Freitas e Basílio Martins Braga Serradourada. 70 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Música Instrumental A série música instrumental possui o maior número de obras no acervo, com um total de 343 peças catalogadas. Essa série é também significativamente mais recente do que a série música sacra. O manuscrito de música instrumental mais antigo do acervo é uma cópia da quadrilha Uma Véspera de Reis (MI-187), feita por Joaquim Marques em 1887. O manuscrito mais recente produzido ainda durante a vida de Balthasar de Freitas é a sua cópia da marcha Revelação (MI-88), escrita em 1931. Existem ainda algumas cópias feitas após a morte de Balthasar, entre elas uma cópia da Marcha dos Jaburús (MI-84), feita por Francisco Bruno, em 1938. É interessante ressaltar que nem Silvestre Ribeiro de Freitas nem Miquelino Raymundo de Lima, dois dos mais ativos copistas do acervo, possuem cópias na série música instrumental. A maioria dos manuscritos da série música instrumental que apresentam indicação de local de cópia foram produzidas na Cidade de Goiás, Jaraguá e Bonfim (Silvânia). É importante ressaltar, porém, que cerca de 75% das peças dessa série possuem pelo menos um grupo de cópias sem qualquer indicação de local de produção. Dessa forma, os números aqui apresentados devem ser considerados com bastante cautela (Tabela 1). Local de Cópia Cidade de Goiás Jaraguá Bonfim Pirenópolis Corumbá Campinas São Francisco Araguarí Curralinho (Itaberaí) Uberaba Aracatí Número de Obras 62 37 26 6 3 2 2 2 1 1 1 Tabela 1. Locais de origem dos manuscritos da série música instrumental. O primeiro ponto que nos chama a atenção na Tabela 1 é o número de obras com cópias oriundas da Cidade de Goiás e de Jaraguá. Como um acervo pertencente a uma família de Jaraguá, esperava-se que a maioria dos seus manuscritos fossem copiados nessa cidade. Em vez disso, de acordo com a Tabela 1, são encontradas 62 obras copiadas na Cidade de Goiás, contra apenas 37 copiadas em Jaraguá. A explicação para essa discrepância pode estar no número de manuscritos sem indicação de local de cópia. Se considerarmos que a maioria das cópias feitas por Balthasar de Freitas que não apresentam local de cópia foram provavelmente produzidas em Jaraguá, o número de obras com cópias dessa cidade se elevaria cerca de 300%, saltando de 37 para cerca de 147 obras.2 2 É claro que alguns desses manuscritos poderiam ter sido copiados por Freitas em outras cidades, como Bonfim ou São Francisco. Porém, Freitas parece ter a tendência de omitir o local de cópia quando essa era produzida na cidade que ele residia. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 71 Se os copistas eram displicentes ao indicar o local de cópia dos manuscritos, a situação é ainda pior quando o assunto é a autoria das composições. Das 343 obras catalogadas na série música instrumental, 305, ou seja, cerca de 90%, não apresentam indicação de autoria. Através de pesquisas em outras fontes foi possível a identificação do compositor de uma pequena porcentagem desses casos, mas a grande maioria, porém, permanece como obra anônima. Existem 38 compositores identificados com obras na série música instrumental. Curiosamente, apenas seis deles aparecem com mais de uma composição na série: Balthasar de Freitas, com nove peças; Antônio da Costa Nascimento (o Tonico do Padre) e F. Cabral, com três;3 e Benedito Rodrigues Braga, Francisco Martins Araújo e J. Ribeiro com duas peças cada. Os outros 32 compositores possuem apenas uma peça cada na série. Alguns desses compositores são figuras importantes na história da música no Brasil. Entre eles podemos citar Francisco Manuel da Silva, D. Pedro I, Leopoldo Miguez e Antônio Carlos Gomes. Compositores mais atuantes na música popular também aparecem na série, como Américo Jacobino (o Canhôto), José Barbosa da Silva (Sinhô) e o goiano Joaquim Edson de Camargo. A maioria das peças da série são escritas para banda de música. Essas bandas de música variavam de cerca de oito ou dez músicos até quarenta ou cinquenta integrantes.4 Os instrumentos utilizados eram: requintas, clarinetes, pistons, sax-horns e trompas, trombones, bombardinos, helicons, oficleides, bombardões, tubas e percussão, esta normalmente constituída de bombo, caixa e pratos. São ainda encontradas na série algumas obras para grupo de câmera de formação mista, composto de flauta, clarinete, pistom, violino, violoncelo e baixo (uma parte de cada). Essa era uma formação utilizada por Balthasar de Freitas nos últimos anos de sua atividade musical; os manuscritos para essa formação foram produzidos entre o final da década de 1920 e o início da década de 1930. Algumas dessas obras podem ser composições originais, mas outras são certamente arranjos e adaptações de peças escritas para banda. Se por um lado os copistas eram negligentes no que diz respeito à autoria das obras e às indicações de data e local das cópias, em relação ao gênero musical eles tinham uma atitude completamente diferente. Pare se ter uma ideia dessa diferença, das 343 obras catalogadas na série, mais de 80% são desprovidas de indicação de autoria. Por outro lado, em apenas 19 obras, ou menos de 6% dos casos, não foi possível encontrar a indicação do gênero da obra no manuscrito. Dessa forma, a leitura dos manuscritos mostra a existência de mais de vinte gêneros diferentes de música instrumental, desde o samba até a marcha fúnebre (Tabela 2). Gênero Valsa Dobrado Polca Tango Quadrilha Marcha Marcha Fúnebre Mazurca Samba Hino Não Identificado Tango Argentino Teatro Natal Havanera Maxixe Schottische Fado Fox-trot Milonga Ragtime Número de Obras 108 66 32 29 26 21 12 12 6 5 5 4 4 3 2 2 2 1 1 1 1 Tabela 2. Gêneros encontrados na série música instrumental. Como pode ser visto na Tabela 2, os gêneros mais encontrados são a valsa e o dobrado. Existe também um considerável número de marchas e danças europeias. Na verdade, os itens apresentados na Tabela 2 podem, com algumas exceções, serem divididos em dois grandes grupos: marchas, por um lado, e danças, por outro. As exceções são três peças para o Natal, quatro para teatro, e cinco peças com gênero não identificado. O grupo das marchas é formado pelas marchas propriamente ditas, por marchas fúnebres, hinos e dobrados. O dobrado é de longe o gênero mais numeroso do grupo, com 66 obras encontradas. O segundo grupo é formado por danças oriundas de diversas partes do Ocidente. Da Europa são encontrados a valsa, a polca, a quadrilha, a mazurca, o schottische e o fado. Da América do Norte vem o fox-trot e o ragtime. Da América Espanhola são encontradas a havaneira, o tango argentino e a milonga. Finalmente, do Brasil aparecem o tango, o samba e o maxixe. É possível que algumas dessas danças encontradas no acervo tenham sido compostas nos países nos quais o gênero se originou, mas a grande maioria foi provavelmente composta mesmo no Brasil. O gênero predominante nesse grupo é a valsa, com 108 obras, quase um terço de toda a série. 3 As três peças de Tonico do Padre aparecem no acervo em cópias anônimas. 4 Essa estimativa foi feita levando em consideração os manuscritos do acervo, as listas de pagamentos de músicos da época, bem como fotografias de bandas de música do interior de Goiás no início do século XX. 72 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 73 Música Sacra Existem 164 obras catalogadas na série música sacra do acervo Balthasar de Freitas. O manuscrito musical mais antigo da série é uma cópia anônima do Credo da Missa dos Anjos (BF-006), produzida em 1851. O manuscrito mais recente catalogado na série é uma cópia da Missa Santa Ambrósio (BF-001), feita por Sebastião José de Siqueira, em 1948. O manuscrito mais recente produzido ainda durante a vida de Balthasar de Freitas é sua própria cópia da Novena Para Nossa Senhora da Penha (BF-050), produzida em 1935. Assim como na série música instrumental, os copistas foram de certa forma negligentes ao indicar os locais de cópias dos manuscritos que formam a série Música Sacra. Dos casos em que essa localização foi estabelecida, a maioria é proveniente da cidade de Jaraguá. Existe um bom número de cópias oriundas de cidades como Bonfim, São Francisco e Curralinho (Tabela 3). Uma vez mais, a Cidade de Goiás ocupa um lugar peculiar nessa listagem. Enquanto na série música instrumental a Cidade de Goiás chamou a atenção por apresentar mais manuscritos que a cidade de Jaraguá, na série Música Sacra ela chama a atenção por não apresentar nenhum manuscrito. Uma vez mais, as coisas podem não ser exatamente como parecem à primeira vista. Apesar de nenhum manuscrito na série apresentar referências à Cidade de Goiás, existem alguns grupos de cópias que certamente são relacionados com a antiga capital. Esse é o caso das cópias feitas por Joaquim Marques e Padre Pedro Ribeiro da Silva, bem como das cópias dos Motetos dos Passos (BF-152), que como sabemos vêm sendo atribuídos a Basílio Martins Braga Serradourada. Todos os três nomes acima foram importantes personalidades atuantes na Cidade de Goiás. Além disso, algumas outras peças da série, como a Missa Dellac (BF-014) e o Memento (BF-147), sobreviveram também em cópias preservadas em acervos da Cidade de Goiás. Local de Cópia Jaraguá Bonfim São Francisco Curralinho Pirenópolis São José do Tocantins Mariana (MG) Inhumas Trindade Campinas (GO) Bela Vista Carolina (MA) Número de Obras 36 8 6 5 4 3 2 1 1 1 1 1 Tabela 3. Locais de origem dos manuscritos da série música sacra. Das 164 peças da série, a grande maioria aparece como obra anônima. Apesar de ter sido possível estabelecer a autoria de algumas dessas obras através da análise de fontes externas ao acervo, 137 obras, ou seja, mais de 80% do total, continuam sem apresentar uma atribuição plausível de autoria. Em apenas 27 obras foi encontrada alguma indicação 74 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER de autoria, seja nos próprios manuscritos do acervo ou em fontes externas. Ainda assim, muitas dessas atribuições são bastante problemáticas. Em vários casos a obra permanece como sendo de atribuição duvidosa, e em pelo menos três casos foram constatadas atribuições conflitantes, com a mesma peça sendo atribuída a compositores diferentes em diferentes cópias. Entretanto, considerando todas essas atribuições conflitantes e duvidosas, foram identificados dezoito compositores na série. Desses, Balthasar de Freitas aparece com oito obras, Miquelino Raymundo de Lima com quatro, e Balthasar José Martins com duas. Se considerarmos também as atribuições conflitantes, Lobo de Mesquita e Antônio da Costa Nascimento também aparecem com duas obras cada. Os outros treze compositores aparecem com uma obra cada na série. Desses dezoito compositores, 50% são músicos com atuação em Goiás. De Jaraguá temos quatro compositores: Balthasar de Freitas, João Caetano Bueno, João Leite da Silva e Miquelino Raymundo de Lima. Três compositores são de Pirenópolis: Agesislao de Siqueira, Manoel Amâncio da Luz e o célebre Antônio da Costa Nascimento. Finalmente, de Corumbá e da Cidade de Goiás são encontrados, respectivamente, Francisco Bruno do Rosário e Basílio Martins Braga Serradourada (Tabela 4). Compositor Balthasar de Freitas João Caetano Bueno João Leite da Silva Miquelino Raymundo de Lima Agesislao de Siqueira Antônio da Costa Nascimento Manoel Amâncio da Luz Basílio Martins Braga Serradourada Francisco Bruno do Rosário Cidade Jaraguá Jaraguá Jaraguá Jaraguá Pirenópolis Pirenópolis Pirenópolis Cidade de Goiás Corumbá Tabela 4. Compositores de Goiás encontrados na série música sacra. Dos outros nove compositores de fora de Goiás, a maioria é de Minas Gerais. Os mineiros cujas obras aparecem no acervo são: José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, Manoel Dias de Oliveira, Joaquim de Paula Sousa, José Felipe Corrêa Lisboa, Joaquim Antônio Gomes da Silva e João Luís Coelho. São encontrados também Elias Álvares Lobo de São Paulo e Balthasar José Martins do Maranhão. Curiosamente, apenas um compositor europeu aparece na série. É o compositor Christoph Willibald Gluck. Ainda assim, Gluck é um dos casos de atribuição duvidosa (Tabela 5). Compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita Manoel Dias de Oliveira Joaquim de Paula Souza José Felipe Corrêa Lisboa Local Minas Gerais Minas Gerais Minas Gerais Minas Gerais ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 75 Joaquim Antônio Gomes da Silva João Luís Coelho Elias Álvares Lobo Balthasar José Martins Christoph Willibald Gluck Minas Gerais Minas Gerais São Paulo Maranhão Europa Tabela 5. Compositores de fora de Goiás encontrados na série música sacra. Relação com outros acervos Um ponto chama a atenção quando são examinadas as obras sacras do acervo: quase 90% dessas peças são encontradas exclusivamente no acervo Balthasar de Freitas. Pelo menos isso é o que se pode deduzir hoje dos estudos publicados. Do total de 164 peças que formam a série música sacra, somente dezoito são encontradas em outros acervos; as outras 146 são unica. Existem pelo menos três acervo em Goiás que possuem peças em comum com o acervo Balthasar de Freitas: o acervo particular de Antônio Pinheiro e o Acervo Dorvi/ Moreyra, com cinco peças cada; e o acervo da família Pina, com, pelo menos, um obra em comum. Entretanto, é provável que com o desenvolvimento das pesquisas da música em Goiás, tanto o número de obras quanto o número de acervos com obras em comum com o acervo Balthasar de Freitas aumente consideravelmente. Hoje o que se pode constatar é que o acervo que possui o maior número de concordâncias5 com o acervo Balthasar de Freitas é um acervo mineiro, e não goiano: a Coleção Curt Lange do Museu da Inconfidência de Ouro Preto; essa coleção possui sete obras em comum. De Minas Gerais temos ainda o Museu da Música de Mariana, com três peças; o Arquivo da Pia União do Pão de Santo Antônio, com duas peças; e o acervo da orquestra Lira Sanjoanense, com uma concordância. Finalmente, de Campinas, estado de São Paulo, temos o acervo do Museu Carlos Gomes, com também uma concordância. O estudo detalhado dessas concordâncias leva a algumas conclusões interessantes. Primeiro é a de que existiu um intenso intercâmbio entre músicos de Goiás e músicos de outras regiões do Brasil. Os detalhes desse intercâmbio, porém, estão ainda por ser pesquisados. O segundo ponto diz respeito à cronologia das obras do acervo. Se por um lado os manuscritos datados do acervo são predominantemente das últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, a análise das concordâncias (além de outros aspectos) revela que várias obras foram na verdade compostas no início do século XIX ou até mesmo no século XVIII. Além disso, a comparação das obras do acervo Balthasar de Freitas com outros acervos traz benefícios diretos, como a possibilidade de completar obras que aparecem nos acervos de forma fragmentada e também confirmação, questionamento e mesmo levantamento de atribuições de autoria. Função Existe ainda um outro aspecto dos manuscritos do acervo Balthasar de Freitas a ser considerado. Com que propósito esses manuscritos foram produzidos? Qual a motivação dos seus compositores e copistas? Uma resposta simples é: os manuscritos foram feitos 5 O termo “concordância” É usado aqui em sentido mais flexível do que o geralmente usado, significando obras em comum entre os diferentes acervos. 76 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER para atender uma demanda bastante prática; serem usados durante performances musicais. Eles não foram copiados em manuscritos luxuosos para serem dados de presente, como foi comum em determinada época na Europa; eles não foram copiados para formar algum tipo de antologia histórica; e, finalmente, eles não foram escritos com algum propósito teórico ou pedagógico. Esses manuscritos foram utilizados em performances musicais. No caso dos manuscritos da série música sacra, essas performances faziam parte de cerimônias religiosas, tanto litúrgicas quanto paralitúrgicas. Três tipos de cerimônias religiosas parecem ter dominado as atenções dos que viveram em Goiás no séculos XVIII e XIX: Missas, novenas e procissões. Também foram importantes as bênçãos do Santíssimo Sacramento, os serviços fúnebres e todas as cerimônias litúrgicas e paralitúrgicas relacionadas à Semana Santa. Os manuscritos do acervo Balthasar de Freitas parecem corroborar esse ponto de vista. Das suas 164 obras sacras, 42 são relacionadas com a Missa (incluindo partes do ordinário, do próprio e segmentos paralitúrgicos cantados durante a Missa); 78 obras são relacionadas com novenas ou outras cerimônias similares como triduum e setenários; e 23 são peças cantadas em procissões e bênçãos ao Santíssimo Sacramento. Juntas, essas três categorias englobam mais de 80% do total de obras da série música sacra (Tabela 6). Categoria Missa Novena e Obras Similares Bênção do Santíssimo Sacramento e Procissão de Corpus Christi Serviços Fúnebres Semana Santa Te Deum Outros No. de Obras 42 78 23 5 11 2 3 Tabela 6. Funções litúrgicas e paralitúrgicas encontradas na série música sacra. Um aspecto interessante da tabela mostrada acima é a ausência de Matinas ou Vésperas. Na verdade, com exceção de algumas obras para os serviços fúnebres e várias antífonas e hinos avulsos que podem tanto fazer parte dos Ofícios quanto de outras cerimônias paralitúrgicas, nenhuma partitura para o Ofício foi encontrada no acervo. Pare ser mais preciso, a única obra para Matinas ou Vésperas encontradas em acervos goianos de que se tem notícia até o momento é o manuscrito das Matinas de Natal, copiados na Cidade de Goiás e preservados no acervo Dorvi/Moreyra. Conclusão Por fim, é importante ressaltar que as pesquisas no acervo Balthasar de Freitas ainda estão longe de esgotar o assunto. O aprofundamento e a consequente publicação dessas pesquisas se constituirão em passos importantes no sentido de se compreender melhor aspectos culturais e sociais do homem que viveu no Brasil Central muito antes de deflagrada a “Marcha Para o Oeste”. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 77 Referências DUPRAT, Régis. Garimpo Musical. São Paulo: Novas Metas, 1985. DUPRAT, Régis. Música na Sé de São Paulo Colonial. São Paulo: Paulus, 1995. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo Temático das Obras do Padre José Maurício Nunes Garcia. Ministério da Educação e Cultura, Conselho Federal de Cultura, 1970. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia: Biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 1996. MENDONÇA, Belkiss S. C. de. A Música em Goiás. 2a ed. Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás, 1981. NEVES, José Maria, ed. Música Sacra Mineira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1997. PINA FILHO, Braz Wilson Pompêo de. “A Música em Goiás”. Revista Cultura, Brasília, 1975. PINA FILHO, Braz Wilson Pompêo de. “Antônio da Costa Nascimento (Tonico do Padre): Um Músico no Sertão Brasileiro”. Revista Goiana de Artes 7, no. 1, Goiânia, 1986. PINTO, Marshal Gaioso. Danças Para Banda. Goiânia: Instituto Casa Brasil de Cultura, 2006. PINTO, Marshal Gaioso. Sacred Music in Goiás (1737-1936) and Balthasar de Freitas’s Collection. Tese (Doutorado em Musicologia). Lexington: University of Kentucky, 2010. RODRIGUES, Maria Augusta Calado de S. A Modinha em Vila Boa de Goiás. Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás, 1982. 78 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER UNIVERSO LUSÓFONO A música religiosa de Marcos Portugal (1762-1830): o repertório luso-brasileiro António Jorge Marques Universidade Nova de Lisboa Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical – CESEM As primeiras invasões francesas (1807). A corte portuguesa no Rio de Janeiro: D.João, Marcos Portugal e a música O advento das primeiras invasões francesas precipitou a execução de um plano estratégico pré-concebido: a trasladação da corte portuguesa para o Brasil, incluindo a Rainha Maria I, e o Príncipe Regente D. João, que tomara a rédeas do poder efectivo no mês de Abril de 1792, por ocasião do mais grave e definitivo ataque de loucura de Sua Majestade. Pela primeira e única vez na história a capital de um reino europeu estabelece-se no Novo Mundo. Mal aportou ao Rio de Janeiro, em Março de 1808, o Príncipe Regente tratou de organizar – na medida do possível – a capela real à imagem da organização e estrutura que detinha em Lisboa. O soberano era um devoto melómano que gostava de música sacra de cariz alegre, e passava longos períodos no templo “buscando lenitivo para os seus desgostos” (PEREIRA, 1946, p. 273). Atente-se a este excerto de uma carta do cónego presbítero da Capela Real do Rio de Janeiro, António Pedro Gonçalves: Aqui desde o fim de Setembro, pode se dizer que vivemos debaixo d’agua , tem sido bem poucos os dias que não tenha chovido, e mt.º e o pior hé que não obstante isto, o calor é excessivo. [...] Hé sempre incomodo a chuva, porêm aqui hé dobrado para quem hé empregado na Capella, pois como o tempo não dá logar a Sua Mag.e de passear; as tardes são passadas na Igreja, mudão-se as horas, procura-se a muzica mais comprida para entreter athé á noite em nenhuma das Oitavas sahimos sem ser de noite. Porêm graças a D.s tenho resestido, e passo sem maior novidade.1 (30 de Dezembro 1819, apud PEREIRA, 1946, p. 276) A relação profissional de Marcos Portugal com a família real portuguesa remonta a 1782, altura da primeira encomenda – uma Missa com instrumental cantada na Real Capela de Queluz por ocasião da Festa de Santa Bárbara – referenciada na Relação Autógrafa (RA),2 redigida pelo compositor em Junho de 1809 e acrescentada até 1816 (PORTUGAL, 1809-16). O príncipe João de 15 anos terá conhecido o jovem compositor Marcos António por esta altura. A relação pessoal e profissional entre ambos foi determinante para a carreira daquele que viria a ser o mais famoso compositor luso-brasileiro de todos 1 Grifo do presente autor. 2 O nome advém do facto de Manuel de Araújo Porto-alegre ser possuidor do original autógrafo em 1859, ano em que o transcreveu (com gralhas) e o publicou na Revista Trimensal do Instituto Historico Geographico e Etnographico do Brasil (Tomo XXII, p. 488-503). Cf. (MARQUES, 2012, p. 81-106). ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 83 os tempos, condicionando o seu percurso e inclusivamente o rumo que o estilo da sua música religiosa viria a tomar.3 Neste excerto de uma carta endereçada a D. Carlota Joaquina, é muito significativa a familiaridade com que D. João se refere à missa de Marcos e à sua inequívoca contribuição para a qualidade da festa: A festa esteve boa, cantou-se a missa de Marcos e agora mesmo que são 3 ½ da tarde que faço esta, se acabou o refeitório. [...] Mafra, 18 de Agosto de 1805.4 A “sua mania musical empolgava-o de tal maneira que deixava por momentos de ser o Rei generoso e bom para se transformar num feroz egoísta” (PEREIRA, 1946, p. 273), sendo possessivo e ciumento com relação à música composta para a ‘sua’ capela, e especialmente à música composta por Marcos: ElRey tem huma soffreguidade na musica que se canta na Capella, que athé a não quer emprestar nem p.ª se cantar aqui em algumas Festas que se fazem por fora, não indo Elle assistir. [...] No anno em q. morreo a Raynha e p. as Exequias da mesma Snr.ª compôz Marcos huma Missa de Defuntos, constou aqui não sei se com motivo ou sem elle, que se tinha cantado em Lx.ª. El-Rey soube-o foi pellos ares, e dizem-me que mandara Ordem ao Visconde de Santarem que indagasse se isto era verd.e e quem a tinha remetido d’aqui, protestando de mandar para Angola o q. a tivesse remetido: o mesmo sucede agora com outra do mesmo Marcos chamada da Conceição que aqui se disse ter-se cantado no Porto. Esteve aqui um Conego de Guimaraens meu hospede gostou mt.º de huma Ladainha que Marcos fez pª a Novena do Carmo alternada com o Povo pediu-me se eu lha alcançava, disse-lhe que a pedisse a El-Rey não duvidando que elle lhe desse licença pª a mandar copiar attendendo a ser huma cousa tão pequena; El-Rey remette-o pª Marcos, o qual não sabendo o q. fizesse, falou a S. Mag.e que lhe respondêo que o entretivesse, e q. a musica que elle mandava fazer pª a sua Capella era unicamente pª as suas Funçoens, e que sendo de outro modo, nenhuma differença haveria das suas ás dos outros. (António Pedro GONÇALVES, 30 de Dezembro 1819, apud Pereira, 1946, p. 277) Não é por isso de estranhar que o Príncipe Regente se tenha ocupado pessoalmente da ida de Marcos Portugal para o Rio de Janeiro, dando ordens para que se deslocasse àquela Corte com carácter de urgência.5 O compositor chegou ao Rio de Janeiro a 11 de Junho de 1811. Na sua comitiva, além da sua mulher Maria Joanna, viajavam mais 3 pessoas.6 É também quase certo que Marcos levou música de sua autoria copiada com o 3 É um dado significativo que, na RA, as obras religiosas referenciadas compostas por ordem de “S. A. R. o Príncipe R. N. S.” estão representadas em maioria, especialmente se for tomado em consideração que essas são, quase sem excepção, as de maiores dimensões, e as que empregam as forças vocais e instrumentais mais avultadas. (MARQUES, 2012, p. 86 ss.) 4 BR-PEm, Arquivo da Casa Imperial do Brasil, I-17-08-1805-JVI. P. c 1-3 5 “S. A. R. O Principe Regente Nosso Senhor Foi Servido Ordenar que o mestre do Seminario Marcos Portugal fosse para o Rio de Janeiro servir o Mesmo Senhor n' aquella Côrte ; e porque deve partir na primeira Embarcaçaõ da Coroa q sahir para a refferida Corte, faz-se necessario q Vm.e dê as providencias necessarias para elle ser pago dos Ordenados que se lhe devem, e de trez Mezes adiantados [...]”, [5º. Livro que serve de Registo de Cartas, pertencentes á Thezouraria do Particular], P-Lant, ACR, L.º 2979, f. 64r 6 Estas 3 pessoas deveriam incluir o seu criado e, possivelmente, os seus amigos e colaboradores: a cantora Mariana Scaramelli e o seu marido, o bailarino Luiz Lacombe [Luigi Lacomba], que viria a ser o mestre de dança de SS. AA. Imperiais, as filhas de D. Pedro I. O que é certo é que não incluía o seu irmão Simão Portugal, como está escrito em muitas biografias. Este, na companhia de sua mulher e dois filhos, viajaria na 84 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER objectivo expresso de integrar o repertório da Capela Real do Rio de Janeiro.7 A obra religiosa de Marcos Portugal: disseminação Foi recentemente publicada uma monografia cujo Capítulo 5 constitui um extenso catálogo temático da obra religiosa de Marcos Portugal (MARQUES, 2012, p. 309-688), que inclui todas as fontes que foi possível encontrar ao longo de uma pesquisa de quase 10 anos. O corpus gigantesco a que se reporta pode ser apreendido no quadro seguinte: Entradas Versões AUT8 01. Missas . 23 30 02. Vésperas/Salmos/Magnificat . 35 37 03. Matinas/Responsórios . 18 23 04. Cerimónia de Acção de Graças/Hinos . 11 16 05. Varia . 19 26 RE. Duvidosos, espúrios e contrafacta . 32 . Totais: 138 132 Versões9 Espécimes 67 255 65 164 48 128 41 143 37 55 35 43 293 788 A clara predominância de obras e espécimes luso-brasileiros é facilmente aparente se compararmos os números da primeira e última colunas do quadro anterior (com excepção dos duvidosos/espúrios/contrafacta) com os números correspondentes, quando são apenas contabilizados os espólios/acervos/colecções dos arquivos/bibliotecas de Portugal e Brasil (Portugal/Brasil (Mundo)): nau S. Sebastião que deverá ter saído de Lisboa em Maio de 1812. V. Id., ff. 64r, 64v, 75v, 76r, 77r, 77v, 78r. 7 O copista da Casa Real, Joaquim Casimiro da Silva, recebeu o seguinte aviso do Tesoureiro do Particular, João Diogo de Barros Leitão e Carvalhosa a 18 de Setembro de 1810: “Faz-se necessario que v.m.e se desocupe de qualquer obra do Theatro por ser m.to precizo que empregue todo o tempo na Copia da Muzica que devo mandar para o Serviço da Capella Real do Rio de Janeiro, devendo principiar pela Partitura, que Marcos lhe hade entregar, e logo que esteja finda esta copia v.m.e me avizará para lhe remeter outras : Recomendo-lhe a sua exacçaõ costumada e toda a possivel brevidade.” Id., f. 56 v. Algumas destas cópias ainda se encontram em BR-Rcm. 8 Versões da autoria de Marcos Portugal (MP). 9 A grande quantidade de versões atribuídas a outros autores é uma das mais surpreendentes características do corpus em análise. Se por um lado revela o carácter eminentemente funcional deste repertório, por outro consagra-o como paradigmático ao longo de pelos menos três gerações de compositores. Um estudo mais aprofundado do aproveitamento do modelo e das modificações ou desvios que foi inevitavelmente sofrendo ainda está para ser realizado. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 85 Entradas Espécimes 01. Missas . 23 (23) 233 (255) 02. Vésperas/Salmos/Magnificat .35 (35)164 (164) 03. Matinas/Responsórios .18 (18)127 (128) 04. Cerimónia de Acção de Graças/Hinos .10 (11)115 (143) 05. Varia . 17 (19) 53 (55) Totais: 103 (106) 692 (745) Pode concluir-se que foi sobretudo em Portugal e no Brasil que a música religiosa de Marcos Portugal circulou, e nestes dois países essa disseminação foi de uma grandeza e longevidade fora do comum,10 com ênfase para algumas obras.11 Para se obter uma melhor ideia deste fenómeno segue-se a lista de arquivos/bibliotecas/ colecções luso-brasileiros que possuem pelo menos um espécime de uma obra religiosa de Marcos Portugal: BR-Bue BR-CCec BR-Ie BR-Ma BR-Oi FCLange BR-Oi JLPompeu BR-Oi JNCarvalho BR-Pjar BR-Rcm BR-Rem BR-Rh BR-Rn BR-SJls BR-SJrb BR-SPeca BR-SPieb P-ANs P-AGNfa P-AL P-BRad Belo Horizonte – Universidade Estadual, Acervo do M.º Vespasiano Gregório dos Santos Cachoeira do Campo – Banda Euterpe Cachoeirense Itabira – Sociedade Musical Euterpe Itabirana Mariana – Museu da Música da Arquidiocese de Mariana Ouro Preto – Museu da Inconfidência (Colecção Francisco Curt Lange) Ouro Preto – Museu da Inconfidência (Colecção José Luiz Pompeu, Campanha) Ouro Preto – Museu da Inconfidência (Colecção Joaquim Nunes de Carvalho, Pitangui) Pindamonhangaba – Colecção João Antônio Romão Rio de Janeiro – Arquivo do Cabido Metropolitano Rio de Janeiro – Escola de Música da Universidade Federal, Biblioteca Alberto Nepomuceno Rio de Janeiro – Museu Histórico Nacional Rio de Janeiro – Biblioteca Nacional São João del-Rei – Arquivo da Orquestra Lira Sanjoanense São João del-Rei – Arquivo da Orquestra Ribeiro Bastos São Paulo – Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, Laboratório de Musicologia São Paulo – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo Angra do Heroísmo (Açores) – Arquivo da Sé Arganil – Arquivo da Filarmónica Arganilense Alcainça – Arquivo particular do Maestro Filipe de Sousa (posse da Fundação Jorge Álvares) Braga – Universidade do Minho, Arquivo Distrital 10 Especialmente se for tomado em consideração o facto de todos os espécimes luso-brasileiros serem manuscritos. Apenas em França e Inglaterra foi a obra religiosa de MP publicada, mas apenas parcelar e limitadamente. (MARQUES, 2012, p. 247-57) A delapidação deste património foi enorme, o que implica que os espécimes que sobreviveram representam apenas uma pequena parte de todo o corpus que alguma vez chegou a existir. 11 Como se verá mais adiante. 86 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER P-BRc Braga – Biblioteca Geral do Centro Regional de Braga da Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Teologia [no antigo Seminário Conciliar] P-BRs Braga – Arquivo da Sé P-Csm Coimbra – Seminário Maior da Sagrada Família P-Cug Coimbra – Biblioteca Geral da Universidade P-Cul Coimbra – Faculdade de Letras da Universidade P-CB Castelo Branco – Arquivo da Sé P-CE Cernache do Bonjardim – Arquivo do Seminário Liceal das Missões P-EVc Évora – Arquivo da Sé P-EVp Évora – Biblioteca Pública e Arquivo Distrital P-FAc Faro – Arquivo do Cabido da Sé P-FAs Faro – Arquivo do Seminário de S. José da Diocese do Algarve P-FUdr MN Funchal – Arquivo da Direcção Regional dos Assuntos Culturais (Espólio do P.e Manuel Nóbrega) P-FUds Funchal (Madeira) – Arquivo particular do Cónego António Damasceno de Sousa P-FUg HB Funchal (Madeira) – Gabinete Coordenador de Educação Artística (Espólio de João Hermógenes de Barros) P-FUs RD Funchal (Madeira) – Arquivo do Seminário Maior Nossa Senhora de Fátima (Espólio de Joaquim Roque Fernandes Dantas) P-FUzfg DD Funchal (Madeira) – Arquivo particular de Zélia Ferreira Gomes (Espólio de Domingos Fernandes Dantas) P-GR Graciosa (Açores) – Igreja Matriz de S. Mateus da Praia da Graciosa P-La Lisboa – Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda P-Lajm Lisboa – Arquivo particular de António Jorge Marques P-Lant CF Lisboa – Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Fundo Casa de Fronteira) P-Lap Lisboa – Arquivo particular P-Lbm RISS Lisboa – Basílica de Nossa Senhora dos Mártires (Arquivo histórico da Real Irmandade do Santíssimo Sacramento) P-Lbn Lisboa – Biblioteca do Seminário dos Missionários da Boa Nova P-Lcg AC Lisboa – Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música (Arquivo do Coro) P-Lcg AO Lisboa – Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música (Arquivo da Orquestra) P-Lf FISCLisboa – Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal (Fundo da Irmandade de Santa Cecília) P-Lf FSPLLisboa – Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal (Fundo da Sé Patriarcal de Lisboa) P-Lf FSPS Lisboa – Arquivo da Fábrica da Sé Patriarcal (Fundo do Seminário Patriarcal de Santarém) P-Lff Lisboa – Arquivo particular do Maestro Frederico de Freitas P-Lmcb Lisboa – Arquivo particular do Prof. Manuel Carlos de Brito P-Ln Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal P-Ln CJLM Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música (Colecção João Leal Macieira) P-Ln CVPF Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música (Colecção Valério Peres Franco) P-Ln EFSP Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música (Doação de Elisa Lamas - Espólio de Francisco A. N. dos Santos Pinto) P-Ln EMSR Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música (Espólio de Mário de Sampaio Ribeiro) P-Ln FCN Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música (Fundo do Conservatório Nacional) P-Ln FCR Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música (Fundo do Conde de Redondo) P-Ln FIPPC Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música (Fundo do Instituto Português do Património Cultural) P-Ln FPM Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música (Fundo Pavia de Magalhães) P-Ln FSPL Lisboa – Biblioteca Nacional de Portugal, Área de Música (Fundo do Seminário Patriarcal de Lisboa) P-Lp Lisboa – Arquivo do Coro Polyphonia Schola Cantorum P-Lr Lisboa – Arquivo da Radiodifusão Portuguesa P-Lsi Lisboa – Sindicato dos Músicos ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 87 P-Lsa P-Luc P-Mp P-Pcar P-Pic P-Psf P-PD FCSA P-Sp ECRP P-Vs P-VV P-VVcns Lisboa – Arquivo da Igreja Casa de S. António (à Sé) Lisboa – Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical Mafra – Biblioteca do Palácio Nacional Porto – Igreja do Carvalhido (Fundo do Grupo Sacro de S. Cecília) Porto – Arquivo particular do Maestro Manoel Ivo Cruz Porto – Arquivo da Ordem Terceira de São Francisco Ponta Delgada (Açores) – Biblioteca Pública e Arquivo Distrital (Fundo do Convento de S. André) Setúbal – Biblioteca Pública Municipal (Espólio de Celestino Rosado Pinto) Viseu – Arquivo da Sé Vila Viçosa – Biblioteca do Paço Ducal Vila Viçosa – Igreja de Nossa Senhora da Conceição (Régia Confraria de Nossa Senhora da Conceição) A contagem final por arquivo/biblioteca/colecção é a seguinte: PORTUGAL BRASIL Arq./bibli./colec. Obras Espécimes Arq./bibli./colec. Obras Espécimes 58 93 627 16 27 65 Obras religiosas de Marcos Portugal que se encontram em arquivos/bibliotecas/ colecções de ambos os países. Os arranjos para a Capela Real do Rio de Janeiro (vozes mistas e orquestra) a partir do repertório destinado à Basílica de Mafra (vozes masculinas e órgãos) O quadro seguinte lista as 17 obras de que, simultânea e actualmente, se podem encontrar vestígios em arquivos/bibliotecas/colecções de Portugal e Brasil:12 OBRAS 12 01.03 Missa Dó M 01.08 Missa Mi b M 01.09 Missa Mi b M 01.18 Missa Si b M 01.21 Missa Festiva Dó M 01.22 Missa Festiva Fá M 02.29 Miserere mei Deus Mi b M 02.31 Vésperas N. Senhora Dó M 02.35 Vésperas do Natal Dó M [03.05 Matinas da Conceição Dó M 03.07 Matinas da Epifania Dó M 03.13 Matinas de S. Sebastião Ré M 88 Número de espécimes PORTUGAL BRASIL 1 19 78 6 2 6 7 1 2 63 5 1 3 4 2 1 1 2 1 3 2 -] 1 3 12 Os números que antecedem o nome das obras referem-se às entradas do catálogo temático da obra religiosa de MP, quinto capítulo de MARQUES (2012, p. 309-688). PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER 03.16 Matinas do Natal Dó M 04.03 OS Mi b M, TD Si b M, TE Si b M 04.08 Te Deum Ré M 05.04 Domine, in virtute tua Si b M 05.07 Ladainha Sol m 05.09 Lauda sion Lá M TOTAIS 5 5 76 1 5 4 224 [287] 2 5 4 1 2 2 39 A priori existem alguns factos históricos que, sobremaneira, condicionam e informam os processos de disseminação e trânsito de espécimes musicais, seja no interior de cada um dos dois países, seja através do Oceano Atlântico: 1. A chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em Março de 1808 veio desenvolver, transformar e estimular as práticas musicais locais e, como já vimos, enriquecer o repertório da Capela Real, seja através de músicas (incluindo as de autoria de Marcos Portugal) que viajaram em sentido Oeste, seja através de um incremento de escrita dos compositores aí activos;13 o próprio sistema de produção musical e os seus agentes (músicos instrumentistas, cantores, compositores, professores de música, copistas), além de papel de música, instrumentos musicais e todos os seus acessórios, etc, sofreram um considerável incremento; 2. Em Abril de 1821, o Rei João VI e a sua corte fizeram a viagem no sentido inverso, e o monarca levou muitas músicas na bagagem que tinham pertencido ao repertório da Capela Real; entre estas contava-se uma quantidade considerável de músicas da autoria de Marcos Portugal, que hoje se encontram, na sua quase totalidade, na Biblioteca do Palácio da Ajuda.14 Paralelamente, dois dados que resultaram da pesquisa efectuada também são significativos e informam um possível processo de trânsito e utilização, apontando para uma explicação quanto à perda de um número considerável de autógrafos: 1. o facto de não ter subsistido qualquer autógrafo do extenso repertório destinado aos 6 (4/5) órgãos da Basílica de Mafra,15 e 2. o facto de Marcos Portugal ter realizado muitos arranjos destinados à Capela Real do Rio de Janeiro a partir dessas obras:16 um total de 13 (MARQUES, 2012, p. 278-80). De notar que estas novas versões são substancialmente diferentes dos originais, podendo em muitos casos considerar-se que são de facto obras novas, visto que apesar de manterem a mesma estrutura, apenas têm em comum algumas melodias (motivos) e encadeamentos harmónicos (Idem, p. 283-5). A menos que o compositor tivesse uma memória prodigiosa, os arranjos deverão ter sido realizados com consulta de uma cópia, ou mais provavelmente do próprio autógrafo. Marcos Portugal deve ter levado 13 O caso mais conhecido e estudado diz respeito à produção do Mestre da Capela Real (e Imperial) Padre José Maurício Nunes Garcia após a chegada da corte portuguesa. (MATTOS, 1997, p. 93-102, passim) 14 Assim se explica que relativamente às obras religiosas compostas de raiz no RJ (ou para a CapRRJ) ou às versões realizadas para a CapRRJ a partir de versões anteriores, existam na Biblioteca da Ajuda nada mais nada menos do que 13 autógrafos (de longe a maior concentração a nível mundial), a que se poderiam juntar mais três que pertencem ou pertenceram à colecção do maestro Filipe de Sousa (em P-AL [2] e P-Lsi [1]), e uma quarta na Biblioteca Nacional de Portugal. 15 Um total de 32 obras incluindo as duas versões das 03.11 Matinas de S. Francisco Fá M, e uma versão perdida do 02.26 Magnificat Fá M (MARQUES, 2012, p. 1017-9). 16 Para vozes mistas e orquestra ou para vozes mistas 2 vlc, 2 fag e órgão. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 89 os autógrafos para o Brasil visto que ainda se encontram muitas cópias no arquivo do Palácio Nacional de Mafra (e também na Biblioteca Nacional de Portugal e na biblioteca de Vila Viçosa); como D. João não deveria saber da sua existência no Rio de Janeiro,17 mantiveram-se na posse do compositor e da sua família (após a sua morte). Um anúncio encontrado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro publicado quatro anos e meio após a morte de Marcos, parece corroborar esta teoria: Se algum Sr. Professor, ou mesmo curioso quizer comprar 2 caixotes (não pequenos) de diversas composições de musica, partituras originaes, e do melhor gosto que neste genero tem apparecido, sendo o seu o seu [sic] autor o insigne e bem conhecido Marcos Antonio Portugal, cujas producções se deixarão patentear em alguns paizes Estrangeiros, de que lhe resultou o melhor conceito pelo bom acolhimento, e particular consideração a seu auto [sic], etc.; podem dirigir-se á rua da Conceição n. 12, 1º andar.18 A análise sucinta de cada uma das 17 obras listadas no quadro supra permitir-nos-á compreender o tipo de disseminação e trânsito através do Atlântico e, eventualmente, alguns dos fenómenos neles envolvidos: 1. 01.03 Missa Dó M: 2 versões (2V); espécimes (esp.) em Minas Gerais e no Porto (P-Psf: “[…] Offerecida / Ao Ill.mo Snr. Manoel Roiz. d’Azevedo / pelo seu particular amigo / O P.e Leonardo Pinto da Cunha / para ser cantada na Sua funçaõ dos Santos Martyres / de Marrocos, na Sua Igreja dos Religiosos Franciscanos / /Extintos / anno de 1853 […]”); o motivo inicial do Kyrie é semelhante ao correspondente da 01.21 Missa Festiva Dó M, e da Missa Breve Dó M (CPM 114) de José Maurício Nunes Garcia ( JMNG); foi a única obra composta no período imperial (1822-30) que chegou a Portugal, tendo sido muito provavelmente utilizada em contexto litúrgico; 2. 01.08 Missa Mi b M: 8V e 23 esp.; composta para a Real Capela de Queluz em 1788 ou 1789, veio a integrar o repertório da Capela Real da Rio de Janeiro (CapRRJ) na versão original (2 vlc., 2 fag. e org) e em nova versão para orquestra do autor; foi cantada em Minas Gerais; 3. 01.09 Missa Mi b M: 15V e 80 esp.; uma das mais paradigmáticas (senão a mais paradigmática) obras do século XIX luso-brasileiro conhecida pelo epíteto de Missa Grande; ter-se-á mantido no repertório das igrejas/capelas até inícios do séc. XX; provavelmente composta por encomenda real em 1782; o espólio de Salvador José de Almeida Faria (1799) incluía uma cópia; integrou o repertório da CapRRJ e foi cantada em Minas Gerais; o Domine Deus serviu de modelo à secção correspondente da Missa de N. S. da Conceição (CPM 106) de JMNG; (MARQUES, 2012, p. 689-700) 4. 01.18 Missa Si b M: 2V e 7 esp.; possivelmente composta por encomenda da Rainha Maria I para ser cantada em N. S. do Livramento (1791 ?); integrou o repertório da CapRRJ e provavelmente da Capela Imperial do Rio de Janeiro (CapIRJ); 5. 01.21 Missa Festiva Dó M: 2 espécimes em P-La e BR-Rcm; como foi estreada modernamente em Portugal a 10 de Outubro de 1988 nas IX Jornadas de Música Antiga da Fundação C. Gulbenkian (Sergio Vartolo dirigiu o Coro e a Orquestra da Capella Musicale di San Petronio) existe também um espécime em P-Lcg AC; estreada a 12 Fevereiro 1818 17 Se assim não fosse tê-los-ia trazido para Lisboa, à semelhança do que fez com os autógrafos musicais escritos para a Capela Real do Rio de Janeiro. 18 Annuncio datado de 26 de Agosto de 1834. O grifo é do presente autor. (MARQUES, 2012, p. 132-3) 90 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Em acção de Graças Pella feliz chegada de S.A.S. A Princeza Real. [a Arquiduquesa austríaca Leopoldina]; terá sido apenas cantada nas CapRRJ e CapIRJ; 6. 01.22 Missa Festiva Fá M: 3V e 8 esp.; a primeira obra de MP a ser cantada integralmente na CapRRJ e a primeira obra composta (em Lisboa) expressamente para ser cantada no RJ, “por ordem de S. A. R. o Príncipe Regente Nosso Senhor” de acordo com inscrição no aut.; provavelmente foi levada por um dos seguintes cantores mencionados no autógrafo: António Pedro Gonçalves, Giovanni Mazziotti ou Giuseppe Capranica; a estreia deu-se na festa de N. S. do Monte do Carmo a 16 de Julho de 1810; a “temática [do Gratias] é evocada em outras obras do Padre José Maurício”, tendo a primeira execução sido importante para introduzir o “estilo da Capela Real de Lisboa” no Rio de Janeiro (MATTOS, 1997, p. 86 e 239); atravessou o Atlântico para Leste: o último mestre de capela da Real Basílica de Mafra Frei João da Soledade, realizou uma versão para vozes masculinas e 4 org (só KGC); 7. 02.29 Miserere mei Deus Mi b M: 3V e 8 esp.; uma das numerosas obras compostas para as vozes masculinas dos monges arrábidos e para o conjunto de [4, 5 ou] 6 órgãos da Real Basílica de Mafra, e depois arranjadas (normalmente com alterações substanciais) para vozes mistas e orquestra para integrar o repertório da CapRRJ; foi cantado em Minas Gerais; 8. 02.31 Vésperas N. Senhora Dó M: 2V e 4 esp.; sem Magnificat; possivelmente compostas para a CapIRJ por ocasião da festa de N. S. da Conceição (8 de Dezembro 1824) e (possivelmente) re-utilizando dois salmos de 1816 (DD e LP); existe em P-La uma p.c. de B (só do DD) copiada por Joaquim Casimiro da Silva que deverá datar de c. 1822-36 e, por isso, não é improvável que este salmo tenha sido cantado numa das capelas reais em Portugal; seria assim uma das raras obras compostas no Brasil que integraram o repertório de (pelo menos) uma capela real em Portugal; foram cantadas em Minas Gerais; 9. 02.35 Vésperas do Natal Dó M: 2V incorporadas no próprio aut. (V1 para 2 vlc, 2 fag, cb, timp e org [24 Dezembro 1812], e a V2 para orquestra [1815]; os demais instrumentos foram acrescentados 3 anos depois); os 5 salmos (DD, CON, BV, LP, LD) e o MAG foram escritos originalmente para as vozes masculinas dos monges arrábidos e os 6 org da Real Basílica de Mafra; os salmos CON, BV e LD fizeram parte das 02.33 Vésperas de S. Francisco Dó M datadas de 1807; os salmos DD e LP, e o MAG foram obras autónomas aproveitadas posteriormente; o aut. está em P-AL mas a obra nas versões para vozes mistas nunca foi cantada em Portugal; foram cantadas em Minas Gerais; 10. 03.07 Matinas da Epifania Dó M: 3V e 6 esp.; mais uma obra composta para as vozes masculinas dos monges arrábidos e para o conjunto de [4, 5 ou] 6 órgãos da Real Basílica de Mafra (6 [5] Janeiro 1807), e depois arranjadas para vozes mistas e orquestra para integrar o repertório da CapRRJ (1812); a 17 de Agosto de 1893, o espécime em BR-Rem entrou no Instituto Nacional de Música vindo da Fazenda de Santa Cruz, o que indica que poderá sido cantada naquela residência real; 11. 03.13 Matinas de S. Sebastião Ré M: estreadas a 20 Janeiro 1814 na CapRRJ; embora o aut. esteja em P-La, nunca foram cantadas em Portugal; a 17 de Agosto de 1893, um dos espécimes em BR-Rem entrou no Instituto Nacional de Música vindo da Fazenda de Santa Cruz, o que indica que poderá sido cantada naquela residência real; 12. 03.16 Matinas do Natal Dó M: 2V e 7 esp.; estreada a 24 Dezembro 1811, foi provavelmente a segunda obra que MP compôs de raiz no RJ; apresenta relações temáticas e de instrumentação (sem vl) com a Missa Pastoril (CPM 108) de JMNG; a 17 de Agosto ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 91 de 1893, um dos espécimes em BR-Rem entrou no Instituto Nacional de Música vindo da Fazenda de Santa Cruz, o que indica que poderá sido cantada naquela residência real; os espécimes em Portugal indicam que a obra terá sido cantada neste país, provavelmente na capela do Conde de Redondo; juntamente com 05.07 Ladainha Sol m, distinguem-se por serem as duas únicas obras compostas de raiz para a CapRRJ que se implantaram no repertório religioso em Portugal; 13. 04.03 O salutaris Mi b M, Te Deum Si b M, Tantum ergo Si b M: 3V e 10 esp.; obra a 8 vozes encomendada pelo Cardeal Patriarca para ser estreada na Santa Igreja Patriarcal no dia de S. Silvestre (31 Dezembro 1800); o famoso castrado, Girolamo Crescentini, cantou o Dignare Domine e recebeu 100 moedas; MP levou o aut. para o RJ e, ao longo de cerca de 3 anos (1811-4) foi-o modificando e introduzindo alterações, com vista a adaptá-lo ao gosto vigente e aos intérpretes disponíveis (especialmente os cantores); o resultado é um aut. compósito guardado em P-La; terá sido uma das primeiras obras do compositor a ser apresentada na CapRRJ após a sua chegada, por ocasião da cerimónia da trasladação de várias imagens para a Igreja de Nossa Senhora da Candelária, a 19 de Setembro de 1811, e que contou com a presença do Príncipe Regente transportado pelo novo coche mandado vir de Lisboa; pelo menos o OS e o TE integraram o repertório da CapIRJ, e foram cantados em Minas Gerais; 14. 04.08 Te Deum Ré M: 22V e 104 esp. [!]; a mais internacional e uma das mais paradigmáticas obras religiosas de MP; composta para o baptizado do infante Miguel (14 Novembro 1802) que teve lugar no Palácio de Queluz; a V2 para vozes e órgão foi realizada pelo próprio autor, possivelmente a pedido do 14º Conde de Redondo; a sua longevidade rondará os 120 anos, e foi uma das raríssimas obras religiosas a ser editadas no séc. XIX (apenas parcialmente, por Vincent Novello em Inglaterra, e em França); o arranjo do Tu devicto para tenor com acompanhamento de vl, vla obrigada, fl, cl, tr, cor e cb, da autoria de JMNG para o casamento de D. Maria Teresa e D. Pedro Carlos, realizado a 13 de Maio de 1810, terá marcado a estreia da música de MP na CapRRJ; a versão original (uma das obras favoritas de D. João) foi cantada na CapRRJ e manteve-se no repertório da CapIRJ, onde veio a ser conhecido como Te Deum dos Baptisados; a V5 – uma orquestração realizada a partir da V2 – terá possivelmente sido concebida para o casamento do Monarca espanhol Fernando VII que, em 1816, desposou a infanta portuguesa, Maria Isabel, aluna de MP; ao contrário do que acontece com todas as outras obras religiosas de MP que foram cantadas em Minas Gerais, e que aí chegaram através de cópias que tiveram origem na CapIRJ, o espécime em Itabira (V15) teve origem na região de Tomar e foi enviado por correio em 1867-8 (data descoberta através da análise filatélica dos selos que ainda se conservam na última página da p.c. de B); a causa próxima da importação desta cópia estará relacionada com o Padre português (também compositor) activo em Itabira, José Benedicto Álvares; o maestro Vespasiano Gregório dos Santos (Belo Horizonte) também detinha um espécime da V15; (MARQUES, 2012, p. 701-16) 15. 05.04 Domine, in virtute tua Si b M: 2V e 2 esp.; motete (com versos extraídos dos salmos 20 e 60) inicialmente composto para a Real Basílica de Mafra por ocasião do aniversário de D. João a 13 de Maio de 1807, veio depois a ser cantado no aniversário onomástico do Monarca a 24 de Junho de 1813; ficou conhecido no Brasil como Hymno para o dia de S. João; uma das obras compostas para as vozes masculinas dos monges arrábidos e para o conjunto de [4, 5 ou] 6 órgãos da Real Basílica de Mafra, e depois arranjadas para vozes mistas e orquestra para integrar o repertório da CapRRJ; a versão 92 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER original perdeu-se, e apesar do aut. da versão brasileira estar em P-La, esta nunca foi cantada em Portugal; 16. 05.07 Ladainha Sol m: 6V e 7 esp.; ladainha que terá feito parte de uma Novena de N. S. do Monte do Carmo composta para a CapRRJ em 1811 (perdida); o provável único espécime (completo) desta novena foi queimado (juntamente com grande parte do arquivo musical da Sé do RJ) no átrio da catedral na segunda década do século XX; foi muito provavelmente cantada em Minas Gerais, como indica o espécime em BR-SPieb (BR-SJls) atribuído a um copista provavelmente activo na Capela Imperial; atravessou o Atlântico no sentido Leste e integrou o repertório das capelas e igrejas portuguesas; 17. 05.09 Lauda sion Lá M: 4V e 6 esp.; uma das obras compostas para as vozes masculinas dos monges arrábidos e para o conjunto de [4, 5 ou] 6 órgãos da Real Basílica de Mafra (1807), e depois arranjadas para vozes mistas e orquestra (ou 2 vlc, e fag e org) para integrar o repertório da CapRRJ (1813); uma versão portuguesa para vozes mistas e orquestra (possivelmente de Joaquim Casimiro da Silva) realizada a partir da versão original, terá sido cantada na Capela do Conde de Redondo a partir dos anos 20 do séc. XIX; de acordo com as datas encontradas no espécime em BR-Rcm (8/6/1882 e 1/6/1893), esta obra ainda seria cantada na Capela Imperial e na Sé do Rio de Janeiro nas duas últimas décadas do século XIX; distinguiu-se por ter tido duas versões para orquestra, cantadas simultaneamente em Portugal e no Brasil. A estas 17 obras deverá ser acrescentada pelo menos mais uma: as 03.05 Matinas da Conceição Dó M (14V e 63 esp.), que juntamente com a 01.09 Missa Mi b M e o 04.08 Te Deum Ré M, se constitui como uma das mais paradigmáticas obras religiosas de Marcos Portugal. Apesar de não ter sido encontrado nenhum espécime em arquivos brasileiros, as 3 entradas (uma para cada nocturno) datadas de 17 de Agosto de 1893, do 1º volume do Livro de Registo do Instituto Nacional de Música,19 comprovam que integrou o repertório da Capela Real e terá sido cantada na Fazenda de Santa Cruz. Obras religiosas de Marcos Portugal que transpuseram os umbrais das capelas reais/ imperial e passaram a pertencer ao repertório das igrejas/capelas de Portugal e/ou Brasil Das 17 obras (18 se considerarmos as 03.05 Matinas da Conceição Dó M) sucintamente analisadas, constata-se – pelo menos de acordo com as informações fornecidas pelas fontes que nos chegaram – que, no que ao tipo de disseminação institucional diz respeito existem três categorias de obras: 1. Aquelas que foram somente cantadas no Brasil (CapRRJ e/ou CapIRJ, ou num contexto de Corte, p.e. na Fazenda de Santa Cruz), mas das quais existem espécimes em arquivos portugueses (nomeadamente na Biblioteca da Ajuda) levados por João VI: 03.13 Matinas de S. Sebastião Ré M; 2. Aquelas que foram cantadas nas capelas reais em Portugal e no Brasil (CapRRJ e/ou CapIRJ), ou num contexto de Corte (p.e. na festa de Nossa Senhora do Livramento ou na Fazenda de Santa Cruz): 01.18 Missa Si b M, 01.21 Missa Festiva Dó M, 01.22 Missa Festiva Fá M, 03.07 Matinas da Epifania Dó M, 05.04 Domine, in virtute tua Si b M; 3. Aquelas que transpuseram os umbrais das capelas reais/imperial e passaram a pertencer ao repertório das igrejas/capelas de Portugal e/ou Brasil: 01.03 Missa Dó M, 01.08 19 BR-Rem, Reg.3984-2931, 3984A-2932, 3984B-2933: Matutini per la Festivitá dell’ Immaculata Concezzione della B.V.M. (3 nocturnos com data de 1802 provenientes da Fazenda de Santa Cruz). ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 93 Missa Mi b M, 01.09 Missa Mi b M, 02.29 Miserere mei Deus Mi b M, 02.31 Vésperas N. Senhora Dó M, 02.35 Vésperas do Natal Dó M, 03.05 Matinas da Conceição Dó M, 03.16 Matinas do Natal Dó M, 04.03 O salutaris Mi b M, Te Deum Si b M, Tantum ergo Si b M, 04.08 Te Deum Ré M, 05.07 Ladainha Sol m, 05.09 Lauda sion Lá M. Quais as características estilísticas responsáveis por (ou facilitadoras de) uma circulação exterior ao contexto cortesão? Um estudo aprofundado está por realizar mas, globalmente, as obras mais disseminadas e que se mantiveram no repertório das igrejas por mais tempo, têm em comum uma relativa acessibilidade técnica, em particular das secções solísticas, normalmente mais exigentes desse ponto de vista. Em vários aspectos, uma parte das versões posteriores tendeu a simplificar, resumir, reduzir e substituir, com o fim de possibilitar a sua integração no repertório de outras instituições com meios mais modestos. Previsivelmente, nenhuma das obras para “toda a orquestra e bastante número de vozes” escritas para realçar as capacidades técnicas e expressivas dos cantores solistas da Capela Real do Rio de Janeiro (em particular dos castrati), especialmente em ocasiões de elevado significado sócio-político, conheceu uma disseminação significativa. A maior parte destas obras, dificilmente adaptável a meios mais modestos ou a cantores de nível inferior, foi apenas cantada pelos intérpretes para quem foram compostos os solos ou por outros de capacidades técnicas comparáveis, e num contexto semelhante àquele para que tinha sido inicialmente concebida. (MARQUES, 2012, p. 297-300, passim). Considerações finais mas (certamente) não definitivas Esta análise foi realizada apenas contabilizando os espécimes sobreviventes mas, na realidade, as obras de Marcos Portugal existentes no Brasil até inícios do século XX eram em número muito maior. Esta asserção tem por base, não só a reconhecida e impressionante delapidação atribuída a causas naturais ou outras, mas ainda as informações contidas em três fontes secundárias, nomeadamente os três catálogos realizados pelos sucessivos arquivistas da Capela Imperial e da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro: Joaquim José Maciel (1888), Miguel Pedro Vasco (1902) e Antonio Romualdo da Silva (1922). O primeiro catálogo para as obras presentes no arquivo da Capela Imperial não atribuídas a José Maurício Nunes Garcia perdeu-se, mas Sacramento Blake, na entrada do Diccionario Bibliographico Brazileiro que dedica a Marcos Portugal, menciona sumariamente a lista de Maciel que continha um total de 56 obras: 10 missas, 6 hinos, 7 matinas, 30 salmos e 3 cânticos (BLAKE, 1883-1902, vol. VI, p. 220-1). No catálogo de 1902 este número desce para 44 (VASCO, 1902, p. 17-9), e no de 1922, depois da devastação do arquivo (MATTOS, 1970, p. 59 e 383), apenas restavam 13 obras20 (SILVA, 1922, p. 55-65). Este valioso património luso-brasileiro ainda está por avaliar, assim como a sua influência em compositores luso-brasileiros contemporâneos e posteriores, nomeadamente José Maurício Nunes Garcia. Outras linhas de investigação profícuas seriam: 1. Que tipo de técnicas e estratégias utilizou Marcos Portugal para adaptar as obras compostas para os órgãos da Basílica de Mafra à Capela Real do Rio de Janeiro? Quais foram as suas motivações, e como se articularam com os paradigmas estético-performativos e as novas funcionalidades das obras? 20 Na realidade são 11 obras apenas: o 04.03 O salutaris, Tantum ergo é contabilizado como duas obras (VASCO, 1902, p. 60), e as 02.31 Vésperas N. Senhora Dó M (VASCO, 1902, p. 58) também são contabilizadas como 2 obras por causa das duas versões com orquestra e órgão. A razão desta discrepância reside na precisão da comparação com o número de obras do catálogo de 1902. 94 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER 2. Que estratégias e recursos técnicos foi o compositor aperfeiçoando para desenvolver um estilo cada vez mais potenciador do grandiloquente espectáculo da Representação Simbólica do Poder Real, que terá culminado com as obras para “toda a orquestra e bastante número de vozes” compostas por alturas da chegada da Arquiduquesa Leopoldina ao Rio de Janeiro e da Aclamação de João VI?21 SIGLAS DE ARQUIVOS E BIBLIOTECAS, ABREVIATURAS Aut. autógrafo B baixo (vocal) BR-PEm Petrópolis – Museu Imperial BR-Rcm Rio de Janeiro – Arquivo do Cabido Metropolitano BR-Rem Rio de Janeiro – Escola de Música da Universidade Federal, Biblioteca Alberto Nepomuceno BV Beatus vir C Credo CapIRJ Capela Imperial do Rio de Janeiro CapRRJ Capela Real do Rio de Janeiro Cb contrabaixo Cl clarinete COM Confitebor tibi Domine (Salmo 110) Cor trompa CPM ### indica o número da catálogo temático das obras de JMNG organizado por Cleofe Person de Mattos DD Dixit Dominus Esp. espécime(s) Fag fagote Fl flauta G Gloria JMNG José Maurício Nunes Garcia K Kyrie LD Laudate Dominum LP Laudate pueri MAG Magnificat Ms. manuscrito Org órgão OS O salutaris Hostia P-AL Alcainça – Arquivo particular do Maestro Filipe de Sousa (posse da Fundação Jorge Álvares) 21 Nomeadamente a 01.21 Missa Festiva Dó M cantada na CapRRJ a 12 de Fevereiro de 1818 “ Com todo o instrumental, e / para se executar com bastante numero de vozes, […] / Em acção de Graças / Pella feliz chegada de S.A.S. / A Princeza Real”, e com a participação dos tenores António Pedro Gonçalves e Giovanni Mazziotti, do baixo João dos Reis, e dos castrados Antonio Cicconi, Giovanni Fasciotti e Pascoal Tani; e o 04.11 Te Deum Si b M, “Por ordem de S. M. F. / Te Deum Laudamus. / com toda a Orquestra / e com bastante numero / de vozes. / Pª. se cantar na Cappella Real / do Rio de Janeiro, / no dia 6 de Fevrº. anno de 1818 / Na ocasião da feliz aclamação / de S. M. F. / O Senhor D. João VI”, e com a participação dos mesmos cantores. (MARQUES, 2012, p. 414-6, 627-9, passim) ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 95 P-La P-Lant P-Lant ACR Real) P-Lcg AC (Arquivo do Coro) p.c. RJ TD TE Timp Tr V Vl Vla Vlc Lisboa – Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda Lisboa – Arquivo Nacional da Torre do Tombo Lisboa – Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Arquivo da Casa Lisboa – Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música parte cava Rio de Janeiro Te Deum Tantum ergo timbales trompete versão (versões) violino viola violoncelo Bibliografia e (algumas) fontes citadas BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro, 7 vols. Rio de Janeiro, Typographia Nacional/Imprensa Nacional, 1883-1902. 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Catalogo das Musicas da Capella Imperial actualmente Cathedral Metropolitana do Rio de Janeiro, ms., 1902, disponível em <http://acmerj.com.br/ CMRJ_CME_SD_Cx046_UD01.htm> 96 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER “Era uma vez um príncipe”: uma versão brasileira da ópera Il Guarany de Carlos Gomes Lúcia de Fátima Ramos Vasconcelos Universidade Estadual de Campinas Alberto José Vieira Pacheco Universidade Nova de Lisboa Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical – CESEM Adriana Giarola Kayama Universidade Estadual de Campinas A versão brasileira de O Guarani Em 1870, estreava no Teatro alla Scala, em Milão, a ópera Il Guarany com música de Antônio Carlos Gomes (1836-1896), e com um libreto em italiano por Antonio Scalvini (1835-1881), baseado no romance homônimo de José de Alencar (1829-1877). A ópera seria sempre lembrada como a primeira de compositor brasileiro a ser bem sucedida na Europa e esta primazia acabaria por fazer dela um troféu para o orgulho nacional brasileiro. Fato pouco conhecido, no entanto é que a peça conta com uma versão em português, intitulada O Guarani, ópera baile em quatro atos e publicada em 1938, pela Imprensa Nacional, no Rio de Janeiro.1 Na verdade, como nos informa seu editor, esta era a publicação de uma versão em vernáculo que teria sido feita anos antes: A 7 de junho de 1935, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, por iniciativa do Sr. Professor La-Fayette Côrtes, foi esta tradução apresentada ao público pelo Sr. Conde de Affonso Celso, Presidente da Academia Brasileira de Letras e cantada, em oratório, sob regência do Sr. Maestro Francisco Braga, com os seguintes interpretes: [...] Representada pela primeira vez nesta versão na noite de 20 de Maio de 1937, em recita de gala, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.2 (GOMES, 1938, s.n.) A tradução foi feita por Carlos Marinho de Paula Barros que tem o cuidado de informar: Para o poema deste libreto há uma explicação necessária: Extraído, diretamente, da partitura musical de “O Guarani” de A. Carlos Gomes, ele é a resultante da tradução que pôde ser adaptada aos diversos ritmos – correspondendo cada sílaba a uma nota – de acordo com o seguinte preestabelecido: 1 Exemplares podem ser consultados no Museu Carlos Gomes, em Campinas, ou na Biblioteca do Museu Imperial de Petrópolis, só para citar dois que já puderam ser por nós consultados. 2 A ortografia foi atualizada. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 99 1 – Manter o pensamento do poema italiano sobre o qual foi escrita a opera. 2 – Não alterar, de modo algum, os valores musicais – o que é usual nas traduções deste gênero. 3 – Que cantasse perfeitamente, sem desprimor para o vernáculo. 4 – Observar, e, em alguns pontos, restabelecer a verdade histórica dando a dramaticidade e a emoção necessárias. 5 – Criar um clima próprio e adequado que desse à opera mais popular do Brasil – a brasilidade que não pode ter em idioma estranho. 6 – Atender à tessitura das vozes, à respiração dos cantores, aos tempos de compasso – de modo a recair em cada tempo forte uma tónica prosódica, às pausas, à gravidade ou agudez das notas, às rimas, etc. Deste modo, obrigado a tal complexo, é evidente, nem sempre o poema satisfaz ao próprio tradutor que, o não considerando obra original, de mérito artístico – o tem, apenas, como anseio e colaboração para o canto em idioma pátrio e um modesto trabalho a serviço da glória de Carlos Gomes. O tradutor.3 (C. M. de Paula Barros in GOMES, 1936, s.n.) Se relembrarmos a já citada intenção do tradutor de criar “um clima próprio e adequado que desse à opera mais popular do Brasil – a brasilidade que não pode ter em idioma estranho”, podemos ver claramente que nas origens desta versão vernácula estão razões de foro puramente ideológico. Ou seja, a tradução é claramente uma tentativa de tornar a ópera mais “brasileira” ou, na verdade, mais próxima do que se considerava como tal naquele momento histórico. Mais brasileira ou não, o que realmente se consegue com a tradução é aproximá-la dos ideais nacionalistas próprios do século XX, que tiveram como grande defensor e mentor Mário de Andrade (1893-1945). Como é próprio de sua natureza social, estes ideais não são verdades absolutas e sofreram transformações no decorrer da história. Afinal, não podemos esquecer que antes do projeto nacionalista liderado por Andrade, artistas brasileiros oitocentistas, contaminados pelas ideias do romantismo europeu, já defendiam no Brasil a criação de uma “arte nacional”. Exemplo perfeito disto é a publicação em 1836 da Revista Nitheroy por Francisco de Salles Torres-Homem, Domingos José Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva e Manuel de Araújo Porto-Alegre. É certo que este nacionalismo tinha como foco principal a literatura, mas não só, afinal, o primeiro número da revista conta com um artigo de Porto-Alegre sobre música brasileira. Estas sementes do nacionalismo germinaram e o Brasil viu nascer em 1857 a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional,4 que tinha como um dos objetivos fazer produções musicais em língua portuguesa seja de peças inéditas ou de traduções de repertório estrangeiro. Foi esta mesma academia que pôs em cena a primeira ópera de Carlos Gomes, não por acaso composta com libreto em português. Vemos, portanto, que o início da carreira operática do compositor está profundamente relacionada com o nacionalismo musical do século XIX. Evitamos chamar este movimento de proto-nacionalismo, por considerarmos que esta denominação carrega em si a ideia positivista de que o nacionalismo do século XX é melhor ou mais legítimo. O que pode ser dito é que os nacionalistas oitocentistas não pretendiam uma ruptura estética com os moldes musicais europeus, e consideravam suficientemente nacional a música composta com texto em português. “Também era 3 A ortografia foi atualizada. 4 Esta instituição foi alvo de recente pesquisa de doutoramento por André Heller-Lopes (2011). 100 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER tida como nacional a música em língua estrangeira, mas com libreto cujo tema fosse nativista; ou mesmo qualquer produção musical que impressionasse a Europa e afirmasse a grandeza do Brasil” (PACHECO; KAYAMA, 2007, p. 28). Sendo assim, Il Guarany estava perfeitamente em acordo com estes ideais, já que possuía libreto nativista e tinha sido estreada num dos principais teatros de ópera da Europa. Por outro lado, após a semana de Arte Moderna de 1922, estabelece-se no Brasil um nacionalismo mais radical, com uma clara posição de resistência à hegemonia cultural europeia. Não há espaço aqui para descrever este movimento e suas consequências, basta ter em mente que, entre outras coisas, ele não considerava lícito que uma composição vocal fosse escrita em língua estrangeira. Sendo assim, a versão brasileira de Il Guarany pretende, além de homenagear o próprio compositor, atualizar esta obra, trazendo-a mais próxima do que se considerava como nacional na primeira metade do século XX. Não podemos esquecer que Carlos Gomes foi justamente um dos compositores mais criticados pelos nacionalistas do século XX, por considerarem sua música servil à música europeia. Logo, a tradução aqui em questão pode ser vista também como uma forma de reabilitar o compositor e sua obra: “um modesto trabalho a serviço da glória de Carlos Gomes” (C. M. de Paula Barros in GOMES, 1936, s.n.). A tradução, na verdade, revela uma tentativa de dissolução da tensão causada por um paradoxo: os nacionalistas buscam no seu patrimônio a própria legitimação e corporificação da nação, mas neste caso este próprio patrimônio se via demasiadamente “manchado” pela influência estrangeira. Assim, se era impossível ignorar o patrimônio nacional, tornava-se essencial e lícito saneá-lo, expurga-lo dos estrangeirismos. Estes esforços são partilhados pelo próprio governo brasileiro, afinal a edição em questão nos informa que a prefeitura de Belém do Pará adquiriu os direitos autorais desta versão em vernáculo e mandou ilustrar para comemorar o primeiro centenário de nascimento do compositor, como era de se esperar para um dos heróis da nação.5 Na verdade o impresso não deixa de informar que “NO GOVERNO DO PRESIDENTE GETULIO VARGAS foi mandada imprimir esta partitura pelo Exmo. Sr. Dr. Vicente Rão, Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores” (GOMES, s.n. 1938, grifo no original). O editor também tem o cuidado ressaltar que da “presente edição foram tirados três exemplares em grande formato e mais dez, do poema em separado, impressos em papel linho de Hollanda, todos numerados e rubricados pelo tradutor”. Ou seja, é uma edição “monumental” como também são, por exemplo, algumas edições italianas de luxo de obras de Rossini ou Verdi. Ou seja, é uma edição que além de interesses musicais práticos, buscam em grande medida a materialização ou corporificação do símbolo nacional que carregam estampado. Desta forma, vemos que músicos e governantes voltam seu interesse para o patrimônio musical brasileiro. Os primeiros, no esforço de valorizar a música brasileira, buscam adaptar uma obra fundamental do repertório para que ela estivesse em consonância com os ideais nacionalistas posteriores a 1922. Os segundos, dentro do processo de modernização e reinvenção do Brasil nos moldes republicanos, se apropriam de um produto do período monárquico, através de sua reabilitação e remodelação, para que servisse a seus próprios interesses. Ambos são unidos pela ideologia nacionalista que, de acordo com Benedict 5 Também razões motivações locais, afinal o impresso também lembra que Carlos Gomes foi “ex-diretor do Instituto de Música de Belém-Cidade que recebeu as últimas manifestações de seu Gênio e berço de Carlos Marinho de Paula Barros, autor da versão brasileira” (GOMES, s.n. 1938). ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 101 Anderson (2005), cria ou inventa as nações.6 Em suma, este O Guarani pode ser considerado um entre tantos esforços feitos para reinventar o Brasil e afirmá-lo, pois aquela nação imaginada nos moldes monárquicos já não servia aos interesses dos republicanos, nem fazia jus aos anseios modernistas dos artistas. Por outro lado, se hoje em dia esta versão não é vista com frequência nos palcos é menos por falta de qualidade da própria versão e mais pela perda de influência da ideologia política e da estética nacionalista modernista que lhe deram vida, somada a certa resistência do público moderno brasileiro em relação a traduções de obras musicais, e mesmo dos músicos tão influenciados hoje em dia pelo movimento de interpretação com “autenticidade histórica”. A ária “C’era una volta un príncipe” é escrita predominantemente em versos hexassilábicos7 com acentos principais nas quartas e sextas sílabas e versos octossilábicos8 com acentos nas quartas e oitavas sílabas. Em relação aos padrões de acentuação adotados pelo libretista, existem basicamente uma alternância entre sequências de três ou quarto pés iâmbos9 (-/ -/ -/)10 e a ocorrência da alternância um pé dátilo11 seguido de dois troqueus12 (/ - - /- /-), o que enriquece a rítmica do verso, conferindo-lhe uma musicalidade própria. Na tradução, o tradutor, ciente desses padrões, imprimiu a sua obra uma sonoridade rítmica bem semelhante ao poema original, utilizando-se basicamente da mesma paleta métrica, conforme exemplificado a seguir (Exemplo 1). Análise da versão brasileira da ária ‘C’era una volta un principe’: um estudo de caso Paul Valéry (1991) diz ser a poesia “o máximo de tensão entre o som e o sentido”, podemos então considerar que à voz é designado um papel de extrema relevância em casamento com o poema. Constituindo-se como som mais do que como letra, o poema transporta-nos a aguçar outros sentidos, especialmente a audição. Segundo Cerqueira (2006), a proximidade entre música e poesia, enquanto linguagens de fundamento sonoro e articulação temporal fornece níveis de equivalência das dimensões verbais do texto poético (prosódia, morfossintaxe, semântica) com os parâmetros acústicos de altura, duração, intensidade e timbre, formadores dos aspectos horizontais e verticais da textura musical; o que leva a correspondências diretas e indiretas entre características estruturais poéticas e musicais (rítmicas, melódico-harmônicas, dinâmicas e timbrísticas). Esta identificação elementar do perfil formal fornece o fundamento de uma síntese que se pode definir como a ‘música básica’ do texto, um ponto de partida objetivo e direto para a composição musical. O som e sua tensão com o sentido fazem do texto poético um texto, em alguma medida, intraduzível. Emil Staiger (1972) defende a ideia que “a poesia é singular e irreproduzível”. “Intraduzível”, entretanto, não é uma condenação. Intraduzível é inseparável. Podemos, então, pensar que quando um tradutor escreve uma boa tradução, não é porque ele recuperou algo de um poema, mas sim porque ele, a partir de um contato com aquele, escreveu outro texto também singular. Segundo Haroldo de Campos (1992), Para que a tradução criativa se desenvolva, faz-se necessária uma leitura atenta e crítica do texto original, cuja beleza se revela suscetível de uma “vivissecção” implacável, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo lingüístico diverso. (CAMPOS, 1992, p. 243) Nesse sentido, Haroldo de Campos se debruça sobre a atividade criativa e retira a figura do tradutor da função de transportador de conteúdo de uma língua para outra, oferece-lhe o estatuto de coautor do texto estrangeiro. Etimologicamente, traduzir (do latim, trans + ducere) significa levar através de. O que se leva? De onde? Para onde? Mediante o que? Mário Laranjeira (2003) diz que as respostas a essas perguntas são o que expande o lugar da tradução, levando-a para além do linguístico, situando-a em qualquer área da comunicação cultural em geral, e das artes em particular. 6 Neste texto, emprestamos deste autor o conceito de nação como uma comunidade política imaginada por um grupo como sendo soberana e geograficamente limitada. Ou seja, a nação não é uma realidade física imemorial, mas sim uma criação humana e, como tal, sujeita às transformações da sociedade que a instaura. 102 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Exemplo 1 – Tabela com escansão métrica da versão brasileira e italiana 7 Versos com 6 sílabas. 8 Versos com 8 sílabas. 9 Jambo ou Iâmbo: pé formado por uma sílaba átona e uma tônica 10 Serão utilizados os símbolos “-” e “/” para indicar sílabas átona e tônica, respectivamente. 11 Dátilo: pé formado por uma sílaba tônica e duas átonas 12 Troqueu ou Coreu: pé formado por uma sílaba longa (tônica) e uma breve (átona). ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 103 Se por um lado o tradutor, de uma forma geral, procurou manter os padrões métricos durante o processo tradutório, algumas alterações foram feitas, e essas soluções ou particularidades do seu processo criativo serão objeto de nossa análise, assim como as consequências destas para a interpretação da versão brasileira. Em relação às particularidades rítmicas da poesia, destaca-se o padrão formado pela sequência de um pé dátilo e dois troqueus (/- - /- /-), que coincide com o motivo rítmico recorrente. Esse padrão tem, também, forte influência na caracterização da obra. Abaixo (Exemplo 2), observa-se o comportamento deste padrão métrico poético e musical. Ainda em nível suprassegmental, destacam-se o tratamento dado aos acentos rítmicos que, segundo Carvalho (1987), são os acentos internos que, colocados em determinados lugares ou sílabas, marcam a fisionomia musical dos diferentes tipos métricos. Segundo o autor, além dos acentos rítmicos principais, existem os secundários, que realçam e imprimem movimento ao verso. Os acentos primários, marcamos com o sinal ‘>’ maior e destacado em negrito (Exemplo 5). Exemplo 2 – Aria: Era uma vez um principe/ C’era una volta un principe c. 77 e 78 Na primeira estrofe, uma alteração métrica importante é observada no segundo verso, o primeiro tempo da poesia é escrito em pé anfíbraco (-/-). A opção por esse padrão que se repete nos versos seguintes da estrofe, promovendo uma sonoridade rítmica muito particular ao texto em português (Exemplo 3).13 Exemplo 5 – Tabela de padrões de acentuação suprassegmental Como se observa pela tabela acima, esses padrões estruturais de acentuação se mantiveram os mesmos nas duas versões, com a exceção do terceiro verso que, na versão brasileira, desloca a acentuação principal para o primeiro e último tempo forte. Musicalmente há um desvio do apoio na cabeça do compasso, no caso do português, em particular, no 3º verso, há de se tomar ainda mais cuidado na articulação das palavras “de todos”, para se evitar a compreensão “ditoso” por parte do ouvinte (Exemplo 6). Exemplo 3 – Era uma vez um principe/C’era una volta un principe: c. 79 Através do exemplo abaixo se percebe, entretanto, que embora se tenha optado por alterações em nível segmental14 (sílabas/pés), os padrões de acentuação prosódicos (em nível suprassegmental) mantêm-se os mesmos nas duas versões (Exemplo 4). Exemplo 6 – ‘Era uma vez um principe’ compassos 81 e 82: deslocamento da acentuação Na segunda estrofe, o tradutor, de uma forma geral, mantém o padrão métrico da poesia italiana. No primeiro verso, entretanto, percebe-se a inclusão de um acento a mais em nível suprassegmental (Exemplo 7). Exemplo 7 – Tabela de acentuação suprassegmental Exemplo 4 – Era uma vez um principe/ C’era una volta un principe: c. 77, 78 e 79 13 Jambo ou Iambo: pé formado por uma sílaba átona e uma tônica 14 Os fonemas individuais (no português /e/, /k/, /m/, etc...) são estudados pela fonologia segmental. Existe ainda a fonologia suprassegmental. Os suprassegmentos são elementos também relevantes para a compreensão dos significados, mas que estão, por assim dizer, acima dos segmentos, como unidades maiores que englobam mais de um segmento, dando-lhe ritmo, entonação, tonicidade. 104 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Musicalmente, em decorrência da inclusão desse novo acento, também se observa um deslocamento rítmico na estrutura do compasso. Este fato resultou não apenas em acentos rítmicos em tempos fracos do compasso mas também sílabas átonas em tempos fortes, conforme a seguir (Exemplo 8). ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 105 intérprete, tanto na versão brasileira quanto na italiana, precisa ter muita atenção para não acentuar a cabeça do quarto tempo do compasso (Exemplo 12). Exemplo 8 – Alterações métricas em nível segmental Vale salientar que esse deslocamento rítmico, que denominamos de desvios prosódicos,15 é um fenômeno recorrente na música brasileira, em especial na modinha. Nos versos seguintes da segunda estrofe, percebemos outra alteração significativa entre a métrica italiana e brasileira. O tradutor, ao escrever métrica diferente à do italiano, recorreu à sequência característica da obra de um pé dátilo e dois troqueus (/ - - /- /-), seguindo o padrão motívico rítmico que observamos anteriormente. Neste caso, a métrica brasileira é mais condizente prosodicamente com o motivo rítmico musical do que a italiana, conforme demonstrado a seguir (Exemplos 9 e 10). Exemplo 12 – Deslocamento métrico do texto em relação à música Na pauta seguinte, essa alteração faz com que o fraseado da linha vocal seja modificado, conforme indicado abaixo (Exemplo 13). É importante esse caso porque não é só uma questão de deslocamento de acento musical, mas sim uma reelaboração da condução melódica. Exemplo 9 – Tabela com escansão métrica segunda estrofe Exemplo 13 – Deslocamento do texto em relação à música Exemplo 10 – Alterações métricas em nível segmental Uma última observação nessa ária seria a ocorrência da frase “Ele teve de amar” versus “Egli dovette amar”. Essa frase se repete várias vezes durante a música com prosódia distinta. A frase em nível segmental se comportaria da seguinte forma (Exemplo 11): Exemplo 11 – Tabela com escansão métrica O exemplo abaixo demonstra o deslocamento do texto em relação à música. Percebemos contudo, que essa alteração ocorre em ambas as versões. No entanto, no caso do português, a subdivisão da segunda metade do compasso passa a ser binária em vez de ternária. O 15 Utilizamos os termos “desvio” exclusivamente para denotar “deslocamento”, sem qualquer intenção de se estabelecer um “juízo de valor”. 106 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Verificamos que o esquema rítmico das poesias italiana e brasileira são distintas entre si. Não obstante à tradução de Carlos Marinho de Paula Barros, na qual se verifica o uso variado de metros, além de um esquema rítmico difuso, e com poucas rimas externas, é preciso notar que essas opções não teriam ocorrido por descuido formal do libretista e tradutor brasileiro, que também soube lançar mão de recursos que realizassem com eficácia as intenções expressivas nos versos de sua autoria. Percebemos a ruptura com o esquema rítmico original, porém não se perdem de vista as assonâncias, aliterações e outras notáveis soluções rítmicas. Outra solução adotada pelo tradutor foi manter o mesmo esboço fonêmico, mantendo as mesmas vogais em notas de maior importância ou de clímax das frases, particularmente, em notas mais agudas. Considerações finais Ao analisar a versão brasileira da ária C’era una volta un principe da ópera Il Guarany de Carlos Gomes, encontramos diversas soluções importantes adotadas pelo tradutor Carlos Marinho de Paula Barros. Partindo-se do contexto histórico, entendemos a natureza da relação texto-música da obra. Verificamos que os pés variados e sem regularidades aparentes produzem uma sonoridade distinta que a do poema original. Apesar de adotar essas alterações em nível segmental, o tradutor procurou manter os padrões de acentuação prosódicos (em nível suprassegmental). Tal complexidade repete-se na exploração engenhosa de um padrão metro específico, a sequência de um pé dátilo com dois troqueus, (/ - - / - / -), que substancialmente influencia a caracterização da obra. Pode-se concluir ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 107 que isto se configura como estratégia tradutória concebida para responder ao esquema rítmico-métrico do poema original. Em relação às rimas, se por um lado o poeta rompeu com o esquema rítmico original, não perdeu de vista as assonâncias, aliterações e outras notáveis soluções rítmicas, conferindo aos pontos importantes do poema/música a mesma paleta fonêmica. Investigou-se também, segundo a ótica do intérprete, algumas possíveis sugestões de tratamento ao texto brasileiro. Propondo-se uma análise poética e musical desta singular edição, o presente trabalho visa explicar sua gênese, fomentar sua prática e ressaltar a importância dessa versão brasileira como resultante de esforços republicanos e modernistas de valorização da herança musical nacional, o que fez dela própria importante peça do patrimônio operístico brasileiro. Referências ANDERSON, Benedict. 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Acreditava que a educação musical poderia ser uma importante ferramenta para a consolidação do regime republicano e para o progresso do Brasil. Em 1892, na Gazeta Musical, descreve o seu projeto de canto orfeônico para as escolas primárias. Foi completamente esquecido após a sua morte em 1896, mas seu projeto orfeônico foi adotado nas escolas quase meio século depois, durante o governo do Presidente Getúlio Vargas, quando Heitor Villa-Lobos passou para a história como mentor e coordenador do mesmo. As pesquisas que realizei em colaboração com minha orientadora de mestrado, a musicóloga Maria Alice Volpe, acabaram por revelar o nome de um crítico musical, cuja atividade foi relevante no início da era republicana brasileira. Eduardo de Borja Reis, ou B. R. – como assinava os seus artigos publicados entre 1891 e 1893 no periódico fluminense Gazeta Musical (1891-1893) – uniu o jornalismo, as artes e a política, contribuindo, sobremodo, para a institucionalização da música no Brasil. Suas atividades relacionadas às artes não podem ser desvinculadas de suas atividades políticas. B. R. estava a serviço da Pátria e de seu desenvolvimento que, ele acreditava, só poderia acontecer em um regime republicano que valorizasse as artes – sobretudo a música – como principal ferramenta ideológica e de educação do povo brasileiro. Por isso, B. R. empenhou-se em apresentar um projeto de educação musical através do canto orfeônico, tendo como modelo o projeto orfeônico francês. Em seus artigos publicados na Gazeta Musical, B. R. deixa claro que o canto orfeônico, além de propiciar educação musical ao povo, serviria como o mais poderoso instrumento de propaganda dos ideais republicanos daquele período, de diálogo entre as diversas classes sociais e de união entre as diversas regiões do País, contribuindo de forma decisiva para a ordem e o progresso da civilização brasileira. No decorrer deste artigo veremos, com mais detalhes, como B. R. pensou em alcançar tais objetivos por meio do canto orfeônico. Os dados biográficos de B. R. são ainda poucos e imprecisos. O primeiro passo para descobrir a sua identidade – uma vez que ele assinava apenas B. R. – foram os textos ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 113 da própria Gazeta Musical. Como ponto de partida apoiei-me no fato de seus discursos terem um caráter marcantemente positivista comtiano. José Murilo de Carvalho ([1990] 2009) e vários folhetos da Igreja Positivista do Brasil esclarecem que os positivistas não escondiam a própria identidade sob pseudônimos. Portanto, “B. e R”. provavelmente seriam as iniciais verdadeiras do nome do autor. Passei então a procurar algum artigo na Gazeta Musical onde B. R. revelasse a sua identidade. Em um de seus artigos (Gazeta Musical, 1892, nº 14) B. R. cita o compositor Alexandre Levy como exemplo a ser seguido pelos compositores brasileiros. Esse fato levou-me a ler atentamente o número especial desse periódico dedicado a Levy, por ocasião de sua morte prematura. (Gazeta Musical, 1892, nº 4, p. 49-64) No final desse número, várias personalidades da época escreveram pequenas notas em homenagem a Levy. Leopoldo Miguez assina a primeira delas, seguido de A. Fertin de Vasconcellos (proprietário da Gazeta Musical), Carlos Gomes, Arthur Napoleão, J. Cortes, I. Porto-Alegre, Miguel Cardoso, V. Cernicchiaro e E. Pinzarrone. A última nota é a mais extensa, apresenta o título “Á memoria de um amigo” e está assinada por Eduardo de Borja Reis. Esta foi a primeira vez que este nome apareceu na Gazeta Musical. (1892, nº 4, p. 64) A partir daí suspeitei que Borja Reis fosse B. R., suspeitas que se comprovaram ao descobrir que o coronel Eduardo de Borja Reis foi o primeiro secretário do Instituto Nacional de Música e homem de intensa participação política em sua época. (VELHO SOBRINHO, 1940, p. 420) Essa hipótese confirmou-se ao encontrar, na própria Gazeta Musical, mais uma referência ao seu nome e a confirmação do cargo que ocupou no Instituto Nacional: De todo o pessoal administrativo recebi as mais extremadas provas de dedicação e amizade [...] devendo notar-vos muito especialmente o interesse extraordinario que pelo desenvolvimento e progresso deste Instituto sempre demonstrou o incansavel secretario, o Sr. Eduardo de Borja Reis. (Relatório de Miguéz dirigido ao “Ministro”, Gazeta Musical, 1892, nº 19, p. 293) Eduardo de Borja Reis nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 11 de julho de 1859 e faleceu em 30 de abril de 1896. (VELHO SOBRINHO, 1940, v. II, p. 420) As duas fontes nas quais pude, até agora, encontrar informações sobre B. R. – além da Gazeta Musical – foram o Dicionário Bio-Bibliográfico Brasileiro, de Velho Sobrinho (1940) e o Jornal O Paiz, de 1º de maio de 1896, noticiando o seu falecimento. Segundo Velho Sobrinho (1940, p. 420), Eduardo de Borja Reis era filho de Joaquim Antonio dos Reis e de dona Maria Emília de Borja Reis. Cedo teve de abandonar os estudos de Humanidades, ao qual se dedicava, para atender às exigências de seu pai, ferragista, que desejava que o filho se dedicasse à carreira comercial, trabalhando ao seu lado no mesmo ramo de negócio. Essa circunstância levou B. R. a abandonar o lar, ainda menor de idade, ingressando no teatro como auxiliar de ponto e escrevendo, com facilidade, pequenos trabalhos para companhias de revistas e comédias. Colaborou em publicações literárias, compondo versos e por ter temperamento boêmio, só afastou-se do meio teatral quando constituiu família. Foi então aproveitado, por indicação de José Rodrigues Barbosa, na época secretário do Ministro da Fazenda Aristides Lobo, como Primeiro Secretário do Instituto Nacional de Música. (VELHO SOBRINHO, 1940, p. 420) Essa instituição que substituiu o antigo Conservatório de Música da época do Império, foi o órgão de ensino oficial de música do governo republicano da Capital Federal, situada 114 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER àquela época, na cidade do Rio de Janeiro. Posteriormente, o Instituto Nacional de Música foi incorporado à Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ) e é hoje a Escola de Música dessa universidade. Conforme demonstro em minha dissertação de Mestrado (BOMFIM ANDRADE, 2012), o Instituto Nacional de Música e a Gazeta Musical possuíam fortes vínculos e B. R. aproveitou o periódico como um canal de propaganda e divulgação dos projetos que deveriam ser realizados por esse Instituto. O Jornal O Paiz (1º de maio de 1896) afirma que Eduardo de Borja Reis nasceu no Rio de Janeiro, mas foi educado em Portugal, onde desde moço trabalhou na imprensa, atuando no Século como redator, ao lado de Magalhães Lima. No Rio de Janeiro, escreveu para o Novidades, Gazeta Musical, O Figaro e O Tempo. O que sabemos ao certo sobre B. R. é que ele foi Primeiro Secretário do Instituto Nacional de Música até meados de 1893, quando lhe designaram para dirigir a Secretaria do Conselho Municipal. (O PAIZ, 1896; VELHO SOBRINHO, 1940) Fez campanha ao lado de Floriano Peixoto (então presidente da República do Brasil) e comandou, no posto de coronel, o 14º Batalhão de Infantaria da Guarda Nacional aquartelado em Campo Grande. Seu envolvimento com políticos republicanos de sua época foi grande, trabalhando ao lado de Tomás Delfino, Oscar Godói, Augusto de Vasconcelos e Alfredo Barcelos. Colaborou ainda com os trabalhos de Augusto Severo, seu grande amigo, na construção de um aeróstato no Realengo (VELHO SOBRINHO, 1940). Quando morreu, aos 36 anos de idade, B. R. deixou a esposa (Carolina de Borja Reis) e cinco filhos menores na maior pobreza, o que levou o diretor central do Partido Republicano a mobilizar seus amigos e correligionários, a fim de comprar uma casa para patrimônio dos filhos de B. R. (O PAIZ, 1896). Na Gazeta Musical, B. R. é um dos autores mais importantes e porta-voz de convicções nacionalistas, morais e cívicas, sempre preocupado com a educação musical do povo brasileiro através do ensino do canto orfeônico nas escolas primárias. Será o grande ideólogo desse periódico, republicano convicto e familiarizado com os ideais do positivismo comtiano. B. R. emprega expressões e conceitos associados ao positivismo de Comte, tais como: “marcha da humanidade”, “grau de civilidade”, “progresso”, entre outros. Além disso, demonstra uma moral rígida e preocupação com a educação do “gosto musical do povo”, o que para ele significava uma educação cívico/patriótica através da música, o que também o aproxima dos ideais positivistas de sua época. O canto orfeônico nas escolas primárias teria como função religar o “povo” às suas raízes culturais, onde as melodias e ritmos do folclore nacional, ouvidos desde a mais tenra infância, despertariam um amor incondicional à Pátria. Os elementos folclóricos deveriam ser utilizados com “bom gosto” e as melodias “modernamente” harmonizadas, para que, além do amor à Pátria, se desenvolvesse nas crianças um gosto musical refinado. B. R. acreditava até mesmo que essa prática orfeônica acabaria ajudando na formação do que ele chamava de “autêntica” música nacional: a música erudita brasileira nasceria da fusão entre o folclore, a música popular urbana e o refinamento técnico da linguagem musical – também chamada por ele de ciência musical – vindo da Europa. Dessa forma, com o passar do tempo, a nossa música estaria pronta para representar o grau de evolução do País, refletindo o progresso rumo a um estágio superior de civilização, que elevaria o Brasil ao mesmo nível civilizatório das grandes nações europeias. Chamam a atenção o seu forte moralismo e campanha, dentro da Gazeta Musical, ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 115 contra as mágicas, teatros de revistas e operetas quando, opostamente, em sua juventude, ele tivera uma vida boêmia, sendo auxiliar de ponto e escrevendo textos para teatro. Por outro lado, B. R. elogia a autenticidade das manifestações musicais urbanas das camadas mais baixas da população, como as modinhas, os lundus e as serestas, em um aparente esforço de diálogo entre a música “refinada” e a música “autêntica do povo”. Defende compositores como Antonio Callado e os instrumentos da boemia, como a flauta e o violão, lamentando que a prática da seresta houvesse sido proibida pela polícia. (Gazeta Musical, 1892, nº 14) Em 1891 a colaboração de B. R. na Gazeta Musical aparece pela primeira vez em um artigo chamado “Contestação”, no qual B. R. faz a réplica a uma crítica de 20 de agosto publicada no Jornal do Brasil. Em seu artigo, B. R. expõe as suas ideias estéticas e de educação musical, em sintonia com as ideias que norteavam o Instituto Nacional de Música: É o caso de perguntar-se ao articulista [do Jornal do Brasil]: Que ideia faz ele da educação de um povo? Que conceito forma a respeito da influencia das bellas artes e principalmente da musica, sobre os destinos da sociedade? Negará por ventura o influxo de uma nova escola musical sobre a evolução do meio, em que ela se desenvolve? Poderá dizer, em consciencia, que o gosto do publico não se educa, se não aperfeiçoa, mediante esses elementos de progresso que as bellas artes, em geral, lhe vão fornecendo, dilatando-lhe a esfera dos conhecimentos, conduzindo-o a horizontes novos, obrigando-o a assistir ás metamorfoses, que a propria lei da evolução social impõe ao espirito humano em todos os ramos de conhecimentos? (Gazeta Musical, 1891, nº 3, p. 4) Em sua coluna intitulada “A Música no Brasil”, B. R. apresenta os tópicos sobre os quais escreverá: “características da música brasileira”, “tendências para a nacionalização da nossa música”,” indiferença monárquica pelas belas artes e auxílio prestado a elas pelo governo da República”. B. R. preocupa-se em investigar o descaso pelas belas artes dos governos anteriores ao republicano, atribuindo-o à colonização portuguesa. Para ele, Portugal estava demasiadamente interessado em atividades mercantis e de exploração da terra para poder seguir o exemplo de nações como a Itália e a França, que trilhavam o caminho das artes. Entretanto, afirma que o brasileiro era artista nato pelas influências do clima, da natureza, do cruzamento das raças e por uma propensão natural à poesia, que “operaram este reviramento e trouxeram-nos este temperamento especial e indígena muito propenso à Arte.” (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 6) A música europeia, importada para cá “desencontradamente”, sem escolas, teria se unido às toadas africanas e aos cantos primitivos da música indígena para formar, segundo B. R., “uma feição característica do nosso povo, feição que há de se acentuar mais e mais e que fará – quem sabe – uma escola, talvez, com um cunho muito particular de originalidade e de brasileirismo” (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 6-7). B. R. era, como grande parte dos intelectuais brasileiros de sua época, adepto das teorias de Taine e do Mesologismo1. B. R. admite que a música brasileira estava ainda caminhando para encontrar sua linguagem própria, segundo ele, devido ao completo descaso de nossos governos monárquicos. A música que B. R. vislumbrava para a nova era que se iniciava com a República deveria 1 Sobre a influência das teorias deterministas na historiografia musical brasileira, ver VOLPE (2001), capítulo 1 “National Identity in Brazilian music historiography”, parcialmente traduzido in VOLPE (2008) no que tange o determinismo geográfico. 116 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ser uma música “original” e de “cunho brasileiro”. Ajudar neste processo era a grande tarefa da elite musical republicana da qual B. R. fazia parte. Para que isso ocorresse, era importante não apenas a mistura da música europeia, africana e indígena, como também o estudo dos grandes mestres europeus: “depois que tivermos [...] imitado todos os mestres, italianos ou alemães, latinos ou saxões, havemos de emancipar-nos deste cativeiro e criaremos, talvez, um estilo todo nosso, uma música perfeitamente acentuada, que não se confundirá com a dos outros povos” (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 7). B. R. deixa transparecer a sua visão de qual seria a tendência mais marcante de brasileirismo na música: Mas, observando um pouco, nós vemos que a melodia italiana e a canção popular do norte da Europa, com todo o seu cunho de tristeza são as que mais se coadunam com o temperamento da massa geral do nosso povo. Em que pese aos apologistas da inovação, aos anti-melodicos, a nossa tendencia é pela musica sentida, plangente, parecida com a que nos embalou no berço. É uma questão de estetica do povo, que não pode modificar de forma alguma a sua maneira de sentir, a sua forma de ver o bello. (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 7) No entanto, B. R. declara que não devemos ficar presos à imitação da melodia lírica italiana, que é uma escola que não se inova. E repete que é da fusão e dos estudos das diversas escolas e mestres “que há de vir a ciência musical para unir-se à tristeza do nosso sentimentalismo artístico e fazer a nossa característica musical”. (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 7) Deve haver a união entre a técnica musical refinada europeia ou “ciência musical”, com as melodias e ritmos das canções folclóricas dos Estados brasileiros, que guardam em sua essência o espírito nacional do Brasil (Gazeta Musical, 1891, nº 9, p. 1). B. R. afirma que o estilo da música brasileira do futuro, de nossa individualidade artística será constituído pelas audácias de nossos artistas ligadas à tristeza natural de nossa melodia e à indolência originada pelo nosso clima. (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 8) Alega que ele não poderia prever quando deixaríamos “de uma vez a imitação para constituirmos escola” ou quando chegaria essa época de nacionalização para a nossa música, mas era certo que já estávamos criando as bases necessárias para tal acontecimento (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 8). Este “princípio de escola” era representado, segundo ele, por talentosos artistas da época que passaram a ter maior destaque com o advento da República. B. R. cita os nomes de Rodolfo Bernardelli na escultura; Zeferino Amoedo, Henrique Bernardelli e Pedro Américo, entre outros, na pintura; e na música, “as bellas producções de Carlos Gomes e os trabalhos magistrais de Miguéz a provarem o arrojo e a imaginação de um e a competência, a arte, o estudo, a concepção e o talento de outro” (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 8). Ideias cosmopolitas de refinamento artístico como parâmetro para o progresso de uma nação unem-se às ideias republicanas de B. R., conforme vemos em frases como: “As conquistas de liberdade pública são conquistas no campo da Arte”; ou “A expansão de liberdades públicas revela-se pelas concepções artísticas, e Miguéz não se manifestaria grandioso no seu poema sinfônico Ave Libertas! sob um regime hipócrita de monarquia religiosa” (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 8). Assim como B. R. fez críticas aos adeptos do “anti-melodismo”associado entre outros a Wagner, em artigos futuros B. R. continuará desfavorável ao wagnerismo, se este fosse visto como uma opção estética oposta ao “brasileirismo”proposto por ele (Gazeta Musical, 1892, nº 14: p. 209-212). ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 117 118 Por isso B. R. revolta-se com o desprezo que schumannianos, mozartianos e wagnerianos tem pela música popular urbana e afirma que é preciso “ser brasileiro antes de ser wagneriano e alemão”. B. R. reafirma que é necessário, antes de tudo, possuir o sentimento de brasileirismo aliado à modernidade e cita como exemplo dessa união, o compositor paulista Alexandre Levy (Gazeta Musical, 1892, nº 14, p. 211). B. R. via uma profunda relação entre as manifestações artísticas e o regime republicano, único que poderia dar as condições ideais necessárias à produção artística. Dessa forma, ele descartava toda a produção musical e instituições de ensino de música do período monárquico a fim de enaltecer o Instituto Nacional de Música, Miguez e demais artistas ligados ao novo regime. Essa nova elite musical era o símbolo do desbravamento da música nacional, como se nada antes deles – as instituições e o próprio meio artístico no qual se formaram e no qual o Imperador fora o grande mecenas – houvesse tido alguma importância para a formação da música brasileira e do meio musical fluminense pós-monárquico. A França é uma referência constante nos artigos de B. R., justificando suas escolhas estéticas, e servindo de modelo para a organização das instituições musicais como escolas, bandas e orquestras, ou para a solução de problemas técnicos específicos da área (composição e interpretação, por exemplo). A política cultural da França também era exemplo a ser seguido pelo governo brasileiro. B. R. cita em francês, as palavras do tribuno Jules Favre: “Il n’est pas d’art mieux fait pour élever lês ames, pour detourner le peuple des plaisirs grossiers.2 O Conservatório de Paris era o exemplo da instituição musical que sempre contou com o total apoio do governo francês, que reconhecia a importância dessa instituição educadora do “bom gosto do povo” e “agente eficaz da reforma de seus costumes [que] mais glórias poderia trazer à França” (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 1). Elogia os atos do ministro Aristides Lobo com relação ao incentivo dado à Escola Nacional de Belas-Artes e ao Instituto Nacional de Música, sendo as duas, escolas-modelo “como as não há melhores no estrangeiro”. Os diretores de ambas as instituições são também sempre elogiados, considerados “artistas que rivalizam em talento e em patriotismo e que são duas promessas” (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 2). O ambiente artístico republicano é descrito por B. R. como um ambiente onde há “solidariedade de irmãos” entre pintores, escultores e músicos. Em um ambiente fecundo para as artes, “o indígena admirado soube que se venderam telas de artistas nacionais por 4, 5, 10 e 20 contos de réis!” E obviamente que “esta expansão artística deve-se à proclamação do novo regime.” (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 2) B. R. coloca a música como a arte mais importante de todas no processo civilizador almejado pelos republicanos: “A educação artística de um povo faz-se pela música. É a música que dá molde novo ao caráter de um povo e só ela é capaz de nele criar um sentimento novo” (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 3). B. R. declara que o escultor e o pintor já tinham quase seguro o seu futuro, mas o compositor precisava de uma orquestra, de empresários de concerto e de teatros para executar a sua obra. Por isso, era imprescindível a criação de orquestras municipais “de primeira ordem”, que executariam as obras de “nossos maestros” e a organização das bandas militares, “que atualmente são inúteis e imprestáveis”, assim como a criação de concertos populares para a educação do gosto do público. Estes concertos deveriam ser subvencionados pelo governo e “organizados e dirigidos pelo diretor do nosso Instituto.” Como um músico não pode vender a sua música como um pintor vende seu quadro, o governo deveria sempre auxiliar as atividades musicais, como fazia o governo da França (Gazeta Musical, 1891, nº 8, p. 3). B. R. afirmava que todos os Estados brasileiros tinham sua música característica e seria da fusão dessas diversas partes que nós formaríamos um todo que provaria a nossa originalidade. Lamentava que o povo da Capital, apesar de ter o “sentimento apaixonado de sua nacionalidade”, não conhecia absolutamente “as nossas canções populares, algumas delas de uma simplicidade e poesia verdadeiramente comovedoras, como acontece com as canções populares cearenses”. Estas canções em “moldes primitivos” trabalhadas pela “ciência musical [dariam] um tipo [de música] especial e muito brasileira” (Gazeta Musical, 1891, nº 9, p. 1). As orquestras municipais, além de formar instrumentistas, ajudariam os compositores a reunir os elementos folclóricos próprios de cada região do Brasil, contribuindo para a síntese de uma música nacional (Gazeta Musical, 1891, nº 9, p. 2). B. R. defende, assim como Miguez, a criação de cursos noturnos no Instituto, para aqueles que não podendo cursá-lo de manhã, pudessem fazê-lo à noite e no futuro, integrar a orquestra que o Instituto viria a ter (Gazeta Musical, 1891, nº 9, p. 3). Sempre pensando no máximo aproveitamento da “acentuada aptidão musical de nosso povo” e na urgência de se conseguir a nacionalização de nossa música e o bom gosto musical do povo, B. R. insiste no projeto de organização das bandas militares. Estas levam a todos os pontos do país o estímulo musical, sendo as melhores propagandistas “dos trabalhos de vulto de artistas nacionais e estrangeiros”. Modificando o gosto do público, tem grande função educacional.3 B. R. desejava que as nossas bandas se assemelhassem às francesas e preocupava-se com nossa imagem no exterior: “o estrangeiro que encontra as nossas bandas militares faz o pior juízo da nossa aptidão na música e não pode imaginar sequer que nós somos um povo de tendências finamente artísticas.” Entretanto, o problema não lhe parecia de difícil resolução, contanto que o governo acatasse o projeto de reforma das bandas militares proposto “pelo diretor do nosso Instituto” (Gazeta Musical, 1891, nº 10, p. 1). O apelo de 1891 em prol do projeto apresentado por Miguez para a reforma das bandas militares termina demonstrando um pouco de desespero pela lentidão das autoridades, lembrando que “o artista brasileiro viu aparecer com a República uma esperança que é preciso alentar e tornar realidade” (Gazeta Musical, 1891, nº 10, p. 2). E mais adiante afirma que “a civilização, o alevantamento de um povo está na razão direta de suas manifestações artísticas, e se é um fato que nós somos um povo de artistas, devemos impor-nos pela nossa arte, que deve encontrar da parte dos governos todo o apoio e o mais decidido auxílio” (Gazeta Musical, 1891, nº 10, p. 3). O Instituto Nacional de Música seria, portanto, o “quartel general” da institucionalização da música no Brasil, promovendo concertos populares, divulgando os compositores nacionais de “mérito”, controlando o repertório que as orquestras e as bandas militares reformadas tocariam nos recantos mais longínquos do País, dando as bases para a formação 2 “Nada melhor que a arte bem feita para elevar as almas, para desviar o povo dos prazeres brutos”. (Gazeta Musical, 1891, nº 7, p. 9, tradução nossa) 3 A função educacional é a principal ferramenta utilizada para civilizar o país. B. R. declara: “Na velha Europa ha o maior cuidado na organisação de boas musicas militares, por isso que os governos de lá comprehendem, e bem, qual é a missão civilisadora d’essas bandas” (Gazeta Musical, 1891, nº 9, p. 3). PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 119 de uma música “autêntica” nacional. Alem disso, o Instituto Nacional de Música controlaria o ensino da música nas escolas primárias, indicando somente professores que tivessem estudado no próprio Instituto. A tudo isso B. R. estava atento e sua preocupação era a de colocar em prática o mais rápido possível tais projetos, (vinculados sempre ao Instituto Nacional de Música), a fim de consolidar o regime republicano através de uma ferramenta que ele considerava muito adequada: o aproveitamento da “sensibilidade musical” do povo brasileiro e o ensino de uma música “oficial”, institucionalizada, com a função de cristalizar valores morais e cívicos, que promoveriam a ordem e o progresso do País. Assim, B. R. propõe o projeto do canto orfeônico nas escolas primárias, ao qual se dedicará em sua coluna intitulada “O Canto Choral”, escrita entre 1892 e 1893 na Gazeta Musical. B. R. faz uma intensa campanha pelo canto em português e pelo uso de melodias e ritmos do folclore brasileiro como base do orfeão. (Gazeta Musical, 1892, nº 20, p. 307) Além disso, propõe que grandes compositores e poetas nacionais escrevessem música e letras patrióticas para o orfeão, a fim de incutir nas crianças, em sua mais tenra idade, o amor pela Pátria (Gazeta Musical, 1892, nº 15, p. 229). O projeto do canto orfeônico brasileiro proposto por B. R. possuía para ele um grande valor democrático e “moralizador” do povo: Depois de termos estudado sob differentes phases a necessidade e o valor das agremiações choraes, precisamos ainda saliental-as pelo seu lado puramente democratico. / Não consta que se tenha conseguido mais a este respeito do que pela creação dos orpheons onde todas as classes sociaes se dão as mãos, onde todos os odios e todas as rivalidades desapparecem, para a grandeza da musica. (Gazeta Musical, 1893, nº 4, p. 49) [...] vejamos qual o meio pratico de crearmos o orpheon brazileiro tão necessario, como temos dito, ao desenvolvimento de nosso gosto musical, á educação artistica de nosso povo, á moralisação das camadas inferiores de nossa sociedade. [...] No Brazil há tres pontos onde se podia crear o nosso orpheon brazileiro: a Capital Federal, S. Paulo e o Rio Grande do Sul. S. Paulo, pelo seu elemento estrangeiro e o Rio Grande,pelo mesmo motivo, correm o risco de implantar o orpheon italiano ou allemão em vez do brazileiro e trazer para a musica nacional uma influencia com que ella não poderá luctar, e dahi a absorpção d’essa musica cuja originalidade e cunho especial já são hoje contestados. [...] Na Capital Federal, não. O elemento estrangeiro é o portuguez e esse é refractario á musica em geral e ao canto choral especialmente. / Aqui temos [...] a influencia benefica do Instituto de Musica [...] / Não cessaremos porem de dizer: cantemos em portuguez e com musica apropriada ao nosso temperamento musical [...] (Gazeta Musical, 1892, nº 20, p. 305-307) prática, quase meio século depois, no governo de Getúlio Vargas, tendo Heitor Villa-Lobos como mentor e coordenador. Referências BOMFIM ANDRADE, Clarissa Lapolla. A Gazeta Musical (Rio de Janeiro, 1891-1893): Positivismo e missão civilizadora nos primeiros anos da República no Brasil. Dissertação (Mestrado em Musicologia). Rio de Janeiro: UFRJ: Escola de Música, 2012. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, [1990] 2009. VELHO SOBRINHO, J. F. Dicionário Bio-Bibliográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1940 (Vol. II, p. 420) VOLPE, Maria Alice. “National identity in Brazilian music historiography”. In: Indianismo and Landscape in the Brazilian Age of Progress: Art Music from Carlos Gomes to Villa-Lobos, p. 13-54. Tese de Doutorado (PhD in Musicology/Ethnomusicology). Austin: The University of Texas at Austin, 2001. Ann Arbor, Michigan: UMI-Research Press, 2001. VOLPE, Maria Alice. “A Teoria da Obnubilação Brasílica na História da Música Brasileira: Renato Almeida e a ‘Sinfonia da Terra’”. Música em Perspectiva, Curitiba, Universidade Federal do Paraná, vol. 1, nº 1, p. 58-71, 2008. Disponível em http://ojs. c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/musica. Periódicos Gazeta Musical. Rio de Janeiro: Alfredo Fertin de Vasconcellos, 1891-1893. O Paiz. Rio de Janeiro, 1º de maio de 1896. Em seus artigos sobre o canto orfeônico na Gazeta Musical, B. R. explica o projeto em detalhes, deixando claro os objetivos e a maneira de implantá-lo nas escolas da Capital Federal e que serviria de modelo para todo o País. O canto em português, o uso de elementos do folclore nacional, a harmonização das melodias “refinadas” pela “ciência musical” e letras patrióticas ou referentes às lendas e tradições nacionais que desenvolvessem o nosso sentimento de “brasilidade”, são as principais diretrizes do projeto orfeônico proposto por B. R.. Sem que dessem os devidos créditos a Eduardo de Borja Reis, ou ao Instituto Nacional de Música por esse projeto datado de 1892, um projeto muito semelhante foi posto em 120 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 121 ­­­The Café and the Espectáculo: collective remembrance, musical materiality and Jewish performance at the Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA) Lillian M. Wohl University of Chicago Introduction Eighteen years after the 1994 bombing of the Jewish mutual aid center in Buenos Aires, the Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA), musical performance at this central institution remains deeply influenced by the politics of memory deployed in response to the terrorist attack that killed 85 and injured hundreds others. Although cultural programming at AMIA long predates political and social reorganizations instituted after the bombing, musical programming in particular emerged as a means for musicians and audiences to explore the personal and communal effects of this tragic reminder of Jewish alterity. The Auditorio AMIA (AMIA Theater), which occupies two floors in the new headquarters located on the original site of the attack at Pasteur 633, was re-inaugurated in 1999 in the lower levels of the building. As a physical space, the Auditorio AMIA anchors the performance of contemporary, material representations of Jewish heritage to the memorial specters of this building’s (now) immaterial past. In this paper, I explore musical performance at AMIA within the context of a discursive saturation of key themes such as, “memoria” (memory), “olvido” (oblivion) and “justicia” (justice) in concerts and espectáculos (shows). In two main performance contexts, the Café Literario series held in the library on the second floor and the espectáculos of Jewish musical heritage presented in the Auditorio AMIA, I analyze the relationship between space, musical participation and collective memory in the reconstruction of AMIA. As Edna Aizenberg laments, the bombing of AMIA “left a dark hole in the Argentine imagination,” burying under the rubble with the bodies of the dead, the books and documents, or the “heritage of a community that for a century had struggled to be ‘unmistakably Argentine’” (Aizenberg, 1996). In this paper, I explore the intersection of memory and history in Jewish musical heritage to emphasize the embodied, “performatic,” or “oral, aural and gestural acts” evident in musical performance (Taylor, 2003). I frame this essay around current scholarship looking toward an embodied “reality/riality” paradigm, exemplified by dance scholar Susan Leigh Foster, who understands “corporeality” as a way to approach the “study of bodies through a consideration of bodily reality, not as a natural or absolute given but as a tangible and substantial category of cultural experience” (Foster, 1996). Exploring corporeality can: “[a]cknowledge that bodies always gesture towards other fields of meaning, but at the same time instantiate both physical mobility and articulability” (Foster, 1996). Similarly, ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 123 Jason Stanyek and Benjamin Piekut refer to the space of the “intermundane” to explore music’s tangible relation to the “interpenetration between worlds of living and dead,” while featuring “corpaurality,” as a concept to highlight the odd labors of “deadness” (Stanyek and Piekut, 2010). They state: Deadness produces the resonances and revenances that condition all modes of sonic performance. We engage deadness not as displacement, but as emplacement in layered, rhizophonic sites of enfolded temporalities and spatialities. Within these sites, laborers are corpaural, bodies are always sonic bodies (Stanyek and Piekut 2010, p. 32). Following Stanyek and Piekut’s assessment of commercial recording practices in late capitalism, I interpret temporality and emplacement as critical issues in the labor of memory, in this case related to the legacy of trauma at sites of memory rather than commercial recording practice. At AMIA, musical performance helps to maintain the memorial atmosphere by re-invoking the legacy of the attack and the specter of the dead through the sounded performance of memory. These musical practices uphold AMIA as a sacred place of both mourning and cultural renovation. Furthermore, musical performance at AMIA creates symbolic currents and cultural pathways between the past and the present, upon which songs themes and other musical material travel, to be reclaimed by musicians in contemporary performance. As Philip Bohlman argues, “the identity of Jewishness depends on where Jewish music takes place,” rendering AMIA a place where Jewish music directly confronts multiple memorial concerns, in local and global frames of reference that construct Jewishness in relation to history and memory (Bohlman, 2008). While AMIA is also a public site of traumatic remembrance, on a daily basis it also serves as a space to explore the social experience of music making as an activity of ordinary, serious leisure. Founded in 1894 as the Jevrah Kedusha Askenazi—a burial society—AMIA was inaugurated the Asociación Mutual Israelita Argentina in 1945. Throughout the late twentieth century, AMIA slowly expanded its programming to contend with the diversifying needs of the Jewish community (Mirelman, 1990). The Departamento de Cultura, originally founded in the late 1950s to organize lectures, provide scholarships, support workshops in literature and biblical subjects, publications, and theater works throughout the country has since refined and expanded its programming initiatives to incorporate members of the AMIA and the general public, which includes non-Jews, though the organization was conceived for Jews. In this paper, I introduce two performance settings in order to frame the critical discourses influencing musical performance in the Café Literario and the weekly espectáculos performed in the Auditorio AMIA. Although numerous groups and performers present shows in AMIA each week, I focus on the musical performances of the Dúo Guefiltefish and two choirs under their direction, the Yiddish choir, Coro Ale Brider (All Brothers and Sisters Choir) and Coro Volver a Empezar (New Beginnings Choir) to explore how performance styles and repertoire contribute to the performance of Jewish memory and the construction of Jewish Argentine identity. Moreover, I detail the consciously eclectic approach asserted in Jewish musical performance that consumes the global past, re-presenting these forms as a panorama of transnational aesthetic influences, drawn 124 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER from the Jewish Diaspora. Music provides community participants with opportunities to experiment with a variety of expressive practices to commemorate Jewish heritage through the socialized performance of cultural memory. Furthermore, as the most visible Jewish institution in Argentina, AMIA plays a critical role in determining the character of Jewish music in the Southern Cone. From AMIA, musicians gain access to performance gigs across the network of Jewish religious and cultural institutions in Argentina, Latin America, the United State and Israel. Whereas prior scholarship prioritizes exceptional manifestations of the memorial arts—such as the consecration of monuments, memorial concerts, and public commemorative displays—this paper focuses on the everyday practices of artistic remembrance taking place within this active site of Jewish memory. AMIA and the Politics of Memory In 2011, the campaign slogan for the 17th annual Acto Central del Atentado a la AMIA, the main, public commemoration ceremony for the bombing of AMIA declared: “Tu Presencia en el Acto es un Atentado al Olvido” (Your presence at this demonstration is an attack on oblivion). In the weeks prior to the event, posters and t-shirts advertised this campaign, circulating over the internet and in print media throughout the city of Buenos Aires (AMIA website, 17º Atentado). A variety of key figures in public culture such as President Cristina Fernández de Kirchner, tennis star Juan Martín del Potro and the 2011 Argentine national soccer team, including global soccer sensation, Lionel Messi, lent their support to the face of the campaign, appearing in photographs holding up t-shirts and banners in support of the cause for AMIA. Advertisements posted on the AMIA website in July 2011 appealed to national support in a similarly iconic way, altering the Argentine national soccer jersey in blue and white to reveal the number “17,” the name AMIA and the words “Sin Justicia” (Without Justice) along the rear bottom hem (AMIA website, 17º Atentado). The iconography of this strategic deployment of the politicized discourse of memory epitomizes the deliberate effort of AMIA administrators to align the concerns of the Jewish community and the AMIA cause with national and regional discourses associated with the enduring legacy of region-wide human rights violations during the military dictatorships in Argentina 1976-1983; Chile 1973-1990; Uruguay 1973-1985 (Roniger and Sznajder, 1998; Breckenridge, 2009; Feierstein and Sadow, 2002). AMIA’s appropriation of these symbols firmly positions Jewish issues as concerns of all Argentines, with Jewish citizenship emphasized as an unmistakable component of multi-cultural, Argentine national identity — a belief compromised and complicated by the attack itself on July 18, 1994. While the incorporation of a number of national obsessions, namely the beloved sport, fútbol, and President Cristina Fernández de Kirchner (who was re-elected just a few months later in October 2011), make popular reference to hegemonic symbols of the nation, the connection to the rhetoric of human rights activism in the Southern Cone aligns AMIA with broader demands for justice in Argentina.1 The Jewish community of Argentina occupies a unique position across the global Jewish Diaspora as a community deeply engaged with the “culture of memory,” stemming from the convergence of multiple memory discourses, such as theological imperatives, Diaspora 1 As sociologist Elizabeth Jelin argues: “the Southern Cone of Latin America is an area where this association between past violations and the will of a different future is very strongly established” ( Jelin, 2003, p. 3). ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 125 and exile, the Holocaust, the military dictatorship and the bombings of the Israeli Embassy in 1992 and AMIA in 1994 (Spitzer 1999; Huberman and Meter, 2006; Agosin, 2005; Kaminsky, 2009; Goldstein, 2006; 2008; 2009). As sociologist Maurice Halbwachs identified, collective remembrance practices surmount individual engagements with the past, operating on a social level as an “invocation of the past by contemporary agents to establish current identities” (Olick and Robbins, 1998; Halbwachs, 1992). By addressing the cultural traces of forgetting, Yosef H. Yerushalmi famously posed the question: “Is the antonym of ‘forgetting’ not memory, but justice” after all (Yerushalmi, 1989[1982])? Following Yerushalmi, how can musical performance embody memory—individual and collective—to combat oblivion? How is musical performance at AMIA mobilized as an intimate form of unofficial justice-seeking? Despite former President Nestor Kirchner’s 2005 address to the Inter-American Commission on Human Rights, in which he accepted responsibility on behalf of the Argentine government for its failure to prevent the attack and to properly investigate the bombing, compounded by recent failures in 2012 to extradite Iranian nationals accused of involvement in the terrorist attack, the invocation of memory in the service of justice has served a persistent need in the Jewish community (Zaretsky, 2008; 2008a).2 Musical performance and artistic expression create opportunities for musicians and audiences to exert power over the past through the everyday labors of memory. As such, the changing role of cultural programming staged at AMIA since the early 1990s points to a particular re-alignment in local values and aesthetics, rooting musical participation as a socially relevant form of resistance to oblivion, manifesting in the everyday as “serious leisure” among senior citizens3 (Yúdice, 2003; Thang, 2006). Musical Performance in the Café and the Espectáculo: Dúo Guefiltefish, Coro Ale Brider and Coro Volver a Empezar Every week, people from throughout Buenos Aires travel by subte (subway), or colectivo (bus), or walk to visit AMIA for afternoon or evening concerts of music of all varieties. Any given concert may feature music from Broadway hits, to choral arrangements of Yiddish folksongs, instrumental recitals of Western Classical music and Israeli Eurovision Song Contest entries in Hebrew to tango and klezmer performances. This eclectic repertoire runs the gamut of secular and sacred sounds, collected from the transnational Jewish soundscape. The music passing through AMIA is situated firmly in physical space: AMIA is a modern-looking building that is nearly impossible to view from the sidewalk of the narrow street, Pasteur, located between Avenida Corrientes and Avenida Cordóba, two main avenues running east and west into and out of the city of Buenos Aires. The 2 Natasha Zaretsky’s dissertation, “Citizens of the Plaza: Memory, Violence, and Belonging in Jewish Buenos Aires” discusses emergent memorial practices in the Jewish community in response to traumatic events in recent history (Zaretsky, 2008a). As she mentions, “although some groups have attributed the bombing to Hezbollah, they have not taken responsibility for the attack. Indeed, the lack of concrete information has continued to motivate the ongoing advocacy efforts of the social movements that formed” (Zaretsky, 2008a, p. 74). 3 Leng Leng Tang employs the term, “serious leisure” to refer to the joy and anxiety of performing karaoke to examine singing practices among older persons in Singapore (Thang, 2006). Thang states, drawing from R. A. Stebbin’s work: “Such commitment displayed by older persons in karaoke suggests karaoke as a ‘serious’ leisure to them. In Stebbin’s (1992) construct, serious leisure differs from casual or relaxing leisure as it demands perseverance, personal effort in the development of specially acquired knowledge and skill. It also often encompasses ‘membership in or identification with a group of participants with distinct beliefs, norms, values, traditions and performance standards (Mannell, 1993, p.130)” (Thang, 2006, p. 72). 126 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER symmetry of the nine rows of windows of its modernist exterior façade, instills a sense of serenity and order—in contrast to the memorial wall of handwritten names, reminding passersby of the chaos and destruction that took place at this site. Set back a noticeable distance from the street and the sidewalk, AMIA is sleek and new in comparison to surrounding buildings. Like a government office, security guards monitor the entrance, and a thick grey blast-proof wall separates the city from the contents of the lot. Large concrete posts called pilones fence in the immediate sidewalk area in front of the formidable doors. Upon entering the courtyard of the building complex, Israeli sculptor, Yaacov Agam’s eight-paneled multi-dimensional optical sculpture, “Monument to the Memory of the Victims of the Terrorist Attack on AMIA” stands to the right of the entrance, while plaques commemorating the vibrant Yiddish theater scene of the early 1900s and poster-sized photos of men and women engaged in various social activities, cover the walls just outside the door to the main building. These symbols of art, music, and dance quietly buffer the core offices from the hustle and uncertainty of life on the street in Barrio Once. Figure 1. The AMIA building. Acto Central del Atentado a la AMIA on July 18, 2012. Photo by L.Wohl. On Tuesday, December 6, 2011, I attended my first concert of the Dúo Guefiltefish, accompanied by the Yiddish choir Coro Ale Brider, in the Café Literario on the second floor of the building. The Café Literario series features programs organized by the Departamento de Cultura, ranging from adult education courses, book presentations, to concerts such as this one. The programming series was inaugurated in April 2008 and encourages an intimate atmosphere for concerts, held once or twice weekly in a large room on the second floor of AMIA. The room used for performances is adorned with built-in bookshelves filled to capacity with volumes on the subject of Jewish history and culture. On this evening, the fifteen-or-so members of the Coro Ale Brider (All Brothers Chorus) milled about anxiously to the right side of the room, prior to their performanANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 127 ce. Their movement added a pleasant kinetic energy to the atmosphere, as performers Horacio Liberman and Mirtha Zucker (of the Dúo Guefiltefish) welcomed the audience, introducing themselves to their public. Against the synthesizer-heavy backtrack, Horacio sang Yiddish folksongs in a clear tenor voice that maintained a conversational quality. When he finished his solo songs, the choir members of Coro Ale Brider assembled in the front of the room, squeezing themselves between tall speakers, a tower of black sound equipment and an old, upright piano. Most of the choir members appeared over fifty years old, and nearly as many wore bright smiles in anticipation of singing. The atmosphere transformed as Coro Ale Brider took their places in front, demarcating a clear separation between the performers and their public, as audience members clapped and cooed, waving to the singers and sneaking in brief conversations before the start of the show. The choir began by singing a familiar arrangement of the well-known Yiddish folksong “Tumbalalaika,” appearing un-inhibited, cheerfully combining their somewhat out of tune and slightly out of synch voices with purposeful attention to articulation, enthusiasm and personal enjoyment. Their first song set a tone of participatory engagement that invoked the Eastern European (Ashkenazic) Jewish experience in Argentina through the performance of songs in Yiddish. With their “feathered” endings and unequal balance between male and female voices, this performance demonstrated an emphasis on unison singing for social pleasure rather than aesthetic perfection (Turino, 2008). Coro Ale Brider proceeded with the Yiddish children’s song, “Az der rebbe zingt” and an arrangement of “Basavilbaso,” a song dedicated to the eponymous colony in the province of Entre Ríos. This musical reference depicted Jewish colonial life in the interior, prior to the process of rapid urbanization that brought waves of migrants to the federal capital during the in the early twentieth century (Scobie, 1964). The song “Basavilbaso” is largely unknown outside of Argentina, originally composed and popularized in the Jewish community by the beloved folk singer Jevel Katz, who arrived from Lithuania in 1930. Its strophic form and repetitive chorus were easy to follow as the choir sang, and audience members hummed along or otherwise involved themselves musically thorough foot-tapping, hand clapping, and other gestural forms of participation. Jevel Katz, nicknamed the “Jewish Carlos Gardel,” after the beloved tango singer, composed and sung parodies and popular songs in Yiddish, Castellano (Spanish from the Río de la Plata region) and a creolized mix of both languages to large Jewish audiences in theaters throughout Buenos Aires and the colonies of the interior (Baker, 2004). Following his death in 1940, musicians in Argentina such as Max Zalkind have maintained Jevel Katz’s musical legacy, performing his works on recordings, in live performances and even theatrical shows based on his life. In 1941, a commemoration concert was held in his honor, but, moreover, in the 1980s, a number of concerts and shows based on Jevel Katz’s life and legacy revived the specter of Katz on the stage for a new generation of fans.4 Like the songs that Katz sung in his lifetime, the recuperation of the work of Jevel Katz in the later part of the 20th century, highlights the importance of Katz and his music to access the memories of Jewish life in Argentina—from Europe to Latin America, the colonies to the city, Yiddish to Castellano and the past to the contemporary 4 Based on archival documents held in the Jevel Katz archive at Fundación IWO, Buenos Aires, Argentina. Accessed August 2010. 128 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER era. Jevel Katz, perhaps the first iconic Jewish popular singer in Argentina, continues to be an emblem of Ashkenazi Jewish heritage. His music and his legacy provide material objects to engage with nostalgic and collective memory, especially among first generation Jews (the children of immigrants) in Buenos Aires (Boym, 2001; Fischman, 2005; 2006).5 One important feature of this concert was Coro Ale Brider’s use of the formal musical structure, the “popurrí”—a cross-section of different portions of multiple songs, mixed into a unified arrangement according to the stylistic components and lyrical content of the musical material. In this way, the choir was able to draw from a broader variety of the “chestnuts” of Yiddish folksongs such as, “Iome Iome,” “Dos Ist Idish,” and “Tog Ain, Tog Ois,” to fit in more references to Jewish culture within the set performance time (Slobin 1996). As a compositional practice, the popurrí is related to the remix to the extent that these two forms both rely on inter-musical icons to create new meanings; however, in the Jewish Argentine choir context, the eclecticism of the popurrí depends largely on an understanding of musical expectations of known qualities, culled from collective memory. That is, in order to appreciate and fully engage with the popurrí material, audience members must be generally familiar with the tune or lyrics. Conversely, for a popurrí to successfully engage an audience, it must include enough well-known material to engender gestural and aural participation. As a result, popurrís tend to recycle heavily circulated folk or popular songs, across sacred and secular repertoires. As opposed to remixes in Jamaican Dub or Hindi Film song, popurrís in Latin America intentionally refer to a body of canonical songs and themes to pay homage to the collective past, in this case, outside of commercial fields. Rather than prioritizing innovation in the production of new improvisations, as is the case with Dub—or to encourage multi-generational participation in an emerging commercial canon, as is the case with evergreens in Hindi Film remixes—Jewish Latin American popurrís pay homage to the past through emblematic symbols of musical heritage often suited for a single generation or age cohort. (Veal 2007; Beaster-Jones 2009). As Kay Kaufman Shelemay argues: “[b]oth song texts and tunes encode memories of places, people, and events past; in this manner the songs are intentionally constructed sites for long-term storage of conscious memories from the past” (Shelemay, 1998). As such, song texts and tunes allow listeners and performers to access the past to bolster collective participation. As the concert concluded, Horacio invited people from outside of Buenos Aires to declare their geographic origins, finding audience members visiting from Tel Aviv, Chicago, Buenos Aires’s suburbs, and even “Villa Clara!”—as one spry octogenarian proclaimed, claiming personal connection to another colony of the Jewish Colonization Agency in Argentina’s interior at the turn of the twentieth century and memorialized as an authentic site of Jewish Argentine immigration and collective memory. Like a community karaoke session, the Dúo Guefiltefish concert relied heavily on audience participation and insider knowledge of the musical repertoire and melodies to successfully secure participation. In this performance context at the Café Literario, Yiddish folksongs triggered mnemonic journeys into individual personal histories, while uniting participants around a common objective of public collective remembrance of the Jewish Argentine past (A. Assmann, 2011; J. Assmann, 2006). 5 Anthropologist Fernando Fischman defines “first generation” Jews as the children of immigrants, born in Argentina or who arrived at a very young age, with connections to Jewish institutions, among other characteristics (Fischman, 2006). ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 129 Musical Performance in the Auditorio AMIA: Coro Volver a Empezar and the Origins of Dúo Guefiltefish When the Dúo Guefiltefish performed in the Auditorio AMIA on January 24, 2012, the atmosphere was markedly different from the communal singing session the month before in the Café Literario. Although the Coro Ale Brider was also present and performed a few of the same songs such as “Iome Iome,” “Dos Ist Idish,” and “Cabaret,” the inclusion of the Coro Volver a Empezar, who sings in Castellano, diversified the musical content beyond Yiddish folksongs. During this espectáculo, a genre prevalent in Argentina and loosely defined as a form of theatrical entertainment or show (often featuring choreography, costumes or special effects), the choirs’ presentations were more formal, reducing the variety of musical content in order to prioritize the performance of full songs (Sirven, 2010). In the Auditorio AMIA, Horacio and Mirtha asserted more central roles in the performance, singing solos and duets such as their song, “Pimpidieta,” a contrafactum composition reworking the lyrics of a well-known song by Pimpinela (an Argentine duo, consisting of Joaquín and Lucía Galán), to teasingly parody the struggle between a wife concerned about her husband’s cholesterol, and a husband who confesses to the audience his mischievous plan to sneak a pastrami sandwich. Horacio’s performance antics and showmanship, entertaining the audience with his borscht-belt style stand-up comedy act, served as a departure from the informal program in the Café Literario. On this occasion, the espectáculo presentation was less improvised and less participatory—fundamentally more presentational as a performance experience (Turino 2008). Of special memorial significance was Coro Volver a Empezar’s tribute to a fellow choir member who had recently passed away. As Horacio announced, “A friend of ours in the Coro Volver a Empezar left us recently, passing away, making us very sad. And with heavy hearts, we are here today to present this song for her. We want to make this homage to her with this song because when she joined the choir, I chose her to be the soloist.”6 The song, “Las Hormigas Mueven la Montaña” (The Ants Move the Mountain), from the Italian musical comedy, “El Diluvio que Viene,” first premiered in Argentina in the late 1970s and continues to be performed since its original debut. Coro Volver a Empezar’s performance of this medium tempo song-march brought into focus additional layers of memory work performed by musicians at AMIA. Choir member Diana, who had been with the choir since it began ten years ago, took over the solo, looking out into the wide audience and making eye contact with various listeners, while moving her head with the phrasing of the verse as she sang into a hand held microphone. As she finished the verse, moving into the refrain, four choir members joined her at the front of the stage, grasping hold of each other around the shoulders and adding their voices to Diana’s. As the song developed in intensity in scalar, ascending motion, more choir members added their voices, moving from the back of the stage to the front, integrating light choreography with hand gestures that visually punctuated the lyrical themes of solidarity, unity and support for each other. As the lyrics of “Las Hormigas Mueven la Montaña” describe, the ants work together to “move the mountain” by joining together in the labor: “Más dos hormigas con otras dos hormigas/¡Son principio de una sociedad!/Energía y coraje pasamos este mensaje,/y a nuestro 6 “nos fue una compañera de Coro Volver a Empezar. Sí no fue que si falleció. Y con mucho dolor nos enfentamos todos y teníamos está actualization... Sé que todos de los integrantes son conmovida… Tuvimos unos días muy tristes. Esta canción es para ella…Queremos hacer una homenaje—está canción es para ella... porqué cuando ella vino al coro, La elegí que ella sea solista.” Horacio Liberman. January 24, 2012 in AMIA. 130 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER trabajo unamos nuestras voces” (Two ants plus two more ants/ Are the beginning of a society/ With energy and courage we share this message/ let us join our voices to our work).” By the end of the song, all of the choir members had embraced at the edge of the stage, having been transformed into a “gran comunidad” (large community). As Horacio added, “the choir combines the personal traits of each member, and each person is important for who they are, for what they do, and how they move through life… As such, each individual joined together provides the basis of the strength of a choir.”7 From the stage of AMIA, this musical commemoration found an empathetic home in a place of new beginnings itself, as Coro Volver a Empezar collectively mourned their friend through the musical labor of memory. As sociologist Elizabeth Jelin remarks, “at a more general, community, or family levels, memory and forgetting, commemoration and recollections become crucial when linked to traumatic political events or to situations of repression and annihilation, or when profound social catastrophes and collective suffering are involved ( Jelin, 2003). Figure 2. Mirtha Zucker, Coro Ale Brider, Coro Volver a Empezar and Horacio Liberman performing in the Auditorio AMIA. Photo by L.Wohl. This particular performance featured all female members of the Coro Volver a Empezar, who followed up this moving performance with a rendition of “Volver a Empezar,” by Alejandro Lerner, the inspiration behind the choir’s name. Alejandro Lerner, a high-profile Argentine pop rock musician, has performed with artists such as Luis Miguel, Celine Dion, Carlos Santana, and Argentine composer, Gustavo Santaolalla, he and remained engaged with the Jewish community throughout his career. Unrelated to the Coro Volver a Empezar’s internal activities, Lerner participated in a series of concerts organized by the activist group, Memoria Activa. Memoria Activa, a not-for-profit group founded by non-family members of the victims of the AMIA, organized demonstrations and public 7 “el coro la suma individualidades y cada una es importante por lo que es y por lo que hace y por como se mueve… Así que todo uno más uno hacen todo la fuerza que tiene un coro.” Horacio Liberman. January 24, 2014 in AMIA. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 131 commemorations in the late 1990s and early 2000s to aid legal and financial advocacy projects on behalf of the families of the victims of the AMIA bombing. In 1997, 1998 and 1999, Memoria Activa held three concerts in Buenos Aires to raise awareness and financial support for the cause of AMIA.8 Lerner performed in at least one of the concerts held at the historic Grand Rex Theater in 1999, and he is featured on the recording on this third concert, El Arte Junto a Memoria Activa, which includes personal testimony from advocates, family members, and musicians, as well as information about the event and the musical selections. This concert ended on a light note with the audience clapping along in time to Horacio, Mirtha, the Coro Volver a Empezar and the Coro Ale Brider singing Israel’s 1979 winning Eurovision Song Contest entry by Gali Atari and Milk and Honey, “Hallelujah”. As Horacio mentioned during the performance, Coro Volver a Empezar, has experienced, “important journeys, events, people who have come and gone, and each time was a new beginning, and the concert on this evening marked another new beginning with the passing of [our friend].”9 The Dúo Guefiltefish officially formed in 2003, somewhat by accident. During a summer visit to Miramar, a vacation town on the Atlantic coast south of Buenos Aires, Horacio and Mirtha sang in an amateur music showcase at the Shopping Down Town (shopping plaza). They decided on the name “Dúo Guefiltefish” just before they were scheduled to perform before a large, mixed, Jewish and non-Jewish audience. Horacio and Mirtha sang songs in Yiddish and Castellano (Spanish from the Río de la Plata region), recounting the experience as “surprising” due to the enthusiastic reception they encountered from the large audience. By chance, earlier that day, clouds had ruined an afternoon of sun and sand for vacationers, who flocked to the shopping plaza instead of the beach. After their debut as the Dúo Guefiltefish, Horacio and Mirtha decided to seek additional performance opportunities in Buenos Aires, sticking with the name “guefiltefish,” in honor of the pickled fish ball, customarily served at Passover seders by Ashkenazic Jews. As they state on their website: “…we call ourselves Dúo Guefitlefish, in order to make clear the type of music that we were making” (Dúo Guefiltefish website).10 This success marked Horacio and Mirtha’s deepening engagement with Jewish musical heritage. Prior to working full-time as professional musicians, Horacio managed a textile factory that specialized in shirts, and Mirtha worked in the family business in advertising. As Horacio’s business slowed during Argentina’s economic crisis of the early 2000s, he and Mirtha began devoting more and more time to music. In 2002, before their debut in Miramar, Horacio and Mirtha convened weekly singing sessions with fellow congregants at the Templo de Planes in the middle-class Caballito neighborhood, each Friday evening after Shabbat services. Horacio and Mirtha sought additional participants and advertised this group—a choir they named Coro Volver a Empezar—in various synagogues throughout Buenos Aires. At first, they attracted primarily women, singing almost exclusively in Castellano, but have since added a handful of male singers. As Horacio narrated: 8 Personal Communication with José Blumenfeld on December 8, 2011 in Buenos Aires. 9 “…viajes importantes, actuaciones importantes, gente que se fue, gente que vino y cada vez fue un volver a empezar. Hoy después que nos pasó con [nuestra amiga] es un volver a empezar. Horacio Liberman. January 24, 2012 in AMIA. 10 “…llamarnos Dúo Guefiltefish, para que de ese modo, el que lo oyese o leyera, no tuviera dudas del tipo de música que hacíamos.” Website Dúo Guefiltefish. Accessed June 2012. <http://www.duoguefiltefish.com.ar/> 132 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER At this time, given the urgency in the city left without work. And without knowing what to do and without knowing what what… and well, the people had been very worried. We experienced problems personally, ourselves too. But at the community level, we began to do activities so that the people could be entertained, a little, Fridays after Kabbalat Shabbat (Shabbat service) in the synagogues. We began with only a few people who heard about the choir, and we ended with seventy people who stayed on Fridays just to play. To play recreational activities. We bought pizza, and we divided it between us and each person paid. It was not-for-profit absolutely. Nor was it a big group. One day in 2002, we met we didn’t have anything to do, so we organized a choir.11 The Dúo Guefiltefish and Coro Volver a Empezar continued playing shows at AMIA and in the Jewish community throughout the early 2000s. By 2006, they had established their act and repertoire throughout the region, securing a contract to perform regular shows during the summer season at the Teatro Sagasti in Punta del Este, Uruguay. Horacio and Mirtha consider this opportunity critical to their ability to establish themselves as full-time musicians.12 Although the first years as full-time musicians were difficult, their status as artists officially sponsored by AMIA opened many doors, and they secured steady jobs with private parties and invitations to perform at Jewish community centers, synagogues and other venues in the interior of Argentina. They have performed in Resistencia, Córdoba, Corrientes, Tucumán, Salta, San Juan, Rosario and other former Jewish colonies such as Moisesville, Basavilbaso, Villaguay, and Villa Clara. Dúo Guefiltefish has been invited to perform in Latin American countries such as Costa Rica, Bolivia, Chile, as well as in Israel and the United States. In 2007, the director of the Departamento de Cultura, Moishe Korin, asked Horacio and Mirtha to represent AMIA on A North American tour to Miami, Florida. They played at synagogues such as Temple Menorah and Temple Beth Shalom and in community centers such as the Miami Beach Senior Center and Jewish Community Services of South Florida to request donations in support of AMIA’s social services programs and regular operations at AMIA that had been comprised by the effects of the economic crisis (Dúo Guefiltefish website and personal communication). During this critical fundraising trip, Dúo Guefiltefish was the only creative presence as artists traveling with key administrators. In 2008, Mirtha and Horacio formed the Yiddish choir, Coro Ale Brider, again reasserting their commitment and interest in the maintenance and transmission of Jewish musical heritage in Buenos Aires. Initial Conclusions At AMIA, musical performance provides a structural platform from which musicians and audiences can enact a wide body of memory practices, in official commemoration events as well as regular concerts supporting Jewish cultural heritage. By emphasizing the role of physical locations (place) and conceptual landscapes (space) in actively 11 “En ese momento, antes la urgencia en la ciudad se quedó sin trabajo. Y sin saber que hacer y sin saber que [que] y entonces la gente ha sido muy preocupada. Nosotros enfrentamos en persona también teníamos nuestra problema. Pero al nivel comunitario empezamos hacer actividades para que la gente este entretenida, un poco, los días viernes después de Kabalat Shabat en los templos. …Empezamos con poca gente que se fue enteranda y terminamos haciendolo con setenta personas que se quedaban los viernes solamente jugar. Jugar con actividades recreativas. Y compramos pizza y lo dividimos entre todos y cada una pagaba. Y era sin lucro absolutamente. Ni se fue formado un grupo muy grande. Cuando en el año 2002, un día teníamos que reunir y no teníamos que hacer, nosotros que estamos integrando en un coro.” Personal communication with Horacio Liberman on February 29, 2012. 12 Personal communication with Horacio Liberman and Mirtha Zucker on February 29, 2012 ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 133 shaping public and personal memories of violence, Katharina Shramm notes that the mediation between “violence, memory, body and landscape” produces a “sacralization of memorial space” (Shramm, 2011). While arguing that the “politically charged realm of commemoration” combines both official and unofficial acts to transform physical place into memorial landscapes, Schramm identifies the fact that the process of sacralization requires continual maintenance through ritual and memorial acts in order to preserve the sacred atmosphere of a physical site after a traumatic event. At AMIA, both highly visible official commemorations and less visible, un-official cultural programs support a canon of social practices utilizing music to produce to unify Jewish identification. Although public commemorations such as the Acto Central del Atentado a la AMIA creates opportunities to collectively mourn, commemorate and protest, on a daily basis, musical participation provides a broad spectrum of intimate, personal unofficial acts to contend with the politics of memory. In this essay, I have described how the Dúo Guefiltefish, Coro Ale Brider and Coro Volver a Empezar draw from a wide repertoire of songs and performance practices, creating a canon of popular Jewish music that underlines the transnational identity of Jewish performance while firmly rooting it in a local, Argentine context. The musical labors of these performing groups not only reflect the memorial atmosphere of AMIA, but they continuously renew this sacralized space. In the wake of recent criticism directed at AMIA and Delegación de Asociaciones Israelitas Argentinas (DAIA) administrators over perceptions of a commercialization of the Acto del Atentado a la AMIA through advertising and merchandising, as well as the controversial decision not to include testimony from a speaker on behalf of the families of the victims on July 18, 2012, musical programs occupy a unique position as a crucial medium to facilitate open, intimate and individualized engagements with the memorial past (Veiras, 2012). As Yerushalmi suggested, if justice is the antonym of oblivion, it may well be memory—and the material labors of memory—that gives shape and substance to justice. References Agosín, Marjorie (ed.). Memory, Oblivion, and Jewish Culture in Latin America. Austin, TX: University of Texas Press, 2005. Aizenberg, Edna. “Jewish Gauchos and Jewish ‘Others,’ or Culture and Bombs in Buenos Aires.” Discourse, v. 19, no. 1 (Fall), p. 15, 1996. 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Tanto os aristocratas quanto essa nova classe cultivavam a Hausmusik,1 uma prática comum de cunho social, cultural e educativo: as famílias e seus amigos se encontravam para fazer música, trocar ideias e compartilhar cultura. Trocavam também partituras que, com dificuldade, traziam da Europa. Um desdobramento dessa prática familiar era o natural envolvimento das novas gerações. Assim a Hausmusik tornou-se lugar privilegiado de um fazer e de uma educação musical não formais. Para Marisa Sampaio (1984, p. 17), “a família foi, incontestavelmente, o principal núcleo da arte musical no Paraná”. Ali “encontramos inúmeros lares onde a música fazia parte do cotidiano e dos quais saiu a maioria dos artistas que, – como instrumentistas, compositores ou professores [e organizadores culturais e pesquisadores] – mantiveram o contínuo movimento no setor artístico-cultural do Estado. Entre as muitas famílias em que a prática da Hausmusik fazia parte do dia a dia contam-se as famílias Itiberê, Devraine-Frank, Frank-Graf, Jucksch, Seyer, Müller-Seraphim-Prosser, Garcez-Duarte, Morozowicz, Soboll-Martins, Brandão, Thomas-Novello, Savitzky, Klein, Gomes, Thá, Carollo-Damm, Hübner, Chiamulera e outras. Muitos, hoje músicos profissionais, são a segunda ou terceira geração dessas famílias. A música em família no século XIX: os Menezes e os Itiberê da Cunha A música praticada em Curitiba tem a sua origem intimamente relacionada com a cidade de Paranaguá, a mais antiga do Estado (fundada em torno de 1648), bem como em Antonina e Morretes, onde foram registradas as primeiras atividades musicais no Paraná (BRANDÃO, 1996, p. 13). Paranaguá, antes a capital da Comarca, legou ao planalto músicos de excelente formação. Um exemplo é Bento de Menezes, nascido em Paranaguá em 1830. Desde sua 1 Hausmusik: música realizada na esfera privada, por prazer, entre amigos e familiares, hábito comum na Alemanha. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 139 vinda já adulto a Curitiba, foi o “vulto de maior projeção” na música na cidade, até finais do século XIX. “A Mansão dos Menezes, situada na esquina das ruas Dr. Muricy com a Saldanha Marinho, foi testemunho do que melhor pode produzir a chamada música doméstica (familiar). As irmãs de Bento Menezes, Adelaide e Francisca, a quem ensinou piano e canto, apresentaram-se na Corte”, a convite de D. Pedro II. Seus sobrinhos “foram educados por Bento de Menezes, que lhes dava aulas de música ensinava a tocarem instrumentos” (RODERJAN, 1967, p. 2). Ele costumava, principalmente nas festas natalinas, preparar os sobrinhos e os filhos dos seus escravos em ingênuos e expressivos corais. Na noite de Natal, todas as crianças democraticamente de mãos dadas, entravam na grande sala onde estava armado o pinheirinho e entoavam seus cantos antes de ganharem os presentes, diante da comovida assistência, constituída dos familiares e dos amigos do estimado maestro. Em sua casa havia três salas de concerto, dois pianos de cauda, um cravo e dezenas de instrumentos musicais. (RODERJAN, 1967, p. 2) Menezes participava ativamente da vida social, musical e das atividades religiosas da Igreja Matriz. Além disso, criou e organizou a Banda de Música da Polícia Militar do Estado, que, em 1880, foi ouvida pelo Imperador Pedro II, de quem recebeu calorosos elogios (BRANDÃO, 1996, p. 14). Outro músico de grande destaque em Paranaguá foi João Manuel da Cunha, parente de Bento Menezes. Professor, mantinha uma escola particular de música e formara uma banda com seus familiares, amigos e alunos. Transferiu-se para Curitiba em 1854 e, juntamente com Menezes, norteou a vida musical da cidade, durante a segunda metade do século XIX (RODERJAN, 1967, p. 4). Andrade Muricy escreveria: João Manoel, conhecedor do repertório camerístico criou um quarteto de cordas, dos primeiros, senão o primeiro, existente no Brasil do interior. Constituíram aquele conjunto o próprio João Manuel (violino I), seu irmão Jacinto Manuel (violino II), José de Brito (viola) e o Dr. Bento de Menezes (violoncelo e piano). (MURICY in RODERJAN, 1967, p. 7) João Manoel teve vários filhos. O mais velho, Brasílio, “acrescentara ao seu nome o de Itiberê para homenagear o rio com o mesmo nome que banhava Paranaguá, tornando-se então Brasílio Itiberê da Cunha” (BRANDÃO, 1996, p. 14). A partir de então, a família adotou Itiberê da Cunha como sobrenome, que se tornou relevante na história da música brasileira de concerto. Jacinto Manuel, por sua vez, lecionava música e mantinha uma orquestra e um coral nos quais tomava parte toda a família Itiberê. Entre os demais filhos de João Manoel destacaram-se Celso (depois, Cura da Sé de Curitiba), João (músico e literato, conhecido por Jean Itiberê) e Henrique (músico). Seu neto, Brasílio Itiberê da Cunha Luz (músico), era chamado Brasílio Itiberê II (NEVES, 1996, p. 19). Todos tiveram atuação marcante no meio cultural do país. Brasílio Itiberê, como ficou conhecido o filho mais velho de João Manoel, tornou-se diplomata, pianista e compositor. Representando o Brasil em várias capitais mundiais, tornou-se amigo de Liszt, com o qual trocava correspondência2. No âmbito da história da música brasileira, é citado como precursor do nacionalismo, por ter sido o primeiro a utilizar motivos brasileiros na composição, mais especificamente em A sertaneja, para piano, identificada pelo autor como Fantazia característica, Op. 15. 2 140 Correspondência de Liszt a Itiberê encontra-se na Casa da Memória, em Curitiba. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Os imigrantes A atividade musical local na segunda metade do século XIX e na virada do século constituía, pois, um espaço da sociabilidade e da cultura. Envolvia o cotidiano da vida familiar e social, com a participação, também, de famílias de imigrantes. Até o início do século XX, é grande o movimento artístico da capital: nas inúmeras famílias de imigrantes europeus, principalmente alemães, italianos e poloneses, continua o cultivo da Hausmusik. A música é feita em família, nas escolas, na Igreja, nos clubes sociais e literários e nas diversões populares. As famílias Itiberê da Cunha, Menezes, Monteiro, Diniz, Assumpção e mais as de imigrantes alemães como os Schleder, os Pletz, os Glaser, os Stresser, Hauer, Hertel, Menssing, Haupt e muitos outros, fizeram música doméstica ou na sociedade, mantendo bandas e pequenas orquestras familiares ou profissionais. (RODERJAN, 1969, p. 177) Como se vê, eram muitas as famílias envolvidas. No reparo e na manufatura, destacaram-se os Hertel, que mantinham uma oficina para reparos de instrumentos e uma loja de partituras; e os Essenfelder, que fundaram uma fábrica de pianos. Ambas supriram o mercado das últimas décadas do século XIX até finais do século XX. Os imigrantes desempenhavam, pois, importante papel na cultura local. Um fator de agregação e fortalecimento da própria identidade era a manutenção da língua, das tradições e da música dos países de origem. Assim, não apenas para manter a identidade de grupo ou para não perder o vínculo afetivo com a terra natal, mas também, para não perder certo “grau de desenvolvimento cultural” dos seus países de origem, os imigrantes zelavam para que seus bens culturais, entre eles a música, não se perdessem no esquecimento. Criaram escolas, jornais, clubes, associações e igrejas e cultivavam a música no núcleo familiar, incluindo amigos e vizinhos. Artistas de fora e artistas locais – o início do século XX O novo século traria grande efervescência cultural para Curitiba: “Eram centenas de mágicos, dançarinas, cantores líricos, atores de teatros de variedade. Viajavam, normalmente, em troupes que eram contratadas por empresas de diversão. [...] Era uma verdadeira maratona de companhias itinerantes em Curitiba”. Os músicos, desde solistas até companhias internacionais de ópera, eram muitos e de várias procedências: Argentina, Uruguai, França, Itália, Alemanha e do Brasil (BRANDÃO, A., 1994, p. 6). O mercado de trabalho era amplo, com concertos, clubes, associações, cinema mudo, hotéis, confeitarias, cafés-concerto, bandas, circos, parques de diversão, ringues de patinação, futebol, matinées dançantes etc. Assim, vários músicos, dançarinos e atores de companhias de ópera, opereta, teatro e dança que passavam pela cidade deixaram os seus grupos e radicaram-se em Curitiba. Entre eles, Carlos Frank, Ludwig [Ludovico] Seyer e Tadeusz Morozowicz (RODERJAN, 1969, p. 186-187). Estes uniram-se aos músicos locais e, além de sua atuação artística, criaram grupos de câmara, orquestras, bandas, coros e escolas de música no âmbito público e no privado. Em 1912, deu-se a estreia da primeira ópera paranaense, Sidéria, de Augusto Stresser (também filho de músicos). Leo Kessler, regente, foi um dos artistas que se radicou na cidade. O sucesso de Sidéria consolidou sua reputação de músico e professor. Fundou, em 1916, o Conservatório de Música do Paraná, onde lecionava o violinista e maestro Ludwig Seyer, cujo filho, também chamado Ludwig Seyer, seguiria os passos do pai, tornando-se, ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 141 igualmente, violinista, professor e maestro. Seyer, o pai, teve uma atuação marcante no cenário musical curitibano também como organizador cultural, criando várias escolas de música (RODERJAN, 1969, p.189). O maestro e organista Carlos Frank e sua família, na Catedral A prática da música em família continuava uma tradição tanto nas famílias luso-brasileiras como nas dos imigrantes. Além disso, nas igrejas católicas ou protestantes, a música era elemento primordial na realização de missas e cultos. Ela era geralmente dirigida por um músico profissional e era praticada por famílias e outros membros da comunidade, que, assim, eram impulsionados a se aperfeiçoar. Um exemplo eram os ofícios litúrgicos da Catedral, que “atraíam, além dos fiéis, numeroso público apreciador da música. Continuando o trabalho de Jacinto Manuel, Carlos Frank [Aloys Karl Frank] coordenava a música na Catedral. Estimulava-o o Monsenhor Celso, irmão de Brasílio Itiberê e sobrinho de Jacinto, que foi vigário da Catedral até o ano de 1930, quando faleceu” (RODERJAN, 1969, p. 191). O maestro e organista Carlos Frank, como era conhecido, “fez questão que todos os seus filhos estudassem música e participassem, como cantores ou instrumentistas, dos concertos realizados na Catedral”. De 1889 a 1918, quando faleceu, ele esteve à frente de várias iniciativas musicais da cidade. A sua atuação com seu coral e sua orquestra, “transformavam os ofícios litúrgicos em verdadeiros concertos espirituais”. Seus filhos, o flautista Jorge João e a violoncelista Charlotte, prosseguiram o trabalho do pai (SAMPAIO, 1984, p. 18; RODERJAN, 1969, p. 191). O pastor e maestro Karl Frank e sua família na Igreja Luterana A música era extremamente valorizada também nas igrejas evangélicas. O Pastor Karl Frank, da Igreja Luterana (da Christus Kirche), chegou em Curitiba em 1910. Paralelamente à sua formação teológica, na Alemanha, estudou órgão e piano. Organizou e desenvolveu inúmeras atividades musicais com membros da comunidade, composta principalmente de alemães e suas famílias. Além da música para os cultos, organizava, concertos, nos quais apresentou extratos do Réquiem de Brahms, do Réquiem de Mozart, de A criação de Haydn, de obras de Händel, Cantatas e Corais de Bach, além de muitas outras obras máximas da literatura musical (PROSSER, 2004). Da sua chegada até fins dos anos 1960, foi um dos principais regentes e professores de piano e história da arte da cidade. “Foi um amante da música, criou um círculo musical em Curitiba e abriu a porta do universo da música para muitos músicos, hoje profissionais” (AUGUSTIN, 1999, p. 85). Também no âmbito da sua família a música era constante. Sua filha, Esther [Graf ] tornou-se maestrina, pianista e professora. O Trio Paranaense e a SCABI Em 1932, surgia o Trio Paranaense, formado por Bianca Bianchi (violino), Renée Devrainne Frank (piano – esposa do flautista Jorge João Frank) e Charlotte Frank (violoncelo), que, durante mais de uma década, deram concertos em várias cidades brasileiras. As “três moças” eram imigrantes ou filhas de imigrantes e pertenciam a famílias em que a prática musical e a mulher eram vistas de modo não tradicional ( Jorge João e Charlotte eram filhos de Carlos Frank, o músico da Catedral). Foi na floricultura de Charlotte, entre 1935 e 1936, então ponto de encontro de mú142 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER sicos, pintores e intelectuais, que tiveram lugar acaloradas discussões sobre a criação de uma sociedade que promovesse concertos e de uma escola superior de música e de artes visuais. Além de, anos depois, participarem da criação da Sociedade de Cultura Artística Brasílio Itiberê (a SCABI), as três musicistas e Jorge João desenvolveram a carreira docente, vindo a lecionar na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, criada em 1948. Além disso, por quarenta anos, Charlotte fez registrar em álbuns os principais eventos musicais das temporadas do Teatro Guaíra, do Clube Curitibano, do Clube Concórdia, da Pró-Arte Brasil e da SCABI, por meio de dedicatórias e assinaturas dos inúmeros artistas – músicos, pintores, poetas e intelectuais – que movimentaram a vida artística da capital do Paraná. Os visitantes, raras exceções, eram recebidos, após concerto, no lar dos Frank, na rua Gutenberg nº 585. Casas geminadas, pertencia a de trás ao casal e a da frente a Charlotte. As recepções aconteciam ora nessa ora naquela residência. Noites alegres e musicais, saborosas na culinária, acolhedoras na receptividade. (SAMPAIO, 1984, p. 41 e 11) A prática da Hausmusik na família do maestro Carlos Frank continuava viva e ampliava-se, abraçando um círculo maior. Mantinha-se, porém, o núcleo familiar como centro irradiador da ação, que envolvia amigos, colegas e os artistas convidados. Os Müller-Seraphim-Prosser e os Frank-Graf A trajetória de Ingrid Müller Seraphim demonstra de modo significativo como a música em família influenciou não apenas a sua vida e a sua carreira, mas mudou os rumos da música e do ensino dessa arte em todo o país, quando ela, praticante assídua da Hausmusik até a atualidade, criou a Camerata Antiqua e as Oficinas de Música de Curitiba. Nas suas falas nota-se a proximidade que a prática da música no núcleo familiar proporciona entre as pessoas que participam dela e o seu papel na criação e consolidação de laços sociais e culturais duradouros. Quando crianças, nos reuníamos em volta do piano à noite. Minha mãe tocava ao piano músicas do folclore brasileiro, alemão e italiano e nós todos cantávamos. O meu pai adorava. Ele ficava na poltrona lendo o jornal ou a Bíblia. Éramos cinco filhos, quatro irmãs e um irmão, ao redor do piano. Maravilhoso! Isto está tudo no meu ouvido até hoje! (SERAPHIM, 2010a) E continua: A música esteve sempre presente na minha vida. Minha mãe tocava piano, cantava... Lembro dos meus 5, 6 anos, quando acordava com minha mãe cantando Lieder de Schubert, acompanhando a si mesma ao piano. Até hoje, tenho um carinho muito especial por esses Lieder, porque me trazem recordações muito boas... (SERAPHIM, 2010b) A família frequentava a pequena Igreja onde o Pastor Karl Frank atuava. Foi com ele, grande erudito e teólogo e excelente músico e professor, que Ingrid teve sua formação musical inicial. Além de atuar como professor de piano, regia o coro da comunidade, que cantava durante as festividades e os cultos da igreja e em concertos que ele organizava. Ela lembra: “Quando eu tinha uns doze anos, minha mãe, minhas irmãs e uma porção de amigos, éramos todos componentes do coro do Pastor Frank. Como nessa época eu já ia muito bem no piano, eu acompanhava o coro ao piano ou ao órgão. Nos ensaios estavam ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 143 quase todas as famílias da igreja, todas amigas nossas”. Eram reuniões “tanto culturais quanto sociais e afetivas”. Assim, foi sob a batuta do pastor/músico que fez parte ativa, nos anos 40, das estreias brasileiras de partes de obras significativas do repertório musical (SERAPHIM, 2010a; 2010b). Elsa Irene, sua irmã mais velha, também participava das atividades musicais daquela igreja. Mais tarde graduada em Canto pela Escola Nacional de Música, no Rio de Janeiro, recorda com admiração as traduções feitas pelo Pastor Frank, especialmente a do Réquiem de Brahms, pois, por causa da guerra, era proibido até cantar em alemão! Elsa dedicar-se-ia ao repertório barroco e de câmara. Nos anos 1970, atuou como professora da Embap e solista da Camerata Antiqua. Sobre a prática da Hausmusik propriamente dita, Ingrid afirma: Fazíamos muita Hausmusik na casa da Tia Emma Jucksch, irmã do meu pai. A casa dela era ao lado da Igreja. Nessa época, minhas irmãs e eu frequentávamos regularmente esses encontros, assim como o Rudi [Rudolf ] Jucksch (violinista), filho da Tia Emma, o Henrique Hübert (violoncelista) e outros. Com o tempo, a filha do Pastor Frank, a Esther (pianista), e o Ludwig Seyer (filho) (violinista) passaram a participar conosco. (SERAPHIM, 2011a) O maestro Ludwig Seyer (pai) regia as Orquestras do Clube Concórdia e da SCABI. Em algumas ocasiões, Ingrid era convidada para participar de noites de música, na sua casa. Recorda de uma vez em que estavam lá o Dr. Poeck (químico e pianista austríaco) e sua esposa (cantora), os violinistas Ludwig Seyer (filho) e Rudi Jucksch, a pianista e flautista Esther Frank e o pianista e regente Alceo Bocchino. “Com o Dr. Poeck toquei muito a dois pianos, pois tínhamos três pianos na casa dos meus pais. Toquei também em concertos com ele, principalmente Concertos de Bach. Um de nós fazia a parte do solista e o outro a redução da orquestra” (SERAPHIM, 2011b). Ingrid estudou com o Pastor Frank até 1945. Em 1948 mudou-se para o Rio, onde estudou com Fontainha e Villa-Lobos. Ao retornar, em 1952, passou a dar aulas de piano na Escola de Música e Belas Artes do Paraná e, em 1954, casou-se com o engenheiro Paulo Seraphim. A Hausmusik tornou-se uma constante na casa do casal, que recebia familiares, amigos e convidados para fazer música. Também as filhas Elisabeth, Eliane e Astir participavam ativamente desses momentos. Ela relata o seu envolvimento com o cravo e como ela própria organizava eventos em que havia a prática da música no núcleo familiar e afetivo. Como sempre gostei muito de música barroca, principalmente de Bach, sempre me interessei pelo órgão e pelo cravo. Assim, no início da década de 1960, quando a Belas Artes ganhou do Consulado Alemão o seu primeiro cravo, logo comecei a estudar cravo, a organizar grupos de câmera com os meus alunos, minhas filhas Elisabeth e Eliane e outros instrumentistas. Quando meu marido comprou para mim um cravo, em finais da década de 1960, procurei jovens músicos de Curitiba para refazer aquelas obras de Bach e Haydn, que cantei e toquei com o coro da Christus Kirche quando ainda era adolescente. Assim, mais no espírito da Hausmusik – um encontro de amigos músicos para fazer música por prazer – com ensaios aos sábados à tardinha, em minha casa, seguidos de um lanche em que todos confraternizávamos, nasceu a Camerata Antiqua de Curitiba, que coordenei por vinte e seis anos (de 1973 a 2001) e que continua ainda hoje. (SERAPHIM, 2011a) Sobre a prática da música familiar na Igreja Luterana, em Curitiba, observa: 144 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Essa igreja é um celeiro de músicos. Além do Pastor Frank, da Esther Graf e seus filhos Frank, Ulrike, Hans, Joachim, Christiano e Martina Graf, lembro de outras famílias musicistas, como as de Ludwig Seyer, Cora D’Bruns, Sibylle e Brigitte Rauscher, Renate e Anette Weichselbaum. Também a Betty, minha filha, musicista, historiadora e professora na Belas Artes, iniciou sua vida musical nessa Igreja. Os filhos do Pastor Valdir Steuernagel, o Marcell e o Márcio (que foi aluno de história da arte da Betty na Embap), assim como as filhas do Pastor Egon Lohmann e da Rúbia, a Martina e a Caroline, são todos excelentes músicos. (SERAPHIM, 2011a) Esse relato permite perceber toda uma teia de relações sociais e afetivas, em meio à prática da música no núcleo familiar. Fazia-se Hausmusik pelo prazer de conhecer novos repertórios e de estar na companhia uns dos outros. Os Morozowicz A história da família Morozowicz no mundo artístico começa muito antes de ela chegar ao Brasil. Henrique Morozowicz (avô paterno do compositor Henrique [de Curitiba] Morozowicz), foi diretor de vários teatros poloneses e reconhecido escritor, dramaturgo e tradutor de peças. Natália, sua esposa, neta de uma pianista russa, foi importante atriz dramática. Seu filho, Tadeusz Morozowicz, nascido em Varsóvia, chegou ao Brasil em 1926 e radicou-se em Curitiba. Sua carreira já era sólida como coreógrafo e solista de ballet, tendo realizado tournés nas mais importantes cidades do mundo. Foi responsável pela primeira escola de ballet do Paraná, segunda no Brasil, junto à Sociedade Thalia, em 1927. Casou-se com a pianista Wanda Lachowski e com ela teve três filhos, todos dedicados à arte: Henrique, compositor; Norton, flautista e regente; e Milena, que seguiu os passos do pai no ballet ( JUSTUS; BONK, 2002, p. 25). A formação musical de Henrique tem relação íntima com o ballet de seu pai: Nasci e me criei em Curitiba (1934), filho de pais poloneses. Cidade considerada meio europeia, cheia de polacos, ucranianos, alemães e italianos, além de outras minorias étnicas. A música era uma das atividades marcantes da cidade. […] Por ser um bom pianista acompanhador, treinamento que iniciei aos dez anos no Curso de Ballet de meu pai, conheci algumas canções brasileiras do repertório de cantores, inclusive de Bento Mossurunga, uma espécie de Smetana paranaense. (MOROZOWICZ, 1995, p. 87-100) Henrique casou-se com Ulrike Graf. Sua filha, Carina, tornou-se oboísta. Norton casou-se com Glacy Antunes, exímia pianista de Goiânia. Todos praticam a música em família, tanto por prazer quanto profissionalmente. Os Garcez Duarte Henriqueta Garcez Duarte e seu marido, o engenheiro Eduardo, mostram uma perfeita simbiose entre uma exímia pianista, professora e organizadora cultural e um apaixonado amante da música. A atuação do casal transcende a prática concertística e a docência desenvolvidas por ela, e chega à organização cultural, na qual ambos se envolveram. Entre as suas principais iniciativas estão a criação e administração da Sociedade Pró-Música de Curitiba e a realização dos Festivais Internacionais de Música de Curitiba, ao lado do compositor e regente Padre José Penalva, que privava do convívio familiar do casal e do Maestro Schnorrenberg, de São Paulo. Trata-se de outra maneira de vivenciar a música em família: a da realização conjunta de eventos que foram decisivos para a carreira de ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 145 inúmeros estudantes e que congraçaram músicos profissionais brasileiros e estrangeiros de primeira linha. Durante as temporadas da Pró-Música e dos Festivais, instrumentistas e cantores vindos de todas as partes do mundo frequentemente se encontravam nas casas de músicos locais para uma descontraída experiência de Hausmusik, inclusive na casa do casal. Inglaterra, Espanha, Suíça e tantos outros” (EGG, 2011). Tudo isso, em meio à intensa atividade musical no círculo familiar. Na casa dos Thomas-Novello, a prática da música era ininterrupta e não havia fronteiras quanto a quem era ou não da família, pois todos ali, especialmente os alunos, eram considerados “filhos”. Os Brandão Em meados da década de 1940, eram frequentes as Noites de Arte, de iniciativa de Diretórios Acadêmicos das Faculdades da Universidade do Paraná. Foi a partir deste movimento de estudantes e da liderança de Hélio Brandão, que surgiu a Orquestra Estudantil de Concertos, regida por Bento Mossurunga. Foi ali que Helio conheceu a pianista Ophelia Ribas Moreira. Logo se casaram e tiveram sete filhos. Em um Concerto de Advento, na Igreja Presbiteriana, no início dos anos 70, apresentou-se o coral da família Brandão, sob regência de Hildegard Soboll Martins. Foi geral o encantamento, dados o refinamento expressivo e a afinação perfeita do grupo. Além disso, Os Soboll - Martins Hildegard Soboll Martins e seu marido Gedeão, tiveram papel relevante no cenário musical curitibano. Ambos violinistas, regentes e professores, tinham a seu cargo, das décadas de 1960 a 1980, ele a Orquestra Sinfônica da Universidade Federal do Paraná e ela a Orquestra Juvenil da Universidade Federal do Paraná. O trabalho didático de Hildegard frente à Orquestra Juvenil3 marcou toda uma geração de músicos, muitos dos quais, membros das muitas famílias musicistas da cidade: Bettina e Thomas (filhos dos violinistas Rudi e Ruth Jucksch); Maria Esther, Maria Alice, Zélia, Eunice, Helinho, Renato e Maria Luiza (filhos dos músicos Helio e Ophelia Brandão); Elisabeth e Eliane (filhas da cravista e pianista Ingrid Seraphim); Simone, Vanessa e Adriane (filhas da violista Edna Savitzky); Fernandinho (filho do violinista Fernando Thá); Maria Luiza, Péricles, Elgson, Claudia (filhos do músico e arquiteto Elgson Rodrigues Gomes) Felipe, Alberto e Alexandre Klein (filhos do engenheiro Felipe Klein); e outros. Hildegard introduziu, ainda, o Método Suzuki em Curitiba, preparando toda uma equipe para o ensino de violino, piano e flauta doce. Atualmente, a família Savitzky continua este trabalho para cordas. Maria Helena Carollo, por sua vez, assumiu a parte referente ao piano. Das suas filhas, Helena Alice é violista, casada com Marcos Damm, violinista; Helena Bel integra o grupo de MBP O tao do trio. Dos novos núcleos familiares que continuam essa prática, são exemplos as famílias de Roberto e Alzira Hübner, Egon e Rúbia Lohmann, Alexandre e Catalina Klein, Marco e Alice Helena Damm, Osmar e Salete Chiamulera e outros. Sua história recente, de uma forma ou outra, está vinculada às famílias citadas. Todas as noites, no acolhedor salão da mansão da família Brandão, [...] o Dr. Hélio e a esposa Ophelia criaram o hábito de, após o jantar, fazer música. Assim, seria natural que as vocações florescessem e virtuoses aparecessem. Um hábito cultural cultivado no passado por várias famílias, especialmente de origem alemã – as tertúlias lítero-musicais – teve nos Brandão um encaminhamento voltado aos grandes mestres. (MILLARCH, 1991) Segundo depoimento de Eunice, em 1977, mais tarde tornou-se difícil fazer coincidirem os horários de todos os membros da família para ensaiarem à noite. Assim, todos acordavam às 5 horas da manhã, mesmo no inverno mais rigoroso, para ensaiar. Dr. Hélio, Maria Esther, Maria Luiza e Eunice tocavam violino, Zélia a flauta, Maria Alice o violoncelo, D. Ophelia e Renato revezavam-se ao piano e Helinho tocava o contrabaixo. Somente Renato não se dedicou profissionalmente à música. Os demais tornaram-se expoentes, principalmente em música barroca. Eunice deixou o violino e passou a estudar flauta doce e viola da gamba. Radicou-se na Suíça, onde fez carreira, tocando com os mais renomados especialistas em execução de época. Incentivou suas irmãs e amigos a estudar na Europa e organizou alguns Encontros de Música Antiga, o que teve grandes consequências na execução de época no Brasil. Os Thomas-Novello Neyde Thomas e Rio Novello, cantores líricos com vasta carreira na Europa e nos Estados Unidos, radicaram-se em Curitiba graças ao convite feito por Ingrid Seraphim e Paulo Bosísio para ministrarem aulas na Oficina de Música de Curitiba, ainda na década de 1980 (EGG, 2011). Logo o casal se mudou para Curitiba e fez da sua casa um local de ininterrupta vivência e aprendizado do canto lírico. Dividia seu tempo entre a carreira artística nacional e internacional, o magistério de técnica e aperfeiçoamento vocal em Curitiba e master-classes em cidades do país e do exterior. Ela foi durante muitos anos professora da Escola de Música e Belas Artes do Paraná e preparadora vocal das óperas do Teatro Guaíra e da Camerata Antiqua de Curitiba. Rio, por sua vez, continuaria sua carreira como tenor lírico. É imensurável a influência do casal no desenvolvimento do canto lírico nacional. Curitiba, sob sua liderança, tornou-se um grande polo do canto lírico brasileiro. Formariam “um grande número de cantores de destaque, atraindo gente de todo o Brasil para estudar na capital paranaense e emplacando alunos na vida musical em lugares como Alemanha, 146 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER A Hausmusik: dos modelos e da sua continuidade São vários os modelos da prática musical no núcleo familiar observados nesses exemplos. Eles abrangem mais de um século da vida cultural e social da cidade, além de se mostrarem extremamente importantes na vida privada e na pública, no lazer e na formação de novos músicos, no diletantismo e na profissionalização. Entre os padrões que se podem reconhecer estão · os grupos que se pode chamar de autênticos, que reúnem familiares e amigos para momentos de laser musical (Menezes, Itiberê da Cunha, Frank-Graf, Müller-Seraphim-Prosser, Jucksch, Seyer, Poeck e Brandão); 3 Henrique Morozowicz [de Curitiba], Ingrid Müller Seraphim, Henriqueta Garcez Duarte, Padre José de Almeida Penalva, Hildegard Soboll Martins e Neyde Thomas, tornaram-se os principais expoentes e líderes do movimento musical erudito da segunda metade do século XX em Curitiba. Atuaram como concertistas, regentes, compositores e professores. Criaram e organizaram importantes eventos e instituições, como a Camerata Antiqua de Curitiba e as Oficinas de Música de Curitiba (Ingrid), os Cursos Internacionais de Música, os Festivais Internacionais de Música do Paraná e a Sociedade Pró-Música de Curitiba (Henriqueta e Penalva), a Orquestra Juvenil da Universidade Federal do Paraná e a introdução do Método Suzuki em Curitiba (Hildegard), o Coro Pró-Música e o Madrigal Vocale (Penalva) entre outros. Estão entre os mais importantes professores da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Nota-se, novamente, a importância da Hausmusik, já que todos eles vinham da experiência da prática da música no núcleo familiar. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 147 · os ligados a orquestras e grupos de câmara que participavam de cultos e missas nas igrejas da cidade e que incluíam o regente ou organista, sua família e famílias das respectivas comunidades (as duas famílias Frank e seu círculo familiar e social); · os que reuniam em suas casas os concertistas cuja vinda a Curitiba ajudavam a organizar (Devraine-Frank, Müller-Seraphim e Garcez Duarte); · os que resultaram na formação de grupos e eventos permanentes (Menezes, Itiberê da Cunha, Soboll-Martins, Müller-Seraphim-Prosser, Garcez-Duarte); · os que faziam com seus alunos um núcleo familiar expandido (Menezes, Thomas-Novello). O papel instrumental desempenhado pela Hausmusik como espaço da sociabilidade e da cultura na formação musical nas várias gerações é evidente, assim como as questões identitárias que envolve, já que contribui tanto para a profissionalização e a colaboração profissional dos sujeitos, quanto para o fortalecimento de laços afetivos e traços culturais das comunidades e dos grupos que a praticam. A prática da música no ambiente familiar, nos seus diferentes modelos, sempre esteve presente na estruturação do cenário musical de Curitiba e contribuiu para o desenvolvimento artístico e didático dos seus músicos. Ampliou a experiência musical e cultural de cada um, concorreu para a construção do seu conhecimento sobre música, possibilitou o seu aprimoramento musical e ajudou a construir carreiras. Quanto ao ensino, mostrou-se igualmente relevante, pois o aprendizado musical se dava informalmente. A troca de informações, gravações e de material como partituras também contribuiu para uma efervescência cultural e possibilitou o surgimento de músicos, compositores, pesquisadores e organizadores culturais de peso. A Hausmusik oportuniza a difusão de bens culturais e provê estímulo informal ao fazer, saber e criar música, relacionando-se à construção de identidades e à formação das novas gerações de profissionais da música. Trata-se de uma prática comum de cunho social, cultural e educativo, que não pertence apenas à tradição e à memória, mas continua como prática comunitária, social e formativa. Referências AUGUSTIN, Kristina. Um Olhar Sobre a Música Antiga, cinquenta anos de história no Brasil. Rio de Janeiro: Edição da Autora, 1999. Disponível em: <www.millarch.org/artigo/os-brandao-levam-sua-musica >. Acesso em: 31 mar. 2012. MOROZOWICZ, Henrique [de Curitiba]. “Visões de meu passado musical, na perspectiva do presente”. 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Percebendo que tanto artesãos quanto rabequeiros que participavam da manifestação estavam em idade avançada e não tinham aprendizes, o Instituto de Artes do Pará – IAP no período de 2004 e 2006, através de projeto patrocinado pela PETROBRÁS fez uma interferência na Irmandade da Marujada de São Benedito de Bragança com o objetivo de preservar esses ofícios. A interferência atuou diretamente sobre o ensino e aprendizado de tocar e construir rabecas. Essa pesquisa teve como objetivo averiguar as consequências dessa interferência e se justifica pelo registro dessas mudanças. Ao mesmo tempo, este trabalho se propõe a servir de reflexão para auxiliar futuros projetos que tenham como objetivo interferência em uma manifestação popular. A pesquisa realizada seguiu a metodologia exploratória e descritiva, o que possibilitou descrever, explicitar e aprofundar ideias acerca do objeto de estudo. Foi constatado que a interferência causou impactos leves na manifestação popular, mas principalmente, teve um efeito expressivo na comunidade no sentido de oportunizar mais pessoas ao estudo da música. A Irmandade da Marujada de São Benedito de Bragança Festividades de São Benedito são comuns no Brasil assim como também eram comuns, no período colonial, a reunião de pessoas em irmandades com o objetivo de venerar um determinado santo. As pessoas que se associavam em irmandades, naquele período eram brancos, homens livres e escravos. Estes últimos motivados, principalmente, pela necessidade de se organizarem na nova terra e de ter uma liderança como era costume em seu país de origem. Qualquer outra forma de organização dos escravos que não fosse de cunho religioso era severamente combatida pelo senhor branco, o que provocava ameaças de revolta e constante fuga dos negros. Assim, o Brasil conta com o registro de várias irmandades. Em Belém, no Pará, é de 9 de agosto de 1682 o registro da primeira irmandade de negros denominada Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a segunda irmandade de negros do Brasil depois do Rio de Janeiro cujo registro é de 1639. Vicente Salles (2004) supõe que a Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos em Belém tenha tido origem na Congada e descreve que era constituída por Rei, Rainha e Príncipes. Todo ano era feita Coroação dentro da Igreja. Os brancos não ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 153 aceitaram de bom grado ver seus escravos vestidos com suas roupas e trataram de coibir aquela situação e o Bispo Frei Dom Miguel de Bulhões, através da resolução de 6 de maio de 1750, proibiu os folguedos alusivos ao Império no Pará. Mesmo assim, nos núcleos de colonização “desenvolveram associações religiosas em torno do culto aos santos católicos, as confrarias, em dois tipos principais: as Irmandades e as Ordens Terceiras” (NONATO DA SILVA, 2002, p. 8). A Irmandade de São Benedicto de Bragança foi criada em 03 de setembro 1798 (data do primeiro compromisso1) em Bragança, no nordeste do Estado do Pará através da iniciativa de quatorze escravos que residiam na cidade. Apesar de não haver nenhum documento comprovando esta informação, o estatuto de 1985 liga a manifestação da Marujada de Bragança ao início da irmandade. A Marujada de Bragança possui características bem diferentes de outras manifestações com o mesmo nome que acontecem no Brasil. Ela se constitui de danças e não tem nada a ver com autos encenados. Bordallo da Silva a descreve da seguinte maneira: “Nem uma só palavra é articulada, falada ou cantada, como auto ou como argumentação” (BORDALLO DA SILVA, 1981, p. 66). Quanto ao nome, marujada, não há registros históricos de quando e nem porquê essa manifestação popular de Bragança o adotou. Esse nome só aparece em documento oficial em 1946 sendo provável que apenas tenha vindo regulamentar uma prática existente há muito tempo. O historiador bragantino Dário Benedito Nonato da Silva sugere que esse nome seja herança trazida pelos escravos que chegaram à região vindos do Nordeste de quem os escravos residentes em Bragança teriam ouvido falar sobre os “ritos e autos dramatizados que se originaram nas águas, mesmo que [a manifestação que acontecia em Bragança] em nada se assemelhasse ao auto marítimo existente em todo o Brasil com o nome Chegança de marujos, nem lembrasse as tragédias da Nau Catarineta...” (NONATO DA SILVA 2002, f. 14). Outro fator que confirma a hipótese de adoção desse nome pela irmandade são as vestimentas. Elas não lembram em nada roupas de marujos ou de qualquer coisa vinculada a essa atividade marítima. O que as marujas falam é que a sua roupa é uma alusão as vestimentas usadas pelas escravas. De acordo com os bragantinos, a manifestação teve início a partir da intenção dos escravos em agradecer aos senhores a permissão dada para louvarem São Benedito e, paralelamente, a permissão para que pudessem antecipar de uma irmandade religiosa. As atividades dessa irmandade, desde seu início, não envolveram coroação de rei negro. A figura do rei foi substituída pela figura da capitoa (essa denominação pode ter ocorrido mais a frente, quando foi adotado o nome Marujada) e a corte por mordomos e mordomas, deixando explícito o caráter de servidão de seus integrantes. Atualmente, as comemorações a São Benedito em Bragança duram oito meses, sendo constituída em três etapas, motivo pelo qual Armando Bordallo da Silva (1981) a descreve como Ciclo de São Benedito. Fig. 2. Esmoleiros rezando a ladainha. Fig. 1. Vestimentas das Marujas e Marujo. 1Compromisso é o equivalente hoje ao estatuto de uma irmandade ou associação. 154 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER O ciclo inicia com a esmolação e dura oito meses (de abril a dezembro). Nesse período, três comitivas formadas por 10 homens saem a pé de Bragança e andam pelo município, chegando até o Maranhão, cantando folias, rezando ladainhas e arrecadando doações para o santo nas casas de fiéis previamente agendados. A festa religiosa em si tem início dia 18 de dezembro e encerra dia 26 com a procissão ao santo. A terceira etapa acontece no dia primeiro de janeiro quando ocorre a posse dos novos juízes d festividade. No bojo desses três momentos, além das folias e ladainhas acontecem missas, a procissão de São Benedito dia 26 de dezembro, cavalhada,2 a louvação dos marujos através das danças da Marujada, shows de música popular e quermesse. Todo esse longo ciclo é acompanhado 2 Cavalhada: torneio eqüestre com disputa de dois times. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 155 por música. Entretanto, dentro das atividades de dança da Marujada é que está inserida a rabeca, instrumento alvo desta pesquisa. A principal atividade da irmandade hoje está ligada às danças, que são denominadas de “parte cultural” 3 da festa. As danças tradicionais da Marujada são exclusivamente instrumentais e executadas por um grupo de músicos que são contratados para tocar a rabeca, o banjo, o tambor e o pandeiro. Esse grupo é chamado de Regional da Marujada. A rabeca na Marujada Não se sabe exatamente quando e nem como as danças que, originalmente eram e ainda são uma reverência aos senhores, passaram a ser também uma louvação a São Benedito. Esse acréscimo de intenções pode ter acontecido com o passar do tempo ou também pode ser que o agradecimento aos senhores, como dizem, tenha sido uma estratégia dos escravos para terem permissão de tocar seus tambores e executarem suas danças. Levanta-se essa hipótese, porque é possível, que em seu início, as danças tenham sido acompanhadas apenas por tambores e que com o tempo e a presença dos brancos fazendo parte da irmandade, tenham sido introduzidos outros instrumentos até chegar à formação conhecida hoje: rabeca, banjo, tambor e pandeiro. As músicas na Marujada não são cantadas4 As melodias são executadas pela rabeca, apoiada harmonicamente pelo banjo e ritmicamente pelo tambor e pelo pandeiro. Entretanto, nem os instrumentos e nem as músicas são mencionados em qualquer dos documentos que regulamentam a irmandade. Fig. 3. Regional da Marujada. 3 “Parte cultural” foi a denominação dada pela igreja por toda atividade da irmandade que não fosse ligada aos ofícios religiosos. Em 1986, a igreja conseguiu retirar da Irmandade da Marujada de São Benedito a organização da festa religiosa, assim como todos os seus bens como a Igreja de São Benedito, a organização das esmolações e da procissão. A irmandade a partir dessa data ficou apenas com a coordenação da cavalhada e de seus momentos de louvação através de suas danças. 4 O repertório musical da Marujada não tem nada a ver com a esmolação ou com os cantos católicos executados nos ofícios da igreja. Danças, esmolação e ofício são atividades distintas da qual a irmandade participa. 156 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER O grupo instrumental que toca para a Marujada dançar e a acompanha nos cortejos é chamado de Regional da Marujada Os músicos não são marujos e nem fazem parte da irmandade, com exceção do pandeirista, algumas vezes5. São contratados pelo presidente todos os anos durante o período da festividade de São Benedito e quando a Marujada é requisitada para fazer alguma apresentação extra. A importância da rabeca na manifestação se reflete também na hora do pagamento dos músicos. O rabequeiro é quem ganha mais. Depois dele vem o banjoísta. Aos percussionistas é destinada apenas uma “gratificação”. Não existe nenhum registro oficial que informe exatamente como a rabeca chegou à região bragantina e nem como passou a fazer parte da Marujada. Por outro lado, marujos mais antigos afirmam que a rabeca está presente na manifestação desde o seu início. A interferência Em 2004, o Instituto de Artes do Pará – IAP - realizou em Bragança um projeto patrocinado pela PETROBRAS intitulado Tocando a memória: rabeca, cujo objetivo foi resgatar a arte de construir e tocar rabecas naquela região. O projeto foi justificado pela ausência de aprendizes, tanto de tocadores quanto de artesãos de rabeca na região, e essa situação suscitou preocupação por parte da instituição, por uma provável extinção desses ofícios em Bragança e consequentemente uma possível ameaça à manifestação da Marujada. A intervenção foi realizada em princípio, por meio de oficinas de construir e tocar rabecas com instrutores da comunidade, seguida pela elaboração de inventário editado pelo IAP com o mesmo nome do projeto. Esse livro tem como conteúdo a origem da cidade de Bragança, da festa de São Benedito, a presença da rabeca na manifestação, os passos da construção da rabeca e procedimentos e resultados da Oficina de Tocar Rabeca. Acompanha o livro um caderno de partituras com a transcrição da Marujada e um DVD que pretendia realizar em imagens os passos do inventário, mas acabou tendo uma direção mais artística. A oficina de construção da rabeca foi entregue à responsabilidade do artesão mais antigo e, na época, também um dos músicos do regional da Marujada. A metodologia sugerida pela coordenação das oficinas foi a imitação, visando a preservação da tradição oral de ensino e aprendizado. Dessa maneira, o artesão confeccionaria um instrumento e os aprendizes, a partir da observação, tentariam fazer igual. Essa oficina teve um aproveitamento aquém das expectativas. Dos dez inscritos, apenas um conseguiu concluir o instrumento. Isso porque o rapaz tinha experiência com marcenaria e sabia trabalhar com madeira. Os demais não conseguiram montar seu instrumento. Em seguida ocorreu a Oficina de Tocar Rabeca que foi entregue ao tocador oficial da Marujada. Essa oficina iniciou da mesma foram que a anterior: o tocador tocava e os aprendizes tentavam imitá-lo. Passado alguns dias de seu início, os alunos foram até o presidente da Marujada se queixar de que Seu Zito não estava conseguindo “ensinar”. O que acontecia é que cada vez que o rabequeiro repetia um trecho do Retumbão para os alunos tocarem, ele o fazia de forma diferente e os alunos não conseguiam acompanhar. A solução encontrada para resolver a situação foi a de procurar um professor de música que pudesse auxiliar o mestre rabequeiro a transmitir seus conhecimentos e maneira de 5 O pandeirista pode ser marujo caso o presidente não tenha conseguido contratar um percussionista. Nesse caso ele não recebe o pagamento. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 157 tocar para os alunos. Naquela época estava residindo em Bragança um professor, músico da Polícia Militar de Belém, que em 2000 fora cedido para o quartel da Polícia Militar de Bragança para desenvolver atividades socioculturais com a comunidade evangélica daquela cidade. O presidente da Irmandade de São Benedito e o coordenador das oficinas entraram em contato com ele para que participasse da oficina. O professor foi orientado no sentido de não interferir na posição dos alunos de segurar o violino assim como o arco. O mestre tocador oficial da Marujada deveria estar presente em todas as aulas e tocar para os alunos. Por sua vez, estes deveriam tentar imitá-lo e no final da oficina, os alunos deveriam, tocar o Retumbão6 e o Xote Bragantino. Para poder cumprir o prazo e as metas estipuladas para a oficina, o professor precisou criar uma partitura numérica que auxiliasse os alunos a memorizar a dedilhação da melodia no braço do instrumento. O outro recurso que precisou usar foi um afinador eletrônico para afinar as rabecas dos alunos na mesma altura da rabeca do mestre rabequeiro. A Oficina de Tocar Rabeca conseguiu alcançar êxito, e todos os alunos inscritos conseguiram alcançar as metas traçadas. Consequências da interferência É importante destacar que, em nenhum momento, na comunidade da Marujada de Bragança, foi observado algum tipo de rejeição às ideias propostas pelo IAP e nem na forma como elas foram aplicadas. Ao contrário, foi uma ação bem-vinda e isso aconteceu principalmente pela forma como o projeto chegou até a mesma, através de uma pessoa da própria comunidade que trabalhava no Instituto de Artes do Pará. Em 2009 foi constatado, durante as pesquisas de campo deste trabalho, que a utilização da metodologias de ensino e aprendizado adaptado à tradição oral propiciou a continuidade do ensino e aprendizado de tocar e construir rabeca em Bragança. Constatou-se também que é possível formar um rabequeiro que vá atuar na Marujada sem o aprendizado caseiro, familiar e cotidiano do instrumento próprio da tradição oral. A convivência com os mestres rabequeiros irá propiciar a especialização do futuro tocador. A oficina de Tocar rabeca também possibilitou a formação de grupos artísticos com a presença da rabeca. A partir da criação desses grupos a rabeca ganhou nova projeção na sociedade bragantina para além das fronteiras da manifestação. O grupo, assim como os novos rabequeiros, passaram a ser requisitados para se apresentarem em locais como praças públicas durante eventos da prefeitura ou de outro órgão ou instituição local, tocar em casamentos, missas, em hotéis etc. O desenvolvimento das atividades musicais com o grupo de rabeca gerou outra necessidade que foi a introdução da leitura musical. Assim, a partitura numérica introduzida pelo durante a oficina do IAP foi substituída pela partitura convencional e isso levou a necessidade de planejar aulas mais estruturadas com conteúdo musical. Entretanto, os novos rabequeiros que estão atuando na Marujada, aprenderam tirar músicas de ouvido. Essa habilidade é indispensável para a apreensão do repertório musical dos rabequeiros antigos. A afinação do instrumento através de aparelhos eletrônicos foi incorporada pelos novos rabequeiros. Entretanto, por causa da prática cotidiana, eles já conseguem afinar seus instrumentos sem esse recurso. 6 Retumbão, lundu de autoria desconhecida, tradicional da Marujada. 158 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Fig. 4. Rabequeiro afinando o instrumento. Devido à formação musical de um dos novos rabequeiros antes de participar da oficina de Tocar Rabeca do IAP,7 hoje, desempenhando a função de professor de rabeca, vem conduzindo os novos aprendizes a segurar o violino e o arco de maneira quase erudita, isto é, o corpo do instrumento mais perpendicular ao corpo e a mão direita por cima da castanha do arco. A medida que o trabalho tornava-se mais elaborado, as pessoas da própria comunidade sentiam necessidade de criar associações (isso levou a divisão do grupo). Essas associações tiveram como objetivo dar continuidade ao ensino e aprendizado de construir e de tocar rabeca. Ambas procuraram manter o modelo de oficinas implementado pelo IAP. Fig. 5. Rabeca de cedro construída por Josias. 7 Quando foi participar da oficina de tocar rabeca do IAP, ele estudava violino. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 159 Atualmente a arte de construir rabecas em Bragança vem utilizando instrumentos de precisão como paquímetros e trenas além de ferramentas eletrônicas como torno e lixadeira elétrica. Com as novas ferramentas, estudo da estrutura de violinos de fábrica e a descoberta de vídeos de luteria italiana na internet, as rabecas bragantinas já estão alcançando a afinação padrão do violino italiano. Hoje os artesãos de rabeca em Bragança além de estar utilizando algumas técnicas de construção de luteria, como dobrar as laterais usando uma estrutura de metal e fogo, estão construindo o instrumento usando as mesmas proporções dos violinos italianos e também experimentando novas formas no instrumento. Antes do IAP realizar as oficinas, um dos artesãos antigos percebeu o mecanismo de estiramento e afrouxamento da crina em um arco de fábrica. Resolveu construir os arcos das rabecas usando o mesmo mecanismo. Então, adaptou uma porca soldada a um pequeno parafuso que inserida dentro do arco recebia um puxador de gaveta moldado nas dimensões do arco e que reproduzia o afrouxamento e estiramento da crina. Esse mecanismo está sendo usado pelos novos artesãos que procuram dar ao instrumento um acabamento bem próximo aos violinos de fábrica. A partir da observação do keiser de um violino de fábrica, os artesãos passaram a construir caixas equivalentes para as rabecas, esculpidas no isopor, forradas externamente com napa e internamente com feltro, fechadas por zíper. Fig. 8. Rabeca em um keiser construídos pelo artesão formado na oficina do IAP. Fig. 6. Mecanismo de estiramento e afrouxamento da crina. A crina vegetal é retirada de uma planta conhecida na região por manilha. A fibra é extraída após um processo de molho de alguns dias, maceração, limpeza do resíduo orgânico e secagem. Fig. 7. Crina vegetal. 160 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Os novos artesãos também criaram uma prensa que reduziu bastante o tempo de colagem dos tampos das rabecas, aumentando, dessa, forma a produtividade. Assim, durante as oficinas, é possível colar todos os instrumentos em dois ou três dias. A projeção sonora acústica dos instrumentos ainda é um assunto que não foi pensado pelos novos artesãos. Esse problema vem sendo resolvido, até agora, através da amplificação eletrônica principalmente por causa do aumento de pessoas (turistas e devotos) que vão assistir as atividades da Marujada durante a festa de São Benedito. Por conta disso, desde 2004 houve a necessidade de amplificar o som da rabeca, pois os marujos estavam reclamando que não conseguiam ouvir as melodias para dançar. A formação de grupos artísticos com atuação em eventos externos também contribuiu para a amplificação da rabeca, assim como também de todos os instrumentos que fazem parte do grupo. Hoje é difícil ouvir a rabeca sem amplificação. Observando a necessidade de ampliação do som da rabeca, um dos novos artesãos começou a inserir em seus instrumentos, captadores de som para cabo P-10 (mais conhecido como cabo banana-banana). Fig. 9. Rabeca Com adaptação para cabo P-10. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 161 Como uma forma de manter a tradição do regional tocar acusticamente, a irmandade ainda mantém os cortejos para os almoços e os cortejos da igreja para o museu sem amplificação. Os novos espaços de aprendizado de música abertos em Bragança, por sua vez, passaram a incentivar o aprendizado de outros instrumentos como flauta doce, saxofone, clarinete, trompete, etc. Discussão e conclusão A primeira ideia dos coordenadores das oficinas do IAP foi realizá-las por meio do método da imitação. A imitação é, segundo Merriam (1964, p. 146), a forma “mais simples e indiferenciada de aprendizagem”,8 então, por que não deu certo? A aprendizagem por imitação como bem descreveu Merriam é o processo mais simples, mas parece requerer um ambiente informal e está diretamente relacionada a um aprendizado de convivência e a um determinado contexto. Sobre isso, Gomes (1999), tratando sobre a formação musical de músicos que atuam nas ruas de Porto Alegre constatou que o meio de convivência dos músicos, desde criança até a vida adulta, foi fator primordial para o aprendizado e desenvolvimento de suas habilidades musicais [...]. Uma formação que, apesar de dizerem ser individual e sem professor (“eu aprendi sozinho”), aparece ligada à convivência social, às oportunidades e às motivações encontradas em seu meio (GOMES, 1999, p. 39). Pessoas reconhecidas por uma sociedade como detentoras de saberes específicos são tratadas como mestres e “são referencias vivas. Possuem histórias de vidas de tradição oral fascinantes e a habilidade de ensinar ofícios e formar seres humanos melhores, com referências ao passado e a sua ancestralidade” (CASTRO et al., s. d., p. 2). Quando o IAP decidiu realizar o projeto na cidade, os mestres artesãos não tinham aprendizes há muito tempo. A intenção do IAP foi reproduzir nas oficinas a relação de mestre/aprendiz comum na tradição oral. Algumas coisas podem ter contribuído para não ter dado certo a metodologia inicial. Na Oficina de Construir Rabeca, uma das causas pode ter sido a falta de experiência dos alunos com a marcenaria. Para poderem realizar as tarefas com sucesso, os alunos precisariam de orientação, além da observação, pois esta não foi suficiente para eles cumprirem o cronograma. Outro fator que pode ser atribuído a esse resultado foi a falta de experiência dos próprios mestres construtores em ensinar o ofício. Essa mesma inexperiência pode ter dificultado a organização da oficina com preparativos necessários para facilitar a condução dos passos da construção do instrumento. Em relação a oficina iniciada pelo mestre rabequeiro oficial da Marujada, pode-se atribuir as mesmas dificuldades: a falta de experiência do mestre com aprendizes e, por outro lado, a falta de vivência dos candidatos com a música e com o instrumento. Outro fator que pode ter colaborado com o insucesso da proposta inicial foi a própria inexperiência dos coordenadores do IAP sobre o processo de construção e ensino do 8 Perhaps the simplest and most undifferentiated form of music learning occurs through imitation. 162 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER instrumento, que fez com que imaginassem que os mestres, sem experiência de ensinar outras pessoas e com alunos que não tinham conhecimento do manuseio de ferramentas, de trabalhar com madeira e sem vivência alguma em música, em um mês poderiam ser capazes de executar a tarefa programada. Por outro lado, todas as dificuldades elencadas acima não alcançaram o único aprendiz que concluiu a oficina do IAP. Por que? Seu pai era marceneiro. Ele cresceu em uma marcenaria. Aprendeu em casa a fazer alguns serviços com madeira e a utilizar algumas ferramentas. Ele levava as peças para trabalhar em casa com as ferramentas elétricas da oficina do pai e isso acelerava o processo da construção de seu “violino”. Todos esses requisitos o fizeram apto a responder a metodologia proposta pelo IAP, enquanto os outros enfrentaram mais dificuldades. Isso não quer dizer que os demais não pudessem conseguir, porém precisariam ser orientados de outra forma, mas a situação ilustra o que Gomes (2003, p. 26) afirma quando fala que a aprendizagem informal “depende das oportunidades vividas no meio de pessoas”. Essa reflexão aponta para outro fator que pode ter contribuído para o insucesso da aplicação da metodologia inicial: o deslocamento do processo de convivência social ou de casa para a escola. J. Vancina (1982, p. 158) define a tradição oral como “um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra”. Geralmente essa transmissão é feita no ambiente familiar ou em qualquer outro que não seja o de família, mas que tenha caráter de ligação coletiva. Em outras palavras, a transmissão é feita entre pessoas que compartilham um mesmo ambiente e geralmente o aprendiz já possui certa intimidade com o que está aprendendo por meio da observação. Prass (1999) tratando sobre os mestres de bateria de uma escola de samba, na cidade de Porto Alegre, reproduz a fala deste que dizia que não estava ali para ensinar, e continua o raciocínio: “quem ensina é a vivência socializadora na quadra, desde a infância, interagindo com a música e dança, com o mundo do samba e do carnaval.” (PRASS, 1999, p. 12) Continua a autora, comentando sobre o “estudo” do instrumento ser realizado apenas na quadra da escola, diferentemente do estudo formal de música onde o aluno treina sozinho. É na quadra da escola, porque nela estão os outros ritmistas, e é nas trocas, na observação do outro, que se aprende. A escola de samba, enquanto cenário coletivo, exige um forte envolvimento do aprendente, já que raramente ele vai ter momentos de atenção exclusiva para resolução de dificuldades específicas. A atenção do ritmista é, portanto, redobrada, porque suas batidas se refletem na execução coletiva (PRASS, 1999, p. 13). Toda essa situação chama atenção para o contexto onde se realiza o aprendizado por meio da tradição oral. Como foi descrito anteriormente, cada atividade dentro dessas manifestações tradicionais tem um contexto específico onde ocorre naturalmente a integração entre as pessoas e por meio disso, o aprendizado. No caso acima citado da escola de samba, a vivência com a música e dança acontecia na própria escola. Em Bragança, tanto artesãos quanto rabequeiros eram iniciados em suas artes no seio da família. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 163 Isso suscita reflexões mais profundas que fogem o âmbito deste trabalho, mas é interessante observar que na tentativa de adaptar a tradição oral à metodologia formal em Bragança, houve a necessidade de ser criada a figura do intermediário ou facilitador entre o mestre e os aprendizes. Uma pessoa que pudesse tratar os conteúdos da sabedoria popular didaticamente, mantendo a presença do mestre no convívio dos alunos. Como a Oficina de Construir Rabeca já tinha sido concluída, a figura do facilitador foi introduzida apenas na Oficina de Tocar Rabeca com o professor Abiezer. A aprendizagem musical é um processo de socialização em vários níveis, principalmente nos processos de transmissão oral da música de uma cultura. A educação “pode ser definida como o processo dirigido de aprendizagem, tanto formal quanto informal, realizado, em sua maior parte durante a infância e adolescência – que prepara o indivíduo para ocupar seu lugar como um membro adulto da sociedade”9 (MERRIAM 1964, p. 146). Nessa especificidade, por exemplo, está o aprendizado informal de uma atividade (ou mesmo um instrumento) com um membro da família. E finalmente a escolarização que diz respeito a aprendizagem em horário, local e período específicos com pessoas treinadas para aquela atividade específica. A mudança é um fenômeno inerente ao ser humano, isso quer dizer que com ou sem a presença da intervenção do IAP na manifestação da Marujada através das rabecas, algumas das mudanças apresentadas nesta pesquisa iriam acontecer. Childe (1986), abordando a evolução do homem, afirma que ajustes culturais provêm, muitas vezes, de adaptações ao ambiente onde as pessoas vivem. Essa adaptação pode ser física, vinculada ao ambiente (clima, solo, vegetação, etc.), e pode ser cultural (costumes, tradições, leis, crenças religiosas, etc.). Entretanto, tanto as modificações culturais quanto à evolução do homem estão ligados à adaptação ao meio ambiente. Isso tem influência direta na transmissão das tradições, visto que a herança social não é algo que seja transmitido geneticamente, mas a partir de ensinamentos que são adquiridos desde o nascimento. Sendo assim, “as modificações na cultura e tradição podem ser iniciadas, controladas ou retardadas pela escolha consciente e deliberada de seus autores e executores humanos” (CHILDE, 1986, p. 33). Apesar disso, a interferência institucional acelerou e direcionou um processo de mudança que poderia ter acontecido de outra forma. As oficinas de tocar e construir rabeca introduziram um novo processo de ensino e aprendizado dessas duas atividades que antes eram realizadas unicamente através da tradição oral. De lá para cá, aprender rabeca em Bragança ficou mais acessível por causa das escolas, mas o candidato deverá passar por um processo de aprendizado diferenciado da tradição oral, com metodologia mais acadêmica e estudo da linguagem musical ocidental. Em relação ao aprendizado dentro de uma sociedade Herskovits (1974) afirma que ele é o cerne da questão que levam a mudanças culturais em um processo que ele denomina de endoculturativos, isto é, um processo que inicia na infância e continua por toda a vida. Em se tratando de cultura popular, o processo endoculturativo está mais próximo da tradição oral e do convívio familiar. Entretanto, essa prática já deixara de acontecer em Bragança há algum tempo e foi o que levou à intervenção do IAP. É importante enfatizar que as mudanças que estão ocorrendo com a rabeca em 9Education - which may be defined as the directed learning process, both formally and informally carried out, for the most part during childhood and adolescence - which equips the individual to take his place as an adult member of society. 164 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Bragança (ensino, aprendizado e construção) passam pela decisão dos próprios indivíduos que fazem essa prática, através de suas necessidades e anseios. Sobre isso Blacking (1986) afirma que as mudanças são resultado de decisões feitas por indivíduos sobre o fazer musical ou a prática social e cultural, com bases em suas experiências de vida musical e social e suas atitudes em diferentes contextos sociais. (BLACKING, 1986 p. 3) Através desta pesquisa, ficou evidente a importância de ações de apoio às manifestações populares tradicionais do país, assim como a necessidade de projetos que investiguem as ações e impactos dessas interferências, com o objetivo de avaliar o alcance dessas ações. Isso é importante na medida em que se pretende alcançar cada vez mais êxito com os objetivos dessas ações, além de ser um cuidado que se deve ter no sentido de zelo e respeito com a comunidade. Como contribuição a futuros projetos com esse objetivo, enfatiza-se a participação da comunidade na elaboração e execução dos mesmos, assim como nas áreas de atuação da interferência, para assessorar na formatação das ações e garantir que estas estejam de acordo com o anseio da comunidade. Da mesma forma, é importante que o órgão responsável pelo projeto esteja disposto a modificar e readaptar suas ações de acordo com as necessidades da comunidade e até mesmo modificá-las, no decorrer da interferência, se for o caso. Referências BLACKING, John. “Identifying processes of musical change”. The World of Music, v. 28, nº1, p. 3-15, 1986. BORDALLO DA SILVA, Armando. Contribuição ao Estudo do Folclore Amazônico na Zona Bragantina. 2ª ed. Belém: Falângola, 1981. CHILDE, Gordon. A evolução cultural do homem. Trad. Waltensir Dutra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. GOMES, Celso Henrique Sousa. “Formação e atuação de músicos das ruas de Porto Alegre: um estudo a partir dos relatos de vida”. Revista Em pauta, v. 14/15, novembro/98-abril/99. Porto Alegre, 1999. HERSKOVITS, Melville J. Man and His Works. Tomos I e II. 4ª ed. em português, traduzido da 8ª ed. em inglês por Maria José de Carvalho e Hélio Bichels. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1974. MERRIAM, Alan P. 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ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 165 Patrimônio imaterial no cavalo-marinho de Pernambuco Paulo Henrique Lopes de Alcântara Universidade Federal da Paraíba O cavalo-marinho é um patrimônio cultural característico da zona da mata norte de Pernambuco que mescla música, dança e poesia, associado a um conteúdo dramático, cultivado predominantemente por cortadores de cana-de-açúcar que se julgam portadores de uma tradição transmitida ao longo de gerações. Essa manifestação da cultura popular, entretanto, encontra-se atualmente em um processo de registro, documentação e patrimonialização, a fim de receber o título de Patrimônio Imaterial, a partir das predisposições do Decreto-Lei 3.551/00 que instituiu no Brasil o “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial”. O objetivo deste artigo é acompanhar a evolução das concepções das políticas de patrimônio cultural de uma abordagem monumentalista para uma perspectiva mais antropológica, e encontrar suas consequências no processo de patrimonialização do cavalo-marinho de Pernambuco. Quando falamos em patrimônio cultural, estamos nos referindo a uma riqueza produzida no passado e herdada pelo presente, digna de preservação para as gerações posteriores. Esse patrimônio, entretanto, não é algo dado, uma simples herança a ser transmitida. Ela é uma produção histórica, fruto das relações e negociações entre diversos grupos sociais. A princípio, essa preservação se limitava a monumentos e objetos depositários da memória coletiva. Porém, as alterações sofridas pelas acepções do conceito de cultura e patrimônio, no campo das ciências humanas, contribuíram para a redefinição e ampliação do rol de bens a serem protegidos através do que, atualmente, chamamos de patrimônio imaterial. Por uma pluralidade do Patrimônio Cultural da Humanidade A noção de patrimônio cultural instala-se na Europa nacionalista de fins do século XVIII e início do século XIX associada ao conceito de nação, através da escolha e proteção governamental de objetos e monumentos representantes das origens étnicas e identitárias de cada Estado europeu. Evidentemente a ideia de patrimônio não é uma invenção moderna. Ela esteve presente no mundo Clássico e na Idade Média, sendo que a “modernidade ocidental lhe impôs os seus contornos semânticos específicos” (GONÇALVES, 2003, p. 22). Essa visão monumentalista do patrimônio acabou por associá-la à ideia de imutabilidade, centrando a atenção mais no objeto do que nos significados que lhe são atribuídos ao longo do tempo. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e outros órgãos internacionais assumiram inicialmente essa linha que valorizava os “grandes monumentos europeus” em detrimento das culturas não-europeias ditas “tradicionais”. O eurocentrismo desses órgãos internacionais passou a ser duramente criticado pelos países e grupos de tradição não-europeia, que passam a lutar pelo reconhecimento de sua cultura como patrimônio cultural da humanidade. A fim de atender a essas reivindicações, e se adequar à revisão epistemológica do conceito de bens ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 167 culturais promovida pelas ciências humanas, que passaram a encarar esse patrimônio mais do ponto de vista humano e simbólico do que materialista, a UNESCO passou a adotar o conceito de “patrimônio imaterial” para incluir práticas, celebrações, crenças e saberes nas políticas preservacionistas, substituindo a concepção meramente monumentalista por uma concepção mais antropológica.1 Essa transição, todavia, não ocorreu de maneira imediata, pois a forma de tratamento manteve-se distinta, uma vez que durante muito tempo, o estudo e a salvaguarda das formas de patrimônio cultural normalmente denominadas “imateriais”, em particular aquelas ligadas à vida cotidiana e às culturas populares, eram vistas como primos pobres das políticas de conservação do patrimônio, se comparadas com os meios e esforços consagrados às obras de arte e aos monumentos. (LÉVI-STRAUSS, 2001, p. 23) O mesmo autor citado afirma que essa distinção de tratamento é consequência do “predomínio longamente confirmado em nossa cultura do escrito sobre o oral, da arte erudita sobre a arte popular, do histórico sobre o cotidiano, do aristocrático e do religioso sobre o profano” (LÉVI-STRAUSS, 2001, p. 24). Nos últimos anos, entretanto, essa hierarquização de valores e dicotomia entre duas formas distintas de patrimônio vem sendo dissolvida, a favor de um conjunto coeso de patrimônio cultural formado pelos seus aspectos materiais e imateriais. O cavalo-marinho em Pernambuco Constituído por música, dança, poesia e teatro, sendo brincado predominantemente por trabalhadores rurais da cana-de-açúcar da zona da mata norte de Pernambuco (MURPHY, 2008, p. 27), o cavalo-marinho é um folguedo que mescla o profano com o religioso, expressando tanto a realidade cotidiana de seus brincadores quanto o imaginário coletivo da região. Chamado de brincadeira ou brinquedo por seus praticantes, o cavalo-marinho, sob a forma de espetáculo, pode durar até oito horas, estendendo-se do início da noite até o sol raiar, não ocorrendo em um lugar fixo, podendo ser brincado na rua, na praça ou no pátio de uma igreja. Sua forma de organização espacial, todavia, é caracterizada pela roda, constituída pela população local e das cidades vizinhas, que criam uma moldura humana em forma de um pequeno círculo, onde o espetáculo transforma o familiar espaço público em um novo universo simbólico. As figuras são os personagens do cavalo-marinho, e os figureiros são os atores que as interpretam durante o desenvolvimento dramático do espetáculo. Em sua grande maioria, as figuras apresentam-se mascaradas, e os figureiros possuem grande liberdade de improvisação, assemelhando o cavalo-marinho, neste sentido, à Commedia dell’arte renascentista. Contando com cerca de 76 figuras, classificadas em humanas, animais, fantásticas e bonecos (OLIVEIRA, 2006, p. 501-502),2 a história contada na brincadeira aborda com muito humor as relações entre patrões e empregados que marcam a trajetória e a vida do homem da zona da mata norte de Pernambuco, bem como a expressão da moralidade, do cotidiano e da religiosidade da região. As figuras não só representam personagens, mas também etapas da brincadeira. As cenas possuem certa independência entre si, mas de maneira sucinta pode-se afirmar que o enredo 1 A atuação da UNESCO na ampliação do conceito de patrimônio cultural ocorreu através de documentos resultantes das conferências realizadas por essa instituição ao longo do século XX. Maiores detalhes sobre essas conferências podem ser vistas em PELEGRINI; FUNARI (2008). 2 A classificação do Érico José Souza de Oliveira é fundamentada na classificação de Hermilo Borba Filho, que divide as figuras em três categorias: humanas, animais e fantásticas. Ver BORBA FILHO (2007, p. 20). 168 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER cênico do cavalo-marinho gira em torno da figura do Capitão, que cede seu “terreiro” para a realização de um baile em homenagem a Santo Reis do Oriente. Para tomar conta da festa, o Capitão contrata os escravos negros Mateus e Sebastião (também chamados de Mateu e Bastião), que de maneira cômica recebem ao longo da noite uma sucessão de figuras que se dirigem ao Capitão para tratar de assuntos profissionais, falar de suas respectivas histórias de vida, ou apenas para se apresentar e sambar no terreiro. O conteúdo cênico culmina com a aparição, morte e ressurreição do Boi, última figura a entrar na roda. Além dos diálogos das figuras, o conjunto textual do cavalo-marinho é constituído por monólogos poéticos conhecidos como loas (louvações), que, segundo Mário de Andrade (1982, p. 30), “fazem hoje parte desengonçada de várias danças dramáticas”,3 cujos conteúdos nem sempre se apresentam coerentes com o contexto dramático, e onde a clareza das ideias ocupa posição secundária em relação às possibilidades de sonorização das palavras declamadas. As danças do cavalo-marinho apresentam grande ênfase na unidade inferior do corpo, através de movimentos rápidos e precisos. Suas variações são múltiplas, mas sempre enfatizam a pisada no chão ou a cruzada de pernas (ACSELRAD, 2002, p. 104). Cada brincador, entretanto, pode apresentar uma maneira particular de desenvolver seus passos, chamada de pantinho, elemento coreográfico nativo que expressa um estilo pessoal de sambar. A música apresenta importância fundamental para o cavalo-marinho, pois inicia e finaliza o ciclo da brincadeira, permeia suas estruturas internas, torna o ambiente propício para tal manifestação e promove um elo entre os demais elementos de natureza cênica, poética e coreográfica, além de sustentar a brincadeira durante horas ou uma noite inteira, sendo de grande importância para a estruturação do tempo, manutenção da atenção da plateia e conservação da energia dos brincadores (GONÇALVES, 2001, p. 34). O cavalo-marinho é brincado ao som de um conjunto musical chamado de banco, formado por rabeca (espécie de violino de fabricação local, constituído de quatro cordas afinadas em intervalos de quintas justas), pandeiro (principal instrumento na condução rítmica do cavalo-marinho), ganzá (ou mineiro) e baje (idiofone raspador), onde a rabeca é o único instrumento melódico que interage com as vozes dos instrumentistas em uníssono, duetos, ou em uma espécie de contraponto. Brincadores mais antigos afirmam que o bumbo e a viola também faziam parte do cavalo-marinho, cuja instrumentação era bastante flexível. Hoje, entretanto, a formação do conjunto instrumental desse folguedo apresenta-se de maneira mais fixa, formado basicamente pelos quatro instrumentos acima mencionados que, eventualmente, podem ser duplicados ou mesmo triplicados, para aumentar a sonoridade. A parte vocal é realizada pelos toadeiros, que são os próprios instrumentistas do banco. O primeiro toadeiro, geralmente o pandeirista, é responsável por “puxar” as toadas introduzidas pelo rabequeiro, sendo seguido pelos demais toadeiros que cantam em coro. A responsabilidade do toadeiro não se limita a conhecer o vasto repertório do cavalo-marinho, mas inclui a habilidade de criar rimas improvisadas. Segundo Murphy (2008, p. 70), as vozes estão virtualmente em afinação com a rabeca, embora a entoação possa ser diferente. A qualidade da voz usada no cavalo-marinho usualmente é aberta e cheia, mas também é muito comum o uso de um som mais nasalizado. A brincadeira do cavalo-marinho possui alguns gêneros de execução musical, sendo as toadas e os baianos os mais característicos. 3 O termo “danças dramáticas” foi utilizado por Mário de Andrade para nomear os bailados populares que apresentam um conteúdo narrativo. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 169 Os baianos se caracterizam por ser uma melodia rápida na forma de um pequeno refrão constantemente repetido, cantado na forma de pergunta e resposta, podendo também ser executado apenas instrumentalmente. As toadas são constituídas por estrofes puxadas pelo toadeiro e respondidas pelos toadeiros de apoio, alternando com um refrão cantado por todo o conjunto em uníssono ou em intervalos, geralmente de terças. Evidentemente a forma e o número de estrofes são variáveis, bem como certas melodias e textos que podem sofrer pequenas variações de um grupo para o outro, ou mesmo ao longo do tempo, fruto do contato do cavalo-marinho com outros folguedos populares, ou pela liberdade de improvisação dos seus toadeiros. Também é muito comum a hibridação entre melodias e textos de toadas diferentes. O patrimônio cultural do cavalo-marinho constitui um vasto repertório de canções, danças, poesias e histórias, presentes na vida e na memória dos brincadores, sendo transmitidas ao longo de gerações. No cavalo-marinho, assim como em outras culturas denominadas de “tradição oral”, a memória coletiva constitui-se no elemento fundamental de garantia identitária, sendo a sua transmissão uma condição necessária para a sobrevivência de suas estruturas materiais e simbólicas. Nas últimas décadas, entretanto, a sociedade comumente chamada de “moderna” vem ampliando a sua preocupação quanto à continuidade e sobrevivência dessas expressões tradicionais, desenvolvendo, para isso, dispositivos legais de proteção à cultura popular. 170 O cavalo-marinho e a política do Patrimônio Imaterial Ao se preocupar com nossa cultura, Mário de Andrade assumiu uma postura pioneira quanto à preservação de tudo que era criado e transformado pelo povo, ao propor um anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional em 1936. No entanto, as suas ideias tomaram um rumo diferente quando o governo do Estado Novo criou o Serviço ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)4 com a promulgação do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que limitou o conceito de patrimônio cultural à sua concepção material e monumentalista através da ação do tombamento. Esse documento legal manteve uma visão elitista e conservadora ao excluir do rol de bens patrimoniais as manifestações das classes populares, privilegiando os bens associados aos grupos sociais de tradição europeia, que no Brasil são, em sua grande maioria, os grupos identificados às classes dominantes (LONDRES, 2001, p. 189). Ao optar pela preservação da arquitetura de elite, como igrejas barrocas, casas-grandes, casarões etc. e excluindo as falas, as lendas, os cantos, as magias, a culinária indígena e as festas populares, o governo de Getúlio Vargas e Gustavo Capanema, então ministro da Educação e Cultura, contribuiu para produzir uma compreensão restritiva do termo “preservação”, entendida exclusivamente como tombamento. Somente a partir de meados da década de setenta, o IPHAN começou a cultivar uma nova perspectiva de preservação dos bens culturais com a introdução da noção de “referências culturais” dentro do vocabulário das políticas culturais. Esse novo conceito trouxe uma concepção mais antropológica da cultura ao enfatizar a atribuição de sentidos e significados dos diferentes sujeitos aos bens materiais e às suas práticas sociais. Um passo decisivo para a ampliação do conceito de patrimônio cultural no Brasil ocorreu com a publicação da Constituição Federal de 1988, que passou a incluir as expressões da cultura popular e dos “bens imateriais” no conjunto de patrimônios culturais brasileiros. A grande resposta brasileira à nova e crescente preocupação da UNESCO quanto à conservação do patrimônio imaterial foi a criação do Decreto-Lei 3551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu no Brasil o “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial”. Esse fundamento jurídico estabelece o registro e inventário como instrumentos para a identificação, documentação e reconhecimento dos bens culturais que não podem ser conservados através da prática do tombamento. Evidentemente que antes do decreto, folcloristas como Mário de Andrade, Edson Carneiro, Luiz da Câmara Cascudo e Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, dentre outros, já realizavam esse tipo de registro. Mas a importância do decreto reside, principalmente, na responsabilidade atribuída ao Estado para com a preservação das inúmeras criações culturais reunidas sob a genérica denominação de “patrimônio imaterial”. Dessa forma, o conceito de patrimônio imaterial entrou no cenário político brasileiro na década de 80, encontrando sua expressão máxima no Decreto-Lei 3551, gerando um número crescente de políticas públicas de proteção à cultura popular. Dentro deste âmbito, no final do ano de 2011, a ONG Associação Respeita Januário (ARJ), sediada no Recife, foi contratada pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE) para realizar o registro e documentação dos processos de formação, produção, reprodução e transmissão de aspectos históricos, artísticos e memoriais do cavalo-marinho pernambucano. Segundo a própria concepção do IPHAN, o primeiro passo para a preservação dos bens culturais é conhecê-los e identificá-los. Neste sentido, foi-se constituída uma equipe interdisciplinar envolvendo as áreas da antropologia, história e etnomusicologia,5 para a realização do estudo dos mais diversos aspectos que envolvem o universo do cavalo-marinho, procurando abarcar as cinco categorias de bens que estruturam um inventário: celebrações, formas de expressão, ofícios e modos de fazer, edificações e lugares. Os procedimentos de trabalho envolvem três etapas básicas: o levantamento preliminar, que consiste no mapeamento geral do bem a ser inventariado, a delimitação das suas regiões de ocorrência e de seus atores envolvidos; a identificação, que se desenvolve através de entrevistas e observações de campo, lançando mão de recursos como gravações, registros audiovisuais, fichas e questionários; e a documentação, que é a sistematização e interpretação das informações levantadas. O produto final consiste na elaboração de um dossiê e de um vídeo a serem enviados e submetidos à avaliação do IPHAN como solicitação da candidatura do cavalo-marinho ao título de Patrimônio Imaterial. Na fase do levantamento preliminar, pôde-se identificar a existência de doze grupos de cavalo-marinho em atividade, distribuídos nas pequenas cidades da zona da mata norte de Pernambuco, sendo um deles na região metropolitana do Recife. Com objetivos metodológicos, essas cidades foram agrupadas em três localidades, levando em consideração as proximidades geográficas e, em especial, as similaridades artísticas e estéticas de seus respectivos grupos. Nesta fase inicial também houve a identificação dos brincadores e de futuros informantes locais, bem como a distribuição dos pesquisadores entre as localidades e os grupos. 4 Instituição que precedeu o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), atualmente responsável pela preservação do patrimônio cultural, tangível e intangível, do Brasil. 5 O autor faz parte da equipe de pesquisa, trabalhando com o estudo da música no cavalo-marinho dentro de uma abordagem etnomusicológica. PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 171 A segunda etapa, ainda em andamento, fundamenta-se na identificação dos diferentes aspectos que compõem o universo do cavalo-marinho a partir de entrevistas, registros audiovisuais, aplicação de questionários e observação de campo, onde cada pesquisador vem exercendo sua atividade de acordo com suas especificidades de formação acadêmica. A última etapa consistirá na elaboração de um produto final na forma de um vídeo e de um dossiê de candidatura do cavalo-marinho ao título de Patrimônio Imaterial, ambos endereçados à avaliação do IPHAN. Patrimônio cultural e poder A preservação de traços culturais é uma demonstração de poder, uma vez que ela envolve a atribuição de valores, a seleção de critérios e procedimentos. A criação do Decreto-Lei 3551 marca uma transição de poder quanto à preservação de nosso patrimônio cultural, transferido-se da autoridade do saber (de folcloristas e intelectuais) para a autoridade política (o Estado), migrando de uma esfera marcadamente ideológica para uma esfera de negociações políticas. Se o registro escrito é sempre uma versão da realidade, no caso do processo de patrimonialização, essa versão é do Estado, que por meio do IPHAN assume o poder e a autoridade de seleção e legitimação do que deve ou não ser considerado patrimônio imaterial da cultura brasileira (ALENCAR, 2005, p. 86). Na verdade, todas as práticas, saberes, fazeres e manifestações dotadas de valores e significados dentro de uma coletividade sociocultural são patrimônios culturais, independente de uma nomeação nos círculos institucionais. O registro, entretanto, não tem como finalidade apenas a atribuição do título de “Patrimônio Imaterial” a um bem cultural. Ele é o passo inicial para ações posteriores de natureza mais prática. o Registro não é apenas uma inscrição num Livro Público ou meramente a outorga de um título. Nele estão implicadas uma série de ações em relação ao bem cultural imaterial. O Registro não é o fim em si. Para o Estado, o Registro é o início. É a partir dele que o bem cultural imaterial é transformado em Patrimônio Cultural do Brasil e pode receber as benesses favorecidas pela jurisdição. (ALENCAR, 2005, p. 84) A partir do processo de patrimonialização, o Estado passa a ter obrigações para com o bem cultural registrado, no sentido da criação de políticas de valorização e divulgação, bem como ações de apoio aos seus processos de transmissão e continuidade. O objetivo de um inventário não é o congelamento no tempo e no espaço das tradições populares, uma vez que a tradição encontra-se em constantes processos de ressignificações. É o seu registro em um determinado momento e lugar, tendo a consciência de sua estrutura mutante, procurando garantir aos seus atores sociais o estatuto de detentores de uma propriedade cultural/intelectual. Assim, o poder do Estado garante, através desse processo, uma nova atribuição de poder a esses atores sociais, proporcionando a eles a possibilidade de controle da produção, circulação e consumo de seus saberes e fazeres. Conclusão A transição das políticas de patrimonialização de uma perspectiva monumentalista para uma concepção mais antropológica deve ir além de uma mudança de abordagem metodológica. É preciso ver a cultura não como uma estrutura ou entidade com natureza própria, mas como uma criação de pessoas com sentimentos, necessidades e interesses. 172 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER O processo de patrimonialização do cavalo-marinho encontra-se em andamento, e ainda não é possível precisar a sua contribuição para a continuidade da tradição desse folguedo e de sua música em termos práticos. Embora as políticas culturais sejam extremamente importantes, a sobrevivência de uma tradição depende profundamente dos significados e valores que as pessoas lhe atribuem. É preciso, portanto, encarar esse patrimônio não apenas como um conjunto de práticas, fazeres e saberes dignos de proteção e investigação científica, mas também como um conjunto de significados que homens e mulheres atribuem ao seu mundo para melhor compreendê-lo e expressá-lo. Partindo desta concepção, acredito que a preservação política de expressões como o cavalo-marinho, deve ser delineada a partir dos sentimentos, necessidades e interesses de seus criadores, cabendo a eles a conservação desse patrimônio cultural enquanto o considerarem significativo para suas vidas e sua história. Referências bibliográficas ACSELRAD, Maria. Viva Pareia! A arte da brincadeira ou a beleza da safadeza – uma abordagem antropológica da estética do Cavalo-Marinho. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. ALENCAR, Rívia Ryker Bandeira. Será que dá samba? Mudança, Gilberto Gil e Patrimônio Imaterial no Ministério da Cultura. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, 2005. ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil (Tomo I). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1982. BORBA FILHO, Hermilo. Espetáculos Populares do Nordeste. 2.ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2007. 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Mas então, não é necessário utilizar um texto completo: podemos muito bem inventar os nossos próprios fonemas, encontrar por nós mesmos as sonoridades sobre as quais trabalhar.1 (XENAKIS, 1996, p. 25) Na adaptação musical feita pelo compositor Iannis Xenakis (1922 – 2001) da trilogia Orestes de Ésquilo, encontramos a influência de culturas de diversas épocas que têm forte ligação com a vida do compositor: a tragédia grega, o teatro Nô japonês, a música bizantina, e as sonoridades “xenakianas”. O compositor não teve intenção de realizar reconstituição histórica, mesmo se algumas convenções das tragédias foram conservadas (a língua grega antiga, a sobriedade nas cenas de assassinato, os gritos no final). A proposta de Xenakis foi compor música para um espetáculo audiovisual de forte condensado sonoro, ligando a poética de Ésquilo com o futuro da música. Para a sua adaptação do clássico, Xenakis se apropriou de materiais sonoros de civilizações e patrimônios de épocas diferentes, articulando-as com as suas próprias sonoridades. A análise dessa adaptação de Orestes, incluindo música, texto e cena, nos revela a importância e as singularidades dessa obra, revisada muitas vezes pelo compositor. Com cerca de 150 obras em seu catálogo, Iannis Xenakis compôs 25 peças com voz, das quais 14 utilizam textos. Apesar do compositor não ter utilizado frequentemente textos em música, mais da metade das suas obras vocais o fazem. Orestes foi uma das suas primeiras experiências na adaptação de um texto em música. Em contraste com muitas 1 Todas as traduções de citações em português são do autor desse artigo, sendo que o texto original se encontra nas notas de rodapé. “Il m’est peu souvent arrivé de mettre un texte en musique. Peut-être parce qu’il me semble qu’un texte, s’il est important, n’a guère besoin de musique: il se suffit à lui même. Aussi parce que je crois que le compositeur, par respect pour le texte sur lequel il a choisi de travailler, doit faire en sorte que celui-ci soit clairement dit et entendu, c’est qui est très difficile et très rare. Naturellement, on peut toujours se servir d’un texte pour le rendre musical – par exemple par le biais de phonèmes – et pour qu’il fasse en quelque sorte partie intégrante de la musique. Mais alors, il n’est pas nécessaire d’utiliser un texte complet: on peut tout aussi bien inventer ses propres phonèmes, trouver soi-même les sonorités sur lesquelles travailler.” ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 177 de suas obras, a peça apresenta relativa simplicidade na escrita para o coro, ausência de cálculos matemáticos,2 buscando fontes sonoras na música grega tradicional, na música bizantina, no teatro Nô japonês, e sem deixar de utilizar as suas próprias “sonoridades xenakianas”3 como veículo. Em Orestes, o compositor também trabalhou cuidadosamente com a espacialização do som,4 seguindo a estreia de Terretektorh5 em 1966. Se consideramos a trajetória pessoal de Xenakis, Orestes representa uma ponte ao seu país natal, a Grécia, que por muitos anos o condenou à morte oficialmente por “terrorismo político”, por ele ter participado na resistência comunista contra os ingleses, que ocuparam o país depois da saída dos alemães no final da segunda guerra mundial. Depois de ter o rosto desfigurado por uma explosão e ser perseguido, Xenakis deixou a Grécia e se instalou em Paris em 1947, tendo trabalhado por 12 anos como engenheiro no atelier do arquiteto Corbusier, tendo cada vez mais se dedicado à composição musical com as ferramentas que lhe eram familiares. O fato de Orestes ser a única peça revisada pelo compositor no seu vasto catálogo se justifica pela sua insatisfação com a estreia em Ypsilanti (EUA) e também pela sua grande admiração e respeito por Ésquilo, cuja obra foi conhecida durante a sua juventude. Esse autor clássico grego ganhou o concurso de tragédias 13 vezes, tendo escrito uma centena de obras, das quais nos restam apenas 7. Orestes é a única trilogia de Ésquilo que chegou completa até nossos dias: Agamenon, Coéforas, Eumênides. Orestes apresenta o retorno “vitorioso” do rei Agamenon após os 10 anos da guerra de Tróia, acompanhado de sua prisioneira de guerra, Kassandra. Ao chegar, Agamenon é assassinado por sua mulher Clitemnestra, com a cumplicidade do amante Egidio. Clitemnestra é morta em seguida pelo próprio filho Orestes, que por sua vez passa a ser perseguido pelas Erínias, entidades purgatórias, que serão convertidas depois em entidades protetoras de Atenas, representadas pelo coro de crianças no final da adaptação de Xenakis. Em Orestes podemos encontrar, dentre outros, a problemática da instauração do primeiro tribunal de justiça humano, o tribunal de Atenas, no lugar da antiga justiça divina baseada no “sangue pelo sangue”, fonte de espirais de violência. Tudo isso se passa já numa época distante para os contemporâneos de Ésquilo, mas apresentados sob uma nova forma para a época, a tragédia, que apresenta o homem como problema. 1.1 – Estreia musical de Orestes de Xenakis em Ypsilanti, EUA, 1966 A encomendada dessa obra foi feita pela cidade de Ypsilanti, (Michigan, EUA) em 1965, mesmo ano em que Xenakis obteve a nacionalidade francesa (nesse período o compositor vivia em Paris). A inauguração do teatro grego era uma homenagem às origens do nome da cidade.6 A partir dessa época, os habitantes deixaram de pensar que o nome 2 “Não há cálculo, talvez haja reminiscências de cálculos, resultados de cálculos. As vozes devem estar ao serviço da palavra nos casos de Orestes e Medeia”. Entrevistas radiofônicas com Iannis Xenakis, 3a emissão de 24 de agosto de 1992, France Culture, arquivos do INA, BNF, Paris. 3 Em resumo: sons glissandos, sons estáveis e sons pontuais (que podem ser “nuvens”). Para Xenakis, o global se forma pela organização de partículas elementares. Sobre o uso do cálculo de probabilidades por Xenakis e sobre sua a noção de massa, consultar SOLOMOS (1996, p. 43). 4 Organização dos sons no espaço, seja pelo uso da eletrônica com caixas de som, seja pela distribuição das fontes sonoras (instrumentos ou objetos) em diferentes pontos do local do concerto. 5 Peça para grande ensemble de 88 músicos, onde o maestro se encontra no centro, os músicos e o público misturados, o circundando. 6 Demetrius Ypsilanti lutou pela independência da Grécia da Turquia. No ano de 1825 ele defendeu com poucos homens a cidade de Argos contra um grande exército turco. Página internet www.ypsilanti.org (onde 178 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Ypsilanti vinha dos índios, e descobriram suas “nobres” origens gregas. A estreia foi realizada no dia 14 de junho de 1966, com regência de Constantin Simonovitch7, num teatro construído num estádio de baseball. Nenhuma gravação ou registro dessa versão foi encontrada. Xenakis compôs 1h40min de música (sem pausa) para os movimentos Agamenon, Coéforas e Eumênides. O texto foi cantado em inglês, a contragosto do compositor8. O texto em inglês parece ter sido uma imposição do diretor do teatro grego de Ypsilanti. A decepção do compositor, precedida de uma série de problemas administrativos9 e seguida de duras críticas à longa duração da peça, podem justificar as numerosas modificações. Nos primeiros manuscritos de 1966, os textos foram escritos em inglês e em grego na partitura, e logo após a estreia nos EUA, Xenakis pediu ao seu editor que o texto em inglês fosse retirado. Em seguida, o texto em grego antigo foi mantido junto com a escrita fonética. O autor fez outros cortes e modificações para formar a Suite Orestes, com duração de cerca de 35 minutos (menos da metade da versão original). 1.2 – Estreia cênica em Gibellina, Itália, 1987 Vinte anos após a estreia em Ypsilanti, Orestes foi montado com mise-en-scène de Iannis Kokkos para o festival Gibellina, na Sicília, Itália. Para essa ocasião, Xenakis acrescentou um prelúdio eletrônico no início (alguns minutos de Mycènes Alpha) e um novo movimento, Kassandra, duo para voz e percussão, inserido no final de Agamenon, pouco antes da morte de Clitemnestra. Essa peça foi escrita especialmente para os intérpretes Spyros Sakkas (barítono) e Silvio Gualda (percussão). Algumas razões contribuíram para que o sucesso da peça nessa ocasião: 1- A obra foi cantada em grego antigo (partitura com escrita fonética), assim como a Suite Orestes de 1967. Xenakis costumava imaginar com fascinação como os gregos antigos pronunciavam a sua língua. Questionada sobre a compreensão do texto cantado, Marie-Noël Rio, que trabalhou na montagem, declarou: Orestes não pertence ao gênero psicológico onde é importante compreender exatamente os diálogos, mas ao teatro épico, que é um debate de ideias: nesse caso, a invenção da lei e do perdão pelos homens, que marca o fim do arbitrário sangrento dos deuses. Não há necessidade de compreender o detalhe do texto, o grego antigo não representou nenhuma dificuldade, ao contrário: a sua qualidade fonética reforça o potencial de expressão dramática.10 nada sobre a estreia de Orestes foi encontrado). 7 Maestro que já tinha trabalhado com Xenakis na estreia de Hiketides as suplicantes de Ésquilo em Epidaure em 1964, com o Ensemble do Teatro Nacional da Grécia. Nessa ocasião o compositor estava todavia condenado à morte na Grécia, e por isso não compareceu. 8 Segundo Spyros Sakkas (barítono) e Françoise Xenakis (viúva do compositor). Comunicação oral de 20 de maio de 2005, Colóquio Internacional Xenakis, Atenas. 9 Por diversas razões, Xenakis assinou o contrato da encomenda bem tarde. Quando o regente Simonovic chegou aos EUA, ele trazia consigo apenas o primeiro movimento, Agamenon. Cartas manuscritas de Xenakis à Richard Kirshner, diretor do teatro grego de Ypsilanti, Arquivos Xenakis, BnF-Mus, Paris. 10 Entrevista conduzida por este autor; resposta de Marie-Nöel Rio, email de 21 de março de 2005: “L'Oresteia n'appartient pas au genre psychologique, où il importe de comprendre exactement les dialogues, mais au théâtre épique, qui est un débat d'idées: ici, l'invention par les hommes de la loi et du pardon, ce qui marque la fin de l'arbitraire sanglant des dieux. On n'a pas besoin de comprendre le détail du texte pour comprendre ça. Le grec ancien n'a posé aucune difficulté, au contraire: sa qualité phonétique renforce la puissance d'expression dramatique.” ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 179 2 – A peça foi executada a céu aberto, sobre um imenso platô, a amplificação e a espacialização dos coros e dos instrumentistas garantiram o impacto sonoro, apesar da vasta área aberta: O espaço de Gibellina era imenso, uma espécie de teatro do mundo, era muito interessante utilizar o que ele oferecia ao máximo. Iannis [Xenakis] não opinou sobre isso. Eram as escolhas da equipe de realização responsáveis pelo espetáculo.11 3 – A cidade de Gibellina pertencia à Grécia na época de Ésquilo. O poeta morreu em Gela, a cerca de 150Km de Gibellina. 4 – A convergência do antigo e do novo na música de Xenakis e em Gibellina. Essa cidade foi completamente destruída em 1968 por um terremoto. A sua reconstrução contou com muitos artistas, ligando de certa forma o seu passado recente trágico com o seu futuro, com esculturas e construções bastante ousadas, homenageando as vítimas da catástrofe natural. Orestes foi estreada nessas ruínas. 5 – A utilização de Mycènes Alpha como prelúdio. Essa peça, realizada no sistema UPIC por Xenakis, se refere à época longínqua e misteriosa que deu origem à maioria dos mitos da Grécia clássica. O uso de um trecho dessa obra no inicio de Orestes confirma a proposta do compositor de mergulhar o Orestes no futuro. A sugestão de incluir essa peça eletroacústica veio de Marie-Noël Rio: Fui eu quem sugeriu a Iannis (Xenakis) de utilizar Mycènes Alpha em Gibellina, como uma espécie de abertura sobre a paisagem natural. Era ligado a esse espaço, e nós não repetimos a experiência no Festival Musica 1987 [em Strasbourg, onde foi realizada a primeira gravação mundial]12 6 – O trabalho de mise-en-scène foi feito por uma equipe especializada (Yannis Kokkos, Marie-Nöel Rio), se levarmos em conta que Xenakis “não era um homem de teatro”.13 Nos permitimos aqui fazer uma nuance sobre as afirmações de Marie-Nöel Rio, lembrando que Xenakis concebeu diversas peças, como os Polytopes e o Diatope, a partir de reflexões sobre correspondências entre espaço, imagem e som. Além disso, ler Orestes de Ésquilo em grego antigo nos parece um privilégio para a compreensão da sua poética, mesmo que ele não seja um “homem de teatro” 7 – A composição do virtuoso duo Kassandra, para barítono e percussão. A adaptação sonora do diálogo desse personagem com o Corifeu deu ainda mais força dramática à intriga. Os dois intérpretes (Spyros Sakkas e Silvio Gualda) já tinham colaborado anteriormente com Xenakis. 11 Entrevista conduzida por este autor; resposta de Marie-Nöel Rio, email de 21 de março de 2005: “L'espace de Gibellina était immense, une sorte de théâtre du monde, c'était très intéressant de l'utiliser au maximum de ce qu'il offrait. Iannis n'est pas intervenu là-dedans. Il s'agissait du choix de l'équipe de réalisation, qui avait la responsabilité du spectacle.” 12 Entrevista conduzida por este autor; resposta de Marie-Nöel Rio, e-mail, 15 de março de 2005: “C'est moi qui ai suggéré à Iannis d'utiliser Mycènes Alpha à Gibellina, comme une sorte d'ouverture sur l'immense décor naturel. C'était lié à ce lieu et nous ne l'avons pas reproduit à la reprise au Festival Musica 87 [em Strasbourg].” [Sobre o local da estria, ver nota 22]. 13 Entrevista conduzida por este autor; resposta de Marie-Nöel Rio,e-mail, 15 de março de 2005: “Iannis [Xenakis] detestava os figurinos de Kokkos, ele preferiria túnicas gregas. Ele era um inovador na música, mas um conservador em teatro. Ele queria um canhão de luz vermelho em cima da Kassandra, para simbolizar o assassinato! Esse tipo de coisas. Quando eu digo “conservador”, é uma forma de falar que ele não entendia nada de teatro (onde aliás ele nunca ia). Isso nem é muito importante, e ele nunca perturbou ninguém no palco, mesmo quando ele não aprovava o que via.” 180 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER O único registro visual dessa montagem é o filme La geste Gibellina [O gesto Gibellina],14 de Hugo Santiago, fonalizado em 1989. 2 – Instrumentação de Orestes de Xenakis Violoncelo Flauta e Piccolo Oboé Requinta em mi bemol Clarinete contrabaixo Contrafagote Trompete em dó e trompete piccolo em si bemol Trombone tenor Trompa em fá Tuba Percussão (3 executantes): 2 tímpanos com pedais (grande e pequena), 2 bongôs, 1 caixa-clara, 1 bombo (muito grande), 2 wood-blocks, 2 tambores de corda, gongs (grande e pequeno), 1 chicote, 4 tom-toms, 2 brosses de nylon à long poils, 2 maracas, 1 grande véu metálico, 1 jeu de timbres (próximo de glockenspiel/celesta) Cada instrumentista (exceto os percussionistas) toca também os seguintes instrumentos: 1 triângulo (ou barras de aço de tamanho variável), 1 pandeiro sem chapinhas (os 10 pandeiros sem chapinhas são divididos em 5 alturas distintas, 2 por altura), 1 sirene de boca tipo Acmé, 1 carrilhão de vidro, 1 par de bandeiras metálicas (folhas de alumínio), 1 chicote. E mais 5 tambores chacoalhados, 5 chocalhos que serão tocados pelos 10 instrumentistas mencionados. Coro masculino 18 barítonos (mínimo, ou um múltiplo de 2 ou de 3) que tocam também os seguintes instrumentos: 1 pequeno tambor ou 1 bongô agudo 18 pares (mínimo) de simantras em madeira (madeira maciça ou tubo em madeira percutido com baqueta de madeira dura) 18 chicotes (mínimo) 18 sirenes de boca Acmé (mínimo) 18 bandeiras metálicas (mínimo), folhas de alumínio sacudidas 18 chocalhos (mínimo) 18 pares de simantra metálicas (discos de metal muito agudos percutidos com baquetas de triângulo) Coro feminino 18 contraltos (mínimo, ou um múltiplo de 2 ou de 3) que também tocam os seguintes instrumentos: 14 Esse filme passou na televisão francesa no canal France 3, em 28 de abril de 1990, Arquivos de l'INA, BNF, Paris. Segundo Françoise Xenakis, viúva do compositor, seu marido nunca quis assistir ao filme, que segundo ele teve um orçamento excessivo. Comunicação oral, 19 de maio de 2005, Colóquio Internacional Xenakis, Atenas, Grécia. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 181 18 pares (mínimo) de simantras de madeira 18 chicotes (mínimo) 18 sirenes de boca tipo Acmé (mínimo) 18 bandeiras metálicas (mínimo) 18 pares de simantras metálicos (mínimo) Coro de crianças 20 vozes (mínimo) 20 pares (mínimo) de simantra metálicos Público 200 pequenas folhas metálicas a serem distribuídas no final da obra, para que eles as sacudam alegremente, se unindo ao espírito do coro. Salientamos que no prefácio da partitura editada pela Boosey & Hawkes as percussões acessórias (triângulos metálicos, simantras de madeira, chicotes, sirenes de boca) são tocadas por todos os instrumentistas (salvo os percussionistas) e todos os membros do coro masculino, feminino e infantil. O objetivo de Xenakis com isso foi criar desde sons pontuais até sons de “nuvens” com diferentes timbres, densidades e direções. No final, até o público participa sacudindo folhas metálicas, em celebração à conversão das Erínias (purgatórias, vingadoras) em Eumênides (protetoras). Essa participação do público é atípica, senão inédita nas composições de Xenakis. Segundo o compositor, Uma das minhas ideias de base era de fazer aparecer na música a poética única da língua de Ésquilo e de resumir num forte condensado sonoro um clima arcaico, mas que ao mesmo tempo mergulhasse no futuro da música. [...] O drama não pode se exprimir pela música tonal, atonal ou serial. Isso por conta de suas filiações muito fortes à épocas específicas. E além do mais, a “sensibilidade” sonora da antiguidade não combina de forma alguma com as atmosferas sonoras de Wagner, Schoenberg e seus sucessores. Com as de Debussy e Ravel, talvez. Mas como imaginar o Kabuki ou o Nô tocados com a música “ocidental” ? Assim também o é, todas as proporções guardadas, com a música do teatro antigo.15 A escolha de 9 sopros, 3 percussões e apenas 1 corda para acompanhar o coro e também a sua orquestração nos revelam a vontade do compositor de gerar sonoridades ásperas e agressivas. A larga tessitura sonora (da tuba ao piccolo) contribui para a atmosfera “arcaica” e ao “forte condensado sonoro” que Xenakis nos fala. A amplificação dos instrumentos graves (contrafagote, clarineta contrabaixo) e também do violoncelo são exigidas pelo compositor, para um melhor equilíbrio com os outros instrumentos. Podemos fazer um paralelo com a instrumentação básica do teatro Nô japonês : voz, flauta e percussão, segundo ZEAMI 15 Programa do Festival Sigma 3, Bordeaux, 1967. Arquivos do Centre de Documentation de la Musique Contemporaine (Cdmc), Paris. “Une de mes idées de base était de faire apparaître dans la musique la poétique unique de la langue d’Eschyle et de résumer dans un très fort condensé sonore un climat archaïque mais qui, en même temps, plongerait dans l’avenir musical. […] Le drame ne peut s’exprimer par la musique tonale, atonale ou sérielle. Ceci en raison de leurs filiations trop fortes à des époques spécifiques. De plus, la ‘sensibilité’ sonore de l’antiquité ne s’accommode pas du tout avec les atmosphères sonores de Wagner, Schoenberg et leurs successeurs. Celles de Debussy et Ravel peut-être d’avantage. Mais comment imaginer le Kabuki ou le Nô joués avec de la musique ‘occidentale’? Ainsi en est-il, toutes proportions gardées, avec la musique du théâtre antique.” 182 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER (1960, p. 18). O “intruso” aqui é o violoncelo, único instrumento da família das cordas, sempre primeira voz nos gráficos manuscritos, porém não na partitura editada. Xenakis tinha terminado Nomos Alpha16 para violoncelo solo no mesmo período de concepção de Orestes. Essa peça virtuose explora muitas possibilidades técnicas do instrumento, e especialmente os harmônicos agudos. No prefácio de Chansons Grecques pour piano solo [Canções gregas para piano solo] de 1951, Xenakis descreve a música popular de seu país, e encontramos mais uma possível razão para o uso do violoncelo no Orestes: As melodias cantadas ou tocadas são essencialmente monofônicas. O coro de mulheres, homens e os coros mistos cantam em uníssono e na oitava, para os casamentos, festas religiosas ou simplesmente as feiras populares, etc. Quando eles acompanham a melodia, os instrumentos seguem em uníssono e emitem a tônica ou a sub-tônica, à semelhança do “isson”, pedal bizantino. [...] Além disso, as melodias em geral são diatônicas e claramente modais, e assim a ação da dominante e da sensível é secundária. [...] por outro lado, eu utilizo ainda o cromatismo total e a ausência de tonalidade na dança intitulada “Sousta”, que é executada no vilarejo por uma espécie de violino, um dos ancestrais do violino atual e que emite preferencialmente sons ásperos, ricos em harmônicos superiores.17 (XENAKIS, 1951) 3 - Análise de Orestes No começo, nossa análise consistiu na transcrição gráfica da partitura editada sobre uma série de folhas coladas e sem interrupção. As partes cantadas, instrumentais ou mistas foram assim dispostas linearmente, o eixo vertical representando as alturas, enquanto o eixo horizontal o tempo (em minutos e segundos). Isso nos permitiu uma visão global da obra. Esse procedimento se trata justamente do caminho inverso adotado por Xenakis para compor: no início ele desenhou sobre papel milimetrado, para depois transcrever a partitura de Orestes em notação musical tradicional. Para continuar nossa análise nos foi indispensável identificar e classificar a escolha dos versos18 feitos pelo compositor em cada tragédia (Agamenon, Coéforas e Eumênides), para integrar o quadro panorâmico qualitativo de versos (ver 3.1). Dessa visão panorâmica, a análise focalizou nos detalhes de cada sequência, com a tradução do texto em francês, reproduzindo trechos da partitura e vários exemplos sonoros.19 Convém lembrar que há versos nas sequências instrumentais, acrescentados na última revisão do compositor em 1992, que de acordo com ele “deve16 Estreada em 1966 por Siegfried Palm em Bremen, Alemanha. Nomos Alpha é na sua concepção a obra mais complexa de toda a produção do compositor. De acordo com SOLOMOS (1996, p. 46), “Se trata também da obra mais “parametrizada”, não somente de Xenakis, mas talvez de toda a história da música: nela podemos contar treze parâmetros!” 17 Iannis Xenakis, Chansons Grecques pour piano solo, 1951, prefácio da partitura manuscrita (cópia), BnF-Mus, Paris. “Les mélodies chantées ou joués sont essentiellement monophoniques. Le choeur de femmes, hommes et les chœurs mixtes les chantent à l'unisson ou à l'octave, pour les mariages, fêtes religieuses ou simplement les foires populaires, etc. Quand ils accompagnent la mélodie les instruments suivent à l'unisson et ils émettent la tonique ou la sous-tonique à l'image de "l'isson", pédale byzantine. [...] De plus les mélodies sont en général diatoniques et nettement modales donc l'action de la dominante et de la sensible est secondaire. [...] J'utilise d'autre part le chromatisme total et le manque de tonalité dans la danse intitulée "Sousta" qui est exécutée au village par une espèce de petit violon, un des ancêtres du violon actuel et qui émet plutôt des sons âpres, riches en harmoniques supérieurs.” 18 Indicados “st” na partitura, abreviação em grego, “que diz respeito aos versos”. A. Bailly, Le Grand Bailly, Dictionnaire Grec-Français, Paris, Hachette éditions, 2000, p. 1794. 19 Ambos ausentes nesse artigo resumido, mas disponíveis na versão completa da tese de mestrado (BITTENCOURT, 2005). ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 183 riam clarificar a interpretação musical para o benefício do maestro, dos cantores, dos instrumentistas e do diretor, se eles desejassem ter uma melhor compreensão da peça”.20 Os cortes feitos na versão original de 1966 foram igualmente indicadas, e pudemos constatar que os capítulos de Ésquilo foram seguidos. Mycènes Alpha, Kassandra e La Déesse Athéna, não farão parte da nossa análise detalhada. Orestes =3 vozes claras de homens Electra = 3 vozes graves de mulheres Atena=3 altos + 3 tenores Coro/Corifeu=2 vozes sobreagudas de mulheres + 2 vozes graves de homens 3.1 – Quadro panorâmico quantitativo de versos Agamenon Coéforas Eumênides Orestes número de número de número de versos cantados versos falados versos - partes instrumentais 7 4 19 4 30 10 7 24 1 18 58 30 número total de versos 30 44 32 106 Podemos constatar através deste quadro que de um total de 106 versos no Orestes, 58 são falados, 29 versos correspondem a sequências instrumentais, e somente 18 são cantados. Entretanto, esses quadros devem ser considerados com algumas reservas: o primeiro (qualitativo) se limita a classificar os versos iniciais indicados na partitura, sendo que a sua extensão não é indicada, com exceção do final de Eumênides. A cronometragem das sequências vocais da primeira gravação mundial21 colocadas em relação com a duração de cada movimento nos deu os seguintes resultados: 3.2- Visão global das durações duração total Agamenon Coéforas Eumênides Orestes 14’34’’ 11’43’’ 9’17’’ 35’34’’ duração-sequências vocais 3’54’’ 5’20’’ 5’24’’ 14’38’’ porcentagem de sequências vocais 27,4% 45,5% 58% 39,3% Os movimentos são cada vez mais curtos e as vozes cada vez mais presentes. De um ponto de vista panorâmico, o uso da voz torna-se mais denso do início ao fim. Porém, esse último quadro não distingue os versos cantados dos falados. 20 Carta manuscrita em inglês de 26 de fevereiro 1992 a Ian Julier, diretor da editora Boosey&Hawkes. Arquivos Xenakis, Dépôt BnF-Mus, Paris. 21 Oresteïa, CD Montaigne (MO 782151). Maîtrise de Colmar, Ensemble Vocal d’Anjou, Ensemble de Basse Normandie. Gravação ao vivo realizada pela Radio-France do espetáculo produzido pelo Atelier du Rhin et Production artistique Réalisations Internationales no Festival Musica de Strasbourg, Igreja Sainte Aurélie, dias 4 e 6 de outubro de 1987. 184 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER 3.3 – Balanço da análise de Orestes A evolução dos coros no Orestes de Xenakis pode ser resumida assim: Agamenon: coro de homens Coéforas: coro de mulheres, 3 vozes graves de mulheres (Electra) + 3 vozes claras de homens (Orestes) Eumênides: coro de mulheres, coro de homens + coro de crianças (apenas no final) Agamenon é o movimento menos falado e também o menos cortado da trilogia. A orquestração é mais rica do que nos outros movimentos. A proposta do compositor de tornar o texto compreensível (para os que falam grego antigo) é clara, o que não será sempre o caso com Coéforas e Eumênides, que têm momentos de “nuvens” de textos falados e vozes não sincronizadas. No caso de Eumênides, as vozes estão concentradas no início e no final do movimento, na maioria das vezes com texto falado. A escrita declamatória inspirada na música bizantina no início do Agamenon não voltará no Orestes explicitamente. A influência da música japonesa se nota principalmente na instrumentação e na escrita em cromatismo e em micro-intervalos. Em Coéforas e Eumênides, a influência do teatro Nô se nota pelo uso da percussão: toms, gong e grande bombo. Essa justaposição de elementos oriundos de patrimônios culturais tão diferentes e distantes traz consigo uma inovação na representação da trilogia de Ésquilo, confirmando a concepção plural da obra pelo compositor. A primeira versão de Orestes em Ypsilanti respeitava estritamente a ordem dos versos. Nas revisões da peça realizadas até 26 anos após a estreia, Xenakis se permitiu a algumas modificações, que não comprometem o curso da intriga : V. 121, 688 e 681 em Agamenon; V. 459, 466, 471, 476 e 479 em Coéforas; e finalmente V. 984 em Eumênides. Os cortes na longa versão original foram na maioria seções instrumentais lentas. Xenakis com isso certamente quis imprimir um caráter mais dinâmico à obra. As correspondências entre sons, personagens e circunstâncias são numerosas : Xenakis não quis fazer uma pura abstração musical, como na maior parte da sua produção artística. Em Agamenon, por exemplo, chamamos de “acordes trágicos” os blocos sonoros trinchantes, estridentes e graves ao mesmo tempo, para assim ilustrar a dor e o luto pela morte do rei. Em Coéforas são utilizadas percussões acessórias variadas (ver 2 - Instrumentação) espalhados na orquestra e no coro de homens (posicionados ao lado do público), o que possibilita uma rica espacialização do som no Orestes. Não levamos em conta aqui os meios eletroacústicos utilizados, que devem se adaptar a cada local de concerto. Os silêncios de cunho dramático são explorados no início de Coéforas, após a morte do rei Agamenon, e se constituem num elemento raro na obra de Xenakis. O coro de crianças representa as Eumênides, benfeitoras, protetoras da cidade de Atenas. Uma outra correspondência entre sons e personagens é a utilização no registro agudo em várias passagens da flauta transversa, oboé e clarineta, que chamamos “trio malvado”, para fazer alusão às Erínias, que são também representadas em outros momentos por sirenes de boca. Se Xenakis quis compor uma peça de relativa facilidade de execução para os coros (convém não esquecer da escrita microtonal para as vozes), o mesmo não pode ser afirmado quanto à parte instrumental da Suite Orestes, à Kassandra e La Déesse Athéna (mesmo se essas duas últimas fogem do nosso foco). A primeira gravação mundial (e única até a realização dessa pesquisa em 2005) nos revela alguns pontos a serem melhor interpretados nas versões posteriores, como os micro-intervalos e os ritmos não sincroANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 185 nizados, que contribuem para o ambiente arcaico e novo ao mesmo tempo, conforme a proposta do compositor. 4 - Xenakis e o teatro Nô É certo que em Ypsilanti quando eu me lancei no Orestes, a ideia em meu espírito era de realizar um teatro total, ou pelo menos ir nesse sentido. Hoje, o teatro total, com a vida e a harmonia interna que o definem, só existe verdadeiramente a meu ver fora do Ocidente – no Japão, em Java, mesmo na Índia, eventualmente na África. Aliás eu penso que na época em que ela ainda vivia, a tragédia antiga devia ser muito mais próxima do Nô japonês do que a forma pela qual nós vemos uma obra de Ésquilo ou Sófocles representada. Separem no teatro Nô a música da ação cênica, ou a ação cênica da música: o resultado em cada vez será uma prova. Essa forma se predispõe a todos os testes suscetíveis de examinarmos a sua validade teatral. Mesmo isolado, cada elemento do Nô conserva todo o seu interesse.22 (XENAKIS, 1996, p. 58) O contato de Xenakis com o texto das tragédias gregas remonta à sua infância, enquanto que a cultura oriental e o teatro Nô foram descobertos mais tarde pelo compositor já adulto, em 1961, em um encontro musical internacional no Japão. Ele se fascinou com as diferenças culturais e escreveu o texto intitulado em francês “L’éclat du Japon”,23 traduzido em inglês sob o título “The riddle of Japan” e publicado em Tókio.24 O título em inglês revela a natureza da língua japonesa e sua abertura a várias interpretações de um mesmo significando. “Riddle” quer dizer “enigma, mistério, charada, adivinhação”.25 Uma possível tradução em português seria “O enigma do Japão”. Na escrita japonesa, as palavras podem ser desenhadas e lidas conforme múltiplas interpretações. De acordo com Xenakis, “a literatura japonesa pode ter ressonâncias infinitas em sons e imagens”.26 A razão para tal é a tripla natureza da língua japonesa, que deriva de uma ideografia chinesa sobre a qual são acrescentados dois alfabetos silábicos japoneses. Xenakis comenta sobre a existência de uma lacuna de precisão entre os símbolos, os sons e os pensamentos. A interpretação de signos tem um papel ativo na comunicação dos orientais. Isso poderia explicar em parte a curiosidade dos japoneses, a vontade e o prazer deles em conhecer outras culturas, além da faculdade de assimilação. Pela linguagem e pela cultura o japonês se encontra realmente no clímax mais avançado do pensamento ocidental, que os modos de expressão simbólicos e sonoros têm tanta dificuldade em acompanhar. [...] Essa polivalência do pensamento os torna alertas 22 “Il est certain que, lorsque à Ypsilanti je me suis lancé dans l'Orestie, l'idée était présente à mon esprit sinon de réaliser un théâtre total, du moins d'aller dans ce sens là. Aujourd'hui, le théâtre total, avec cette vie et cette harmonie interne qui le définissent, n'existe à mon sens véritablement qu'à l'extérieur de l'Occident - au Japon, à Java, en Inde même, éventuellement en Afrique. Je pense d'ailleurs qu'à l'époque où elle vivait encore, la tragédie antique devait être beaucoup plus proche du Nô japonais que de la façon qu'aujourd'hui nous avons de représenter une œuvre d'Eschyle ou de Sophocle. Séparez dans le théâtre Nô la musique de l'action scénique ou l'action scénique de la musique: le résultat sera à chaque fois probant. Cette forme-là se prête à tous les tests susceptibles d'examiner sa validité théâtrale. Même isolé, chaque élément du Nô conserve tout son intérêt.” 23 Iannis Xenakis, “L’éclat du Japon”, texto manuscrito de 1961, Archives Xenakis, Dépôt BnF-Mus, Paris. A cópia foi gentilmente enviada por Sharon Kanach. 24 Iannis Xenakis “The riddle of Japan” in This is Japan, Tokyo, journal Asahi Shim Bun, 1962. Cópia gentilmente enviada por Sharon Kanach. 25 Dictionnaire Le Robert & Collins Super Senior. 26 Iannis Xenakis, "L'éclat du japon", manuscrit, Archives Xenakis, BNF, Paris, p. 5. “La littérature japonaise peut avoir des résonances infinies en sons et en images.” 186 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER e curiosos sobre tudo o que é novo. [...] Estamos bem longe do estado hipnótico e desgastado (“blasé”) dos europeus que disseram tudo e não esperam mais nada. É isso que explica talvez a extrema gentileza nas relações humanas.27 (XENAKIS, s.d.) Num outro manuscrito em inglês, provavelmente de 1972, quando o Orestes foi executado em Tókio, Xenakis propõe o uso de instrumentos, máscaras e figurinos de teatro Nô para a mise-en-scène! Ele aceitaria mesmo a fonética japonesa para a interpretação de Orestes. Alguns instrumentos podem ser substituídos por instrumentos tradicionais japoneses, sempre que isso for possível. Eu penso que a frugalidade da ação do Nô representa um profundo poder de expressão dramática que deveria ser refletido na montagem de Orestes. Eu até admitiria trajes e máscaras japonesas do repertório Nô, corretamente escolhidas, tendo em mente que o drama grego antigo também se servia de máscaras, mesmo se nós saibamos muito pouco sobre a maneira e o estilo em que eles se serviam. A fonética também deveria ser inspirada da língua japonesa antiga, como ela é usada no teatro Nô.28 (XENAKIS, c. 1972) As coincidências entre as tragédias gregas e o teatro Nô japonês vão além do uso das máscaras segundo Xenakis. No Japão, várias culturas coexistem em harmonia : budismo, zen, shinto, cristianismo, ateísmo e as ciências. Da mesma forma, com a arquitetura, as artes tradicionais e os hábitos familiares. Muitas formas de se viver são possíveis. O compositor compara esse agenciamento sociocultural japonês com a civilização helênica, onde todas as religiões, assim como o desenvolvimento das ciências eram igualmente aceitas. Xenakis opõe essa tolerância com o ocidente, que sempre quis monopolizar a cultura através de um modelo único, seja ele a religião, o capital ou o estado. 5 – Conclusão Minhas composições representam uma visão filosófica em direção à música, uma espécie de música universal que é baseada nas verdades musicais universais de todas as épocas e civilizações. Elas são ao mesmo tempo muito antigas e muito novas.29 (XENAKIS, 1966) Fruto de um espírito científico que construiu uma obra artística complexa e interdisciplinar, o pensamento de Xenakis encontra sua origem na antiguidade grega e nas ciências atuais, para realizar uma obra musical original e inédita. Num contexto onde a 27 Iannis Xenakis, "L'éclat du japon", manuscrit, Archives Xenakis, BNF, Paris, p. 5. “Par le langage et par l'écriture le japonais se trouve d'emblée dans le climax le plus avancé de la pensée occidentale, que les modes d'expression symboliques et sonores ont tant de peine à suivre. […] Cette polyvalence de la pensée les rend alertes et curieux de tout ce qui est nouveau. […] On est bien loin de l’état hypnotique et blasé des européens qui ont tout dit et n’attendent plus rien. C’est ça qui explique peut-être l’extrême gentillesse dans les relations humaines.” 28 Iannis Xenakis, manuscrito provavelmente de 1972, Archives Xenakis, BnF-Mus, Paris. “Some of the instruments can be replaced by Japanese traditional ones whenever this is possible. I think that the frugality of the action in the Noh constitutes a deep power of dramatic expression which should be reflected in the staging of Oresteia. I would admit even traditional Japanese costumes and masks adequally chosen from the existing Noh repertoire, bearing in mind that the ancient Greek drama used such tools although we very little know about the way and the stile they had. The phonetics also should be inspired from the ancient Japanese language as it is used in Noh.” 29 Iannis Xenakis, Special Feature, Ypsilati, Release Ypsilanti Greek Theatre, 19 de maio 1966: “My compositions represent a philosophical approach to music, a kind of universal music that is based on the universal truths of music from all ages and civilisations. It is both very old and very new.” ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 187 vanguarda europeia preconizava que “todo compositor é inútil fora das pesquisas seriais”,30 Xenakis aparece como uma força inovadora sem precedentes, mesmo se ele não encontra reconhecimento imediato a partir da segunda metade do século XX. Em seu Orestes, a presença de numerosos versos falados, poucos versos cantados e numerosas sequências instrumentais (com indicações de versos) provam que Xenakis transportou a língua de Ésquilo tanto instrumentalmente “num forte condensado sonoro”, tanto pelo texto falado/cantado com a suposta fonética do V séc. A.C. o Ambiente arcaico é atingido com os instrumentos (“acordes trágicos”) assim como pela voz (gritos no final de Eumênides, sequências em recto-tono, uso do falsete). Xenakis selecionou majoritariamente versos do Coro e do Corifeu, o que nos leva a supor que o seu objetivo com isso era reforçar o personagem coletivo da cidade de Atenas, que conta a sua própria história. A vontade de fazer dos coros os portadores da palavra inteligível (para os que falam grego antigo) justifica os numerosos versos falados e a relativa simplicidade dos textos cantados (lembramos que o uso de quartos de tom par aos coros é comum na peça). O compositor utilizou também vozes superpostas e não-sincronizadas, gerando nuvens de sons. A transcrição de versos entretanto permitiu o estabelecimento de uma série de correspondências entre os personagens, a intriga e os instrumentos musicais. Xenakis se inspirou da integração total das artes nas tragédias e no teatro Nô, e como vimos, ele sugere até interseções no uso de figurinos e máscaras japonesas para a montagem. O seu Orestes dificilmente poderia ser apreciado sem a mise-en-scène, levando em conta as numerosas “ilustrações” sonoras entre a intriga e a música, como indicamos. O compositor não quis tentar fazer reconstituição histórica, mesmo se algumas convenções das tragédias gregas foram mantidas. A respeito de À Hélène para coro de mulheres (ou de homens) e À Colonne, para coro de mulheres (ou de homens) e 18 músicos, compostos em 1977, SOLOMOS (1996, p. 73) escreve que “é com a primeira que aparece pela primeira vez a tentação de reconstituição histórica. [...] Ele (Xenakis) se interessava desde então à fonética do grego antigo, o que lhe permitiria introduzir a prosódia, ignorada deliberadamente em Orestes”.31 Iannis Xenakis optou por inovar pela música e pelas suas sugestões de correspondências da tragédia grega com outros patrimônios culturais, na sua interpretação da trilogia clássica de Ésquilo. O seu Orestes permanece uma peça musical de interesse central para aqueles que desejam conhecer melhor a vida e a obra do compositor. ESCHYLE SOPHOCLE. Tragiques grecs. Bibliothèque de la Pléiade. Trad. Jean Grosjean; introdução e notas Raphaël Dreyfus. Paris: Éditions Gallimard, 1967 REINACH, Theodore. La musique grecque. Paris: Éditions d´aujourd´hui, 1926. SOLOMOS, Makis. Iannis Xenakis par Makis Solomos. Mercuès: P.O. Éditions, 1996. SOLOMOS, Makis. Présences de Iannis Xenakis. Paris: CDMC, 2001. SOLOMOS, Makis; GEORGAKI Anastasia. International Symposium Iannis Xenakisconference proceedings. Athènes: The National and Kapodistrian University of Athens, 2005. VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET Pierre. Mythe et tragédie en Grèce ancienne Tome I. Paris: Editions la Découverte/Poche, 2001. VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET Pierre. Mythe et tragédie en Grèce ancienne, Tome II. Paris: Editions la Découverte/Textes à l’appui, 1986. VERNANT, Jean Pierre. Entre mythe et politique. Saint Amand: Éditions du Seuil, 1996. XENAKIS, Iannis, Kéleütha. Paris: L’Arche Éditeur, 1994. XENAKIS, Iannis. Musique et Originalité. Paris: Nouvelles Editions Séguier, 1996. XENAKIS, Iannis, Oresteia for baritone, mixed and children´s chorus, and chamber ensemble. Londres: Boosey & Hawkes, 1992. ZEAMI. La tradition secrète du Nô suivi de Une journée de nô. Connaissance de l’Orient. Tradução e comentários de René Sieffert. Paris: Gallimard/Unesco, 1960. Referências BITTENCOURT, Pedro. Une lecture de l’Oresteia de Xenakis. Dissertação (Mestrado em Música), Universidade Michel de Montaigne Bordeaux 3, França, 2005. DUFOURCET, Marie-Bernadette; HAKIM, Naji. Guide pratique d’analyse musicale. Paris: Éditions Combre, 1995. 30 Texto original: “tout compositeur est inutile en dehors des recherches sérielles”, Pierre Boulez, “Schoenberg est mort”, Relevés d’apprenti. Paris Seuil, 1966, p. 271 (apud SOLOMOS, 1996, p. 22). 31 “c’est avec la première qu’apparaît pour la première fois la tentation de la reconstitution historique. […] Il [Xenakis] s’intéressa désormais à la phonétique du grec ancien, ce qui permettra d’introduire la prosodie, qu’ignorait délibérément l’Orestie.” 188 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 189 O Órgão da Antiga Sé do Rio de Janeiro como patrimônio virtual: sua atualização hoje Daniel Vincent Birouste Manufacture d’Orgues de Plaisance du Gers, France Paulo Eduardo Martelli Faculdade de Artes Alcântara Machado Expomos aqui uma reflexão na qual se funda o programa da terceira reconstrução do órgão de tubos da igreja Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé no Rio de Janeiro. Buscamos estabelecer um paralelo entre a evolução da estética sonora do órgão e a evolução da questão filosófica da individuação. Começando pelo órgão gótico, que pode aparecer como uma caracterização do pensamento de Santo Agostinho e o pensamento da emanação divina até o órgão contemporâneo, que pode ser pensado em forma de rizoma, o que se relaciona com o pensamento da imanência de Deleuze e Simondon. A evolução da Antiga Sé, que foi Capela Real, Catedral metropolitana e hoje Monumento Histórico, fez aparecer os sucessivos órgãos intimamente ligados aos destinos deste monumento. Manter o relacionamento entre o uso contemporâneo deste edifício e a construção de um novo órgão constitui o objetivo desta proposta. Tomando como empréstimo o conceito “virtual” de Bergson, desenvolvido por Deleuze, nosso intuito será, através deste trabalho, pensar esse conceito, relacionando os vários momentos da história do órgão, no sentido de estabelecer quais eram as necessidades de cada período e poder chegar assim até os dias atuais para responder à pergunta: Que escolha faremos para a reconstrução do órgão da Antiga Sé, levando em conta as necessidades musicais de hoje? Para começar, tentaremos definir o que seria o virtual segundo Deleuze. Pois como mostrava Bergson, a lembrança não é uma imagem atual que se formaria depois do objeto percebido, mas a imagem virtual que coexiste com a percepção atual do objeto. A lembrança é a imagem virtual contemporânea do objeto atual, seu duplo, sua “imagem especular”.Também há coalescência e cisão, ou, antes, oscilação, troca perpétua entre o objeto atual e sua imagem virtual; a imagem virtual torna-se, continuamente, atual, como em um espelho que se apodera do personagem, tragando-o, e deixa para ele, por sua vez, apenas uma virtualidade, à maneira de A dama de Shangai. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 123) Para responder à pergunta proposta no primeiro parágrafo é preciso verificar em cada período como se dava a relação de três elementos importantes: o homem, o mundo e o divino para em seguida pensar o que representava o órgão em cada época. Durante a Idade Média Deus era o centro de tudo. O órgão gótico tinha como característica o fato de que cada tecla fazia soar um conjunto de tubos valorizando oitavas e quintas sem possibilidade de individualização de cada tubo. Podemos fazer ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 191 um paralelo entre o órgão gótico e o pensamento de Santo Agostinho pelo fato de que os tubos representavam um composto de seres diferentes do criador, mas que conservavam uma essência divina. A hierarquia da fundamental e as oitavas, quintas etc. É o pensamento criacionista inspirado no neoplatonismo, no pensamento da emanação de Plotino. “É a produção de tudo o que não é Uno a partir do Uno, que emana dele”. Porém, apesar de se procurar uma harmonia que representasse as esferas, a afinação não devia ser tão justa pelo fato do que o órgão desta época não tinha ainda um sistema de regulação para assegurar a estabilidade do ar. Isso provavelmente fazia com que o órgão emitisse um som um tanto gritante/brilhante. Esse brilho talvez fosse almejado, justamente para significar a centelha divina. De qualquer maneira, era um período onde o “mágico” ou o “religioso” prevalecia e o órgão concordava com essa aura mística. A partir do Renascimento e o deslocamento do centro para o Anthropos, o órgão que já vinha incorporando características polifônicas, passou a ter a necessidade de uma individualização dos tubos em registros com um ataque preciso afim de realizar essa música contrapontística. Nessa época existia toda uma busca por um “sujeito” por trás das proposições que pode ser encontrada no pensamento musical da fuga por exemplo e no campo filosófico podemos fazer um paralelo com pensadores barrocos como Leibniz e seu conceito de “mônada” e Descartes e seu: “Cogito ergo sum”. Porém Spinoza já apresentava seu pensamento de um Deus “imanente”. No período clássico, valorizando a melodia acompanhada em detrimento do contraponto, a música ainda buscava um sentido com a palavra, com a retórica, ou seja com o “logos”. Nesse período o pensamento musical pode ser representado pela forma “sonata” e no lugar do “sujeito” e “contrassujeito” da fuga, o tema A, o tema B, desenvolvimento e recapitulação. E os registros do órgão de uma maneira geral, do período renascentista até o clássico, necessitavam ter uma articulação dental precisa para essa música “falada”. Se, no período medieval prevalecia Deus, no período clássico o indivíduo. No século XIX, prevaleceu a “pessoa romântica”. Nesse período de subjetivismo, para responder a essa necessidade, o órgão passou a ter uma característica sinfônica. Mais harmônico do que contrapontístico e com registros individualizados e com tubos geralmente com articulação labial, esse instrumento mais “pintava” do que “falava”. O objetivo era criar um clima psicológico, um sentimento ou um pathos e também podemos dizer que a relação com a literatura era muito forte. Foi a época do poema sinfônico. A época áurea da representação. Desde Kant, ainda com seu “sujeito transcendental” até Schopenhauer e Nietzsche, e a crítica que fizeram do “sujeito”, se o centro de Deus cai, cai também o homem. Aparece agora a ideia do pré-individual. Filósofos atuais como Gilles Deleuze e Gilbert Simondon exploraram muito o assunto. A função moderna da arte, segundo Deleuze, é dizer o indizível, é mostrar o não visível. É capturar as forças. Não mais emanação, mas imanência. Não mais hierarquias. É por isso que propostas modernas para a fabricação de órgãos de tubos que respondam às necessidades da música moderna não se esgotam. Dentro dessas propostas está o sistema Individual Pipe Control (doravante IPC). A tecnologia IPC constitui uma mudança total no relacionamento do músico (compositor/intérprete) com o instrumento pelo fato de cada tubo ser considerado agora individualmente e não mais como elemento inseparável de um conjunto de fileiras ou registro. Isso permite conexões antes impossíveis e nos faz lembrar de outro conceito 192 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Deleuze e Guattari: o rizoma1. Podemos contrapor o rizoma à árvore. A Máquina/ Árvore é um sistema fechado. Obedece a um centro organizador, mas funciona de um modo hierárquico, cada parte obedecendo às ordens centrais ou de vizinhança. A Máquina/Rizoma é um sistema aberto, descentrado, onde cada parte é independente e pode ser conectada com outra qualquer, não havendo necessidade de filiações ou hierarquias. Ora, se pensarmos no órgão tradicional ou no órgão unificado, veremos que se encaixam bem com o conceito de Máquina/Árvore. Pois se pensarmos de que maneira são dispostos os registros, em forma de fileiras e que os comandos dos registros, sendo mecânicos ou eletrônicos acionam uma fileira inteira de tubos, teremos toda uma ordem de hierarquias a serem obedecidas – são as famílias de registros. Com esse sistema não é possível uma total independência polifônica tímbrica. Exemplo: no órgão unificado não podemos acionar um registro para o soprano e um outro para o contralto tocados no mesmo teclado. Com a tecnologia IPC, apesar de os tubos poderem estar dispostos em fileiras, o acionamento de válvula é individualizado, podendo proporcionar uma grande liberdade de conexões. É um sistema rizomático, que com uma grande economia de tubos, abre enormes possibilidades, como melodia de timbres, abertura de válvulas em décimos de segundo, uso de mais de um registro em pequena parte do teclado, utilização de outras interfaces que não o teclado tradicional como tablete gráfico, captação gestual ou infravermelho www.modulorgue.com. Mas não só a música contemporânea é beneficiada. O fato das válvulas poderem ser acionadas em velocidades diferentes, modifica o ataque, possibilitando por exemplo, o uso da articulação dental, ideal para a música “que fala” como diz Harnoncourt, que vai da música renascentista até a clássica. Esse sistema foi escolhido para o órgão da Antiga Sé do Rio de Janeiro. O novo órgão integrará elementos do órgão polifônico, principalmente com o “Positivo” e o “Grande órgão”. Elementos do órgão sinfônico, principalmente com o “Solo” e o “Recitativo”, juntamente com toda a novidade tecnológica para a música contemporânea. E o importante também é que um órgão não é constituído somente por determinada tecnologia. A harmonização dos tubos pelo organeiro é talvez o maior diferencial na construção de um órgão. Só através de sua hecceidade e sua extrema sensibilidade é possível construir um instrumento com um bom estilo e que esteja de acordo com o legado histórico de um determinado patrimônio. O legado essencial dos órgãos sucessivos da Antiga Sé é representado pela «boiserie» constituída de dois corpos: O «Grand Massif»2 e o Positivo. O aspecto visual do órgão barroco primitivo nos é bem conhecido graças a três quadros: Coroação de D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret; O juramento da Regência Trina Permanente, de Manuel de Araújo; e Casamento da Princesa Isabel com Conde D’Eu, de Pedro Américo. 1 Rizoma - Um rizoma como haste subterrânea distingue-se das raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos, são rizoma. Princípios de conexão e heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. (DELEUZE e GUATTARI, 1995). 2 Grand Massif: trata-se da estrutura onde ficam dispostos todos os tubos do órgão, menos os tubos do Positivo. ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 193 Jean-Baptiste Debret - Coroação de D. Pedro I Manuel de Araújo Porto Alegre - O juramento da Regência Trina Permanente Pedro Américo - Casamento da Princesa Isabel com Conde D’Eu, em destaque o antigo órgão. 194 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Atualmente, só a fachada de madeira integrada no corrimão do coro, de estilo Rococó, pertence ao órgão primitivo. Essa é a fachada do antigo Positivo, característica dos órgãos barrocos. O «Grand Massif», localizado atrás do Positivo é de estilo neo-Louis XVI, construído em 1924 para substituir o antigo móvel que sustentava os tubos maiores do órgão inicial. Durante o nosso contato com o órgão da Antiga Sé descobrimos que o aspecto visual do conjunto de madeira é eclético. A análise detalhada desses dois corpos de marcenaria nos mostrou que o legado do passado não foi possivelmente mantido em boas condições: durante a reconstrução do órgão em 1924, todo o gabinete do Positivo havia sido destruído, sobrando apenas a fachada barroca que servia para dissimular o maestro. Um grande espaço foi criado no coro para acomodar um grande coral e o «Grand Massif», que servia para conter os tubos do órgão, foi relegado ao fundo da tribuna. O projeto musical do órgão de 1924 era claramente desempenhar o acompanhamento de um coro litúrgico. Sobre o plano sonoro, a posição do «Grand Massif», no fundo da tribuna, foi um problema real de difusão sonora, agravado pelo fato desse «Grand Massif» ter pouca altura. Não só a difusão sonora desse órgão deixava a desejar, como a relação visual entre o Positivo e o «Grand Massif» ficou desequilibrada. A fachada do Positivo ficou preponderantemente aparecendo. A reconstrução proposta do órgão da Antiga Sé está sendo claramente focada na organização de concertos. Por isso estimamos que os critérios acústicos que levaram ao estabelecimento do «Grand Massif» do órgão de 1924 não poderiam ser mantidos. É por isso que nós temos permissão do IPHAN para mover o «Grand Massif» para perto da parte traseira do Positivo e elevar a base. Também foi aprovado o nosso desejo de reconstituir todo o armário do Positivo para que o órgão de tubos possa desfrutar de dois espaços sonoros distintos. No campo da arquitetura (espacialização sonora e estética visual), o novo órgão da Antiga Sé aparece em uma nova forma, incorporando todos os elementos antigos a que tínhamos chegado. Sem material histórico suficiente para justificar uma reconstituição arqueológica, nós imaginamos uma atualização do órgão da Sé antiga, relacionando “momentos de sua historia”. Portanto, pelos “momentos de sua história” queremos dizer tanto os fatos objetivos, como tudo o que alimenta o nosso Imaginário. Uma realidade histórica pode ajudar a compreender tal postura: a obra emblemática do Padre José Maurício está intimamente ligada à história musical desta igreja. Ainda não temos música para órgão do compositor, apesar de sabermos que ele foi um organista excelente. Segundo a pesquisadora Cleofe Person de Mattos, “Em algumas poucas peças, o registro do instrumento vem parcialmente realizado e diz muito pouco do organista famoso que a tradição guardou” (MATTOS, 1970, p. 32). Propomos, portanto, que nosso imaginário venha a nos suprir a ausência de partituras realizadas para o instrumento. Observamos que a história do órgão da Antiga Sé do Rio de Janeiro se divide em três períodos que correspondem a três usos diferentes desta igreja. No primeiro período, o órgão era usado para a magnificência das cerimônias políticas na Capela Real. Era um órgão de estética sonora clássica, com transmissão mecânica e «boiserie» de estilo Rococó. O segundo período foi marcado pela personalidade do cardeal Arcoverde, que realizou importantes obras para dar prestígio a sua catedral. A reconstrução do órgão deste período participou dessas realizações. A música religiosa de tal período ainda ANAIS DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MUSICOLOGIA DA UFRJ 195 era influenciada pela estética do órgão sinfônico. O instrumento foi reconstruído com transmissão pneumática dentro duma «boiserie» eclética. No período atual, esta igreja não se enquadra como aparato do poder político, nem é a sede do poder religioso apesar de ser uma paróquia ativa. É um monumento histórico, abundantemente visitado com programação de numerosos concertos. Durante os dois primeiros períodos, o órgão -patrimônio musical da igreja Nossa Senhora do Carmo- foi cada vez adaptado aos usos deste monumento. A estética visual, o material sonoro e a tecnologia de transmissão passaram por mutações de um período para outro. Ao longo destas linhas, tentamos expor a reflexão na qual se funda o programa da terceira reconstrução deste órgão. Não está mais ao serviço de um poder externo, político ou religioso, com a missão de promover a magnificência da duração e da estabilidade, mas sim ao serviço de um poder instável e incerto: a criação artística de nosso tempo. Começamos este artigo com o conceito virtual de Deleuze e a história do órgão pela Idade Média e agora o terminaremos retornando a ela com o pensamento do franciscano Duns Scotus, que nos fala do conceito “hecceidade”. A exclusividade de um ser, que o torna diferente de todos os outros. Aquilo que ele tem de mais singular. O contemporâneo Deleuze se encontra agora com o pensamento do padre medieval. Um ateu e o outro crente em Deus, mas os dois com o idealismo da fé na Vida. Ambos pensaram a univocidade do ser. E ambos valorizaram mais a experimentação do que a busca de essências transcendentais. É um bom conceito para substituir os antigos conceitos de “forma”, “matéria” e “substância”, junto com outros como “informação inicial”, ”potencial energético”, “ressonância interna”, “ordens de Grandeza” de Gilbert Simondon. Referências DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Editora Escuta, 1998. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs Capitalismo e Esquizofrenia. Volume 1 Editora 34, 1995 MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático José Mauricio Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal da Cultura, 1970. SIMONDON, Gilbert. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Édition Jérôme Millon, 1958. www.modulorgue.com/innovations.html improvisações do organeiro e organista Mickaël Fourcade usando transmissão IPC e somente tubos de órgão sem recurso eletroacústico. www.modulorgue.com/pieces.html interpretações do organista Marc Chiron usando transmissão IPC e somente tubos de órgão sem recurso eletroacústico. 196 PATRIMÔNIO MUSICAL NA ATUALIDADE: TRADIÇÃO, MEMÓRIA, DISCURSO E PODER Série Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ vol. 1 - Atualidade da Ópera vol. 2 - Teoria, Crítica e Música na Atualidade vol. 3 - Patrimônio Musical na Atualidade: Tradição, Memória, Discurso e Poder vol. 4 - Verdi, Wagner e Contemporâneos View publication stats