Subido por German Dario Herrera Saray

327-Gneroviolnciaeestruturasdepoder

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Editora Fundação Fênix
Gênero, violência e estruturas de poder
Série Filosofia
Conselho Editorial
_______________________________________________________________
Editor
Agemir Bavaresco
Conselho Científico
Agemir Bavaresco – Evandro Pontel
Jair Inácio Tauchen – Nuno Pereira Castanheira
Conselho Editorial
Augusto Jobim do Amaral
Lucio Alvaro Marques
Cleide Calgaro
Nelson Costa Fossatti
Draiton Gonzaga de Souza
Norman Roland Madarasz
Evandro Pontel
Nuno Pereira Castanheira
Everton Miguel Maciel
Nythamar de Oliveira
Fabián Ludueña Romandini
Orci Paulino Bretanha Teixeira
Fabio Caprio Leite de Castro
Oneide Perius
Fabio Caires Correia
Raimundo Rajobac
Gabriela Lafetá
Renata Guadagnin
Ingo Wolfgang Sarlet
Ricardo Timm de Souza
Isis Hochmann de Freitas
Rosana Pizzatto
Jardel de Carvalho Costa
Rosalvo Schütz
Jair Inácio Tauchen
Rosemary Sadami Arai Shinkai
Jozivan Guedes
Sandro Chignola
Lenno Francisco Danner
Thadeu Weber
Nícolas de Oliveira Braga
Anna Ortiz Borges Coelho
Lívia do Amaral e Silva Linck
Jéssica Veleda Quevedo
Organizadores
Gênero, violência e estruturas de poder
Editora Fundação Fênix
Porto Alegre, 2024
Direção editorial: Agemir Bavaresco
Diagramação: Editora Fundação Fênix
Capa: Editora Fundação Fênix
O padrão ortográfico, o sistema de citações, as referências bibliográficas,
o conteúdo e a revisão de cada capítulo são de inteira responsabilidade de
seu respectivo autor.
Todas as obras publicadas pela Editora Fundação Fênix estão sob os
direitos da Creative Commons 4.0 –
Http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
Obra editada com apoio: CAPES/PROEX - Auxílio Nº 1325/2023, Processo Nº
88881.845000/2023-01
Série Filosofia – 146
DOI – https://doi.org/10.36592/9786554601566
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
15
Os Organizadores
1. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DOMÉSTICO E
FAMILIAR
19
Fabiéle do Amaral Viegas
2. PODE A PESSOA LGBTI+ OCUPAR ESPAÇOS POLÍTICOS NO BRASIL? LGBTFOBIA,
COLONIALIDADE E A MOVIMENTAÇÃO ELEITORAL DE CORPOS DISSIDENTES
33
Cristian Anderson Puhl
3. A INVISIBILIDADE DAS MULHERES ENCARCERADAS: VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO
BRASIL
59
Karoline Schoroeder Soares
Luíse Pereira Herzog
4. A ‘DELINQUÊNCIA FEMININA’ COMO CATEGORIA DE ANÁLISE HISTÓRICA:
(RE)PENSANDO A HISTORICIDADE DAS TRANSGRESSÕES GENERIFICADAS
79
Bruna Cristina Oliveira Pupe
5. A MOBILIZAÇÃO CONSERVADORA SOBRE OS DIREITOS SEXUAIS E
REPRODUTIVOS: UMA ANÁLISE DAS RESISTÊNCIAS NOS PROJETOS DE MARIELLE
FRANCO
99
Iara Amora dos Santos
Carolina Cagetti
6. A SEGREGAÇÃO URBANA E AS REDES SOCIABILIDADE DAS MULHERES NEGRAS
PERIFÉRICAS
Ana Letícia Chaves Santos
Newton Ataíde Meira
121
7. AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O MOVIMENTO FEMINISTA: O FEMINISMO
ALCANÇA A MULHER PERIFÉRICA BRASILEIRA?
139
Vitória Márcia de Freitas Oliveira
8. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO FUNDADO TEMOR DE PERSEGUIÇÃO DENTRO
DO ESCOPO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS
165
Lúcia Pfeifer Cruz
9. VIOLÊNCIAS DE GÊNERO E CONTROLE TERRITORIAL: O CONFLITO ARMADO
COLOMBIANO
185
Alice de Carvalho Nogueira
10. CORPO DESVIANTE FEMININO COMO CORPO POLÍTICO
201
Aline Tusset De Rocco
11. A MULHER E O TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO NA TEORIA DAS
CAPACIDADES E NA INTERSECCIONALIDADE
217
Carem Barbosa de Castro
Maria Laura Maciel Fernandez
12. INTERSECCIONALIDADE E O DEVIR DO GÊNERO? “O PESSOAL É POLÍTICO”:
ATIVIDADES REALIZADAS NO SISTEMA PRISIONAL PELO COLETIVO TERRITÓRIO
EM JUSTIÇA SOCIAL
233
Renata Guadagnin
13. HISTÓRIAS DE VIDA DAS MULHERES DA FLORESTA NACIONAL DE TEFÉ ENTRE RESISTÊNCIAS E AFETO
Marcela da Silva Barbosa
Rita de Cássia Fraga Machado
247
14. ANÁLISE DAS FUNDAMENTAÇÕES DAS SENTENÇAS EM PEDIDOS DE HABEAS
CORPUS EM BENEFÍCIO DAS MÃES ENCARCERADAS PREVENTIVAMENTE POR
CRIMES DA LEI DE DROGAS
273
Jessica Katharine Gomes Marques
Tainá Ferreira e Ferreira
15. FEMINISMOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES: DA ABERTURA
DEMOCRÁTICA (ANOS 80) AO BOLSONARISMO (2018-2022)
295
Francisca Elizabeth Cristina Araújo Bezerra
Carmem Emmanuely Leitão Araújo
16. A VALORAÇÃO DA PROVA NO JULGAMENTO DE CRIMES DE VIOLÊNCIA DE
GÊNERO: O TENSIONAMENTO ENTRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA E O PRINCÍPIO IN
DUBIO PRO REU
315
Romana Leite Vieira
17. REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO A PARTIR
DAS OBRAS DE MICHEL FOUCAULT
331
Alan Silva Carvalho
Alene Silva da Rosa
18. MAPEAMENTO DAS DENÚNCIAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
ASSOCIADAS AO CIÚME EM 2016 (DEAM-VITÓRIA)
345
Dionatan Miranda de Almeida
19. POLÍTICA É LUGAR DE MULHER? UMA ANÁLISE SOBRE A SUBREPRESENTAÇÃO DE VEREADORAS NUM MUNICÍPIO DA BAIXADA FLUMINENSE,
REGIÃO PERIFÉRICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Liandra Lima Carvalho
365
20. O DISTANCIAMENTO SOCIAL COMO OBSTÁCULO NA REVELAÇÃO DA
VIOLÊNCIA DE GÊNERO ENTRE JOVENS DURANTE A PANDEMIA DE COVID19
389
Suélen Pinheiro Freire Acosta
21. DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E MENINAS BRASILEIRAS: A UTILIZAÇÃO
DA CATEGORIA DA INTERSECCIONALIDADE PELA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS NO CASO “EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO
ANTÔNIO DE JESUS E OUTROS VERSUS BRASIL”
405
Adriana Biller Aparicio
Letícia Albuquerque
22. ANÁLISE SOBRE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E O EXERCÍCIO DA
PARENTALIDADE
425
Thaysa Farias Ferreira
Antônia Rozelir da Silva Araújo
23. MÃES NO CÁRCERE: A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO SERVIÇO
SOCIAL
441
Aline Santos Pereira
Camila Maximiano Miranda Silva
24. ENCARCERAMENTO FEMININO: ANÁLISE DA CAUTELAR DA PRISÃO
PREVENTIVA EM CRIMES PRATICADOS SEM VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA
455
Joanna Smiderle
Fábio Agne Fayet
25. ENTRE TRADIÇÕES E TRANSFORMAÇÕES: GÊNERO, CONSTRUÇÕES
FAMILIARES E ABORTO COMO DESAFIOS À AUTONOMIA FEMININA
Carolina Cagetti
Iara Amora dos Santos
469
26. GESTÃO DOS PROCESSOS ENVOLVENDO MULHERES EM SITUAÇÃO DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR: O CASO DAS VARAS DE FAMÍLIA DA
COMARCA DE BELO HORIZONTE
493
Daniela Cunha Pereira
27. MULHERES, ESTRUTURAS DE PODER E O VIÉS DE GÊNERO NA JUSTIÇA
FEDERAL BRASILEIRA – RESULTADOS PARCIAIS
517
Mariana Camargo Contessa
28. CONTRADIÇÃO DE UM MAL NECESSÁRIO? ANÁLISES SOBRE O CONTEXTO DE
CRIAÇÃO DO CRIME DE VIOLÊNCIA POLÍTICA CONTRA A MULHER
Naiara Coelho
541
APRESENTAÇÃO
Os Organizadores
É com grande satisfação que apresentamos a coletânea de quatro volumes
resultante dos trabalhos apresentados no Congresso de Estudos de Gênero e
Interseccionalidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
PUCRS, em 2023. A organização em quatro volumes buscou não só separar os
trabalhos em eixos temáticos específicos, mas também representa o sucesso do
evento que contou com a participação de trezentos inscritos e palestrantes de
grande prestígio dentro de uma temática tão sensível. A publicação destes volumes
com trabalhos de excelência reafirma o compromisso da PUCRS com a produção e
promoção do conhecimento, somados ao fomento da pesquisa científica de alto
padrão. Para melhor enquadrar os trabalhos dentro de suas áreas temáticas, os
livros foram separados em quatro grandes eixos: Gênero, violência e estruturas de
poder; Gênero, vulnerabilidades e raça; Gênero, história e literatura e Gênero e
interseccionalidades.
O primeiro volume, intitulado Gênero, violência e estruturas de poder,
contempla os trabalhos que estão imersos, sobretudo, nas óticas do Direito, Ciências
Sociais e da Política. Neste volume é possível visualizar uma preocupação dos
autores e autoras com as questões práticas e teóricas dos direitos das minorias no
Brasil. Além de dialogarem entre si, os artigos deste volume flutuam nas temáticas
da violência, visibilidade, segurança política e mercado de trabalho. Por embarcarem
em uma perspectiva jurídica, os trabalhos são recorrentemente teorizados e
referenciados por leis e processos do Direito, o que embasa o processo
argumentativo e narrativo dos trabalhos, nos permitindo maior compreensão da
prática política e de defesa dos grupos minoritários.
O segundo volume, intulado Gênero, vulnerabilidades e raça, reúne trabalhos
que se debruçam nas lentes filosóficas e sociológicas para dissertar sobre o racismo
e fragilidade dos grupos minoritários no Brasil. Por óbvio, o resgate histórico também
está presente neste volume, uma vez que é impossível sua dissociação ao tratar dos
problemas seculares a respeito da temática. Ainda sim, sobressai nestas
publicações o teor reflexivo e analítico, característicos da filosofia e sociologia. Na
16 | Gênero, violência e estruturas de poder
composição deste volume, é possível encontrar trabalhos que dialogam sobre a
construção social do corpo e dignidade humana, sobretudo da objetificação do sexo
feminino. Além disso, demais autores e autoras dialogam sobre os povos originários
e a desigualdade racial nas diferentes esferas políticas e sociais.
O terceiro volume, intitulado Gênero, história e literatura, trata, portanto, de
uma perspectiva historicista dos fatos acerca das desigualdades com os grupos
minoritários. Este volume desenvolve uma abordagem que não só retrata o
historicismo dos fatos, mas também contempla temas contemporâneos. Além disso,
autores e autoras aqui retratam a representação de raça e gênero nas diferentes
projeções midiáticas ao longo das décadas. Neste volume, os trabalhos dialogam
entre história, relações internacionais, cinema e literatura, enriquecendo a
diversificação e problematização dos temas abordados no Congresso.
Por fim, o último volume, Gênero e interseccionalidades, aborda temas que,
em maior ou menor grau, condensam os temas abordados nos demais volumes.
Dialogando com as teorias de gênero, este volume contempla trabalhos que flutuam
sobre as questões de gênero e raça nos esportes, redes sociais e perfis políticos, o
que dá aos livros uma maior amplitude temática, enriquecendo o caráter científico e
atraindo um maior número de leitores que se interessam pelas temáticas.
A publicação destes volumes nos livros de Estudos de Gênero e
Interseccionalidades fortalece não só o diálogo acadêmico entre as pesquisas de
gênero, raça e minorias, mas também ressalta a importância de uma abordagem
multidisciplinar para maior entendimento dos fenômenos históricos e modernos que
desafiam o Direito, Filosofia, História, Sociologia e demais áreas que buscam
compreender e explicar o comportamento humano. A publicação destes livros é um
avanço para o campo de estudo e promove a consolidação de uma sólida base para
futuras pesquisas e desenvolvimento de políticas públicas diante da temática.
Os Organizadores.
Os Organizadores | 17
Equipe editorial
Anna Ortiz Borges Coelho - Jéssica Veleda Quevedo
Lívia do Amaral e Silva Linck - Nícolas de Oliveira Braga
Porto Alegre, 21 de junho de 2024.
Congresso de Estudos de Gênero e Interseccionalidades da PUCRS
Comissão Organizadora do evento
Anna Ortiz Borges Coelho - Clarice Beatriz da Costa Söhngen - Enzo da Silva
Efthymiatos - Iverson Custódio Kachenski - Isadora Dutra de Freitas - Jéssica
Veleda Quevedo - Lívia do Amaral e Silva Linck - Luís Rosenfield - Mabi de Oliveira
Moura - Nícolas de Oliveira Braga - Nythamar de Oliveira - Tamires de Oliveira
Garcia
Comissão Científica
Aline Santos Barbosa - Anna Ortiz Borges Coelho - Daniela de Lima Soares Enzo da Silva Efthymiatos - Gabriel Engelmann Maltez - Giselle dos Santos
Steinstrasser - Iverson Custódio Kachenski - Isadora Dutra de Freitas - Jéssica
Veleda Quevedo - João Vítor Sand Theise - Letícia Sabina Wermeier Krilow - Lívia
do Amaral e Silva Linck - Mabi Oliveira de Moura - Maria Lucia Rodrigues da Cruz Nícolas de Oliveira Braga - Pedro Antônio Gregório de Araújo - Pedro Gabriel
Rosauro - Ramon Nere de Lima - Rayanne Matias Villarinho - Rogel Maio Nogueira
Tavares Filho - Taís Cristine Fernandes Batista Barella - Tamires de Oliveira Garcia
- Yasmim Carina Bastos Ribas
1. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DOMÉSTICO E
FAMILIAR
PSYCHOLOGICAL VIOLENCE AGAINST WOMEN IN THE DOMESTIC AND FAMILY
ENVIRONMENT
https://doi.org/10.36592/9786554601566-01
Fabiéle do Amaral Viegas¹
RESUMO
O presente artigo, em um primeiro momento, fala sobre tipificação do crime de
Violência Psicológica, acrescentado ao Código Penal, pela lei 14.188/2021, tendo em
vista que antes, já havia previsão legal na Lei Maria da Penha quanto à Violência
Psicológica, mas não era tipificada. Em um segundo momento, através de pesquisa
documental, serão analisados 40 boletins de ocorrência registrados na Delegacia
Especializada em Atendimento à Mulher, do município de Canoas/RS, no período de
28 de julho de 2021, quando a lei entrou em vigor, até 31 de março de 2022. Foram
analisados dados como faixa etária, cor e escolaridade tanto das vítimas, quanto dos
acusados, a fim de traçar um perfil para esses casos que ocorreram no município
dentro deste recorte.
Palavras-chave: Violência Doméstica; Violência Psicológica; Lei Maria da Penha; Lei
14.188/2021.
ABSTRACT
This article, at first, talks about the classification of the crime of Psychological
Violence, added to the Penal Code, by law 14.188/2021, considering that before, there
was already a legal provision in the Maria da Penha Law regarding Psychological
Violence, but was not typified. In a second moment, through documentary research,
40 police reports registered at the Police Station Specialized in Assistance to Women,
in the municipality of Canoas/RS, will be analyzed from July 28, 2021, when the law
came into force, to July 31 March 2022. Data such as age group, color and education
of both the victims and the accused were analyzed in order to draw a profile for these
cases that occurred in the municipality within this cutout.
Keywords: Domestic Violence; Psychological violence; Maria da Penha Law; Law
14.188/2021.
1 INTRODUÇÃO
O artigo em questão pretende analisar a implementação da Lei 14.188/2021,
principalmente no Município de Canoas. A Lei em questão trata-se, dentre outras
20 | Gênero, violência e estruturas de poder
coisas, da tipificação do crime de Violência Psicológica Contra a Mulher, o qual passa
a ser punido pelo Código Penal Brasileiro, com previsão de reclusão, de 6 (seis)
meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
No primeiro item deste artigo, falarei sobre o conceito de violência psicológica,
para contextualizar aonde queremos chegar, que é a tipificação do crime. Falo sobre
os tipos de violência e suas peculiaridades, em especial quanto à violência
psicológica de gênero.
No item 1.2, trarei informações sobre a legislação referente a violência
psicológica contra a mulher no ambiente brasileiro. É importante informar que já
existia previsão legal contra a violência psicológica de gênero desde a criação da Lei
Maria da Penha, em 2006. Ocorre que a previsão era meramente ilustrativa, já que
dependia de um dispositivo legal no Código Penal para ter efeito. Com o advento da
lei 14.188/2021, esse dispositivo foi acrescentado ao Código Penal Brasileirio e
passou a penalizar os agressores, assim como dito no primeiro parágrafo, e é sobre
isso que o segundo item trata: a lei 14.188/2022 e sua importância para o
ordenamento jurídico e para a segurança das mulheres.
Já o item 3, fora destinado para análise de boletins de ocorrência do período
de 28 de julho de 2021, quando a lei entrou em vigor, até 31 de março de 2022, na
Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher do Município de Canoas, no Rio
Grande do Sul. Nesses boletins analisados, os principais pontos trabalhados foram
idade das vítimas e dos acusados, além de cor, escolaridade e bairro onde a
ocorrência aconteceu.
2 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DOMÉSTICO
2.1 O CONCEITO DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA:
O conceito de violência doméstica contra a mulher é descrito na Lei
11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha, que diz que violência
doméstica é aquela que ocorre dentro do ambiente da própria casa da vítima, por
meio das pessoas do mesmo ciclo íntimo de afeto. Em suma, violência é definida
Fabiéle do Amaral Viegas | 21
como qualquer meio de ação ou conduta baseada no gênero, capaz de gerar dor,
sofrimento, morte, entre outros, como preceitua o artigo 5º da Lei:
Art. 5º da Lei nº 11.340/2006: Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que
são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido
com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações
pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (BRASIL, Lei Maria
da Penha, art. 5º, 2022).
Esta definição prevista na Lei Maria da Penha é advinda da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, mais
conhecida como Convenção de Belém do Pará, que diz em seu primeiro artigo:
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer
ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual
ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
São diversas as formas de violência doméstica e familiar, sendo que todas
elas são impulsionadas pela dominação do gênero masculino. Teles e Melo (2002),
em seu livro “O que é violência contra a mulher”, conceitua:
A Violência, em seu significado mais frequente quer dizer uso da força física, psicológica
ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é
constranger, é tolher a liberdade; é incomodar; é impedir a outra pessoa de manifestar
seu desejo e sua vontade , sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser
espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu
22 | Gênero, violência e estruturas de poder
domínio, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano. (TELES; MELO, 2002,
p.15).
O sociólogo francês, Pierre Bourdieu (1995), em “A dominação masculina”, fala
sobre a dominação masculina como um modo de violência simbólica, suave,
insensível
e
invisível,
que
usa
da
comunicação,
do
conhecimento
ou
desconhecimento, ou até mesmo do sentimento da vítima, para violentá-la.
A violência psicológica, por sua vez, surge dessa dominação que o homem
pratica contra a mulher, colocando-a no lugar de inferioridade, o que vem da cultura
patriarcal, que se perpetua de geração em geração. Diferentemente dos demais tipos
de violência, tais como a violência física, a violência psicológica traz danos
silenciosos e duradouros às mulheres vítimas.
A violência psicológica é conceituada pela Lei Maria da Penha, no seu 7º
artigo, inciso II, que diz que as violências psicológicas são entendidas como todo tipo
de conduta que provoque, em termos genéricos, prejuízo à saúde psicológica ou à
autodeterminação, e, em termos específicos, dano emocional, diminuição da autoestima, prejuízo ao pleno desenvolvimento, degradação ou controle. Os meios que
podem conduzir a esse dano são arrolados em caráter exemplificativo e
compreendem as seguintes condutas: ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação,
isolamento,
vigilância,
perseguição,
insulto,
chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir (MACHADO, 2017).
Sobre o rol de práticas estabelecidas como violência psicológica pelo artigo
7º da Lei Maria da Penha, Luís Paulo Sirvinskas (2017) ressalta:
Merece, no entanto, especial destaque a violência psicológica. Pode-se notar que o rol é
extenso e qualquer atitude, por menor que seja, poderá caracterizar essa modalidade de
violência, especialmente quando o marido ridicularizar a mulher por brincadeira, por
exemplo.
A psiquiatra e psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen ressalta que há
canais de provocação desse assédio, que são: a) A recusa de comunicação direta,
sem respostas às perguntas, comunicação por bilhetes, etc; b) Deformação da
linguagem, quando as mensagens são subliminares; c) Mentiras, usadas para anular
Fabiéle do Amaral Viegas | 23
a responsabilidade de quem pratica a violência; d) Sarcasmo, ironia ou desprezo; e)
Desestabilização da vítima por mensagens contraditórias; e f) Desqualificação da
vítima.
Ainda, Marie-France elabora um roteiro de estratégias utilizadas para essas
violências, que cita, por exemplo, a utilização do controle, da ameaça, das
humilhações, do aviltamento e do assédio, para atingir a saúde mental da mulher
vítima.
Considerando o acima exposto, passo a expor no próximo tópico a legislação
pertinente sobre violência psicológica no âmbito doméstico, quando veremos a
legislação referente a violência psicológica no Brasil.
3 LEGISLAÇÃO REFERENTE A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NO BRASIL:
A violência psicológica é, historicamente, conhecida, mas por muito tempo foi
inviabilizada por ser uma violência sutil e silenciosa, ou seja, não deixando marcas
físicas, mas sim, marcas invisíveis. Conforme citado no tópico anterior, já no artigo
5º da Lei, quando das disposições gerais, se classifica o que configura violência
doméstica e familiar, a violência psicológica aparece. Em seguida, no artigo 7º, são
descritas as formas de violência, e em seu inciso II, a violência psicológica é descrita
da seguinte forma:
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de
sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer
outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
(Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018)
Entretanto, apesar de a violência psicológica estar prevista na Lei Maria da
Penha, até julho de 2021, quando a Lei 14.188/21 foi sancionada, este dispositivo era
24 | Gênero, violência e estruturas de poder
apenas interpretativo, necessitando de outras normas para o fazer valer, como
Machado (2017) relata:
O sentido declarado de violências psicológicas, por sua vez, não permite a
criminalização direta de condutas que a ele se amoldem, servindo
―apenas‖ como parâmetro interpretativo, carecedor de outras figuras
normativas, como os crimes de ameaça (art. 147, Código Penal brasileiro),
injúria (art. 140,Código Penal brasileiro), ou constrangimento ilegal (art.
146, Código Penal brasileiro), por exemplo.
A partir de junho de 2021, com a Lei 14.188/21, a previsão de violência
psicológica ganha um tipo penal, conforme o artigo 4º da lei, que incorpora ao Código
Penal Brasileiro o artigo 147-B, conforme a seguir:
Art. 4º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar
com as seguintes alterações:
“Violência psicológica contra a mulher
Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno
desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui
crime mais grave.”
Sendo assim, passa a ser crime, sob pena de reclusão de seis meses a dois
anos e multa a violência psicológica por si só, sem estar, necessariamente, atrelada
a qualquer outro tipo penal, não mais sendo apenas um artigo interpretativo da Lei
Maria da Penha, como passaremos a ver a seguir.
Fabiéle do Amaral Viegas | 25
4 A LEI 14.188/21 E A INCLUSÃO DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NO CÓDIGO PENAL:
Conforme visto no tópico anterior, a Lei 14.188/21, em seu artigo 147-B, enfim
criminaliza a violência psicológica, agora com texto claro e penalidades para aquele
que o infringir. Antes, como já exposto, havia previsão na Lei Maria da Penha, no seu
artigo 7º, mas sem previsão concreta de punição, o que dificultava o enfrentamento
à violência psicológica contra a mulher.
Ademais, houve alteração no texto do artigo 12-C da Lei Maria da Penha, onde
não citava violência psicológica como risco iminente à vida da vítima, o que não
permitia o afastamento do agressor do lar, em caso de violência psicológica. O texto
ficou da seguinte forma:
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física
ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus
dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de
convivência com a ofendida:
Sendo assim, com o advento da lei 14.188/2021, a proteção da mulher vítima
de violência foi ampliada, especialmente no âmbito psicológico. No próximo tópico,
veremos como está sendo aplicado na prática, na Delegacia Especializada da Mulher
de Canoas - RS.
5 ANÁLISE DE OCORRÊNCIA ENCONTRADAS NA DELEGACIA ESPECIALIZADA DA DE
ATENDIMENTO ÀS MULHERES DO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS
A pesquisa foi realizada na DEAM - Delegacia especializada em atendimento
a mulheres de Canoas - RS, dentro do período de 28 de julho de 2021, quando a lei
entrou em vigor, até 31 de março de 2022. Dentro deste período, foram encontrados
40 boletins de ocorrência referentes a violência psicológica, mas é importante
salientar, que parte deles está ligado a outras tipificações também, como injúria,
ameaça, sequestro e cárcere privado.
26 | Gênero, violência e estruturas de poder
A pesquisa foi feita com auxílio da delegada responsável pela delegacia
especializada ao atendimento à mulher, Clarissa Demartini, a qual disponibilizou
acesso ao sistema da delegacia para que eu fizesse a pesquisa de todos os boletins
de ocorrência do período e de seus status.
Durante o levantamento, fiz um compilado com informações importantes para
entender o perfil da mulher que está denunciando a violência psicológica sofrida. Os
dados tratam do local onde a vítima sofreu a violência, sendo que em todos os casos
a violência ocorreu na sua residência.
Um dos pontos importantes, é de que bairros mais pobres, como Mathias
Velho e Guajuviras, têm um número mais expressivo de denúncias, ao contrário de
bairros nobres como Moinhos de Vento e Jardim do Lago, que não registraram
nenhum boletim de ocorrência, conforme exemplificado no gráfico a seguir:
Ainda sobre o perfil das mulheres que denunciam a agressão sofrida, é
importante analisarmos a faixa etária destas vítimas, conforme feito no gráfico a
seguir:
Fabiéle do Amaral Viegas | 27
Chamou atenção que mulheres entre 36 e 40 anos são as que mais sofrem
violências e as denunciam, seguidas por mulheres de 41 a 56. Todas relatam que
estavam em relacionamentos duradouros, como casamento e união estável.
Houve apenas um caso de um adolescente de 16 anos que denunciou a
violência sofrida, seguida por uma de 18 e outra de 20 anos.
Quanto à cor das mulheres vítimas de violência psicológica, chama atenção
que a grande maioria, 36 das 40 mulheres, se declaram brancas, sendo que uma se
declara parda, uma preta e duas não informaram.
Dados que seriam importantes para compor o perfil da vítima de violência
psicológica, são de emprego e de escolaridade, entretanto, são dados que nem
sempre são preenchidos no momento do registro do boletim de ocorrência. Nos 40
casos, em nenhum houve a informação de emprego ou trabalho. Quanto aos dados
referentes a escolaridade, veremos no gráfico a seguir:
Como é possível observar no gráfico anterior, 47,5% das mulheres vítimas de
violência, que registraram boletim de ocorrência no período indicado, possuem
Ensino Médio, seguidas por 25% que completaram apenas o Ensino Fundamental. Já
12,5% concluíram o Ensino Superior e 15% não informaram sua escolaridade.
28 | Gênero, violência e estruturas de poder
Ainda, é relevante analisarmos os dados dos homens acusados de agressão
psicológica, o que farei a seguir, começando pela faixa etária.
Em dois boletins de ocorrência não constava nenhuma informação além do
nome do possível agressor, então não foi possível constatar a idade do sujeito. Nos
demais boletins, identifiquei que homens entre 36 e 45 anos são os que mais estão
envolvidos em violências psicológicas dentro do recorte aqui apresentado. Mas
homens de 20 a 25 anos também estão bem representados, sendo que dentre os 40,
5 são jovens desta faixa etária.
Também chama atenção que idosos também estão representados, sendo que
dos 40 casos, 4 são de idosos entre 60 e 71 anos.
Outro dado importante para avaliarmos o perfil dos possíveis agressores, é a
sua escolaridade, por isso, demonstrarei a seguir os dados encontrados no recorte
realizado.
Fabiéle do Amaral Viegas | 29
No gráfico, nota-se que um número expressivo de boletins de ocorrência
analisados não apresentavam os dados de escolaridade dos acusados. Quantos aos
boletins que continham essas informações, percebemos que a maioria é composta
por homens com grau de escolaridade baixo, sendo o ensino fundamental seu grau
máximo. Apenas 3 acusados possuem ensino superior. Enquanto 8, possuem ensino
médio completo.
Por fim, acho importante falarmos sobre a cor dos acusados de violência
psicológica, assim como fizemos com as vítimas.
Nos boletins de ocorrência há o campo para declaração de cor tanto das
vítimas, quanto dos acusados. Ocorre que, como podemos ver no gráfico, nem
sempre, o campo da cor dos acusados não é preenchido. Não sabemos informar se
é uma falha do agente da delegacia quando faz o questionamento, ou se realmente
a vítima não tem essa informação na hora do registro. Como podemos ver, 12,5% dos
boletins analisados não tinham essa informação.
30 | Gênero, violência e estruturas de poder
Quanto aos demais boletins, em 72,5% dos casos os acusados foram
declarados como da cor branca,, enquanto 7,5% como da cor preta e iguais 7,5% da
cor parda.
CONCLUSÃO
A presente pesquisa buscou como principal finalidade demonstrar a
importância da tipificação do crime de violência psicológica contra a mulher, que
ocorreu através da Lei 14.188 de 2021. A pesquisa, primeiramente, contou com a
análise do conceito do que é violência psicológica contra a mulher. Partindo, então,
para a análise da necessidade de tipificação do crime, já que até então só havia
previsão legal na Lei Maria da Penha, mas não no Código Penal, portanto, sem
eficácia prática, sem penalidade para o agressor.
Após a análise da tipificação e também da nova Lei, passamos a analisar
boletins de ocorrência retirados da Delegacia Especializada em Atendimento à
Mulher de Canoas/RS, no período de 28 de junho, quando a lei entrou em vigor, até
31/03/2022. Este recorte foi feito de forma aleatória, a fim de analisar a eficácia da
Lei e o perfil das vítimas e acusados.
Fabiéle do Amaral Viegas | 31
No recorte, conseguimos identificar que os fatos criminosos ocorrem na
maioria das vezes em bairros de menor poder aquisitivo, ou seja, bairros mais
carentes. Cabe ao município pensar em formas de política pública que façam a
informação chegar a todos os bairros, inclusive bairros nobres, onde certamente
mulheres também sofrem violência, mas por algum motivo, o qual não entraremos
aqui, não denunciam.
Ainda neste trabalho, falamos sobre o perfil da vítima do acusado. Sobre as
vítimas, cumpre destacar que a maioria delas têm entre 36 e 40 anos, são casadas
com seus agressores, se autodeclaram brancas e possuem o Ensino Médio completo
como grau de instrução. É curioso que mulheres entre 36 e 40 anos, com grau de
escolaridade médio, sejam a maioria das mulheres que denunciam e isso deveria ser
motivo de criação de políticas públicas que alcancem mulheres de todas idades e
graus de instrução, além da cor, para que a violência seja denunciada e contida,
trazendo maior segurança para essas mulheres. O questionamento que fica é de que
mulheres mais jovens não sofrem violência psicológica ou não denunciam? Mulheres
com ensino superior não denunciam por algum motivo relacionado a sua classe
social? São pontos importantes a serem analisados em um próximo trabalho.
Quanto aos acusados, a maioria deles têm entre 36 e 45 anos de idade. Na
maioria dos casos, de cor branca e apenas com ensino fundamental. Acredito que
para diminuição dos números de casos de violência psicológica, a prevenção é de
suma importância, então entendo que os homens, assim como toda a sociedade,
deve ter o ensinamento sobre violência contra a mulher e, mais precisamente neste
caso, sobre a violência psicológica, nas escolas, desde o ensino básico, o que é uma
ideia de política pública para o município.
Este trabalho mostrou que há a necessidade de maior investimento em
políticas públicas pelo Estado, a fim de que mulheres possam conhecer seus direitos
e acessá-los de forma efetiva.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 4
ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005
32 | Gênero, violência e estruturas de poder
BRASIL. Lei nº 11.340, de 07 agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher e dá outras providências. Brasília,
DF: Presidência da República, 2006. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
Acesso em: 11 mai. 2022.
BRASIL. Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o programa de cooperação
Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica [...] e para criar o tipo penal de
violência psicológica contra a mulher. Brasília, DF: Presidência da República, 2021.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20192022/2021/Lei/L14188. Acesso em: 20 abr. 2022
HIRIGOYEN, Marie-France. A violência no casal: da coação psicológica à agressão
física. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 98-99.
MACHADO, Isadora Vier. Da dor no corpo à dor na Alma: Uma Leitura do conceito de
violência psicológica da Lei Maria da Penha. 2013.
TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a
mulher? São Paulo: Brasiliense, 2002.
SIRVINSKAS, Luis Paulo. Aspectos polêmicos sobre a Lei n.º 11.340, de 7 de agosto
de 2006, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. Revista Jurídica, ano 55, n.º 351, Porto Alegre: Nota Dez/Fonte do Direito, p.
107/129, jan. 2007, p. 112.
2. PODE A PESSOA LGBTI+ OCUPAR ESPAÇOS POLÍTICOS NO BRASIL? LGBTFOBIA,
COLONIALIDADE E A MOVIMENTAÇÃO ELEITORAL DE CORPOS DISSIDENTES1
https://doi.org/10.36592/9786554601566-02
Cristian Anderson Puhl2
Resumo
Este artigo propõe uma abordagem interpretativa da participação eleitoral de corpos
e identidades autodeclaradas LGBTI+ no Brasil, em 2022, enquadrando-a na
intersecção entre a constituição sócio-histórica do país e a LGBTfobia como um
dispositivo operacional de poder da Colonialidade. O objetivo deste estudo é
identificar, portanto, a relação entre a reprodução de um modelo cisheteronormativo, binário e dicotômico, implementado a partir dos processos de
colonização, e a movimentação destas pessoas sexo-dissidentes nos espaços
institucionais de representação político-partidária. Para isso, como métodos de
pesquisa, se utilizam a revisão investigativo-bibliográfica e a análise de dados
oriundos de organizações não-governamentais e do Tribunal Superior Eleitoral;
tendo como marco referencial teórico as Epistemologias do Sul. Destacando
elementos que apontam para um padrão hegemônico de sujeitos a ocuparem estes
assentos legislativos, ocasionando uma sub-representação de outras populações, a
investigação indica a posição na qual a diversidade sexual e de gênero tensiona uma
mobilização mais significativa. Por fim, se estabelece como a dimensão LGBTfóbica
perpassa o tecido social e desloca para as margens parcelas significativas de
brasileiros, categorizados como dissidentes daquilo que se constituiu como norma.
Palavras-chave: Colonialidade do poder. LGBTfobia. eleições LGBTI+. identidades
sexo-dissidentes. epistemologias do sul.
1 Considerações iniciais
Domingo, 02 de outubro de 2022. Fim do primeiro turno das Eleições Gerais no
Brasil. Em meio a um cenário de intensos acirramentos ideológicos, de movimentos
acentuados em direção à ruptura democrática e do uso indiscriminado do aparato
estatal para assegurar a manutenção no poder de um grupo político alinhado ao
1
Este artigo é um fragmento da pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) —
campus Erechim. O estudo iniciou em agosto de 2023 e tem previsão de conclusão em agosto de
2025, com a defesa da Dissertação sobre a temática.
2
Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) — campus Erechim. Jornalista, especialista em Ciências
Sociais e em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. E-mail: crispuhll@gmail.com
34 | Gênero, violência e estruturas de poder
avanço de uma gramática moral e do conservadorismo reacionário no país, o
Congresso Federal, as assembleias legislativas dos 26 Estados brasileiros e a
Câmara Legislativa do Distrito Federal davam reconhecimento público aos 513
deputados federais e aos 1059 estaduais eleitos naquele processo.
Enquanto a concorrência para o comando da Presidência da República e para
o Executivo de alguns Estados se direcionava para um segundo turno, os brasileiros
passaram a acompanhar a composição dos parlamentos, assim como identificar as
principais figuras políticas produzidas nos últimos anos de vertigem democrática 3
experimentada no país. A tensão estabelecida entre os dois principais projetos de
governo em disputa — representado, de um lado, pelo então presidente Jair
Bolsonaro (PL) e, de outro, pelo ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —
também se mostrou presente nos enfrentamentos pelo voto popular travados pelos
candidatos às assembleias estaduais e ao Congresso.
Nas urnas, o comportamento do eleitorado confirmou aquilo que as pesquisas
de opinião vinham indicando como os cenários prováveis de se concretizar — ainda
que estas ferramentas para medir a intenção de voto dos eleitores tenham sido
amplamente contestadas pelo candidato à reeleição e que terminou derrotado ao
final daquele mesmo mês de outubro, se tornando o primeiro presidente em
campanha a não ser reeleito no Brasil. A extrema polarização entre as duas
candidaturas centrais ao Palácio do Planalto iriam reverberar nas definições sobre
quem seriam os detentores do poder nos legislativos de todo o país.
Além da mobilização de pautas morais, abordadas sob um viés conservador,
e da criminalização de temas inseridos em um impreciso e amplo espectro definido
como progressista, a beligerante e inflamada campanha de 2022 reforçou
estereótipos, reacendeu falsas polêmicas e dicotomias e consolidou uma estrutura
que, majoritária e hegemonicamente, fortalece um padrão gendrado e binário na
ocupação de espaços representativos institucionais e decisórios em nosso país.
Novamente, ao fim daquele domingo, 02 de outubro, foram os homens, brancos, que
se afirmam heterossexuais e cisgêneros, representantes de famílias e grupos
3
A expressão vertigem democrática refere-se a leitura de cenário proposta em NOBRE, Marcos.
Limites da democracia. De junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2022.
Cristian Anderson Puhl | 35
tradicionais na política brasileira, que re-ocuparam os assentos neste sistema
político-partidário-eleitoral.
Mesmo que a implementação de dispositivos como a Emenda Constitucional
1114, que estimula a ampliação de candidaturas de pessoas negras e/ou pardas e de
mulheres tenha surtido algum efeito — na Câmara dos Deputados, por exemplo, o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou, em 2022, um aumento de 8,9% de pessoas
negras e pardas eleitas em relação ao processo de 2018 —, a estratificação e as
clivagens percebidas quando se olha para estas esferas de gestão e controle do
Estado apontam, historicamente, para uma inexpressiva participação de grupos
sociais que não se inserem em um modelo de sujeito que se constitui na esteira do
que autores latinoamericanos como Lugones 5 e Quijano 6 vão considerar como o
universal: homem, branco, cisgênero e heterossexual.
Tomando como marco referencial de análise as Epistemologias do Sul, este
artigo se propõe a discutir a participação política e eleitoral de corpos e identidades
que não se inserem nestas categorias alegóricas que, para Mombaça7, consolidam a
existência de um nós, centrado em características que permeiam toda a produção
discursiva e simbólica, mas também material, do que se compreende na tripla
dimensão humano/cidadão/cidadania.
Em especial, o trabalho em questão se debruça a analisar como os corpos e
identidades autodeclaradas LGBTI+ tensionam e se movimentam nas estruturas
eleitorais no país, partindo de uma perspectiva sócio-histórica que posiciona no
interior da colonização e em seus desdobramentos posteriores, a imposição de uma
formatação societária na qual a sexualidade é também colonizada. Desde este ponto
de vista, importam os debates produzidos não somente por Lugones 8, mas também
por outros e outras pesquisadoras que se dedicam a examinar como a colonialidade,
4
O
texto
da
Emenda
Constitucional
pode
ser
conferido
na
íntegra
em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2021/emendaconstitucional-111-28-setembro2021-791789-norma-pl.html. Acesso em 26 de fevereiro de 2024.
5
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 935–952,
2014.
6
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Clacso, Consejo Latino
Americano de Ciencias Sociales. Buenos Aires: 2005.
7
MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
8
Idem à nota 5.
36 | Gênero, violência e estruturas de poder
assim como nos diz Mignolo 9 , é central no entendimento da Modernidade e nos
imperativos que a sustentam.
Para empreender tal objetivo, além do método de revisão investigativabibliográfica, se utiliza, neste trabalho, a análise de dados oriundos de levantamentos
produzidos por Organizações Não-Governamentais (ONGs)
e informações
publicadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), relacionadas especificamente às
Eleições Gerais de 2022. O cruzamento destes indicadores e as suas interpretações
partem do uso da interseccionalidade como ferramenta analítica, nos termos do que
defende Akotirene 10 . A delimitação temporal do estudo considera, principalmente,
dois fatores.
O primeiro deles diz respeito à inexistência de registros oficiais da Justiça
Eleitoral que possibilitem quantificar o número de candidaturas LGBTI+ no país.
Embora o TSE tenha incluído, por meio de resolução datada de 2018, a possibilidade
do uso do nome social para pessoas trans* 11 , até esta presente data, os/as
candidatos/as não precisam informar sua orientação sexual e/ou identidade de
gênero para estarem aptas a disputar os processos eleitorais. Esse aspecto
precariza a obtenção de referências precisas e desloca para a sociedade civil e as
entidades e instituições que atuam na defesa e promoção de políticas para as
populações LGBTI+, a tarefa de proceder tal investigação — como a realizada pela
ONG VoteLGBT e da qual falaremos no decorrer deste artigo.
Há também o fato de 2022 estar diretamente vinculado ao ambiente hostil
para o exercício da política-partidária vivido no Brasil na última década, agravado,
sobremaneira, para lideranças e pessoas públicas do campo dito progressista, no
qual se incluem, em grande medida, pessoas LGBTI+. Sem adentrar no mérito das
discussões que perpassam o assunto e dadas as limitações deste texto, o que se
busca, averiguando este processo eleitoral, é uma amostra para situar como os
corpos e as identidades periféricas deste constructo cis-heteronormativo se
9
MIGNOLO, W. D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da
modernidade. CLACSO, 2005.
10
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2023.
11
Para contemplar todas as identidades transexuais e as travestilidades, além da não-binaridade de
gênero, optou-se pelo uso do asterisco como elemento gráfico ao lado da palavra trans para nos
referirmos a estas construções de identidades de gênero.
Cristian Anderson Puhl | 37
encontram sub-representadas, atualizando o ideário do colonialismo e da
colonialidade que, já em 15000, com a ocupação do território pelos portugueses, as
subalternizavam.
Se faz necessário, portanto, destacar que o propósito desta reflexão não
consiste em realizar uma análise do trabalho dos indivíduos autodeclarados LGBTI+
eleitos em 2022. Em vez disso, busca-se promover o debate sobre o papel
desempenhado por esses sujeitos em um sistema político historicamente
fundamentado em um modelo de cidadania moldado à imagem e semelhança do
colonizador. Revisitando a colonização a partir de outras fontes de análise que não
as centradas em uma leitura unilateral e universal da história — o que Adichie 12
considera como o “perigo de uma história única” — investigam-se as consequências
para outras construções possíveis referentes a institucionalização da LGBTfobia no
Estado e no tecido social, implicando no aumento das violências sistêmicas e no
apagamento sócio-histórico das pessoas dissidentes de um sistema que autores
como Butler 13 , Connel e Pearse 14 e Preciado 15 , por exemplo, denunciam como
estruturado a partir da “regulação binária do sexo-gênero”16.
Assim, na primeira parte do artigo, busca-se a intersecção entre a
Modernidade/Colonialidade, compreendida aqui como este novo espaço-tempo de
poder global em que há a hierarquização dos sujeitos a partir de distinções que, no
limite, vão separar os humanos dos não humanos, segundo defende Quijano17, e a
colonização das sexualidades, por meio de um debate travado por Fernandes 18 ,
Mott 19 e Trevisan 20 . Na sequência, apresentam-se os indicadores relativos às
pessoas LGBTI+ eleitas em 2022, mobilizando a cidadanização LGBTI+ e a ampliação
da gramática de reivindicações dos movimentos coletivos e sociais organizados. Por
12
ADICHIE, Ngozi Chimamanda. O perigo de uma história única. 1ª edição. São Paulo: Companhia das
Letras, p. 11, 2019.
13
BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. 19ª edição. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
14
CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: nVersos, 2015.
15
PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano. Crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
16
Id. nota 13, 2020, p. 47).
17
Idem à nota 6.
18
FERNANDES, Estevão R. Existe índio gay? A colonização das sexualidades indígenas no Brasil. 1ª
edição. Curitiba: Editora Prismas, 2017.
19
MOTT, L. A revolução homossexual: o poder de um mito. Revista USP, [S. l.], n. 49, p. 40–59, 2001.
20
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. A homossexualidade no Brasil, da Colônia à
atualidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.
38 | Gênero, violência e estruturas de poder
fim, são resgatados os argumentos centrais postos à discussão para apontar a
necessária e urgente transformação social, levando-se em consideração como a
política e os resultados eleitorais obtidos pelas pessoas LGBT+’s e dissidentes do
sistema sexo-gênero em 2022, cumprem um papel fundamental.
Não obstante, cabe salientar que tais ponderações são resultados de uma
pesquisa de mestrado
em andamento no Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS) — campus Erechim. Este artigo, em vista disso, contém trechos extraídos
do projeto aprovado na instituição em agosto de 2023, e de uma produção anterior
do autor21, publicada como capítulo de livro22, cuja ampliação é a base deste estudo,
que tem previsão de estar concluído em agosto de 2025.
2 Um Brasil alheio (e desde sempre combativo) contra a diversidade
Há um fato relativamente pouco explorado na historicidade brasileira sobre
como a diversidade sexual e de gênero, em suas dimensões das práticas e
comportamentos exibidos pelos povos originários, foi percebida pelos colonizadores
europeus desde as primeiras expedições e incursões ao território que daria contorno
ao que hoje nos referimos como Brasil. A bordo de suas naus, os marinheiros do
outro lado do Atlântico guiavam-se por um ordenamento social erigido a partir de
relações binárias e dicotômicas, resultado de uma classificação entre os povos
autoidentificados como civilizados (como os europeus) e aqueles a quem deveria ser
implantada a civilização nestes mesmos moldes (como os nativos).
Ainda que autores como Trevisan23 tenham retratado o estranhamento destes
viajantes europeus com os costumes e as distintas formas de os nativos
manifestarem sua sexualidade, é Mott24 quem vai se dedicar a reconstruir uma triste
21
PUHL, Cristian Anderson. Pode a pessoa LGBT+ falar? Do apagamento sócio-histórico à ocupação
de mandatos legislativos em 2022. In: Direitos humanos e interdisciplinaridade: diálogos e reflexões
contemporâneas. WENCZENOVICZ, Thaís Janaina. Joaçaba: Editora Unoesc, 2023.
22
O livro eletrônico está disponível para download gratuito acessando:
https://www.unoesc.edu.br/wp-content/uploads/2023/05/Direitos-Humanos-eInterdisciplinaridade-1.pdf . Último acesso em 05 de março de 2024.
23
Idem à nota 20.
24
Mott, L. A inquisição no Maranhão. Edufma, 1995.
Cristian Anderson Puhl | 39
narrativa que ilustra a perversidade com a qual as pessoas sexo-dissidentes foram
e, em muitos contextos continuam, reiteradamente, sendo alvos da violência em solo
pátrio. Mott25 revela que, transcorrido quase um século da ocupação colonial, por
volta do ano de 1614, a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica amarraram um indígena
da tribo dos Tupinambás à boca de um canhão e o explodiram. O ato, ocorrido na
região que mais tarde se tornaria o município de São Luís, capital do Estado do
Maranhão, serviu como sanção ao indígena nomeado de Tibira 26 do Maranhão,
acusado e condenado pela prática do pecado nefando associado ao crime de
sodomia — definições utilizadas pela Igreja para designar os atos e as relações
afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo27.
Mais do que uma penalidade imposta à Tibira do Maranhão, a destruição do
seu corpo serviu como advertência aos indígenas que, alheios a categorização de
sua sexualidade a partir de hierarquias formatadas pelos colonizadores,
estabeleciam e mantinham hábitos sociais e culturais desvinculados da
normatização que passava a ser operacionalizada como dispositivo de controle e
gestão destes povos. Segundo Fernandes28,
a colonização opera impondo aos colonizados, por meio de práticas institucionais que
se baseiam em pressupostos morais, religiosos, científicos, acadêmicos, filosóficos,
políticos, sociais, etc., um conjunto de regras que busca reproduzir, nos corações e almas
dos colonizados, as lógicas que movem a sociedade colonizadora. [...] tal imposição não
opera em um plano discursivo, etéreo e descolado da realidade dessas populações; muito
pelo contrário: ele faz parte do cotidiano, tem lugar, cara, rosto, voz... é a imposição de
um casamento hétero, com um casal formado por um par de genitálias diferentes que
possa ter filhos devidamente batizados. [...] Ao se impor às sociedades colonizadas esse
arcabouço de práticas, cabe às justificativas morais e filosóficas fundamentar o
esvaziamento desses povos de si mesmos. Trata-se de lhes ensinar como sua cultura é
equivocada, seus afetos são errados, sua sociedade é atrasada e iletrada, sua religião
25
Idem à nota 24.
Mott (1995) explica que tibira foi a identificação utilizada nos documentos oficiais dos religiosos
para se referir ao indígena e que esta seria a palavra tupinambá para se referir aos homens que, na
tribo, praticavam atos sexuais com outros homens — uma vez que, como aponta Grosfoguel (2008),
as populações nativas da América Latina, em sua grande maioria, não considerava tais práticas como
desviantes e/ou crimes passíveis de punição.
27
Idem à nota 20.
28
Idem à nota 18, 2017, p.p 15–16.
26
40 | Gênero, violência e estruturas de poder
não tem fé, sua cor é escura demais, seu amor é uma espécie de perversão e, enquanto
se mantiverem sendo e parecendo com o que são e parecem, representarão um atraso
no progresso humano, ou um lar apropriado para o capeta, ou uma subversão da ordem
das coisas.
Para Fernandes 29 e Mott 30 , os conceitos éticos, morais e religiosos que
moldaram o mito fundador da cultura eurocêntrica foram impostos também às
regiões colonizadas, provocando não apenas uma ruptura com as características e
os comportamentos originários destes povos, mas também a transposição de
estigmas e doutrinas que tinham o objetivo de civilizá-los no interior de um padrão
universal de existência. E, neste campo, a sexualidade assume uma dimensão
estratégica para a regulação dos corpos e do desejo, como destaca Fernandes 31 ,
sinalizando este um eixo “parte de um complexo discursivo inerente às dinâmicas de
colonização”.
Apesar de o assassinato de Tibira do Maranhão não ser o objeto central da
análise deste estudo, interpretá-lo a partir das contribuições de Lugones 32 ,
Grosfoguel33 e Quijano34, nos possibilita reconhecer como a colonização e os seus
imperativos institucionalizam dispositivos cujos reflexos se afirmam para além da
exploração econômica, fortalecendo a captura da subjetividade também como uma
ferramenta da colonialidade, pois, como situa Grosfoguel 35 , o que chegou “às
Américas foi uma enredada estrutura de poder mais ampla e mais vasta, que uma
redutora perspectiva econômica do sistema-mundo não é capaz de explicar”.
O que Grosfoguel 36 propõe é a compreensão quanto a maneira como a
sociedade colonizada irá se organizar a partir da imposição de um modelo de
hierarquias e classificações entre os sujeitos, sendo o homem, branco, europeu,
heterossexual e cisgênero o padrão a ser considerado o ideal. Desta maneira, ele
29
Idem à nota 18.
Idem à nota 19.
31
Idem à nota 18, 2017, p. 21.
32
Idem à nota 5.
33
GROSFOGUEL, R. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais:
Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências
Sociais, v. 80, p. 115–147, mar. 2008.
34
Idem à nota 6.
35
Idem à nota 33, 2008, p. 122.
36
Idem à nota 33, 2008, p. 124.
30
Cristian Anderson Puhl | 41
reflete que “a matriz de poder colonial é um princípio organizador que envolve o
exercício da exploração e da dominação em múltiplas dimensões da vida social”.
Na esteira dessa leitura, a instrumentalização destes conceitos contrapõem
discursos antes hegemônicos sobre aspectos inseridos tanto na base da formação
social e histórica do Brasil, quanto em uma constante atualização deste ideário no
qual os corpos e as identidades que não se incluem na hegemonia do colonizador,
como as pessoas sexo-dissidentes, são postos às margens da estrutura social.
Como aponta Quijano37,
na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de
dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais
correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de
dominação que se impunha.
As implicações disso podem ser observadas na categorização e na
hierarquização dos sujeitos baseando-se em um universalismo composto pela e a
partir da América Latina, como pontua Quijano38 ao afirmar ser este o processo que
redefine a condição de existência dos povos originários em um constructo alegórico
das identidades fabricadas pelo empreendimento da Modernidade/Colonialidade.
Mignolo39 reforça esta interpretação observando que a colonialidade se torna
um elemento constitutivo da modernidade, sendo esta a relação que irá embasar os
meios pelos quais estas populações ocuparão posições de subalternidade e
submissão. Conforme Teixeira40, é a violência colonial na atribuição de uma imagem
moralmente inferior dos colonizados em relação aos colonizadores que produz como
efeito uma estratégia de dominação e opressão dos povos não-europeus, nãobrancos, não-cisgêneros, não-heterossexuais.
[...] Nesse sentido, ele, aquele que expropria radicalmente a vida do outro sujeito, amplia
os holofotes sobre os/as “degradados/as” e faz com que nós não questionemos os seus
privilégios, a sua moralidade violenta, o seu caráter genocida e sua aptidão para o
37
Idem à nota 6, 2005, p. 117.
Idem à nota 6.
39
Idem à nota 9.
40
TEIXEIRA, Thiago. Descolonizar valores: ética e diferença. Salvador: Devires, p. 28, 2021.
38
42 | Gênero, violência e estruturas de poder
desprezo. As pessoas negras, as mulheres, as pessoas LGBTQIAP+ e demais existências
precarizadas — em nome de um capital político, econômico, moral e normativo, devedor
de uma memória colonial — são identificadas por suas marcações e, em nome de
estigmas produzidos, são desabonadas nas cenas políticas.
O estranhamento entre as concepções da modernidade e do sistema-mundo41
e as práticas culturais, sociais e econômicas dos povos originários incidem, por
consequência, na adoção de um regime de regulação binária do sexo-gênero,
engendrada na heteronormatividade compulsória em detrimento da diversidade
sexual e de gênero que se manifestava entre os nativos, à época da colonização.
Atuando de forma permanente e sistemática como engrenagem na produção
de apagamentos e invisibilidades sócio-históricas, a colonialidade, como explicita
Missiatto 42 , promove a clivagem e a estratificação entre aqueles a quem são
concedidos — e permitidos — acessos à sociedade e aos que permanecem nos
“escombros colonialistas” — inclusive ao se observarem as possibilidades de
tensionamento e agência destes indivíduos em espaços de poder políticospartidários e eleitorais.
Circunscritos a estas categorias homogêneas e hierárquicas, os colonizados
são constituídos em uma representação forjada por um ideário conservador,
gendrado, binário, heteronormativo e arraigado em crenças dicotômicas quanto a
superioridade/inferioridade, civilizado/bárbaro, cristão/pagão, entre outros. Isso,
para Quijano 43 , extingue formas outras de existir que não àquelas orientadas ao
modelo assumido como o universal:
[...] Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e
práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados.
Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social
universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais
antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos
41
WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2001.
42
MISSIATTO, Leandro Fonseca. Colonialidade normativa. Curitiba: Appris, p. 19, 2021.
43
Idem à nota 6, 2005, p. 118.
Cristian Anderson Puhl | 43
numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços
fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais.
Para Quijano44, é a raça o elemento central que a colonialidade aciona como
mecanismo para classificar e categorizar os povos. Outros aspectos, como o sexo e
o gênero, por exemplo, se dissolveriam no interior desta forma de organização
societal, onde o poder se dimensiona por e pela raça como critério de separação.
Neste debate, Lugones 45 é fundamental para promover a sexualidade como uma
dimensão que também estrutura estas relações de dominação, preenchendo uma
lacuna epistêmica da teoria fundamentada por Quijano46.
O significado desse processo, como denuncia Lugones47, será a subjugação
dos dominados perante os dominadores, com consequências perversas para o
reconhecimento dos colonizados como humanos e, portanto, indivíduos dotados de
“conhecimentos, relações e valores, práticas ecológicas, econômicas e espirituais”,
consagrando, em sua perspectiva, “a hierarquia dicotômica entre o humano e o não
humano como a dicotomia central da modernidade colonial”. Complementa
Lugones48 que
[...] os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram
classificados/as como espécies não humanas — como animais, incontrolavelmente
sexuais e selvagens. O homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um
sujeito/agente, apto a decidir, para a vida pública e o governo, um ser de civilização,
heterossexual, cristão, um ser de mente e razão. [...] os colonizados/as tornaram-se
sujeitos em situações coloniais na primeira modernidade, nas tensões criadas pela
imposição brutal do sistema moderno colonial de gênero. Sob o quadro conceitual de
gênero imposto, os europeus brancos burgueses eram civilizados; eles eram plenamente
humanos.
44
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa;
MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
45
Idem à nota 5.
46
Idem à nota 6.
47
Idem à nota 5, 2014, p. 936.
48
Idem à nota 47.
44 | Gênero, violência e estruturas de poder
O resgate da colonização como imposição à Modernidade e a distinção entre
humanos e não humanos, trabalhada por Lugones49, contribuem para a constituição
de elementos interpretativos importantes que sustentam este estudo, uma vez que
permitem a intersecção entre o apagamento sócio-histórico vivido pelos corpos e
identidade sexo-dissidentes, a LGBTfobia como um dispositivo de poder e controle
exercido pela colonialidade e, em última instância, os reflexos desse ordenamento na
movimentação e no tensionamento dos espaços representativos político-eleitorais
ocupados por estes sujeitos.
Estas aproximações interseccionais se tornaram possíveis, diz Feitosa 50 , à
medida que os estudos nos campos de gênero e sexualidade avançaram para outras
áreas
científicas
tradicionais,
mostrando
uma
transversalidade
e
transdisciplinaridade que permitem “compreender como inúmeras violações de
direitos humanos atravessam distintos campos sociais”. Não à toa, a produção da
LGBTfobia enquanto discurso político, institucionalizando práticas discriminatórias,
perpassa como estas populações são percebidas no tecido social.
Atrelada à estrutura social, as fobias acionadas contra os corpos e identidades
LGBTI+ dificultam a promoção de políticas públicas, afetam a mobilidade social
destes sujeitos e resultam, como indicam estudos de organizações nãogovernamentais como o Grupo Gay da Bahia (GGB), na expansão da violência,
tornando o Brasil o país que mais matou pessoas LGBTI+ em 202251; e, em 2023, pelo
15º ano consecutivo, o que mais assassinou pessoas trans*, conforme a Associação
Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)52.
No Brasil, não obstante, desde o processo de ocupação e povoamento se
constata, por meio deste ideário do colonialismo e da colonialidade, o apagamento
sócio-histórico, político e cultural de parcelas expressivas de sua população,
49
Idem à nota 5.
FEITOSA, Cleyton. As diversas faces da homofobia: diagnóstico dos desafios da promoção de
Direitos Humanos LGBT. Revista Periódicus, p. 301, 2016.
51
O levantamento completo está disponível em:
https://cedoc.grupodignidade.org.br/2023/01/19/mortes-violentas-de-lgbt-brasil-observatorio-dogrupo-gay-da-bahia-2022/. Último acesso em 09 de fev. 2024.
52
O Dossiê contendo os registros dos assassinatos cometidos contra pessoas trans e travestis no
Brasil, em 2023, pode ser acessado em:
https://antrabrasil.files.wordpress.com/2024/01/dossieantra2024-web.pdf. Último acesso em 10 de
fev. 2024.
50
Cristian Anderson Puhl | 45
ocasionando um cenário de múltiplas invisibilidades e silenciamentos coletivos —
com efeitos que se alastram há séculos na negação de direitos e acessos precários
a participação coletiva das pessoas sexo-dissidentes. Direito humano fundamental
garantido constitucionalmente, o engajamento político é um dos eixos que organiza
e consolida a cidadania dos sujeitos. Mas, em nosso país, esta é também uma
dimensão que não contempla a pluridiversidade nacional. Falaremos sobre isso na
próxima seção.
2 Sem lenço nem documento: candidaturas autodeclaradas LGBTI+ em 2022 e
espaços de poder
Quando Fernandes 53 afirma haver, a partir dos processos de ocupação do
território pelos europeus, a reprodução de um ideário que irá colonizar também a
sexualidade dos povos originários e inseri-los em um mecanismo que normatiza as
formas de existência, o autor concebe a possibilidade de que estas relações de poder
e dominação se estendam, posteriormente, para outros grupos sociais, garantindo
um modelo de captura das subjetividades que unifica os sujeitos desde o padrão do
colonizador.
Deste modo, a forma de construção da sociedade colonizada responderá,
argumenta Lugones 54 , aos indicativos heteronormativos e patriarcais. Com a
expansão dos processos coloniais e da gestão reguladora dos corpos, tais
características classificatórias serão compulsoriamente determinadas a todas as
populações. Reflete Lugones55 que
[...] “colonialidade” não se refere apenas à classificação racial. Ela é um fenômeno mais
amplo, um dos eixos do sistema de poder e, como tal, atravessa o controle do acesso ao
sexo, a autoridade coletiva, o trabalho e a subjetividade/intersubjetividade, e atravessa
também a produção de conhecimento a partir do próprio interior dessas relações
intersubjetivas. Ou seja, toda forma de controle do sexo, da subjetividade, da autoridade
e do trabalho existe em conexão com a colonialidade.
53
Idem à nota 18.
LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento
feminista hoje. Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
55
Idem à nota 54, 2020, s.p.
54
46 | Gênero, violência e estruturas de poder
A partir do exercício do controle das diferentes dimensões do sujeito, a
colonialidade sustentará as hierarquias e classificações que irão indicar quais
espaços e posições os colonizados poderão ocupar — em um processo contínuo de
atualização e re-identificação. Neste cenário, a violência e a negação de direitos às
populações LGBTI+ podem dificultar o acesso destes corpos e identidades aos
espaços políticos eleitorais representativos. Prado, Maracci e Monteiro 56 , por
exemplo, citam a reprodução de discursos médicos e higienistas como plataformas
educacionais no Brasil, principalmente nas décadas de 1930 e 1970, consolidando
determinadas narrativas binárias e padronizadoras de comportamentos e valores.
Assentada em um passado colonial, a formação do Brasil dá-se também pelo
apagamento da história e da existência dos povos originários e, em seguida, das
pessoas negras escravizadas e racialmente subordinadas às classes econômica e
politicamente dominantes, em um processo intenso de colonização que, como
referido acima, perpassa o poder, o saber, o ter, o ser e o gênero dos/as
colonizados/as.
Os
efeitos
disso
podem
ser
observados
na
sociedade
brasileira
contemporânea, que ainda mantém fragmentos desta lógica de silenciamento das
diferenças e da reprodução hegemônica de um sistema binário de sexo-gênero. Para
além das violações de direitos quanto a dignidade da pessoa LGBTI+ em espaços
educacionais, por exemplo; ou a inexistência de legislações específicas para a
proteção da vida e do usufruto de garantias constitucionais plenas para estes
indivíduos, como o acesso à saúde, a ausência de dados demográficos oficiais
pertinentes a estas populações é uma negligência do Estado com reflexos diretos na
efetivação de uma política transformadora e emancipatória.
Ainda que a reabertura democrática que resultou na Constituição Federal de
1988 tenha sido acompanhada, como apontam Prado, Maracci e Monteiro 57 , de
“estratégias de governança girando em torno da construção de sistemas de
garantias fundamentais, da prevalência dos direitos humanos e de compromissos
com a formação em determinados tópicos de cidadania”, a conformação e a
56
PRADO, Marco Aurélio Máximo; MARACCI, João Gabriel; MONTEIRO, Igor Ramon Lopes.
Governamentalidades e depurações hierárquicas dos direitos humanos no Brasil: a educação pública
e a população LGBT+. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 2021.
57
Idem à nota 56, 2021, p. 6.
Cristian Anderson Puhl | 47
valoração do gênero e da sexualidade em um padrão centrado no binarismo
mencionado anteriormente não podem ser menosprezadas.
Nesta trajetória pós-redemocratização se tem algumas tentativas produzidas
por sujeitos LGBTI+ para suplantar o apagamento e a invisibilidade conservados pela
colonialidade, colocando em movimento as disputas dos corpos pela ocupação de
territórios representativos aos quais nunca foram concedidos acessos. Dados
sistematizados por organizações que atuam na construção de agendas de inserção
política, indicam impulsos de relocalização destes sujeitos neste campo, revelando,
ao mesmo tempo, que o Estado brasileiro continua interditando a abertura de
processos emancipatórios em face da manutenção de uma estrutura que privilegia a
estratificação do poder entre aqueles indivíduos que sempre o detiveram.
Isso se torna perceptível, por exemplo, quando analisamos um levantamento
da organização não-governamental VoteLGBT, divulgado em 202258, mostrando que
a política institucional brasileira sempre foi ocupada, majoritariamente, por homens,
brancos, cis, héteros, não jovens, ricos e conservadores, explicando, em partes, as
violações de direitos quanto a dignidade da pessoa LGBTI+ e a perpetuação de um
silenciamento histórico sobre estes corpos.
Com a ausência de dados oficiais sistematizados, uma vez que, no Brasil, as
candidaturas a cargos eletivos não necessitam informar aspectos como a orientação
sexual e a identidade de gênero, a quantificação de candidatos e candidatas LGBTI+
no país assume diferentes graus de dificuldade, como aponta a responsável técnica
pela pesquisa da VoteLGBT, Evorah Cardoso59, ao destacar que há falhas do Estado
na obtenção de informações demográficas sobre estas populações:
no Brasil, há uma lacuna na coleta de dados sobre a população LGBT+: o Censo
Demográfico, maior pesquisa realizada em território nacional, não incorpora perguntas
58
Dadas as dificuldades na obtenção de informações sobre pessoas autodeclaradas LGBTI+
participando de processos eleitorais, a pesquisa da VoteLGBT contemplou, em um primeiro momento,
dados coletados nas eleições municipais, em 2020; a partir deste diagnóstico e mapeamento, a
organização estruturou a análise dos dados e, durante o processo eleitoral de 2022, apresentou o
relatório contendo o perfil sócio-demográfico dos sujeitos, comparando-os às candidaturas
autodeclaradas para a disputa aos cargos nos legislativos e executivos estaduais e ao Congresso
Federal — cujo recorte é a base que estrutura este elemento da pesquisa em curso no PPGICH/UFFS.
59
CARDOSO, Evorah. A política LGBT+ brasileira. Entre potências e apagamentos. [livro eletrônico].
São Paulo: 2022, p. 16.
48 | Gênero, violência e estruturas de poder
sobre orientação sexual e identidade de gênero. O que existe é um mínimo esforço do
IBGE na captação desses dados que, de forma limitada, só contabiliza casais do mesmo
sexo que moram na mesma residência, quando uma delas é responsável pelo domicílio.
[...] É urgente trazer para o debate público a necessidade destas medições, uma vez que
a inexistência desses números deixam a população LGBT+ de fora de planejamentos
consistentes, pois os dados são fundamentais para a construção de políticas públicas
direcionadas.
Quatro anos antes deste amplo estudo ser divulgado, o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), em 2018, regularizou a utilização do Nome Social como dispositivo
para que as pessoas trans* pudessem se apresentar no processo eleitoral a partir
deste reconhecimento legal. Apesar de avaliar como positiva a Resolução-TSE
23.562/201860, que permite a adoção do mecanismo para alteração do nome no título
de eleitor e o seu uso como informação para registro de candidatura, Cardoso 61
reitera haver limitações significativas que, no limite, acentuam um regime de
exclusão e precarização dessas populações no cenário eleitoral.
Conforme Cardoso62, desde que a Resolução entrou em vigor, o Brasil passou
a contar — mesmo que insuficientemente — com um dos primeiros bancos de dados
formais sobre pessoas autodeclaradas trans*:
[...] 9,9 mil eleitoras, eleitores e candidaturas puderam ter seus nomes e gêneros
respeitados na hora de votar e serem votadas/os. No entanto, essa autodeclaração só
vale dentro do prazo de regularização do título de eleitor e não para o prazo de registro
de candidatura, mais próximo das eleições, como é permitido às candidaturas quanto à
autodeclaração de raça e cor. Com isso, inúmeras candidaturas trans, travestis e não
binárias tiveram suas identidades violadas durante as eleições. É preciso, portanto, que
haja maior divulgação da informação sobre esse direito. Embora o TSE tenha avançado
no respeito à identidade de gênero, hoje não é possível dizer quantas são as candidaturas
de pessoas trans, travestis ou não binárias. [...] Com relação à orientação sexual, não há
qualquer coleta de informações por parte da Justiça Eleitoral. Acreditamos que tanto a
identidade de gênero quanto à orientação sexual devem poder ser autodeclaradas
60
O texto da Resolução do Tribunal Superior Eleitoral 23.562/2018 está disponível em:
https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2018/resolucao-no-23-562-de-22-de-marco-de2018. Último acesso em 10 de fev. 2024.
61
Idem à nota 59.
62
Idem à nota 59.
Cristian Anderson Puhl | 49
publicamente na Justiça Eleitoral por aquelas candidaturas que assim desejarem — seja
para disputarem a política a partir de suas identidades, seja para termos dados oficiais
sobre quem somos, seja para disputarmos políticas por representatividade LGBT+ nas
eleições brasileiras.
Se olharmos para o quantitativo de pessoas autodeclaradas LGBTI+ que
disputaram assentos em câmaras de vereadores no processo eleitoral de 2020,
perceberemos uma intensificação maior em relação ao número de candidaturas que
autoafirmaram sua identidade de gênero e orientação sexual em 2022, quando a
escolha do eleitor recaiu sobre a definição de quem ocuparia os espaços nos
parlamentos estaduais e federais.
Em 2020, o estudo da VoteLGBT reportou um total de 556 candidaturas
LGBTI+ em todo o país; 97 delas foram eleitas, totalizando 17%. Já para a
composição das assembleias legislativas e para a Câmara dos Deputados, no ano de
2022, o levantamento da organização mostrou que dos mais de 26 mil candidatos
registrados no país, apenas 330 autodeclaram essas dimensões de sua sexualidade.
A diferença entre estes campos da política-partidária e eleitoral brasileira,
segundo Cardoso63, pode ser interpretada pelo tamanho das campanhas em cada
processo de eleições, além de acenar para que os cargos eletivos em câmaras
municipais tendem a demandar menos recursos financeiros e um envolvimento
menor das próprias legendas. Motivo semelhante ao da pesquisadora da VoteLGBT
foi proposto por Santos64, para quem essa procura maior de candidaturas LGBTI+
aos cargos de vereança se dá pelo caráter periférico da função no interior da
estrutura eleitoral brasileira.
De acordo com ele, há uma descentralização destes candidatos/as no país
que revela a condição possível de ser vislumbrada por estes sujeitos. Observa Costa
Santos 65 que não se pode ignorar que “o cargo de vereador é o mais “baixo” na
hierarquia das carreiras políticas, visto que demanda do(a) candidato(a) o menor
63
Idem à nota 59.
SANTOS, Gustavo Gomes da Costa. Diversidade Sexual e Política Eleitoral: analisando as
candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Revista Latino Americana
Sexualidad, Salud Y Sociedad, 2016.
65
Idem à nota 64, 2016, p. 74.
64
50 | Gênero, violência e estruturas de poder
quantitativo de votos para o sucesso eleitoral e, consequentemente, tem menos
influência política”.
Posto isso, retomando o balanço da VoteLGBT elaborado a partir dos dados
de 2022, constatamos que, juntas, as 330 candidaturas autodeclaradas LGBTI+
obtiveram 3,5 milhões de votos em todo o país; 18 delas foram eleitas, sendo quatro
para o Legislativo Federal — duas destas cadeiras ocupadas por mulheres
transgêneros — e 14 para Assembleias Legislativas nos Estados do Rio de Janeiro
(3), São Paulo (6), Minas Gerais (1), Pernambuco (1), Acre (1), Sergipe (1) e Distrito
Federal (1).
Como apontado pela entidade responsável pelo mapeamento destas
informações e pela construção do relatório apresentado em 2022, há possibilidade
destes números serem sub notificados, uma vez que a metodologia utilizada se
baseia em autodeclarações da sexualidade dos sujeitos candidatos/as. Como dito
anteriormente, o TSE, apesar de permitir o uso do Nome Social para o registro de
candidaturas de pessoas trans*, não coleta nenhum dado relacionado a identidade
de gênero e a orientação sexual.
Ainda assim, a mobilização e o tensionamento LGBTI+ nas estruturas políticas
do país se inserem em um movimento que, se de um lado expõe a omissão e a
incapacidade do Estado em ampliar a cidadania desta população, marginalizada
pelas hierarquias e dispositivos da Modernidade/Colonialidade66; de outro, expõe o
re-posicionamento desses sujeitos no tecido social, promovendo tentativas de
superação do apagamento sócio-histórico perpetuado pela colonialidade.
Isso, para Maldonado-Torres67, coloca em disputa a ocupação de territórios
aos quais nunca foram concedidos acessos a estas populações, desafiando,
inclusive, a “respeitabilidade de qualquer conceito normativo e qualquer prática
mediante as quais os cidadãos e as instituições modernas justificam a ordem
moderno/colonial, incluindo o sentido normativo de raça, gênero, classe e
sexualidade”.
66
Idem à nota 6.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas
dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL,
Ramón. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. São Paulo: Autêntica, p. 33, 2020.
67
Cristian Anderson Puhl | 51
Mais do que um re-posicionamento estratégico dos corpos colonizados,
racializados e sexo-dissidentes no espaço público e político, Maldonado-Torres68
defende que a confrontação possibilitada pela existência destes indivíduos,
historicamente dominados, “perturba a tranquilidade e a segurança do sujeitocidadão moderno e das instituições modernas”, ao desvelar que a colonialidade e
suas estruturas estão amparadas por conceitos impostos pelos europeus ao custo
de invasões violentas e o apagamento das diversas e plurais formas viver dos povos
originários.
Prossegue Maldonado-Torres69 comentando que
[...] por trás da questão do significado do colonialismo e da descolonização, está o
colonizado como um questionador e potencial agente. Isso é notavelmente diferente da
posição esperada deles como entidades sub-humanas dóceis. A ordem das coisas no
mundo moderno/colonial é tal que as questões sobre colonização e descolonização não
podem aparecer, a não ser como mera curiosidade histórica. Espera-se que o colonizado
ou ex-colonizado seja tão dócil quanto grato. [...] A ansiedade trazida [...] está, portanto,
ligada à fobia em relação às pessoas escravizadas e colonizadas e ao terror que os
sujeitos-cidadãos sentem quando eles concebem o colonizado como um agente
As distintas formas de violações e violências deflagradas contra as
populações dominadas se reverberaram ao longo da história do Brasil, acentuando
as classificações e categorias hierárquicas que organizam e estruturam, na
atualidade, as desigualdades sociais e econômicas experimentadas pela população
brasileira, em especial aquelas reidentificadas pelo ideário da colonialidade. Por
óbvio que estas condições socioeconômicas não atravessam os grupos sociais da
mesma forma; há opressões que se interseccionam sob ângulos e intensidades
variadas, afetando, estruturalmente, os segmentos em maior ou menor grau.
Este é outro elemento percebido pela VoteLGBT ao analisar as candidaturas
autodeclaradas LGBTI+ em 2022. Das 18 eleitas/os, 16 são mulheres, 14 são
pessoas negras e cinco são pessoas trans*. Se é verdade que o padrão colonial
imposto elencou a raça como critério central de classificação, conforme pontua
68
69
Idem à nota 67.
Idem à nota 67, 2020, p.p 33–34.
52 | Gênero, violência e estruturas de poder
Quijano70, e transformou o gênero em outro instrumento de exercício do poder, como
nos reforça Lugones 71 , então também é correto apontar, tomando estes números
trazidos pelo levantamento eleitoral, que há tentativas de subversão à norma sendo
construídas pelos dominados.
Para Cardoso 72 , embora o percentual destas candidaturas autodeclaradas
LGBTI+ eleitas seja de apenas 0,16% em comparação às demais, o resultado sugere
um esgotamento do modelo político-partidário de representação legislativa da
população brasileira. Enquanto a colonialidade perpassa mais de cinco séculos
mantendo-se como um processo ativo de legitimação do poder, também é
perceptível identificar fissuras nesta teia, tecidas por sujeitos que não conformam e
compactuam com estas estruturas — entre eles, os corpos e indivíduos dissidentes
deste sistema sexo-gênero.
3 Considerações finais
Entre as 18 pessoas autodeclaradas LGBTI+ eleitas para os parlamentos
estaduais e a Câmara dos Deputados em 2022, está uma mulher, trans, negra e
periférica que, aos 15 anos, foi expulsa de casa, sofreu violências e abusos, atuou
como trabalhadora sexual até conseguir os meios econômicos e de reinserção social
para retomar os estudos e construir uma nova forma de existir na sociedade
colonizada brasileira. Eleita pela primeira vez vereadora em São Paulo, a maior
cidade da América Latina, em 2020, Erika Hilton (PSOL/SP) se elegeu deputada
federal em 2022, consagrando-se como uma das mulheres mais influentes do
cenário político brasileiro, conforme o Congresso em Foco.
A história de Erika, tornada conhecida pela própria parlamentar, materializa os
principais elementos mobilizados ao longo deste artigo, sobretudo quando
interpretados à luz da interseccionalidade, proposta como ferramenta analítica
visando estabelecer a relação entre a constituição sócio-histórica do Brasil, a
participação política e eleitoral de corpos sexo-dissidentes e a LGBTfobia como um
70
Idem à nota 6.
Idem à nota 54.
72
Idem à nota 59.
71
Cristian Anderson Puhl | 53
dispositivo de poder operacionalizado pela colonialidade. Além de se constituir
referência em visibilidade e enfrentamento a um sistema cis-heteronormativo,
gendrado, binário e dicotômico, a deputada federal tem sobre si as categorias
alegóricas da Modernidade/Colonialidade, reidentificadas como marcadores sociais
da contemporaneidade: pessoa trans*, mulher, negra e periférica.
Como discutido ao longo deste estudo, os processos de colonização e
ocupação do território pelos europeus foram acompanhados de uma intensa
produção das diferenças entre os dominadores e os dominados. Isso permitiu, por
exemplo, constituir, por meio da violência colonial, como refere Grosfoguel 73 , a
distinção entre sujeitos humanos, civilizados, aptos ao exercício de seus direitos,
daqueles a quem sequer a atribuição de humanidade foi garantida.
O critério racial, que para Quijano 74 está na base da colonialidade como o
primeiro e o principal alicerce desta organização imposta pela Modernidade Colonial,
solidifica as hierarquias sociais e, ao ser atravessado por outras dimensões, como a
do gênero, estabelece um ordenamento moral no qual o controle dos corpos, da
subjetividade e da sexualidade perpassa a maneira como os sujeitos colonizados
serão identificados e estratificados.
Não à toa, neste contexto, os espaços de representação política-partidária e
eleitoral são, histórica e majoritariamente, ocupados por homens, brancos,
cisgêneros, não jovens e representantes de grupos dominantes da sociedade
brasileira — como mostram os estudos da VoteLGBT em relação aos resultados e
aos números de candidaturas autodeclaradas LGBTI+ nas Eleições de 2020 e de
2022. Diante desta estrutura, no qual o padrão erigido como universal é uma
representação forjada tendo como modelo o europeu colonizador, a diversidade é
deslocada para as margens, relegadas as esferas de sub-representação, negação de
direitos, violências e apagamentos de suas identidades.
Sendo parte de uma pesquisa mais ampla que está em fase de
desenvolvimento junto ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências
Humanas (PPGICH) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) — campus
Erechim, este texto se propôs a investigar uma perspectiva dentre tantas possíveis
73
74
Idem à nota 33.
Idem à nota 6.
54 | Gênero, violência e estruturas de poder
vinculadas ao tensionamento promovido pelos corpos LGBTI+ quando estes se
movimentam no interior dos partidos políticos e se colocam à disposição para as
disputas eleitorais.
Ocupar um mandato parlamentar sendo uma pessoa LGBTI+, seja na esfera
municipal, estadual ou federal, significa mais do que estar à frente de uma posição
de autoridade e poder — o que, dada a realidade violenta e cruel registrada no país
contra estas populações, seguindo as estatísticas apresentadas anteriormente a
partir dos documentos do Grupo Gay da Bahia e da ANTRA, já representaria algo a
ser reconhecido. Assumir assentos em casas legislativas ou nos executivos é
também subverter a própria lógica da colonialidade e da submissão a uma hierarquia
classificatória que invisibiliza e interdita a movimentação destes sujeitos.
É sob esta perspectiva de ação transformadora que Erika afirma ancorar, em
centenas de entrevistas concedidas, a condução de seus mandatos e sua atuação
política. Denunciando este sistema de opressões e subalternidades, a deputada
federal instrumentaliza o enfrentamento das estruturas que, transcorridos cinco
séculos desde a colonização, seguem reproduzindo um modelo de dominação no
qual a colonialidade, reiteradamente, se atualiza.
As provocações apresentadas no decorrer deste artigo não buscam esgotar o
debate sobre o tema proposto. Contudo, é também por meio e a partir desta
perspectiva na qual a colonialidade se mantém ativa como mecanismo de
segregação social que identificamos uma chave interpretativa capaz de fomentar um
caminho para se pensar como, ainda em 2022, transcorridos cinco séculos da
ocupação, os discursos hegemônicos invadem subjetividades, sequestram
existências diversas e alijam as pessoas sexo-dissidentes do tecido social brasileiro.
Que o desconforto provocado pelos corpos e identidades não-normativas
adentrando espaços de poder representativo institucional seja uma das frentes de
mudança para que as casas legislativas e os executivos, em todo o país, sejam, de
fato, representativos da pluridiversidade nacional.
Cristian Anderson Puhl | 55
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3. A INVISIBILIDADE DAS MULHERES ENCARCERADAS: VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO
BRASIL
https://doi.org/10.36592/9786554601566-03
Karoline Schoroeder Soares1
Luíse Pereira Herzog2
Resumo
O presente trabalho discorre sobre a vida das mulheres em penitenciárias brasileiras.
Dessa forma, as mulheres após ingressarem no sistema prisional enfrentam diversos
desafios, especialmente aqueles referentes ao gênero. Portanto, o artigo se divide
em objetivos, ao qual no primeiro momento, investiga as violências de gênero
enfrentadas pelas mulheres nas penitenciárias, assim como explora fatores
históricos de abuso, superlotação, falta de recursos e discriminações de gênero no
Sistema de Justiça Penal Brasileiro e, por fim, analisar as políticas existentes
relacionadas à prevenção e resposta à violência de gênero para com as
encarceradas. Trata-se de um estudo com método bibliográfico e documental, com
análise de artigos científicos, tratados internacionais e discussões doutrinárias que
versam sobre a temática. As mulheres têm diversos de seus direitos violados,
principalmente àquele referente a saúde, pois há superlotação, falta de higiene e
assistência básica, ou seja, as penitenciarias brasileiras foram construídas para o
gênero masculina e foram adaptadas para receber as mulheres, não tendo estrutura
para estas mulheres. Nesse sentido o Protocolo para Julgamento com Perspectiva
de Gênero, busca a igualdade de gênero dentro no âmbito do Poder Judiciário, com
olhar para vulnerabilidades das mulheres invisíveis no interior de um sistema de
difícil sobrevivência. É inegável a importância do movimento do Estado brasileiro
para solucionar a precariedade nas instituições penitenciárias, sendo necessário a
construção de presídios para o público femininos e a implementação de mecanismos
que possam garantir os direitos humanos das detentas.
Palavras-chaves: Mulheres; Direito à saúde; Penitenciária feminina; Sistema Penal
Brasileiro; Violência de gênero.
INTRODUÇÃO
A população penitenciária feminina cresce exponencialmente, pois as
mulheres estão sendo introduzidas cada vez mais do mundo da criminalidade,
1
Mestranda em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande. Graduada em Direito
pela Universidade Federal do Rio Grande. E-mail: "karolineschoroedersoaress@gmail.com". ORCID:
https://orcid.org/0009-0006-4321-6364
2
Mestranda em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande. Pós-graduada em
Processo Civil pela Faculdade Dom Alberto. Graduada pela Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail:
luisepherzog@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7680-4046
60 | Gênero, violência e estruturas de poder
principalmente no tráfico de drogas. Esse aumento está relacionado a submissão
das mulheres aos homens, levando em consideração que estão desempenhando
atividades similares às de seus companheiros ou familiares. Após ingressarem no
sistema prisional, as prisioneiras enfrentam desafios interligados ao gênero, como
abuso físico, sexual e psicológico dos presos, funcionários e visitantes.
O objetivo da pesquisa é investigar as violências de gênero enfrentadas pelas
mulheres nas penitenciárias, assim como explorar fatores históricos de abuso,
superlotação, falta de recursos e discriminações de gênero no Sistema de Justiça
Penal Brasileiro e analisar as políticas existentes relacionadas à prevenção e
resposta à violência de gênero para com as encarceradas. Portanto, o estudo tem
como método bibliográfico e documental, com análise de artigos científicos, tratados
internacionais e discussões doutrinárias que versam sobre a temática.
As mulheres em situação carcerária têm demandas e necessidades
específicas, possuem históricos de violência familiar, nacionalidade estrangeira,
condição financeira, problemas de saúde, maternidade e o uso de entorpecentes. As
presidiárias têm diversos de seus Direitos Humanos violados constantemente nos
presídios e no próprio Processo Penal, pois o sistema foi feito por homens e para
homens, e este sistema carcerário não considera peculiaridades que toda e qualquer
mulher pode vir a enfrentar, principalmente os cuidados com a saúde física, mental
e reprodutiva, aumentando severamente a violência de gênero nas prisões. Com a
falta de recurso e abandono do Estado em debater o tema, contribui com alastre as
condições precárias das prisões femininas e mistas.
Discorrendo sobre o encarceramento no Brasil identifica-se a ADPF n.º 347,
ocasião em que o Supremo Tribunal Federal declarou a existência de “Estado de
Coisas Inconstitucionais” no sistema penitenciário brasileiro, considerando a
violação massiva e generalizada de direitos fundamentais que afeta muitas pessoas,
incluindo as mulheres.
Assim, destaca-se o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero,
o qual busca a igualdade de gênero dentro no âmbito do Poder Judiciário, com olhar
para vulnerabilidades das mulheres invisíveis no interior de um sistema de difícil
sobrevivência. Entretanto, não há como negar a necessidade de movimentação pelo
Estado brasileiro a fim de solucionar condições precárias enfrentadas pelas
Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 61
apenadas, assim como a criação de mais presídios femininos e a implementação de
mecanismos que possam garantir os direitos humanos das detentas.
Embora exista avanços com um viés de gênero para minimizar as dores das
mulheres causadas pela ausência de uma perspectiva para as suas vulnerabilidades,
o país ainda está longe de conseguir pôr fim à violência de gênero enfrentada pelo
apenadas, já que as instituições não estão preparadas para lidar com tais
necessidades, especialmente quando se trata de uma população que é colocada à
margem da sociedade.
HISTÓRIA ATRÁS DAS GRADES: UM OLHAR FRENTE ÀS DIFICULDADES
ENFRENTADAS PELAS MULHERES ENCARCERADAS.
A sociedade é dominada pela repressão, isto é, impõe às mulheres a terem
papéis de esposa, cuidadora da família e do lar, destinadas apenas aos espaços
domésticos e privados. Na Idade Média, a mulher, especialmente, aquelas que tinha
um pouco de autonomia, através de serviços religiosos e medicinais, era vista como
perigo para sociedade, sendo perseguidas pela Igreja e Estado.
Assim, neste período, surge o movimento caça às bruxas, período que as
mulheres foram submissas ao controle patriarcal, neste mesmo século, XV, inicia o
capitalismo agrário, ao qual ocorreu o cercamento das terrar inglesas e houve o
aumento das diversas dificuldades sociais e econômica, principalmente para as
mulheres mais velhas ao qual o seu sustento vinha das suas terras e não tinha
aquém dar suporto a elas, sendo obrigadas a doarem suas terras para aquele que
garantir seus sustentos3.
As trajetórias históricas dos movimentos feministas e de mulheres demonstram uma
diversidade de pautas discutidas e de lutas empreendidas por elas, sobretudo, a partir do
século XVIII. No século XX, a partir da década de 60, essas mobilizações enfocaram,
principalmente, as denúncias das violências cometidas contra mulheres no âmbito
doméstico. Mobilizadas em torno do apelo de que o “pessoal é político’, buscaram romper
com dicotomias entre o público e o privado cobrando responsabilidades do Estado e da
3
Federici, Silvia, 1942-Mulheres e caça às bruxas [recurso eletrônico]: da Idade Média aos dias
atuais/Silvia Federici ; tradução Heci Regina Candiani. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo,2019.
62 | Gênero, violência e estruturas de poder
sociedade em assegurar a todas/os o respeito à dignidade humana e a uma vida sem
violência4.
Nesse ínterim, com as lutas feministas o público feminino foi adquirindo seu
espaço dentro da sociedade e do Estado. As mulheres foram avançando e evoluindo
os seus direitos através destas lutas e ganhando independência, conquistando seu
espaço no trabalho e sociedade, ocorrendo a inclusão das mulheres na
criminalidade.
No século XX houve a implementação de diferentes tipos de categorias
criminais, como para menores, contravenções, menores, loucos e processados5, as
mulheres que eram presas nesta época, entretanto, não tinham nenhuma
regulamentação legal, ocasionando diversos debates sobre suas prisões6.
A mulher criminosa é duplamente discriminada, por ser mulher e por ter rompido com o
modelo inferiorizado que a sociedade impôs a ela historicamente. Quando comete um
crime a mulher assume um lugar, aparentemente, reservado ao homem: o lugar de
violadora da ordem estabelecida, uma agressora 7
As mulheres privadas da liberdade são tratadas de forma distinta dos homens
apenados. Elas sofrem diversos preconceitos além das grades das prisões, a
violência assim como o preconceito, estão presentes no seu cotidiano, a
4
GUIMARAES, M. C.; PEDROZA, R. L. S. Violência contra a mulher: problematizando definições
teóricas, filosóficas e jurídicas. Psicologia e Sociedade, Recife, v. 27, n. 2, p. 256-266, 2015. Disponível
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5
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6
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7
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Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 63
desigualdade além de predominar a vida das mulheres fora das grades, está
dominando as penitenciárias mista e feminina.
Através da pesquisa, pode-se observar que as mulheres sofrem ainda mais
em razão dos preconceitos, e por conta das instituições serem feitas para o público
masculino, grande parte das penitenciárias femininas não tem estrutura para acolher
estas mulheres, portanto elas têm diversos de seus direitos violados. A primeira
prisão feminina foi em 1937, em Porto Alegre no Rio Grande do Sul, chamado como
Reformatório de Mulheres Criminosas, depois foi chamado de Instituto Feminino de
Readaptação Social. Entretanto, grande parte dos presídios são organizados de
forma mista8, ou seja, as celas são adaptadas para as mulheres presas, portanto, há
dificuldades em realizar adequações cabíveis às mulheres, como a construção de
creches e locais apropriados para seus filhos.
Assim, além das lutas de gênero, as mulheres necessitam lutar
constantemente pelos seus Direitos Humanos, principalmente, após a Declaração
Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Pois, a violência contra as
mulheres é a mais conhecida por violar diretamente os Direitos Humanos das
mulheres, independente da classe, região, idade e raça, especialmente em locais
como as penitenciárias.
Dessa forma, as mulheres apenadas acabam cumprindo suas penas
duplamente, em razão do abandono de suas famílias - por conta de muitas das
penitenciárias femininas serem em outras cidades e em locais distantes, impedindo
o contato com a família -, a violação do direito à dignidade e os Direitos Humanos de
saneamento básico e falta de estrutura, assim como no Processo Penal,
principalmente, levando em consideração que o sistema foi feito por homens e para
homens, não levando em conta as necessidades de toda e qualquer mulher que pode
ocorrer, especialmente com cuidados com a saúde física, mental e reprodutiva,
aumentando severamente a violência de gênero nas prisões.
Todas as penitenciárias, independente se para homens, mulheres e se mistas,
foram esquecidas pelo Estado, contudo o sistema prisional feminino é o que é mais
8
BRASIL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias INFOPEN MULHERES – junho 2014.
Departamento
Penitenciário
Nacional
–
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2014.
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64 | Gênero, violência e estruturas de poder
prejudicado. O sistema prisional é ineficaz para a proteção feminina e proteção dos
Direitos Humanos dessas mulheres, especialmente, ao se tratar sobre a violência
sexual, em razão das mulheres estarem num sistema predominantemente de
controle social machista e conservador, ao qual reproduzem a violência estrutural
referente ao gênero, nesse sentido, as mulheres e aprisionadas estão indo contra a
evolução de muito de seus direitos, em razão de que é um elo de repressão, castigo
e punição9.
Ainda, pode-se observar que a população feminina dentro das instituições
penitenciárias são predominantemente mulheres negras e pobres. O racismo
institucional está presente no sistema de justiça criminal. Ademais, por meio da
ferramenta da interseccionalidade pode-se observar que as mulheres negras sofrem
mais discriminações que as mulheres brancas, e nesse sentindo pode-se observar
que as mulheres negras estão predominando as prisões.
O tratamento para mulheres presas é pior que o dispensado ao homem, que também
sofre com as precárias condições na prisão, mas a desigualdade de tratamento é
decorrente de questões culturais e com direitos ao tratamento condizente com as suas
particularidades e necessidades. Em nossa Constituição Federal possui um princípio na
qual regula tais necessidades, é o princípio da individualização da penal, conforme o
artigo 5º, inciso XLVIII, segundo o qual “...a pena será cumprida em estabelecimentos
distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado10.
Entretanto, as dificuldades enfrentadas dentro das prisões não são apenas a
superlotação, pois principalmente as mulheres convivem com a falta de produtos
básicos, de higiene 11, sendo necessário de utilizar a criatividade para que consigam
ter, pelo menos, o mínimo de higiene. Portanto, as mulheres buscam o acesso à
saúde, principalmente à saúde ginecológica, além de condições dignas de estadia,
como seus dormitórios para que aquelas que tem seus filhos na prisão, ou apenas
para visitá-las12.
9
Andrade, V. R. P. (1997). Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de
construção da cidadania. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos,18(35), 42-49.
10
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11
QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.
12
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revisão
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Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 65
Drauzio Varella, após realizar um trabalho voluntário de médico numa das
penitenciárias femininas de São Paulo, relata que os problemas de saúdes nas
penitenciárias femininas são diferentes das masculinas, pois as mulheres costumam
terem dores de cabeça, obesidade, hipertensão arterial, diabetes e problemas
ginecológicos13.
Ainda, muitas mulheres são vítimas de violências vindas de agentes
penitenciários, nesse sentido, o Estado tem participação na influência da
domesticação dos corpos e da violência, principalmente pelo fato de serem pessoas
que estão sendo vigiadas o tempo todo dentro do sistema prisional, principalmente,
porque aquele que tem poder acredita ser superior e que tenha atitudes corretas 14.
Dessa forma, através desta hierarquia os corpos das mulheres presas, podem serem
controlados por meio das operações estatais, pois há uma centralização de
autoridade masculina, ocasionando na submissão e vulnerabilidade da mulher15
Através de uma pesquisa realizada entre os anos de 2019 e 2020, do livro
“Tratamento Penitenciário, um estudo sobre tortura, maus-tratos e assistências às
pessoas privadas de liberdade”16, foi diagnosticado que as mulheres sofrem mais
agressão física que os homens, pois 20,5% das mulheres presas foram vítimas de
alguma agressão física, como tapas ou socos, 17,8% foram agredidas com chutes e
9,5% foram sufocadas. O tratamento recebido pelas mulheres nas penitenciárias não
tem qualidade e o número de vítimas de violências cresce.
Consequência deste tratamento precário, são os banheiros precários,
alimentos estragados, vencidos e pouca quantia para cada presa, além da
superlotação em cada cela, diminuindo a higiene pessoal, acesso à saúde e violando
o princípio da dignidade da pessoa humana. Isso ocorre, principalmente porque as
pessoas que estão presas não conseguem reclamar ou até mesmo dar feedbacks
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13
VARELLA, D. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
14
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 4. ed., São Paulo: Perspectiva, 2001.
15
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16
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2022.
66 | Gênero, violência e estruturas de poder
pois sofrem mais chances em terem consequências como agressões por estar
achando que estão tendo tratamento que viole algum de seus direitos17, portanto, a
invisibilidade das mulheres presas estão cada vez mais presente na sociedade.
Sendo assim, com a precariedade do atendimento dos agentes estatais nas
prisões, viola e ignora ordens previstas pelo ordenamento jurídico afastando, nesse
sentido, as disposições normativas das mulheres encarceradas da realidade do
sistema prisional feminino.
Nesse cenário, é de suma importância e necessidade em realizar meios para
que reverta a violação dos direitos das mulheres apenadas, visto que quem viola seus
direitos são agentes estatais. Portanto, faz-se necessário a realização do tratamento
humanitário dessas mulheres e na melhoria da estrutura destas instituições a fim de
comodidade dessas mulheres.
Com o aumento significativo da população carcerária brasileira, observa-se
que a desigualdade de gênero está presente em qualquer espaço, ademais para Ana
Elisa Bechara, vice-diretora da Faculdade de Direito da USP, fala que o aumento da
população feminina presa se dá pelo aumento de participação das mulheres no
tráfico de drogas 18 . O Poder Judiciário, faz com que as penas criminais sejam
cumpridas em instituições penitenciárias, sendo necessário que haja um espaço
adequado para que estas pessoas fiquem bem e sem violar seus Direitos.
Embora, o número de pessoas aprisionadas seja predominantemente
masculino, as mulheres necessitam de um cuidado especial, pois o Estado tem o
dever de dar assistência à essas mulheres, como itens essenciais para assegurar e
garantir a dignidade humana, como produtos básicos de higiene, papel higiênico,
absorvente, tratamento médico19.
17
REZENDE, Luiz Carlos; SAPORI, Luís Flávio. Tratamento penitenciário - estudo sobre tortura, maustratos e assistências às pessoas privadas de liberdade. Editora D’Plácido. ISBN 9786555896046.
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Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 67
A Constituição Federal prevê que a dignidade da pessoa humana e os valores
sociais do trabalho, são fundamentais para que as mulheres presas possam, através
do trabalho ter dignidade assim como possa ter possibilidade de ressocializar e fazer
parte da sociedade novamente, sendo necessário corrigir, reeducar e curar, não
apenas punir20.
As mulheres sofrem violência institucional dentro das prisões quando os
agentes do Estado, realizam torturas individuais, enfrentamento contra estes
agentes, pois a tratam de forma violenta, com o uso de força física para demonstrar
quem manda dentro das instituições, assim como dar castigos e humilhá-las é
frequente. Nesse sentido, a violência, tanto física quanto psicológica são recorrentes
dentro das instituições.
A Lei de Execução Penal21, demostra que a ressocialização é um instrumento
que deve ser feito dentro do presídio, durante o período que a mulher presa está
cumprindo pena privativa de liberdade, o qual a assistência, educação, trabalho e a
disciplina são fundamentais para a ressocialização dessas mulheres presas, pois
mantêm a dignidade e desenvolvem o comportamento aceito para viver numa
sociedade.
Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não
logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da “pessoa”
transcendam, a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre
se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e
porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, 13 classistas, étnicas,
sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou
impossível separar a noção de “gênero” das interseções políticas e culturais em que
invariavelmente ela é produzida e mantida 22.
Portanto, as mulheres estão buscando seus direitos constantemente,
independente do seu lugar, mas em certos locais as mulheres são abandonadas e
20
FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir. 29. Petrópolis: Vozes, 2004.
BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília. Disponível
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 25 mar. 2024.
22
BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar.
3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
21
68 | Gênero, violência e estruturas de poder
não tem suporte do Estado para que garanta seus direitos. Ocasionando maior
vulnerabilidade de reincidência e falta de reiteração social destas mulheres.
A PREVENÇÃO E A RESPOSTA ESTATAL PARA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO COM AS
ENCARCERADAS
Quando se trata do funcionamento de sistemas prisionais e dos apenados,
tem-se que as Regras de Mandela 23 são referência no tema, considerando que
revolucionou ao trazer regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de
presos, o qual vislumbra o desenvolvimento progressivo do direito internacional no
tratamento de presos, desde 1955, inclusive em legislações internacionais como o
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 24 , o Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais25, e a Convenção contra Tortura e Outros
Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes 26 e o seu Protocolo
Facultativo27.
Desse modo, tais regras buscam reafirmar os direitos humanos fundamentais,
a dignidade da pessoa humana, sem nenhuma distinção, além de garantir direitos
iguais aos homens e às mulheres. Entretanto, em razão por se tratar de apenados de
forma geral, não vislumbra especificidades para o gênero feminino, em que pese
afirme que homens e mulheres devessem estar em unidades separadas, a proibição
de confinamento solitário em casos envolvendo mulheres e crianças, além da
23
Conselho Nacional de Justiça Regras de Mandela: regras mínimas das Nações Unidas para o
tratamento de presos/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi Brasília: CNJ, 2016. 88 p. – (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834012-0
24
BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Brasília. 1992. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 27 de março de
2024.
25
BRASIL. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Brasília. 1992. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em: 27 de março de
2024.
26
BRASIL. Decreto n.º 40, de 15 de fevereiro de 1991. Brasília, 1991. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm. Acesso em: 27 de março de
2024.
27
BRASIL. Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007. Brasília, 2007. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6085.htm. Acesso em: 27 de
março de 2024.
Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 69
vedação à utilização de instrumentos de restrições em mulheres em trabalho de
parto, durante e após o parto28.
Para além, o documento refere que as mulheres apenadas terão os mesmos
direitos dos homens, no que se refere a visitas íntimas, bem como que a supervisão
da unidade feminina deve caber a um oficial feminino e que as apenadas devem ser
atendidas somente por agentes femininas, embora possa existir membros homens
na equipe29.
A prisão, portanto, é um lugar em que há misturas de cores, classes,
personalidades e diferenças, desse modo, há tão somente um fator de separação: o
sexo. Há vista disso, surge a necessidade de analisar o cárcere feminino sob a
perspectiva de gênero, motivo pela qual sobrevieram as Regras de Bangkok, uma
série de tratados internacionais de direitos humanos das nações unidas para o
tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres
infratoras.30
Pensando nesse olhar específico para as mulheres apenadas, as regras
visualizam as demandas e necessidades femininas, assim como a existência da
violência familiar contra a mulher e das dificuldades enfrentadas na maternidade,
especialmente quando exercida de maneira solo, a nacionalidade e, ainda, as
condições financeiras e o uso de entorpecente. Desse modo, as condições de
encarceramento e a forma como tais mulheres são submetidas exige urgentemente
a redução do encarceramento feminino provisório, buscando uma solução judicial
facilitadora alternativa ao aprisionamento, principalmente nos casos em que ainda
não há decisão condenatória transitada em julgado31.
Desse modo, as Regras de Bangkok referem-se desde a forma como deve
ocorrer o ingresso das mulheres na penitenciária e onde serão alocadas, o cuidado a
28
Conselho Nacional de Justiça Regras de Mandela: regras mínimas das Nações Unidas para o
tratamento de presos/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi Brasília: CNJ, 2016. 88 p. – (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834012-0.
29
Ibidem
30
Conselho Nacional de Justiça Regras de Bangkok: regras das Nações Unidas para o tratamento de
mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para as mulheres infratoras/ Conselho
Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. 84 p. – (Série
Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834-011-3.
31
Ibidem.
70 | Gênero, violência e estruturas de poder
higiene, à saúde física e mental, à atendimentos específicos para mulheres, revistas,
disciplinas e sanções, incluindo tratamentos diferenciados a gestantes, com filhos e
lactantes na prisão ou gestantes e com filhos dependentes, assim como disposições
para estrangeiras e indígenas.32
O documento evidencia – com vigor, que os tratamentos diferenciados para
os homens e mulheres não são considerados como discriminatórios, lembrando que
as Regras de Mandela sustentam o princípio de não discriminação, contudo, é
necessário considerar as necessidades específicas do gênero feminino.
Entretanto, ainda que se tenha verificado a importância da criação de regras
para tratamentos de mulheres e para cuidar de medidas cautelares diversas das
prisões para tal gênero, o documento não pretende substituir as regras mínimas para
o tratamento de reclusos e as regras de Tóquio – as quais tratam sobre a elaboração
de medidas não privativas de liberdade, mas tão somente regulamentar questões
femininas que, se negligenciadas, tornam infinitas as práticas reiteradas da violência
de gênero no interior de penitenciárias, haja vista que trata-se de um lugar em que
as mulheres não possuem sequer o mínimo de voz.33
O Protocolo Para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho
Nacional de Justiça surge em 2021 e, embora trate sobre diversas questões
processuais que envolvem mulheres e tenha destinado parte de suas disposições
para tornar obrigatório a garantia de mínimos direitos de igualdade, demonstrando
que, em razão da permanência de violações de gênero, o país está buscando cumprir
para com os tratados internacionais de direitos humanos das mulheres dos quais é
signatário, busca evidenciar medidas que devem ser tomadas, a partir de olhar de
gênero, às mulheres apenadas ou acusadas em processos criminais.34
De maneira sintetizada, o documento diz que os magistrados e magistradas
precisam se atentar de maneira singular a cada mulher analisando sua estrutura
32
Ibidem.
Conselho Nacional de Justiça Regras de Tóquio: regras mínimas padrão das Nações Unidas para a
elaboração de medidas não privativas de liberdade/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís
Geraldo Sant’Ana Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. 24 p – (Série Tratados Internacionais de Direitos
Humanos) ISBN 978-85-5834-014-4.
34
Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero/
Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de
Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021. Dados eletrônicos (1 arquivo: PDF 132
páginas). Disponível em: http:// www.cnj.jus.br e www.enfam.jus.br e ISBN 978-65-88022-06-1
33
Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 71
física, saúde, higiene, e a realidade social em que se encontram, se estão em
condições gravídicas, puérperas ou se são mães de crianças com até 12 (doze) anos
ou responsáveis por pessoas idosas, além de buscar inseri-las novamente na
sociedade e de aprofundar o contato com a família, já que acabam sendo esquecidas
e julgadas por realizem atos tipificado como crime na legislação brasileira. Ainda, o
Protocolo refere a importância de atentar-se a pessoas da população LGBTQIA+,
assim como dos povos indígenas, os quais ainda são extremamente vulneráveis na
sociedade atual – predominantemente preconceituosa.35
A diferença sexual será juridicamente relevante em casos suspeitos de
opressão e subordinação social das mulheres, oportunidade em que a justiça deverá
atuar integrando a perspetiva de género no exercício argumentativo, como
equilibradora de situações assimétricas de género, atuando como promotora de
mudanças sociais na transformação de padrões comportamentais que favorecem a
subordinação das mulheres, razão pela qual não se pode questionar a aplicação da
perspectiva de gênero em procedimentos criminais, já que as mulheres precisam de
um olhar e um atendimento de acordo com a sua realidade – considerando que cada
uma possui as suas peculiaridades.36
Frisa-se que no Habeas Corpus n.º 143.611, o Supremo Tribunal Federal
concedeu, em 2018, habeas corpus coletivo às mulheres encaceradas que fossem
gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes ou adolescentes com
medidas socieducativas, considerando o baixo cumprimento de políticas públicas
para a primeira infância, o que pode-se concluir que quando reclusa, os deveres de
cuidado ficam suspensos, já que a força não remunerada das mulheres que cuidam
de outras vidas fica suspensa.37
Ainda no mesmo ano, por meio da Lei n.º 13.769, foi criada disposição que
substitui a prisão preventiva pela prisão cautelar ou domiciar para mulheres que não
35
Ibidem.
POYATOS MATAS, Gloria. Juzgar con perspectiva de género: una metodología vinculante de justicia
equitativa. iQual. Revista de Género e Igualdad, [S. l.], n. 2, p. 1–21, 2019. DOI: 10.6018/iQual.341501.
Disponível em: https://revistas.um.es/iqual/article/view/341501. Acesso em: 8 nov. 2023.
37
Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero/
Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de
Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021. Dados eletrônicos (1 arquivo: PDF 132
páginas). Disponível em: http:// www.cnj.jus.br e www.enfam.jus.br e ISBN 978-65-88022-06-1
36
72 | Gênero, violência e estruturas de poder
tenham cometido o crime com violência ou grave ameaça ou não tenha sido
praticado o delito contra seu filho ou dependente. Ademais, para as mulheres
gestantes ou mãe de crianças de até 12 (doze) anos o regime de cumprimento de
pena deve ser mais favorável, ainda que tenham cometido crimes hediondos.
Outrossim, foi excluída a expressão “poderá ser substituída” e adora a expressão
“será substituída”, considerando a obrigatoriedade da substituição, não sendo uma
faculdade dos magistrados38.
A fim de analisar a aplicação de mecanismos que busquem evitar a violência
de gênero de mulheres encarceradas no Brasil, foi realizada uma breve busca ao
Banco de Sentenças de Decisões com aplicação do Protocolo para Julgamento com
Perspectiva de Gênero, criado pelo próprio Conselho Nacional de Justiça 39 . Após
selecionar o filtro “Direito Penal”, com o objetivo de analisar tão somente as decisões
de processos criminais, obteve-se o resultado de 86 decisões contabilizadas desde
a criação do banco de dados até o momento.
No decorrer da busca, foram encontradas decisões majoritariamente
envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, totalizando 78 decisões.
Além disso, havia duas decisões de crimes de importunação sexual, duas de estupro,
uma envolvendo questões de raça e outra sobre stalking.
Foram localizadas tão somente duas decisões relevantes para a pesquisa em
tela. O Banco de Sentenças e Decisões possui uma sentença do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo (n.º 0000991-89.2018.8.26.0601), referente a um processo
de homicídio, sendo qualificados no polo passivo um homem e uma mulher. Ao
proferir a sentença frisa-se que o conceito de mulher é analisado pelo conceito de
gênero e não pelo viés ideológico, razão pela qual a ré – e a vítima – seriam tratadas
no decorrer da peça processual pelos seus devidos nomes.40
38
Ibidem.
Conselho Nacional de Justiça. Banco de Sentenças de Decisões com aplicação do Protocolo para
Julgamento com Perspectiva de Gênero. Disponível em:
https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=f3bb4296-6c88-4c1f-b3bb8a51e4268a58&sheet=03bb002c-6256-4b1d-9c93-a421f1bf8833&theme=horizon&lang=ptBR&opt=ctxmenu,currsel. Acesso em 27 de março de 2024.
40
São Paulo. Foro de Socorro – 1ª Vara. Ação penal n.º 0000991-89.2018.8.26.0601. 2018. Processo
de competência do Tribunal do Júri. Sivonildo dos Santos e Jenifer de Souza versus Ministério Público
do Estado. Socorro, 30 de janeiro de 2024. Banco de Sentenças de Decisões com aplicação do
Protocolo
para
Julgamento
com
Perspectiva
de
Gênero.
Disponível
em:
https://formularios.cnj.jus.br/index.php?gf-download=2024%2F02%2FSentenca_FERNANDA-YUMI39
Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 73
Não obstante, o processo n.º 1504229-85.2023.8.26.0530, de origem do
mesmo Tribunal, trata-se de um caso de tráfico de drogas nas dependências de
estabelecimento prisional, onde a acusada estaria trazendo consigo 01 (um)
invólucro plástico contendo o entorpecente cocaína, quando estaria prestes a visitar
o seu companheiro na prisão. Diante das circunstâncias, a acusada confessou a
prática do delito afirmando que aceitou levar a droga ao presídio em troca de uma
remuneração de mil reais, o que, aliado as outras provas do processo, levou a
condenação no crime de tráfico privilegiado, disposto no artigo 33, §4º, da Lei
11.343/06, tendo a pena diminuída ao máximo legal, totalizando em 01 (um) ano e
11 (onze) meses de reclusão e o pagamento de 193 (cento e noventa e três) diasmulta.41
Quanto ao regime de cumprimento de pena, ao prezar pelo princípio da
individualização da pena e a partir da perspectiva de gênero, existente em virtude do
Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, a decisão considerou que a
sentença estava sendo proferida a uma mulher e que, ainda, possui trabalho fixo, é
mãe de três filhos e cuidadora da própria genitora, frisando que o Brasil é um país
em que o dever de cuidado está sobrecarregado nas mulheres, vislumbrando a
necessidade de aplicação de medidas restritivas de direitos que atendam as
necessidades e a dinâmica da vida pessoal da sentenciada e daqueles que
dependem dela.42
Por fim, a sentença substituiu a pena privativa de liberdade por penas
restritivas de direitos de prestação pecuniária de um salário-mínimo, ainda que
parcelável e a limitação de fim de semana, salvo de precisar deixar o lar para atender
as necessidades de seus filhos ou de sua genitora, assim como, pelas mesmas
FURUKA.pdf&form-id=467&fieldid=9&hash=cffc23cbb1e7ed838cd4b5ba4b3cbe13dd1fffcc965c6d791f7c7ac9f1871c41. Acesso em
27 de março de 2024.
41
São Paulo. Foro de Ribeirão Preto – 5ª Vara Criminal. Ação penal n.º 1504229-85.2023.8.26.0530.
Procedimento Especial da Lei de Antitóxicos – Tráfico de Drogas e Condutas Afins. Jessyca Carolina
Azevedo dos Santos versus Ministério Público do Estado. Juíza de Direito: Carolina Moreira Gama.
Ribeirão Preto, 28 de fevereiro de 2024. Banco de Sentenças de Decisões com aplicação do Protocolo
para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Disponível em:
https://formularios.cnj.jus.br/index.php?gf-download=2024%2F02%2F1504229-85.2023sentenca_JOSE-ALBERTO-RICIOLI.pdf&form-id=467&fieldid=9&hash=16d09adf674559fab6c2618f858f02284545ace4978f211148a8fa711fc5b077. Acesso em
27 de março de 2024.
42
Ibidem.
74 | Gênero, violência e estruturas de poder
razões já mencionadas, decretou a isenção do pagamento da significativa pena
acumulada de multa.43
CONCLUSÃO
Constata-se, portanto, que as mulheres – como sujeitos primários do trabalho
reprodutivo, historicamente, assim como atualmente - dependem de mais acessos à
recursos do que os homens e são as mais comprometidas quando se trata de suas
defesas44, considerando todas as especificidades que as diferenciam de um homem.
Assim, a perspectiva de gênero é imprescindível na busca – ao menos – da
diminuição da violência de gênero, especialmente quanto se trata de mulheres
apenadas, que estão com suas vozes anuladas pelo Estado.
Todavia, nota-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo parece estar
compreendendo de que forma o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de
Gênero deve ser aplicado, já que a decisão do respectivo processo de Tráfico de
Drogas poderia ser utilizada como um modelo aos outros Estados, tendo sido, além
disso, o único Estado a ter alguma decisão dos tópicos em questão.
Entretanto, necessário evidenciar a ausência de decisões sobre o tema em um
banco de decisões e sentenças nacional, embora se tenha conhecimento do seu
pouco tempo de existência, razão pela qual pode-se afirmar que o caminho para o
reconhecimento dos direitos das mulheres, embora exista há muitos anos, está
avançando em passos pequenos.
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43
Ibidem.
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Bruna Cristina Oliveira Pupe1
RESUMO
Na produção historiográfica, a partir da década de 1980, houveram preocupações em
incluir a mulher como sujeito histórico nos trabalhos que eram desenvolvidos.
Entretanto, tais estudos delimitaram-se a analisar a experiência feminina sob a ótica
da esfera privada e das relações entre os gêneros que nela se articulam —
dispensando assim, quaisquer outras possibilidades de vivências femininas
historicamente, condicionando-as em lugares e narrativas exauridas pelo senso
comum do saber histórico e pelas pesquisas acadêmicas. Apoiado por um conjunto
de fontes primárias e estudos sobre a temática, este trabalho visa (re)pensar a
historicidade da delinquência feminina e articular possibilidades de seu uso como
categoria de análise para a ciência histórica, assim como, identificar outras
alternativas de ser “mulher” ao longo da história.
INTRODUÇÃO
Pouco antes de findar o mês de novembro de 1957, conta a fonte judicial que
uma mulher preta de nome Maria dos Santos2 atacou furiosamente com um copo o
homem de nome João com quem bebia — a confusão teria ocorrido dentro do Bar
Aimoré na Rua Voluntários da Pátria, estes, rua e estabelecimento já mal-afamados
nas fontes e historicamente parte de espaços urbanos estigmatizados na cidade de
Porto Alegre. A mulher teria agredido João no interior do estabelecimento munida de
um copo que, ao acertá-lo, quebrou-se. João ferido no ombro esquerdo e
apresentando sangramento evidente permaneceu no bar até a chegada de policiais.
Com a chegada dos agentes da lei, instaurou-se a tentativa de captura da suposta
autora dos ferimentos. Maria foi achada escondida nos banheiros aos fundos do bar
1
Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, é graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
professora e desenvolve pesquisas em História Social do Crime e Estudos de Gênero.
2
APERS. Comarca de Porto Alegre. Vara de Execuções Criminais. Acondicionador 004.3609. Processo
nº 416. 1957.
80 | Gênero, violência e estruturas de poder
e de lá, carregada por três guardas (quem sabe sob puxões e apertos) foi levada com
obstinada resistência para a caminhonete da rádio patrulha. Nos depoimentos dos
guardas que atenderam o chamado do dono do bar, que em certa medida tentou
conter as agressões com pouco sucesso, relatou-se que a acusada resistiu à prisão
com pontapés, socos e “desacatando ainda com os piores nomes obscenos que lhe
vinha a boca” (sic).
Presa, por fim, Maria dos Santos, não passava de mais uma das mulheres que
aos padrões de sua época lhes eram animalescas, patologicamente perturbadas por
forças antinaturais que não condiziam nem um pouco com a sua natureza feminina.
Nos depoimentos das testemunhas, de Maria e da vítima da agressão costurou-se
no processo incriminatório que condenou-a à clausura no Instituto de Readaptação
Feminina, atualmente o Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier, um percurso de
relatos condenatórios. Não é certa a motivação que levou Maria a deferir golpes com
um copo quebrado em João; precisamente a única menção de uma motivação
circunstancial para tal atitude violenta por parte dela foi que havia sido por ciúmes.
Motivação curiosa visto que a própria fonte menciona a vida de meretrício que ela
levava e que ele era casado. Ciúmes do que ou de quem? Pensar que as agressões
foram fruto apenas de circunstâncias casuais? Os atos de Maria foram algum tipo
de revide a alguma investida desrespeitosa de João? Evidentemente, tais perguntas
não foram levadas em conta pela polícia nem pela justiça.
Após ficar presa por algum tempo, Maria foi solta sob algumas condições:
arranjaria um trabalho convencional, “que não mais vai fazer a vida na zona da
Voluntários e vai trabalhar numa casa de família, que se compromete a comparecer
quinzenalmente a esta Vara e informar onde está trabalhando”. Para o juiz que
permitiu sua liberdade, Maria era mulher e, a partir disso, precisava ser regenerada
de seus comportamentos e práticas desviantes. Entende-se que para o aparelho
social e jurídico-policial a constitucionalidade de uma mulher, no caso dela, era
parcialmente infectada com comportamentos e formas de viver que não condiziam
com seu gênero — a parcialidade é referida, pois, para seus julgadores, a biologia do
corpo resgatava uma gama de valores atribuídos ao seu sexo-gênero, entretanto,
eram atravessados pela cor de sua pele, o que resultava num emaranhado de
interpretações possíveis.
Bruna Cristina Oliveira Pupe | 81
Por parte da produção historiográfica, a delinquência feminina enquanto
objeto de pesquisas é visualizada a partir da materialidade do fato criminoso
praticado por uma mulher. O objetivo deste presente estudo é alçar a categoria de
análise como uma ferramenta interpretativa de historicidades mais amplas da vida
comum e do cotidiano, e não apenas como definidor explicativo de violências ou
buscas sistemáticas que não visualizem possibilidades mais amplas de vivência de
pessoas (nesse caso, especificamente, mulheres) para além do fato criminoso.
Para nortear esse trabalho ou situar incômodos possíveis, alçamos alguns
questionamentos que consideramos pertinentes: Maria subitamente iniciou os atos
de agressão contra sua vítima? A possibilidade de ter usado a violência como uma
reação pode ter sido uma faceta interpretativa do acontecimento? A agressão contra
um homem foi o agravante dos julgamentos de sua prisão? O que nos denuncia
quando para João, homem participante e vítima do delito, nada lhe foi questionado?
NOTAS HISTORIOGRÁFICAS SOBRE O GÊNERO E VIOLÊNCIA
A narrativa da história das mulheres sob o prisma das relações de violência já
não é novidade nas ciências humanas, até mesmo quando concentradas nas
pesquisas históricas. Inclusive, é através dessas pesquisas que põem-se em prática
tentativas de situar as sujeitas em lugares visíveis nas relações sociais ao longo da
história. Os trabalhos que são exemplo disso: A sexualização do crime no Brasil: um
estudo sobre a criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (18901940) de Alessandra Rinaldi (2001) — que apesar de ser um trabalho antropológico,
utiliza-se de preciosos elementos para a pesquisa histórica —, Criminalidade
feminina: mulheres negras e os homicídios em Pelotas (1880-1890) de Geza Lisiane
Carús Guedes (2014). Da pesquisa internacional evidenciam-se relevantes trabalhos
para essa discussão, como, por exemplo, Mujeres delincuentes y imaginarios:
criminología, cine y nota roja en Mexico (1940-1950) de Martha Santillán Esqueda
(2017), Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras
desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais (2019) de Saidiya Hartman.
Não pretende-se construir nesse trabalho uma genealogia da historiografia que
82 | Gênero, violência e estruturas de poder
trabalhou sobre o tema ou congêneres, mas objetiva-se evidenciar os trabalhos que
preocuparam-se com essa problemática.
Partindo da premissa de estudar a criminalidade/delinquência feminina
permite-nos acessar outras oportunidades de ser “mulher” ao longo da história,
pretende-se que esse estudo seja provocador de questionamentos pertinentes para
o campo de estudo da História Social do Crime e dos Estudos de Gênero. Para a
construção teórica do tema escolhido, mapeou-se os estudos preexistentes sobre
violência feminina e de gênero e relativos à marginalidade urbana. Percebeu-se que,
a violência feminina e as mulheres delinquentes são raramente postas enquanto
objetos de estudos pela produção historiográfica.
Inaugurando a possibilidade enxergar as mulheres como sujeitas de violência
o trabalho da antropóloga Maria Filomena Gregori (1992), Cenas e Queixas: um
estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista, nos ajuda a deslocar
a mulher como apenas um “não-sujeito”3 nas relações de violência, quando elas são
apenas visualizadas como vítimas dos casos de violência doméstica. Por mais que
o trabalho fuja da temática proposta aqui, a autora auxilia-nos a compreender que,
“entender que padrões distintos de comportamentos instituídos para homens e
mulheres são atualizados nas relações interpessoais que são vividas como únicas”.4
Ou seja, não nos é palpável entender as atribuições sociais ao gênero enquanto
rígidas, a variabilidade das práticas do feminino e masculino fogem das normas
socialmente impostas. Na literatura pesquisada sobre as temáticas acima descritas,
deparamo-nos com o trabalho de outra antropóloga Fabíola Rohden, Uma Ciência da
Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher (2001), que buscou analisar a
contrução da diferenciação entre os sexos e gêneros que se produziu ao longo das
transformações do século XIX, para tanto, partiu da premissa do discurso e prática
médica para tal análise; o trabalho nos é de grande valia na medida em que analisa
essa construção de diferenciação. Quando o relaciona com os fenômenos
socioculturais do século XIX como um fator importante para as transformações
3
GREGORI, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a
prática feminista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 130.
4
Idem, p. 130.
Bruna Cristina Oliveira Pupe | 83
relacionadas às relações de gênero vigentes (2001, p. 14) e, tendo em vista a
temporalidade cultural das mentalidades, influenciaram o século seguinte.
A similaridade de processos sofridos pelo período temporal pesquisado por
Rohden (2001) vai de encontro com a possibilidade de se pensar como esses
fenômenos macros influenciam na concepção de novas formas de atribuir “papéis”
ao gênero.
Adentrando no arcabouço dos estudos da literatura histórica que buscou
centralizar a mulher criminosa no foco da análise deparamo-nos com os trabalhos
de Alessandra Rinaldi (2004), Gesa Lisiane Carús Guedes (2014), Martha Santillán
Esqueda (2017), Walter de Carvalho Braga Júnior (2018) e Paloma Almada Czapla
(2021). Nessa etapa nos atemos a realizar uma filtragem de elencar os trabalhos que
analisam as mulheres delinquentes/criminosas no contexto urbano.
Na tese de Alessandra Rinaldi, intitulada A sexualização do crime no Brasil:
um estudo sobre a criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (18901940) (2001), a autora analisa as maneiras com que se pensava os crimes femininos
a partir do caso concreto das relações amorosas. Para tanto, ela busca analisar
processos-crimes e produções literárias de profissionais do Direito e da Medicina,
assim, conseguiu delinear uma pesquisa sobre o ato criminoso praticado por
mulheres em si.. Rinaldi (2004) relata que os juristas e médicos da primeira metade
do século XX influenciados pelo Positivismo do Direito e da Medicina,
descreviam o crime como produto das inscrições biológicas dos indivíduos, mas
acentuavam o papel do “meio” (sociedade) em sua produção, considerando-o, assim,
resultado de uma espécie de combinação de “fatores internos e externos”. 5
Porquanto que, o trabalho da antropóloga Alessandra Rinaldi (2004) não seja
um trabalho historiográfico, como dito anteriormente, a autora utiliza-se de
elementos da pesquisa histórica para analisar seu objeto; e, para tanto, pela
5
RINALDI, Alessandra de Andrade. A sexualização do crime no Brasil: um estudo sobre criminalidade
feminina no contexto de relações amorosas (1890-1940). 2004. 206f. Tese (Doutorado em Ciências
Humanas e Saúde; Epidemiologia; Política, Planejamento e Administração em Saúde; Administração)
- Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, p. 184.
84 | Gênero, violência e estruturas de poder
importância dos seus resultados, contemplamos sua obra como de suma
importância para a construção de conhecimentos relacionados à temática da
criminalidade feminina.
A historiadora Geza Lisiane Carús Guedes (2014) em sua dissertação
Criminalidade feminina: mulheres negras e os homicídios em Pelotas (1880-1890)
visou o estudo da criminalidade na cidade de Pelotas através de processos-crime
em que mulheres negras, escravizadas ou libertas, situavam-se como rés de crimes
de homicídio. Para tanto, ambientalizou o foco de sua análise tendo como pano de
fundo contextual a transição do período imperial para o republicano. O trabalho
funda-se na importância de elencar mulheres demarcadas pelo significante da raça
e como isso influenciava na repercussão dos seus atos. Outro trabalho que visualiza
a raça como recorte importante para o entendimento do “desvio feminino” é trabalho
Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras
desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais (2019) de Saidiya Hartman
que buscou relatar outras possibilidades de situar mulheres “desviantes” sob
inéditas perspectivas análiticas que identificavam vivências que configuraram novas
viabilidades de se existir em diferentes corpos e espaços. Através da “fabulação
crítica”, a autora pretendeu narrar as vivências dessas mulheres do começo do
século XX em Nova Iorque sem perpetuar essas experiências de vida como desvio,
criminalidade e patologia que o poder imputou-lhes.
A historiadora mexicana Martha Santillán Esqueda em seu artigo Mujeres
delincuentes y imaginarios: criminología, cine y nota roja en Mexico (1940-1950)
(2017) analisou as novas articulações da experiência feminina fora do espaço
doméstico e como isso desencadeou o temor da sociedade em torno da
desmoralização e degradação da condição das mulheres. Para tanto, a autora
empreende um estudo sobre a representação das mulheres delinquentes no cinema
e pela imprensa mexicana. Já o historiador Walter Carvalho B. Júnior na sua tese
Mulheres criminosas: transgressão, violência e repressão na Fortaleza do século XIX
(2018), sob a perspectiva de mulheres que não atendiam os critérios sociais de
gênero da época, analisa o discurso construído em torno dessas sujeitas criminosas,
tendo em vista os dispositivos reguladores de suas existências na urbe de Fortaleza.
Bruna Cristina Oliveira Pupe | 85
A historiadora Paloma Almada Czapla na sua dissertação O corpo como
campo de batalha: tramas de mulheres acusadas de homicídio (1930-1950) (2021)
através de casos de assasinato praticados por mulheres no interior do Rio Grande do
Sul analisou as condições histórico-culturais que possibilitaram esses crimes e
como o sistema judicial baseava suas operações sob vieses dos imaginários
herdados pela colonialidade e pela fundação sexista da sociedade brasileira.
A invisibilidade da construção de sentidos e significados por parte de sujeitas
femininas foi o fator principal para que essas pesquisas fossem vistas com maior
atenção e cuidado. A insistência em situar as mulheres em “lugares” entre a narrativa
histórica construída a partir das novas tendências historiográficas atribuem e
demandam obrigações aos/as historiadores/as, a partir de novas percepções sobre
objeto pretendido e das dinâmicas socialmente vividas e experienciadas por ele nos
recortes temporais específicos, pois
“se as diferenças entre homens e mulheres forem culturais, e não naturais, se ‘homem’ e
‘mulher’ forem papéis sociais, definidos e organizados de forma diversa em diferentes
períodos, então os historiadores precisam explicitar o que quase sempre era deixado
implícito na época, as regras ou convenções para ser mulher ou homem de determinada
faixa etária ou grupo social em determinada região e período” 6
A convencionalidade da narrativa histórica, mesmo que recentemente
construída, molda-se a partir de velhas centralidades simbólica que determinam
lugares preestabelecidos para as mulheres, pois concentram-se nas relações
domésticas como singularidades da experiência feminina ao longo da história;
extinguindo inconscientemente quaisquer possibilidades de outras “vivências” 7 que
descentralizassem suas produções e reproduções de significados e da materialidade
social das trocas e atritos entre os gêneros que pudessem emergir nesses outros
contextos.
Sustenta-se o compartilhamento de incômodos parecidos com os que foram
apresentados pela historiadora estadunidense Toby Ditz no artigo “The New Men's
6
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2012, p. 86.
OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG;. Rio
de Janeiro: IUPERJ, 2004.
7
86 | Gênero, violência e estruturas de poder
History and the Peculiar Absence of Gendered Power: Some Remedies from Early
American Gender History” (2004) quando discutiu a presença de uma “supressão” do
gênero dos homens ao longo das produções da historiografia tradicional;
compartilha-se dos incômodos que sustentaram a crítica da historiadora sobre a
ausência da análise do sujeito masculino enquanto objeto, quando a masculinidade
não fora vista como produto histórico, tomou-se como a-histórico nem inato,
dispensando quaisquer variabilidade temporal que a categoria pudesse ter — e,
particularmente, referia-se a nova literatura sobre as masculinidades. Portanto,
In the end, the new literature on the history of masculinity and menleaves us with
the queasy feeling that, cumulatively, it risks replicating theoppressive omissions of
conventional history. It is in danger of restoringmen – however particularised,
differentiated and socially constructed – tothe centre of our historical narrative.8
É a partir dessas tentativas “bem intencionadas” que as mesmas narrativas
ou a visitação dos mesmos lugares vão se materializando simbolicamente em
discursos idênticos, porém, apresentados sob uma roupagem crítica. A roupagem
crítica algumas vezes não é suficiente para qualificar e compreender quais são os
pontos de referência que os novos, ou melhor, reciclados saberes da história
corroboram com antigos simbolismos estruturais e prismas exauridos.
Haja vista que, não defende-se aqui que seja preciso desvencilhar-se de
qualquer análise histórica que objetiva estudar os lugares e sujeitos circunscritos
nessas afirmações, mas sim, defende-se que seja preciso construir outros
questionamentos e lapidar outros olhares sobre os mesmos objetos e contextos. É
preciso que se empreenda uma “contranarrativa” 9 e que recrie-se as associações
8
Tradução própria: “No fim de contas, a nova literatura sobre a história da masculinidade e dos
homens deixa-nos com a sensação inquietante de que, cumulativamente, corre o risco de reproduzir
as omissões opressivas da história convencional. Corre o risco de devolver os homens - ainda que
particularizados, diferenciados e socialmente construídos - ao centro da nossa narrativa histórica.”
In: DITZ, Toby L. The new men´s history and the peculiar absence of gendered power: some remedies
from early american gender history. Gender & History, vol. 16, no.1, abr. 2004.
9
HARTMAN, Saidiya. Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras
desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. Tradução de Floresta. São Paulo: Fósforo,
2022, p. 12.
Bruna Cristina Oliveira Pupe | 87
que identificavam formas e práticas da vida marginal como patologia, desvio ou
teratologia corpóreo-social.
Vários são os produtos desses fetiches análiticos e cacoetes históricos,
precoces mas já exauridos, como, por exemplo, a construção de uma hierarquia
simbólica entre mulheres. Por mais que as experiências sócio-corporais dessas
sujeitas materialmente vivenciam realidades distintas, possuindo oportunidades
distantes de si de acordo com os demarcadores sociais que lhe atribuem estigmas,
estereótipos, méritos e valor. Apesar das evidências que diferenciam essas
experiências, algumas produções historiográficas reforçam tal ideia hierarquizante.
Alguns trabalhos postulam, inconscientemente, a sobressaliência do espaço
privado como predominante na experiência histórica das mulheres; visto que isso
não é verdade nem regra, a historiadora Rachel Soihet já na década de 1980, no seu
trabalho intitulado Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e
ordem urbana (1890–1920), evidenciou as diferenças que apresentavam as
vivências das mulheres das camadas populares da cidade do Rio de Janeiro,
mulheres que em sua maioria eram pobres, negras e muitas vezes que transgrediram
a normatividade historicamente situada. A partir desta pesquisa, é evidente que as
narrativas que se construíram sobre a “história das mulheres”, apenas agiram sob a
ótica das experiências históricas das mulheres integrantes das classes dominantes.
Nessas ocorrências recorre-se à análise da violência como fator importante e
significante apenas quando o corpo da mulher é a vítima. Preponderando-se que a
experienciação desses corpos nesses lugares da esfera privada sofrem com
violências específicas originadas da hierarquização dos gêneros. Entretanto,
ampliando-se as possibilidades e novos mecanismos da vida social na esfera
pública, se transforma as viabilidades das mulheres protagonizarem outras práticas
e formas de ser.
Rachel Soihet (2017) explica ao analisar as relações generificadas das
camadas populares do início do século XX que, os homens pobres não conseguiam
assumir o posto esperado de provedores da família, fazendo com que não
exercessem o poder culturalmente delegado aos homens de dominação irrestrita
sobre a mulher e daqueles que integravam as relações familiares. Nesse sentido,
pode-se dizer que a estabilidade econômica influenciava na legitimidade das
88 | Gênero, violência e estruturas de poder
posições de dominância masculina nos espaços privados. A violência surgia a partir
de “uma demonstração de fraqueza e insegurança do que de força e poder”10
As práticas de liberdade protagonizadas pelas mulheres historicamente foram
condenadas moralmente e criminalizadas pelo que está na lei. Expressamente, a
transgressão das expectativas socioculturalmente estipuladas para as mulheres
foram condenadas mesmo que não houvesse presente a violência. A violência
subjetiva ou material não foi, nesse caso na legislação brasileira, o fator primordial
para a condenação de práticas femininas. Qualquer conduta que partisse da
experiência social feminina e transgredisse o regramento moral da ordem
estabelecida era ação passivamente punível pela acusação-condenação da
sociedade e pelos órgãos repressivos e de controle do Estado.
FEMINILIDADE DELINQUENTE COMO SUBSTRATO HISTÓRICO
Assim como a feminilidade é historicamente construída, a delinquência é um
elemento taxativo e definidor de corpos e vivências socialmente construído. São
esses os dois fatores que se mesclam quando gênero e delinquência cruzam-se após
a apreensão de suas existências pelo poder11 ou quando relacionam-se nas trocas
da vida social, criando-se, assim, imaginários e representações que lhes são
atribuídos sistematicamente.
Criminologicamente, a partir do fim do século XIX, construiu-se estudos que
buscavam na antropologia e noutras justificativas características anatômicas,
culturais e sociais que delineassem elementos constitutivos que puramente
identificavam delinquentes natos. As teorias que foram construída com esse
propósito eram evidenciadas nas obras clássicas da Criminologia Positivista de
Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero, intituladas L’uomo delinquente (1876) e La
donna delinquente la prostituta e la donna normale (1893). Há construções teóricas
bastante duras sob a concepção positivista, pois, para os autores, a delinquência era
um elemento patologizante para o corpo social e para a própria humanidade
10
SOIHET, Rachel.. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História
das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017 [1997], p. 370.
11
FOUCAULT, Michel de. A vida dos homens infames. In: Ditos e escritos IV: estratégia, poder-saber.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 203-222. [1977].
Bruna Cristina Oliveira Pupe | 89
daqueles que cometiam quaisquer tipos de infração. A patologização e a
criminalização de algumas práticas foram visualizadas como ferramentas dos
aparatos repressivos do Estado para empreender projetos de vigilância e controle
sobre os corpos femininos; porém, tais mecanismos falham porque eram
direcionados para a mulheres das camadas populares, que não atendiam às
expectativas da ordem burguesa estabelecida.
A mulher delinquente não é unicamente àquela que reincidiu no sistema
prisional. Neste trabalho compreende-se que o corpo feminino, dotado de
potencialidades de vivências,
e sua geração de significados cotidianos são
receptores de elementos integradores da delinquência, que abrem-se brechas para
a condenação/acusação social. Por mais que a detenção penitenciária (como foi o
caso de Maria) por vezes seja utilizada como método de exclusão e conspurcação
moral e social e, historicamente, assim a foi usada. Hoje, para as mulheres não é tão
somente o enclausuramento que resulta nesses efeitos sociais. A delinquência
imputada a essas sujeitas como estigma 12 reproduz e comprime suas vidas à
vergonha social: rechaçando-as e as excluindo das possibilidades de acessar
aspectos mais amplos da experienciação material da vivência.
Ao tentar delinear a delinquência enquanto conceito, Foucault (2014 [1975])
atribui características contrastivas da pessoa infratora e da pessoa delinquente.
Segundo Foucault, “o delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto
seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza”, ainda, “a introdução do biográfico
é importante na história da penalidade. Porque ele faz existir o “criminoso” antes do
crime e, num raciocínio-limite, fora deste”13.
Parece-nos que os trechos supracitados evidenciam o que se quer defender
neste trabalho, de que a delinquência é um elemento da vida social mais amplo do
que um ato infracional, por vezes, de ocorrência isolada. Para o conceito de
delinquência aqui defendido, a infração é apenas um método de vivenciar o cotidiano
sob as estruturas nas quais o sujeito está subjugado; isto é, nesse sentido, a
delinquência poderá também se valer de outros mecanismos de exclusão como, por
12
GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1980.
13
FOUCAULT, M. . Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 2014
[1975], p. 180.
90 | Gênero, violência e estruturas de poder
exemplo, a estigmatização e a marginalização. Atenta-se para a diferença do atoefeito que delinquência exerce em contraste com essas outras dinâmicas sociais de
exclusão. Por fim, pode-se dizer que a delinquência elenca tais processos como
formadores do que o próprio conceito é.
O biográfico, o qual identificou Foucault, durante o processo penal é apenas
instrumentalizado na construção da culpa por parte do acusado, diferentemente da
vítima que não é questionada com afinco sobre possíveis ação-reação de uma
possível conduta de si mesmo, como foi o caso do inquérito que apresentamos no
início deste trabalho. Sobre a sujeita acusada das agressões, ao longo do processo
criminalizante, buscou-se justificar seu ato e, por consequência, sua culpa, através
do seu histórico de desvio. As práticas cotidianas de Maria, sua prática laboral que
era relacionada à sua sexualidade, sua pobreza e sua cor foram os elementos
preconcebidos que justificaram e deram fundamento para as acusações de
delinquente que acusaram-na.
Portanto, compreende-se que, a delinquência é um atributo socialmente
metafísico, irrestrito ao discurso e às representações, já que exerce influência na
dinâmica material da vida social de determinados indivíduos e grupos.
Discursivamente, constrói-se uma cultura delinquente, formada por elementos e
atributos próprios, como — a violência como nexo das relações sociais dadas nos
espaços de marginalidade e a transgressão da lei como prática do cotidiano.
Obviamente que, nesse sentido, a lei não é o único fator passível de transgressão,
mas, também, as convenções socioculturais são objetos passíveis de serem
corrompidos.
Para adequação da apreensão do conceito em vista as relações de gênero e
étnico-raciais, visualiza-se que existam elementos constitutivos de identidade
preconcebidos que fundamentam a imputação da delinquência como representação
do espaço e função social que determinada pessoa ou grupo representa socialmente.
Isto é, a delinquência vai de encontro ao que Goffman identifica como “identidade
social virtual”14.
14
GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1980.
Bruna Cristina Oliveira Pupe | 91
Visto isso, a feminilidade e a mulheridade por serem historicamente
construídas carregam consigo atributos identitários imputados a si e por si.
Historicamente, nas sociedades ocidentais criou-se uma normatividade imposto do
que seria correto ser mulher. A amabilidade, o recato desejado, a vocação para o
cuidado e a manutenção das relações privadas, a autocensura e a fragilidade são
alguns dos atributos socialmente aceitos para definir o que é ser mulher nas
sociedades modernas. A historiadora Paloma Czapla demonstra que, as
características desejadas em relação ao ser mulher criaram
[...] um modelo que dizia respeito a como o corpo feminino deveria ser, ou a como esses
homens gostariam que fosse. De acordo com essa imagem, uma mulher “normal” era
alguém que obedecia ao homem; que era branca, submissa, materna e recatada. Era uma
quimera. É uma quimera construída por teorias médicas e científicas europeias
elaboradas na segunda metade do século XIX, que se pautaram pela biologia e fizeram
com que aquelas que não correspondiam ao ideal de feminilidade moderno fossem
relegadas ao terreno da degeneração, da animalidade e da loucura. 15
Para tanto, o desvio desse modelo de mulheridade era visto como afronta a
marcadores biológicos inatos ao corpo feminino. O fato era que o controle e a
vigilância não eram somente produtos de uma preocupação societária para com o
corpo feminino; ser mulher era visto como algo mais amplo, estava intrinsecamente
relacionado às formas que está sujeita se relaciona interpessoalmente no seu meio
social. O que a mulher faria com o seu corpo, como respostas aos estímulos
cotidianos, e como ela o utilizaria como meio das relações sociais nas quais ela
estava imbricada eram os fatores justificáveis para a vigilância e controle por parte
da dominação simbólica do masculino.
Nesse sentido, Boris Fausto escreve que, a criminalidade feminina, quando
vigiada pelo sistema prisional e policial, não identificava-se no início do século XX
como “produtora de vítimas”, pelo contrário, as infrações dadas ao cabo por
15
CZAPLA, Paloma Almada. O corpo como campo de batalha: tramas de mulheres acusadas de
homicídio (1930-1950). 2021. 172f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em História, 2021, p. 112.
92 | Gênero, violência e estruturas de poder
mulheres eram transgressões da lei sem vítimas 16 , ou seja, as prisões eram
efetivadas a partir da punição a comportamento desviantes e indesejáveis para a
ordem social estabelecida estruturalmente. Isso não significa que as mulheres, em
menor número, foram acusadas de infrações relativas ao dano da integridade de
outrem (homicídios, lesões, etc) ou até mesmo ao dano de propriedade alheia (furtos,
roubos, etc).
O interesse deste trabalho não é a visualização dos motivos ou da existência
dos crimes praticados por mulheres ao longo da história, mas é empreender uma
tentativa de articular questionamentos que possibilitem o acesso às narrativas de
vida cotidiana de mulheres delinquentes. Visto isso, compreende-se, portanto, que a
delinquência assim como a feminilidade são relativas aos corpos que os carregam
enquanto estigma e identidade social real ou virtual. Pois, as consequências da
delinquenciação apresentarão dinâmicas e produtos imagéticos e de vivência
material distintos quando relativos aos demarcadores sociais e culturais dos
indivíduos que estão sofrendo com esse processo de exclusão ou sendo taxados
com a repulsa e vergonha social.
Alguns corpos nasceram destinados à delinquência visto as bases taxativas
da sociedade; dificilmente conseguirão se desvencilhar de imputações estruturais
que o nascimento, fatores biológicos ou comportamentais lhe atribuem.
Postas as definições elementares do conceito de delinquência, visualizamos
a sua extensionalidade a ponto de torná-lo categoria de análise para a história social;
a partir dos atravessamentos importantes com o gênero. As mulheres pobres
inseridas nas engrenagens cotidianas que rompiam com as expectativas que lhe
foram impostas pelas classes dominantes, articulam-se noutras perspectivas de
trabalho, consumo dos espaços públicos e nas relações sociais que fogem das
limitações doméstico-privadas. Nos limites entre as práticas populares e os
comportamentos delinquentes, entendidos aqui, existe uma fronteira bastante frágil
e, que, a depender dos discursos e representações imputadas a esses grupos, podem
facilmente serem confundidas e fundidas em concepções similares.
16
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2ª ed. - São Paulo,
Edusp, 2001, p. 88.
Bruna Cristina Oliveira Pupe | 93
O olhar historiográfico sobre o fazer delinquente de sujeitas femininas deve se
despir de uma monomania que enrijece o conteúdo discursivo que caracteriza tais
vivências apenas tendo como eixo significante a violência. Sem dúvida que nas
relações cotidianas de mulheres transgressoras, a violência esteja presente direta ou
indiretamente. Porém, a violência é somente mais um dos elementos que direcionam
o caráter de cada experiência vivida por essas sujeitas — existem outros elementos
abstratos e psicológicos que definem as experiências corpóreo-sociais que as
sujeitas terão contato, contextualizadas em seu tempo histórico e circunscrição
cultural. A realidade social delinquente não apresenta flexibilidade em atender
expectativas das quais atenderiam o eixo circunstancial da violência, mas coexistem
num emaranhado de significados e consumo das relações interpessoais e espaciais
que são carregadas de sentidos mais comuns: afetos, solidariedades, amizades e
anseios de justiça à sua própria maneira.
A dimensão social das mulheres delinquentes em seu contexto histórico e
cultural não deve ser medida a partir das limitações de suas vidas. A delinquência
feminina exige uma ampla visualização de suas facetas, sua performance interfere
tal qual um caleidoscópio social, por exemplo, habitam essas mulheres no cotidiano
normativo das “mulheres de família”, visto que, os estigmas que as designam
constroem todo um arcabouço representativo que cria a concepção da “outra”, aquilo
que essas outras mulheres não devem ser.
Portanto, a existência de mulheres que assumem comportamentos
dissidentes e performam outras maneiras de feminilidade corresponde a elementos
subjetivos e simbólicos que rompem com os limites da normatividade e com
cotidianos corrompidos pelo que eram vistos, e ainda hoje considerados, como
patologias sociais. A embriaguez, a linguagem hostil e ácida, o distanciamento para
com expectativas de delicadeza convencionada, o uso do corpo como meio de
trabalho, a vida desregrada que eventualmente adotava métodos delituosos de
resistência à pobreza e às violências lhes eram imputadas, são alguns dos elementos
constitutivos da delinquência feminina.
94 | Gênero, violência e estruturas de poder
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Escrever a história de vozes silenciadas é por muitas vezes um trabalho árduo
e minucioso de análise de sussurros. As poucas e, às vezes, raras fontes que
registram no tempo a existência desses grupos e pessoas comuns são pequenos
registros que não permitem com que tais pessoas caìam no esquecimento; mas o
efeito pode ser catastroficamente o inverso se essas fontes sejam inacessíveis ou
desprezadas por olhares descuidados. Historicizar as vidas comuns, proporcionar
espaços de relevância à luz do conhecimento histórico, dar utilidade a registros de
vidas para o entendimento da história requer prudências redobradas.
No caso de tantas Marias, mulheres sem paradeiro, vadias desocupadas,
mulheres “carne de pescoço”, calejadas pela sua história: circundam no trabalho de
utilizar-se dessas narrativas, imputadas a elas, um limite muito tênue e quase
invísivel de como se desvencilhar das violências e representações que lhes foram
imputadas pelas fontes.
O objetivo
central deste trabalho
foi
suscitar
questionamentos e elucidar alguns porquês, situar as vivências das mulheres
delinquentes como pertencentes a algum lugar da história, da própria história e da
história dos espaços em que viveu. Para longe da experiência constrangedora e
aspetos difamantes em que suas vidas, ou melhor, parte delas, foram capturadas
pelo poder institucional da polícia e da justiça criminal, a utilização da categoria de
análise delinquência feminina deve, invariavelmente, servir como um método
humanizador; servirá como suporte para os profissionais interessados em não deixar
que mulheres marginalizadas em sua época não caiam no esquecimento. É costurar
novas narrativas que se preocupem com a crítica dos fatos e problematizem as
identidades sociais virtuais que lhes foram atribuídas por sujeitos privilegiados pelas
estruturas sociais de poder.
FONTE PRIMÁRIA
APERS. Comarca de Porto Alegre. Vara de Execuções Criminais. Acondicionador
004.3609. Processo nº 416. 1957.
Bruna Cristina Oliveira Pupe | 95
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5. A MOBILIZAÇÃO CONSERVADORA SOBRE OS DIREITOS SEXUAIS E
REPRODUTIVOS: UMA ANÁLISE DAS RESISTÊNCIAS NOS PROJETOS DE MARIELLE
FRANCO
https://doi.org/10.36592/9786554601566-05
Iara Amora dos Santos1
Carolina Cagetti2
RESUMO
Este artigo tem como objetivo relatar as reações conservadoras relativas aos direitos
sexuais e reprodutivos na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no contexto de
projetos de leis apresentados por Marielle Franco, em especial o que dispõe sobre a
“Fixação de Cartaz Informativo Sobre o Atendimento de Saúde em Casos de Violência
Sexual” (PL 442/17 3 ). Sua derrota, em março de 2023, foi resultado de uma
mobilização conservadora que direcionou o embate político exclusivamente para a
questão do aborto. A construção e votação do Projeto de Lei 442/17 que trata de
reprodução e da distribuição de cartaz informativo sobre o atendimento de saúde em
casos de violência sexual nos serviços públicos municipais do Rio de Janeiro proposta originalmente apresentada por Marielle Franco e posteriormente
reapresentada pela Vereadora Monica Benicio - foi aqui utilizada como estudo de
caso. A pesquisa adota uma abordagem qualitativa, envolvendo a análise de
documentos, vídeos, atas e registros das sessões de votação, além de materiais de
comunicação e publicações produzidas pelos mandatos das Vereadoras Marielle
Franco e Monica Benicio. Através do mesmo, visa-se contribuir para o entendimento
do embate entre os movimentos conservadores e a defesa dos direitos sexuais e
reprodutivos, ressaltando a importância de políticas públicas que garantam o acesso
às informações e serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva, especialmente
em casos de violência sexual.
Palavras-chaves: câmara municipal do rio de janeiro; projetos de lei; violência sexual;
aborto; marielle franco.
1
Graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestrado em Políticas
Públicas em Direitos Humanos na UFRJ. Trabalhou como coordenadora de projetos na CAMTRA e
atualmente trabalha como assessora parlamentar da Vereadora Monica Benicio. E-mail:
iaraamoradossantos@gmail.com.
2
Graduação em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio) e mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Sapienza de Roma. Pesquisa feminismos e
direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e na Itália, com ênfase na questao do aborto. E-mail:
carolcagetti@gmail.com.
3
CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 442/17. Disponível em:
https://aplicnt.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro2124.nsf/0325864700576d2603257735005e
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100 | Gênero, violência e estruturas de poder
Introdução
Sexualidade e gênero são centrais nas disputas políticas e na construção da
democracia, sendo articuladores de regimes morais, políticos e jurídicos, e
expressões de conflitos sociais relacionados à raça, classe, geração e
territorialidade. A ofensiva conservadora direcionada aos direitos sexuais e
reprodutivos no Brasil se expandiu para diversos âmbitos, contando com respaldo
presidencial entre os anos de 2019 a 20224.
Ao longo da última década, o movimento feminista tem denunciado esta
crescente ofensiva conservadora direcionada aos direitos sexuais e reprodutivos no
Brasil, bem como tem resistido às iniciativas que visam retroceder tais direitos 5 .
Biroli destaca que a atuação de grupos religiosos no Congresso Nacional - que tem
como prioridade em sua agenda os comportamentos sexuais e a configuração de
família - é um dos elementos centrais nas batalhas morais em curso. Além disso, os
mesmos têm como batalha principal a promoção de retrocessos na legislação
existente e nas condições de acesso ao aborto, assim como nos direitos sexuais
incluindo o embarreiramento ao acesso à educação sexual nas escolas6.
No entanto, essa ofensiva não se limita ao âmbito nacional, estendendo-se a
ações coordenadas dos setores conservadores nas casas legislativas federal,
estaduais e municipais. Uma das ações de maior expressividade foi a articulação
conservadora para retirada das questões de gênero do Plano Nacional de Educação
(PNE), em 2014, que também se estendeu para os Planos Estaduais e Municipais,
resultando na eliminação da palavra gênero nos planos de educação de diversos
municípios brasileiros7. Este se tornou um marco da atuação desses grupos para
impedir as discussões de gênero e sexualidade nas escolas. Desde 2014, período da
discussão e aprovação do atual Plano Nacional de Educação, o Escola sem Partido
4
CAGETTI, Carolina. Uma luta contínua feminista: o processo de legalização do aborto e de garantia
de acesso no Brasil e na Itália. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Università degli Studi di Roma La Sapienza. Rio
de Janeiro, 2023.
5
Ibdem
6
BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades limites da democracia no Brasil. Boitempo, São Paulo, 2018.
7
Ibidem
Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 101
e as bancadas religiosas propuseram projetos de lei que estão sendo apresentados,
nos estados e municípios, com nomes variados, mas com os mesmos objetivos8.
Essa dinâmica destaca como a sexualidade e o gênero atravessam a esfera
política, alvos de disputas e mobilizações. Neste cenário, nos dedicamos ao estudo
de caso da mobilização conservadora contra informações acerca do aborto legal que
culminou na derrota do Projeto de Lei 442/17 que dispõe sobre a “Fixação de Cartaz
Informativo Sobre o Atendimento de Saúde em Casos de Violência Sexual”, na
Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Para o movimento religioso conservador, hoje os temas centrais são a defesa do modelo
de família "natural" e do papel tradicional da mulher, e a consequente oposição aos
direitos sexuais e reprodutivos (Vaggione, 2005). Nesse contexto, o aborto, como última
instância da capacidade das mulheres para tomar decisões sobre sua vida reprodutiva,
representa na América Latina "a fronteira do direito de decidir” (Lamas, 2001).9
Entre os 397 projetos de lei sobre os direitos das mulheres em tramitação no
Congresso Nacional, em 2022, e analisados pelo Radar Feminista, 40 foram
classificados como contrários aos direitos das mulheres. Dentre estes, dezessete
visam restringir ou extinguir o direito à interrupção voluntária da gravidez; onze têm
por objetivo restringir direitos da população LGBTQIAP+ ou abordam questões
ligadas à sexualidade de forma conservadora e preconceituosa10.
Esta atuação para retroceder ou obstaculizar direitos também acontece nas
casas legislativas locais, como na mobilização conservadora ao PL 442/17, estudo
de caso do presente artigo.
No contexto das transições à democracia na América Latina, a Igreja tem tentado influir
nos processos constituintes, a fim de lograr a incorporação desta cláusula nas
constituições nacionais (Pitanguy, 2011, p. 39). Emblemático nesse sentido foi o lobby
8
SEPULVEDA, José Antonio. SEPULVEDA, Denize. Conservadorismo e seus Impactos no currículo
Escolar. In: Currículo sem Fronteiras, v. 19, n. 3, p. 868-892, set./dez. 2019.
9
RUIBAL, Alba M. Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização
em torno dos direitos reprodutivos na América Latina. Rev. Bras. Ciênc. Polít. (14) • May-Aug 2014,
p.111-112.
10
CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. Mulheres e resistência no Congresso Nacional:
radar feminista ao término da legislatura 2019-2022. 1. ed. - Brasília, DF. 2023.
102 | Gênero, violência e estruturas de poder
realizado pela Igreja durante a Convenção Constituinte no Brasil, em 1988, assim como
na Colômbia (1991) e na Argentina (1994), com o objetivo de introduzir uma cláusula
constitucional de proteção da vida desde a concepção. Nesses casos, a mobilização
feminista logrou impedir o avanço religioso sobre os textos constitucionais. Mais
recentemente, o ativismo conservador tem orientado sua atenção à política em nível
subnacional, por exemplo, para impedir a implementação de serviços de aborto dentro
dos limites permitidos pela lei, ou para judicializar casos de aborto não puníveis. 11 (Grifos
nossos)
A aprovação de leis municipais ou estaduais com iniciativas para obstaculizar
ou levar mulheres a abrir mão do direito ao aborto legal têm chamado a atenção de
instituições que monitoram esse atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Um
dos exemplos mais recentes, foi a aprovação de uma lei que obrigava mulheres em
situações de aborto legal a verem a imagem do feto, agora já revogada pela Justiça
de Alagoas.12
Direitos Sexuais e Reprodutivos no Mandato de Marielle Franco
Marielle Franco, foi eleita em 2016, com 46.502 votos, sendo a quinta
parlamentar e a segunda mulher mais votada da cidade do Rio de Janeiro. Sua
eleição ocorreu no bojo do crescimento dos movimentos feministas no Brasil e
debates sobre repesentatividade, impulsionados pela Primavera Feminista de 2015.
Assim, nas eleições de 2016, observou-se um aumento de eleições de mulheres pelo
Brasil, assim como votações de mulheres negras posicionadas no campo feminista
e de esquerda, com grande expressão, como Aurea Carolina, em Belo Horizonte,
Talíria Petrone, em Niterói, e a própria Marielle Franco, no Rio de Janeiro.
11
RUIBAL, Alba M. Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização
em torno dos direitos reprodutivos na América Latina. Rev. Bras. Ciênc. Polít. (14) • May-Aug 2014,
p.116.
12
SININBÚ, Fabíola. Leis municipais e estaduais dificultam acesso ao aborto legal. Repórter da
Agência Brasil - Brasília, 23 de Janeiro de 2024. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2024-01/leis-municipais-e-estaduais-dificultamacesso-ao-aborto-legal Acesso em: 10 mar. 2024.
Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 103
Neste contexto, Marielle Franco se elegeu com uma pauta feminista,
socialista, antiracista e em defesa dos direitos humanos, sendo os direitos sexuais e
reprodutivos um dos eixos de atuação de seu mandato.
Em um ano e três meses de atuação, Marielle apresentou dezesseis projetos
de lei, sendo que, cinco desses versavam a respeito dos direitos sexuais e
reprodutivos: PL16/2017 - Institui o Programa de Atenção Humanizada ao Aborto
Legal e Judicialmente Autorizado no Ambito do Município do Rio de Janeiro 13; PL
72/2017 - Inclui o Dia de Luta contra a Homofobia, Lesbofobia, Bifobia e Transfobia
no Calendário Oficial da Cidade do Rio de Janeiro14; PL 82/2017 - Inclui o Dia da
Visibilidade Lésbica no Calendário Oficial da Cidade do Rio de Janeiro15; PL 265/2017
- Estabelece Diretrizes para a criação do Programa de Centro de Parto Normal e
Casas de Parto, para atendimento a mulher no período gravídico-puerperal16; e o PL
442/2017 - Dispõe sobre Fixação de Cartaz Informativo nos Serviços Públicos do
Município do Rio de Janeiro.
O projeto das Casas de Parto foi aprovado ainda em seu primeiro ano de
mandato e o projeto de lei que instituia o Dia Municipal da Visibilidade Lésbica foi
derrotado ainda durante o seu mandato. Após o seu brutal assassinato, todos os
seus projetos de lei foram colocados em votação em uma sessão de homenagem a
mesma. No entanto, por falta de acordo entre os vereadores, foram deixados de fora
todos os seus projetos que versavam sobre direitos sexuais e reprodutivos, dentre
estes o PL 442/17.
13
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14
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16
CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 265/17. Disponível em:
https://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1720.nsf/0cfaa89fb497093603257735005eb2
bc/5d01d5c73ff44f008325813000750f61?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024.
104 | Gênero, violência e estruturas de poder
PL 442/12 - Dispõe sobre Fixação de Cartaz Informativo nos Serviços Públicos do
Município do Rio de Janeiro
O PL 442/17 foi fruto do Grupo de Trabalho sobre Mortalidade Materna,
instituído pela Comissão de Defesa da Mulher da Câmara Municipal do Rio de
Janeiro, a qual Marielle Franco presidiu desde o seu primeiro ano de mandato.
Instituído no debate público: “Mortalidade Materna: Uma análise da situação no
Município do Rio de Janeiro”, contava com a participação da Sociedade Civil e Poder
Executivo, sendo composto pela Superintendência de Hospitais Pediátricos e
Maternidades do Município do Rio de Janeiro; profissionais da Secretaria Municipal
de Saúde; Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do
Rio de Janeiro; profissionais da área de Saúde da Mulher; setores da Sociedade Civil
Organizada, tais como a Dra. Leila Adesse (médica sanitarista, doutora em Saúde da
Mulher, Adolescente e Criança (IFF/ FIOCRUZ) e diretora da Ong Aids); representação
da ONG Criola; e representação da ADOULASRJ.
Este grupo de Trabalho Mortalidade Materna atuou entre maio e dezembro de
2017, e apontou como sínteses para o enfrentamento da mortalidade materna no
município: a importância do acesso da população às informações de qualidade
acerca dos seus direitos; a necessidade da formação profissional constante; o
combate à violência obstétrica e ao racismo institucional, apontado como um forte
elemento da manutenção dos altos índices de mortalidade materna na cidade. Outro
importante apontamento foi a necessidade de enfrentar os altos índices de
mortalidade materna por aborto na Cidade do Rio de Janeiro.
Diante da esfera de atuação municipal optou-se por investir na informação e
acesso das mulheres aos serviços de aborto legal. Neste sentido, o GT produziu um
cartaz informativo direcionado a vítimas de violência sexual em parceria com as
Secretarias Municipais de Saúde, Assistência Social e Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro, com informações sobre atendimento de saúde, profilaxia e aborto
legal. Este cartaz passou a ser distribuído pelos órgãos e instituições nos serviços
de saúde, de atendimento às mulheres e outros17.
17
CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Relatório da Comissão de Defesa da Mulher. Período
Março de 2017 a Março de 2018. Disponível em:
Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 105
Esta produção ensejou a apresentação do PL 442/2017 com a finalidade de
que o poder executivo municipal assumisse a responsabilidade de reprodução e
distribuição dos cartazes com informações sobre os direitos das mulheres vítimas
de violência sexual, em lugares visíveis nos serviços públicos de atendimento às
mulheres. O Projeto de Lei apontava como conteúdo para o cartaz:
Em caso de violência sexual, não fique sozinha! Dirija-se a Unidade Básica de Saúde ou
Hospital de Emergência mais próximo. Você tem direito ao atendimento emergencial e
integral de saúde em toda a rede pública, incluindo a prevenção de Infecções
Sexualmente Transmissíveis, HIV/AIDS, Contracepção de emergência e Gravidez (Lei
12.845/2013). Em caso de uma gravidez decorrente de estupro, você tem direito ao
aborto permitido por Lei (art. 128, II do Código Penal). Não é necessário o Registro de
Ocorrência ou Autorização Judicial para esse tipo de atendimento. 18
A justificativa do Projeto de Lei apontava os índices de violência sexual, a
subnotificação do mesmo e a necessidade da produção de políticas públicas de
atendimento às mulheres vítimas de violência sexual.
A cada 11 minutos é registrado um caso de estupro no Brasil (9º Anúario Brasileiro de
Segurança Pública). O Dossiê Mulher constatou que foram registrados 4.705 casos de
estupro no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2016. O equivalente a um estupro a cada
2 horas. Desses, 32% dos casos foram registrados no município do Rio de Janeiro [...] A
pesquisa Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, produzida pelo
Ipea, aponta que apenas 10% de casos notificados são registrados nas delegacias.” e a
necessidade de políticas públicas para o atendimento as mulheres em situação de
violência sexual e o desconhecimento das mulheres sobre esses direitos [...]. Diante
deste quadro, é evidente a necessidade de políticas públicas que garantam o
atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, a atenção integral à sua saúde e
direitos. Em especial, os direitos previstos na Lei 12.845/2013, que dispõe sobre o
atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual e ao
aborto legal previsto no art. 128, II, CP). Apesar destas garantias legais muitas mulheres
desconhecem os direitos previstos nesta legislação ou a forma de acesso aos mesmos.
https://issuu.com/mariellefranco/docs/relatorio_comissao_da_mulher__1_. Acesso em: 5 mar. 2024.
18
CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 442/17. Disponível em:
https://aplicnt.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro2124.nsf/0325864700576d2603257735005e
b2bc/0325864700576d26832581a700770238?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024.
106 | Gênero, violência e estruturas de poder
Fazendo-se necessário o presente projeto de lei, que visa a ampliação das informações
das mulheres.19
Ou seja, resta evidente que o projeto de lei tinha por objetivo promover o
acesso a informações de direitos já garantidos pela legislação brasileira no
atendimento à vítimas de violência sexual. Assim, buscava incidir sobre os
obstáculos que afastam as mulheres dos serviços de saúde, como a falta de
informações e/ou informações equivocadas, como por exemplo, a crença de que se
necessite ter o boletim de ocorrência para acessar tais serviços.
Como já mencionado anteriormente, o PL 442/17, assim como outros que
versavam sobre direitos sexuais e reprodutivos, não foi votado. O mesmo foi
arquivado no ano de 2020, final da legislatura para a qual Marielle Franco havia sido
eleita. No entanto, no ano de 2021, a Vereadora Monica Benicio, viúva de Marielle
Franco, desarquivou o PL 442/17 e os outros projetos deste campo, como uma das
primeiras iniciativas de seu mandato.
Sendo votado e derrotado em março de 2023 por uma mobilização
conservadora contrária às informações relacionadas ao aborto legal, o debate sobre
o objetivo do projeto de lei foi desvirtuado, gerando uma polarização sobre o tema
do aborto em específico.
Mobilização conservadora contra o aborto
Em dois de março de 2023, ocorreu a primeira votação do Projeto de Lei
442/17 na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, resultando em sua aprovação com
uma significativa maioria de votos. Consequentemente, conforme estipulado pelo
Regime Interno da Câmara Municipal do Rio de Janeiro (art. 236), o projeto foi
encaminhado para a segunda votação.
A seguir, citaremos e analisaremos falas e posicionamentos das vereadoras e
vereadores durante as sessões de discussão do Projeto de Lei na Câmara Municipal
do Rio de Janeiro.20 Por uma decisão política de não destacar lideranças do campo
19
20
Ibdem
TV Câmara. Sessão Plenária 02.03.23. Disponível em:
Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 107
conservador, optamos por não mencionar seus nomes diretamente e referenciar os
mesmos através de numeração.
Naquela ocasião, não houve qualquer oposição ao projeto. As Vereadoras
Monica Benicio, Luciana Boiteux e Monica Cunha fizeram declarações de voto,
ressaltando a importância desta votação como um seguimento do trabalho e legado
de Marielle Franco. Elas expressaram apoio ao objetivo do PL, que visa garantir os
direitos de meninas e mulheres vítimas de violência sexual, e enfatizaram a
relevância deste evento, especialmente considerando o mês do Dia Internacional de
Luta das Mulheres.
Antes da segunda votação, foram propostas duas emendas com o intuito de
modificar o conteúdo do cartaz conforme previsto no projeto original. A Emenda nº
1 tinha como objetivo remover a frase "Não é necessário o Registro de Ocorrência ou
Autorização Judicial para esse tipo de atendimento" do conteúdo do cartaz. Por sua
vez, a Emenda nº 2 propunha reduzir o conteúdo do cartaz para:
Em caso de violência sexual, não fique sozinha: Dirija-se a Unidade Básica de Saúde ou
Hospital de Emergência mais próximo. Você tem direito ao atendimento emergencial e
integral à saúde em toda a Rede Pública e Denuncie, dirigindo-se a uma Delegacia
Especial de Atendimento à Mulher.21
Assim, as menções à contracepção de emergência e ao aborto legal foram
completamente removidas, e a denúncia à delegacia foi enfatizada.
No caso de emendas apresentadas durante o processo de votação de um
projeto de lei, o Regimento Interno da Câmara Municipal estipulou que o projeto
retornasse às comissões designadas para análise e emissão de parecer, o que
https://www.youtube.com/watch?v=cL6SmkghnX0&list=PL_jAEsgySjj767aqBf8hptlk_LXJpZRK&index=107. Acesso em: 5 mar. 2024.
TV Câmara. Sessão Plenária 28.03.23. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=7fZYZBofZVE&list=PL_jAEsgySjj6oEZCF_xwPf5xZ1vKKMON&index=93. Acesso em: 5 mar. 2024.
TV Câmara. Sessão Plenária 30.03.23. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=xJU068r0lEg&list=PL_jAEsgySjj6oEZCF_xwPf5xZ1vKKMON&index=91. Acesso em: 5 mar. 2024.
21
CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 442/17. Emenda Nº 2. Disponível em:
https://aplicnt.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro2124.nsf/ab87ae0e15e7dddd032586320056
9395/e1799377835609db0325897b0052781f?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024.
108 | Gênero, violência e estruturas de poder
resultou na retirada do projeto da pauta de votação. Para assegurar a continuidade
da votação do PL 442/17, foi elaborado um acordo que contou com a assinatura
conjunta de todas as comissões envolvidas nas emendas. Esse acordo evitou a
necessidade de aguardar o prazo regimental para o retorno do projeto à pauta.
Em 28 de março de 2023, o PL 442/17 foi submetido à votação em segunda
discussão. Diferentemente da primeira votação, houve uma intensa mobilização por
parte de setores conservadores para a sua não aprovação, manifestando
posicionamentos contrários ao aborto, embora este não fosse o objeto principal do
projeto de lei em questão.
O debate em torno do PL 442/17 se prolongou por duas sessões de votação,
caracterizadas por um intenso embate entre setores conservadores e progressistas.
Esse confronto se manifestou não apenas nos discursos dos vereadores, mas
também entre os segmentos da sociedade civil que acompanharam a discussão.
As intervenções dos setores progressistas se concentraram em realçar o
propósito original do projeto de lei, que era fornecer informações sobre o
atendimento de saúde às mulheres vítimas de violência sexual. Entre as falas das
vereadoras desse campo, a Vereadora Monica Benicio (i) relembrou que o PL 442/17
foi apresentado por Marielle Franco, (ii) salientou que o projeto não criava novos
direitos, apenas informava sobre os direitos já garantidos às mulheres e pessoas
vítimas de violência sexual, e (iii) destacou os alarmantes dados de estupro no
Estado e na Cidade do Rio de Janeiro. Em relação à emenda proposta que visava
remover a informação de que as mulheres não precisam fazer uma denúncia na
delegacia para ter acesso ao atendimento de saúde em caso de violência sexual, a
vereadora resgatou os diversos obstáculos que impedem as mulheres de
denunciarem um estupro, como o medo, a vergonha e a revitimização das mulheres
pela sociedade e pelas próprias instituições. Ela se posicionou como feminista e
defensora da legalização do aborto, mas reiterou que o projeto não tratava desse
tema.
Da mesma forma, a Vereadora Luciana Boiteux enfatizou que o debate não se
tratava da modificação de uma lei federal, mas sim da implementação de um cartaz
informativo sobre o acesso a serviços de saúde e ao aborto em casos de estupro,
conforme previsto no Código Penal Brasileiro desde 1940. Ela também mencionou
Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 109
os casos de meninas estupradas no Piauí e em Santa Catarina que tiveram negado o
acesso ao aborto legal. A Vereadora Thaís Ferreira também ressaltou a importância
da informação sobre os direitos: “o desconhecimento sobre os nossos direitos nos
colocam nos lugares de maior vulnerabilidade. A quem interessa que as mulheres
desconheçam os seus direitos”.
Apesar dos esforços para resgatar o objetivo principal do PL 442/17, os
setores conservadores desviaram o debate para o tema do aborto. Inicialmente,
tentaram justificar as emendas apresentadas como uma maneira de incentivar a
denúncia e combater a impunidade, retratando-se como defensores do combate à
violência contra as mulheres.
Somos aqui a minha bancada, aqueles que eu represento da direita, os conservadores,
defendem com unhas e dentes punições exemplares para esse tipo de crápula, pra esse
tipo de sujeito que comete uma violência dessa contra uma mulher” - ‘não vejo clamor
dessa “parte” da tribuna quando os criminosos traficantes estupram as mulheres”
(Vereador 1), (Grifos nossos).
[..] O projeto se desvia do foco da violência contra a mulher para uma propaganda pelo
aborto; o projeto foca no aborto e não na repressão e combate ao criminoso. Na nossa
emenda colocamos procure uma delegacia mais próxima… o que nós defendemos é a
punição, que a mulher seja amparada… quem é a favor da castração química dos
estupradores. O que queremos com a emenda é combater o criminoso, estimular a
denúncia; a denúncia que estimula a prevenção. (Vereador 1), (Grifos nossos).
Contudo, durante o processo de votação, estereótipos e preconceitos de
gênero foram evidenciados nos discursos e posicionamentos através do frequente
questionamento sobre a credibilidade das mulheres. Essa falta de confiança na
palavra da vítima é um dos grandes obstáculos que as mulheres enfrentam ao
realizar a denúncia nas delegacias e demais órgãos públicos.
”Se é Bolsonaro ou se é Lula tem que respeitar o presidente que baixou a portaria… nós
estamos falando o seguinte a partir do momento que a pessoa denuncia um estupro tem
que ir pra polícia; tem que fazer o IML, não adianta chegar em uma clinica ou hospital “eu
fui vítima de estupro, tira aqui o meu filho, não é assim que funciona, isso não é bagunça,
110 | Gênero, violência e estruturas de poder
sou contra qualquer violencia , mas não pode chegar em qualquer unidade de saúde e
tirar o seu filho… imagina uma mulher que tem problema com seu marido ou namorado e
depois você reconhece que foi de um namorado. e aí, o médico é preso… não é um estupro
de um namorado… por isso tem que passar por uma delegacia porque qualquer estupro
tem sinais; […] não é por isso que vamos autorizar qualquer mulher que chegar e falar
que é vítima de estupro ter direito, isso tem lei, tem uma portaria” (Vereador 2), (Grifos
nossos).
A partir do momento que um mulher for no setor publico fazer um aborto vai aumentar
ainda mais a violência… mediante a comprovação da a violência contra as mulheres e
valorizar cada vez mais a vida das nossas crianças que podem nascer . vocês são contra
isso, nós queremos a vida, nós queremos o bem. Sou contra o aborto, principalmente de
uma mulher que queira fazer sem comprovação nenhuma que foi de um estupro”
(Vereador 2), (Grifos nossos).
Apesar da legislação brasileira considerar estupro de vulnerável o ato sexual
com menores de 14 anos, um vereador chegou a sugerir a possibilidade de crianças
mentirem sobre casos de estupro.22
[…] vocês imaginam se qualquer pessoa , qualquer mulher, qualquer adolescente e hoje
em dia qualquer criança depois de ter tido uma relação consensual ou não, estuprada ou
não, vai a um hospital e diz eu fui estuprada como é que vai saber se foi estupro ou não.,
então existe legislação própria pra isso.” (Vereador 3), (Grifos nossos).
Além disso, foram veiculadas informações incorretas sobre o acesso ao
aborto legal e outras legislações, alegando que o aborto só é permitido em casos de
estupro através de autorização judicial, tendo como exigência a realização de exame
de corpo de delito e boletim policial. Assim, segundo a argumentação destes
vereadores, o PL 442/17 gerava desinformação ao afirmar que não é necessário
fazer uma denúncia na delegacia para receber atendimento médico e insegurança
aos médicos para a realização do procedimento.
22
BRASIL. Código Penal Brasileiro. Art. 217 A. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 10 mar. 2024.
Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 111
[...] é lei, precisa passar pelo IML antes de autorizar o aborto, então não podemos ter uma
informação que causa uma desinformação, […] senão todas as mulheres que tiverem
problemas, que não querem mais seu namorado, seu marido quem quer que seja e vai
chegar em um posto de saúde, hospital e querer fazer um aborto” (Vereador 2)
A gente tem falado muita da mulher que comete é acometida por estupro […] Todos nós
unanimidade somos contra e quem comete estupro tem que tá na cadeia […] uma questão
que quero levantar é sobre a situação do médico,.. que vai lá e retira o feto da mulher,
comete o aborto e aí é constatado que não ocorreu um estupro. Como vai ficar esse
médico que cometeu um crime… quem vai defender o médico, quem estará ao lado do
médico, quem pensa na segurança do médico, como ficará a questão do médico.. já que
é lei todos que são vítimas de etupro a ir na delegacia prestar queixa…. pra prender… mas
não pode se ficar autorizado a qualquer uma q chegar lá foi vítima de estupro e se ela
não foi, como é que fica esse feto, ´tirou vida, foi contra a família, como como fica a família
e como fica o médico. .. por isso sou contra o aborto. Agora quando é cometida uma
violência um estupro aí sim. Sou a favor da mulher tirar por um estupro, violência mais
não pode ser assim. Qualquer tipo de aborto sou contra, a não ser por violência e estupro.
Contra o aborto, pela família e pelo nosso Rio de Janeiro” (Vereador 2), (Grifos nossos).
Dentre as tentativas de fundamentar legalmente essa argumentação, foram
mencionadas: (i) a Portaria 2561/20 do Ministério da Saúde, que instruía médicos,
profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde a acolherem
as vítimas e a comunicarem à autoridade policial em casos que houvesse indícios ou
confirmação de violência sexual. Esta portaria foi emitida pelo então Presidente da
República Jair Bolsonaro com o intuito de dificultar o acesso aos casos de aborto
previsto em lei e já estava revogada na época da votação do PL 442/17; (ii) a Lei
12845/13, que trata do atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação
de violência sexual, foi mencionada de forma manipuladora. A Lei 12845/13
estabelece o atendimento imediato e obrigatório às vítimas de violência sexual na
rede pública de saúde, e embora o auxílio ao registro de ocorrência seja citado como
uma das diretrizes no próprio serviço de saúde, não é uma condição para o
atendimento.
O atendimento imediato, obrigatório em todos os hospitais integrantes da rede do SUS,
compreende os seguintes serviços: III - facilitação do registro da ocorrência e
112 | Gênero, violência e estruturas de poder
encaminhamento ao órgão de medicina legal e às delegacias especializadas com
informações que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da
violência sexual.23
Durante a votação, tornaram-se evidentes os posicionamentos conservadores
e a estratégia de desviar o foco do debate sobre o PL 442/17 para um embate
ideológico a favor ou contra o aborto, com o propósito de dificultar o acesso das
vítimas de violência sexual ao aborto, já garantido por lei.
[...] simplesmente é um projeto ideológico, tanto é que o atual governo retirou o Brasil da
declaração internacional contra o aborto. o único e exclusivo objetivo desse projeto é que
se estimule o aborto… o povo tá de olho nessa casa, hoje o povo vai saber quem é contra
e quem é a favor do aborto. (Vereador 4) Grifos nossos
Aqui não existe nenhuma questão pessoal, a nossa questão aqui é ideológica e existem
pautas que são inegociáveis, existem pautas que são eternas e o assunto a favor da vida
sempre será eterno e nós sempre discutiremos a favor da vida… votar um projeto desse
estimulando o aborto é votar a favor do aborto e nós não negociamos isso. Por isso o
nosso posicionamento é conservador, é em relação a família, eu sou família, não negocio
a vida, não negócio sobre pedofilia, não negocio nada contra a vida. (Vereador 5), (Grifos
nossos).
Votação como a de hoje é extremamente importante porque mostra cada um da casa
como pensa,... porque eu não tenho a menor dúvidas, que daqui a 1 ano e meio anos nas
eleições que se aproxima, todos os vereadores ou a sua grande maioria dos que aqui
estão vão às ruas pedir votos e vão pedir votos dentro da base da direita, dentro da base
conservador e é bem claro, ficar muito explicitado aqui qual é o lado de cada um, quem
defende o que, quais os princípios de cada um, o que q defende caa vereador, quais as
pautas reais de cada um… fica bem claro e é importante guardar porque os mesmos que
estão aqui contra vão pedir os votos de vocês (Vereador 1), (Grifos nossos).
a questão é bem clara, não adianta depois se esconderem atrás de rótulos… não adianta
se esconder é quem é a favor do aborto e quem é contra o aborto. não adianta ficar de
historia porque o projeto é claro, eu sou contra… é claro isso, o problema é vereador que
23
Art. 3, Lei 12845/13
Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 113
se diz contra o aborto e no projeto se posiciona de forma contrária… eu eu sou contra o
aborto e assim continuarei. eu sou contra o aborto (Vereador 2), (Grifos nossos).
quem é contra o absurdo desse projeto de lei que tá em pauta não pode ser comparado
com quem estar contra a mulher… aqui o que tá em jogo é quem é contra o aborto e a
favor vida… Nós fizemos uma emenda pelo nosso mandato um emenda pela vida... Assim
como a emenda do Rogério Amorim, […] as duas emendas são emendas pela vida… [...] e
pra derrubarmos de uma vez por todas essa possibilidade de anúncio pelas ruas pelo
aborto. Aborto é crime por isso sim a vida (Vereador 6), (Grifos nossos).
Os posicionamentos sobre o aborto também foram o foco principal destacado
nos cartazes e nas palavras de ordem das pessoas contrárias ao PL 442/17 que
estavam presentes durante a votação, com frases como "Eu voto pela Vida" e "Aqui
temos vida", "Sim à vida!", e "Aborto não". Além disso, foram empregadas frases e
símbolos religiosos, como "Viva Cristo Rei!", chegando até mesmo a ocorrer uma
oração.
Adicionalmente,
as
vereadoras
que
defendiam
o
projeto
foram
frequentemente interrompidas e chamadas de assassinas.
As vereadoras chegaram a denunciar os ataques sofridos durante a votação.
A vereadora Thais Ferreira declarou: “Que a gente possa fazer um alinhamento sobre
a nossa prerrogativa. Temos a polícia legislativa aqui para quem se sinta
constrangida. Não aceitaremos ser chamadas de assassinas, presidente”. Além
114 | Gênero, violência e estruturas de poder
disso, a utilização da fé e de elementos religiosos durante a votação, assim como a
presença de grupos religiosos, também foram denunciados.
o projeto é muito simples e por falar da garantia dos direitos uma delas […] um dos
direitos das mulheres já garantidos em lei, é que ela não tem necessidade de procurar
uma delegacia, de fazer um boletim de ocorrência para procurar o sistema de saúde e lá,
….se é que tá todo mundo tão preocupado assim com a informação, lá no sistema de
saúde o médico o hospital tem a obrigatoriedade de informar sobre essa violência, a
questão aqui não é sobre os direitos das mulheres, é sobre um moralismo e um fanatismo
religioso, que nada interessa em um estado que é laico (Vereadora Monica Benicio),
(Grifos nossos).
Toda essa mobilização resultou na não aprovação do PL 442/17, com uma
ampla maioria de votos, mesmo após a aprovação da Emenda 2 - proposta pelos
mesmos setores - que eliminava qualquer menção à contracepção de emergência e
aborto legal, focando apenas na denúncia do estupro. Isso mais uma vez evidenciou
o caráter reacionário e conservador dessas mobilizações, cujo objetivo era impedir o
acesso das mulheres à informação sobre seus direitos, que já estão legalmente
garantidos. A esse respeito a Vereadora Mônica Benício denunciou:
[…] eu defendi na minha orientação de votação que se votasse contrário ao projeto da
Marielle… pra garantir que não tivesse o nome da Marielle em um projeto de lei que tivesse
um texto do excelentíssimo vereador Rogério Amorim… curioso que se importante é de
fato proteger as mulheres e que elas sejam encaminhadas a delegacia e produzir
dados…sequer quem construiu o texto votou no seu texto […] o vereadores que estavam
defendendo as mulheres e que promoveu todo esse debate, vamos falar a verdade então
a igreja ligando e pressionando o vereadores e os vereadores cederam a pressão da Igreja
pra dialogar com essa base eleitoral….. eu não deito pra igreja católica, eu não deito pra
igreja evangélica, eu não passo pano para base eleitoral porque não foi pra isso que eu
fui eleita. […] Pela vida das mulheres está preocupada quem votou contrária às emendas”
(Grifos nossos).
Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 115
Considerações Finais
O estudo de caso sobre a mobilização contra a aprovação do PL 442/17
reforça os acumulos teóricos que sugerem que a legalização do aborto tem sido
utilizada como um "espantalho" moral para dificultar o acesso de meninas e
mulheres a direitos já garantidos, como as possibilidades de realização de aborto já
previstas em lei. Essa estratégia também é observada até mesmo nos âmbitos
municipais e estaduais, onde não há competência para legislar sobre a matéria.
Desta forma, é de extrema relevância acompanhar e dar continuidade às
análises sobre as articulações conservadoras sobre os direitos sexuais e direitos
reprodutivos no campo acadêmico e político, com maior atenção para as disputas
que acontecem nos âmbitos locais, Estados e municípios.
Assim, como avançar no reconhecimento dos movimentos sociais, neste
caso, em especial dos feminismos, como motores de mudança social e dos direitos
humanos. Reconhecendo a relevância das manifestações e mobilizações sociais em
torno das conquistas de direitos e da resistência aos retrocessos. Assim como, dos
resultados destes processos, como resultados de processos de lutas sociais. 24
24
DOS SANTOS, Iara Amora. O filho não é só da mãe: Luta das Mulheres pelo Direito à Creche no
Brasil. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2022.
116 | Gênero, violência e estruturas de poder
É necessário continuar promovendo a conscientização e a defesa dos direitos
sexuais e reprodutivos, buscando a efetivação e garantia de políticas públicas e
ações que respeitem a autonomia das mulheres e a garantia de seus direitos; e traçar
estratégias para a garantia do acesso a informações e serviços relacionados à saúde
sexual e reprodutiva, especialmente em casos de violência sexual25.
Com um comprometimento contínuo e uma maior compreensão das nuances
dos grupos abordados, poderemos enfrentar os desafios impostos pela atual
conjuntura conservadora e assegurar a proteção desses direitos essenciais para a
equidade de gênero e a construção de uma sociedade mais justa e cidadã.
Referências Bibliográficas
BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: Limites da Democracia no Brasil. Boitempo,
2018.
BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e Política. Boitempo, 2014.
BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia. 50 Anos de Feminismo: Brasil, Argentina e
Chile. EDUSP, 2019.
CAGETTI, Carolina. Uma luta contínua feminista: o processo de legalização do
aborto e de garantia de acesso no Brasil e na Itália. Dissertação de mestrado.
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com acordo de cooperação
internacional na Università degli Studi di Roma La Sapienza. Rio de Janeiro, 2023.
CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. Mulheres e resistência no
Congresso Nacional: radar feminista ao término da legislatura 2019-2022. 1. ed. Brasília, DF. 2023.
DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto
2016; Ciência & Saúde Coletiva, vol.22, n.2, p.653-660, 2017. Disponível em:
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09 de mar. 2024.
FEGHALI, Jandira. Aborto no Brasil: obstáculos para o avanço da legislação. In:
Cavalcante, Alcilene; Xavier, Dulce. Em defesa da vida: aborto e direitos humanos.
São Paulo: Católicas pelo Direitos de Decidir, 2006.
25
CAGETTI, Carolina. Uma luta contínua feminista: o processo de legalização do aborto e de garantia
de acesso no Brasil e na Itália. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Università degli Studi di Roma La Sapienza. Rio
de Janeiro, 2023.
Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 117
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6. A SEGREGAÇÃO URBANA E AS REDES SOCIABILIDADE DAS MULHERES NEGRAS
PERIFÉRICAS
https://doi.org/10.36592/9786554601566-06
Ana Letícia Chaves Santos
Newton Ataíde Meira
RESUMO
A segregação a qual as pessoas racializadas sofrem no Brasil são marcas de um
passado de exploração e escravidão que foi justificada pela ideologia de
superioridade dos europeus (brancos). Este texto vem apontar como as redes de
sociabilidade urbana, herdadas da cultura dos povos indígenas, ajudam essas
mulheres a exercer o direito citadino na cidade, visto que possuem dificuldades com
a infraestrutura urbana, a falta de empregos e de bons salários e a falta de políticas
públicas que as atendam. Será apontado também, como a segregação espacial
gerada pela urbanização que veio com o capitalismo para agregar valor a terra, e
assim poder lucrar com ela, levou as mulheres para as margens das cidades e fez
com que elas insurgissem atualmente nos movimentos sociais, principalmente os
ligados à moradia digna, já que os bairros empobrecidos (favelas e ocupações muitas
vezes) a qual residem possuem uma má qualidade de infraestrutura, não tendo
serviços básicos garantidos em muitos casos. Além disso tem a questão de que
muitas não se enquadram nas exigências dos programas habitacionais, devido a
terem serviços informais ou por terem um salário muito baixo, levando assim a terem
que recorrer às ocupações e favelas para morar em barracos que muitas vezes são
levantados em mutirões, fato esse que comprova a sobrevivência dessas pessoas
por meio das redes de sociabilidade.
PALAVRAS- CHAVE: Mulheres negras, segregação, redes de sociabilidade.
ABSTRACT
The segregation of racialized people in Brazil is marked by a past of exploitation and
flagellation that was justified by the ideology of superiority of (white) Europeans. This
text aims to serve as networks of urban sociability, inherited from the culture of two
indigenous peoples, helping these women to exercise their right to the city in the city,
as they have difficulties with urban infrastructure, in the absence of jobs and good
wages and in the absence of policies of public services we serve. It will also be
pointed out, as a spatial segregation generated by urbanization that I see as
capitalism to add value to land, and thus be able to profit from it, took women to the
margins of cities and made our social movements, especially those linked to life, the
way they are currently rising. worthy, since impoverished neighborhoods (often slums
and squats) where residents have higher quality infrastructure, in many cases do not
have guaranteed basic services. Furthermore, there is the issue that many do not
meet the requirements of the two housing programs, because they are not aware of
services or because they have a very low salary, thus increasing the need to go
through squatters and favelas to live in shacks that are often erected on them.
122 | Gênero, violência e estruturas de poder
collective efforts, a fact that makes up the survival of these people through social
networks.
INTRODUÇÃO
As relações sociais nascem antes mesmo da constituição da cidade, por volta
de 3.000 a.C, pois desde que as pessoas começam a viver coletivamente há a criação
de vínculos e ajuda mútua para sobrevivência. Sabe-se que as bases da sociedade e
da cidade possuem esse caráter coletivo e de parceria, no entanto esse princípio
começa a ser perdido na era medieval quando se começa a produzir excedentes e
esses são usados para a mercantilização da terra, ou seja, a terra que antes era
ocupada agora passa a ser uma mercadoria. Rolnik 1 diz que, a mudança da vila
medieval para cidade-capital de um Estado moderno é responsável por uma
mudança radical na forma de organização das cidades, sendo a mercantilização do
espaço o primeiro elemento colocado no jogo, ou seja, a terra urbana que antes era
ocupada passa a ser uma mercadoria.
Com o nascimento da questão da terra como mercadoria nasce os problemas
relacionados à moradia, que são acentuados com a cidade capitalista que visa o lucro
acima de tudo. A industrialização trouxe consigo uma valorização do capital e
portanto o consumo passa a ser o motor das cidades, portanto, tudo a ser visto de
uma perspectiva do ganho comercial. A partir disso, as pessoas empobrecidas que
antes tinham suas casas próximas às fábricas, nos centros, passam a ser
empurradas para as margens da cidades para que os centros possam passar por
uma higienização e assim ter seu espaço valorizado. Lefebvre2 afirma que o valor de
troca e a generalização da mercadoria tendem a destruir a cidade e a realidade
urbana, quando as subordina a si.
O processo de urbanização nasceu em consequência da Revolução Industrial
europeia, devido a um êxodo rural ocasionado pela busca de empregos nas fábricas
por camponeses empobrecidos, gerando uma rápida mudança urbana e tornando a
cidade um lugar caótico e desordenado. A partir disso, há uma preocupação com
1
2
ROLNIK, Raquel. O que é Cidade. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.39.
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2008. p.10.
Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 123
essa questão e o urbanismo vem para “resolver” os problemas criados por essa
urbanização, no entanto sabe-se que o urbanismo trouxe uma forma de organização
das cidades que jogavam os marginalizados para as franjas das cidades e tal
característica urbanística foi transmitida aos demais países, que tiveram uma
urbanização tardia e recente na escala temporal. No Brasil, o processo de
urbanização é recente, e também causou os problemas sociais já citados. Lefebvre3
afirma que a ideologia do urbanismo expressam todos os problemas da sociedade
em questão de espaço e transferem para termos espaciais tudo que advém da
história, da consciência.
Com o passado histórico brasileiro marcado pela escravidão é notório que a
maior parte da população empobrecida do país seja constituída de pessoas negras e
pardas, e portanto são as mais atingidas pela segregação causada pela urbanização.
Essas pessoas foram empurradas para as margens da cidades, em áreas muitas
vezes favelizadas ou empobrecidas muito distantes dos centros, que possuem pouco
acesso a serviços básicos como o transporte. Sendo este fato um dificultador da
locomoção dessas pessoas pela cidade devido ao alto preço, a ineficiência e a baixa
quantidade de linhas. De fato, a vida urbana das pessoas racializadas
(empobrecidas) é a prova de que a urbanização das cidades foram feitas de cima
para baixo, por pessoas (na maioria dos casos homens brancos) que não conhecem
de fato as necessidades básicas da população.
Levando em consideração o fator gênero, que muitas vezes é esquecido nas
pesquisas e políticas públicas, é perceptível o aumento de dificuldades enfrentadas
nas cidades pelas mulheres, que sofrem com as demandas diárias da família e ainda
precisam trabalhar para sustentá-las. O que está exposto aqui é que a mulher além
de ter uma carga de sobretrabalho ainda possui como fator dificultador do seu dia a
dia que são as longas viagens para ir e vir de seus trabalhos. Além disso, ainda é
preciso enfrentar transportes cheios, atrasos e não raro importunação sexual tanto
no percurso quanto nos próprios serviços. Outro marcador importante a ser
analisado é o de raça, visto que as mulheres negras estão em maior quantidade nos
índices de vulnerabilidade social. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Direitos
3
Id., 2008. p.43.
124 | Gênero, violência e estruturas de poder
Urbanísticos, em 2018 63% dos lares chefiados por mulheres negras estavam abaixo
da linha da pobreza.
DESENVOLVIMENTO
Castel apud Oliveira e Fialho afirmam que a sociabilidade determina as redes
das quais são criados e estabelecidos espontaneamente os laços que por sua vez
são fruto de conexões que os indivíduos possuem entre si. Para eles há uma
diferenciação entre dois tipos de rede de sociabilidade, a primária que faz a conexão
de membros a um grupo a nível familiar, de vizinha, dentre outros, que concebem
redes de interdependência sem mediação de instituições. A secundária produz uma
forma mais presente, sendo que é essencial a existência de finalidades e atividades
especializadas. Além dessa conceitual, também é importante falar sobre a
consistência dessas redes, ou seja, o quão elas podem ser fortes e fracas e o que
isso tem de consequência para a sociedade.
A cidade é dinâmica e está a todo tempo em disputa, os usos direcionados por
uma lógica capitalista faz com que a população reaja e tenha alguns tipos de
contrausos. Este tipo de reação social é normalmente empregada pela parcela da
população que encontra-se em bairros onde há uma carência de infraestrutura
urbana e social, isso faz com que as relações coletivas supra essa falta que as
políticas assistencialistas. Este tipo de ação geralmente é aplicada a espaços
públicos, no entanto o que está sendo retratado nesse texto vai além dessa
dimensão, os espaços privados também cumprem essa função quando as relações
de sociabilidade criada entre as pessoas vem cumprir uma demanda que o governo
não cumpre.
Nota-se que a função social da cidade não está sendo respeitada pois o que a
move é a perspectiva de lucro, este aspecto é fruto do sistema capitalista que através
do discurso liberal vem disseminar a ideia de meritocracia e esforço. Ou seja, levando
em consideração essas falas, o empobrecimento histórico de pessoas negras
levando a uma restrição de acesso a melhores trabalhos, a educação e a melhores
condições de vida não são fatores que as impedem de ascender socialmente. Com
este tipo de ideologia, a sociedade capitalista tira a responsabilidade das mazelas
Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 125
sociais causadas pelo seu sistema e traz para o próprio sujeito um protagonismo
sobre a sua situação social, sendo este responsável por sua pobreza ou riqueza, sem
que fatores sociais e externos influenciem.
As mulheres negras, são vítimas de um duplo preconceito herdado de um
passado de escravidão, onde eram submetidas a trabalhos forçados e pesados,
sendo que a feminilidade delas só era usada como forma de castigo, segundo Davis4
o povo negro era visto como propriedade, e as mulheres assim como os homens eram
vistas como unidades de trabalho lucrativas, sendo que para seus senhores elas
poderiam ser desprovidas de gênero, Elas eram antes de tudo integralmente
trabalhadora, e só em poucas ocasioões mãe, esposa e dona de casa. Isso mostra
que essas mulheres não estavam na dimensão do privado e da fragilidade como as
brancas, elas só eram vistas como mulheres nas senzalas, onde tinham uma relação
de sociabilidade com os seus, e quando vistas pelo gênero pelos seus senhores era
de forma sexualizada.
Desde esse tempo histórico, essas mulheres não se dispunham de tempo para
cuidar dos filhos e da sua casa, e esse fato se estende até os dias de hoje, pois
mesmo após o fim da escravidão essas mulheres continuam a ter trabalhos com
longas horas e em alguns casos tendo que dormir nestes, é o caso das empregadas
domésticas que ainda hoje é um serviço que tem grande presença de mulheres
negras. Segundo o Ipea 5 92% das pessoas ocupadas com serviço doméstico são
mulheres, sendo 65% dessas negras, a partir disso sabe-se que mesmo com a
conquista das mulheres em espaços que antes não poderiam ser ocupados. grande
parte das mulheres racializadas permaneceram ocupando subempregos que por sua
vez geram baixos salários, com isso a situação delas permanecem e
consequentemente elas e seus familiares continuam a ocupar os bairros
marginalizados nas franjas das cidades.
4
5
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 1 ed- São Paulo: Boitempo, 2016. p.24.
Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf>. Acesso em: 23 de julho, 2023.
126 | Gênero, violência e estruturas de poder
Gráfico:Pessoas em Ocupações Informais
Fonte: Agência IBGE Notícias6
A partir desse gráfico, pode-se concluir que que a população racializada
inserida em ocupações informais é maior que a população de brancos, isso se deve
a uma herança do passado de exploração e pobreza a qual foram submetidos. Essas
áreas possuem uma carência de serviços básicos, como tratamento de esgoto, coleta
de lixo e além dessas creches e escolas primárias, fazendo com que para que acesso
a esses serviços a população desses locais tenham que procurar fora da sua área.
Muitas vezes essas pessoas não conseguem tê-los mesmo que procurem em outras
áreas, devido a grande demanda ou ao próprio preconceito que sofrem. Grande parte
dessa população de assentamentos irregulares, estão as mulheres negras e seus
familiares, segundo dados da Agência de notícias IBGE7 56,3% da população total se
declara preta ou parda, sendo que 70% do total de pessoas abaixo da linha da pobreza
são dessa cor/raça, a pesquisa ainda mostra que as mulheres pretas e pardas foram
6
<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.> Acesso em : 22 de
Julho, 2023.
7
Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.>
Acesso em : 22 de Julho, 2023.
Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 127
as mais afetadas sendo 28,7% da população, porém 39,8% dos extremamente pobres
e 38,1% dos pobres.
A rede de sociabilidade, muito presente em relações dos povos tradicionais,
são muito utilizadas entre as pessoas empobrecidas que são vítimas de um sistema
falho e que causa grandes diferenças sociais entre ricos e pobres. Para que essas
pessoas, em sua grande parte mulheres negras, possam ganhar o sustento da família
elas precisam ir longe para achar trabalhos pois como normalmente estão no
serviços domésticos as famílias que as contratam são as de classe média e alta e
residem em bairros nobres e condomínios fechados mais perto dos centros e bem
afastados de onde elas moram, a partir disso nota-se que elas possuem grande
demanda dos serviços básicos, como escolas e creches, no entanto como esse
acesso é limitado nesses bairros essas mulheres muitas vezes contam com os
vizinhos para cuidar dos filhos e das suas casa enquanto estão trabalhando.
Essas redes de sociabilidade externas as famílias possuem grande
importância na vida dessas mulheres negras visto que grande parte delas são chefes
de família, ou seja as mulheres são a fonte de renda da família, além disso ainda
existe o fator de parte dessas famílias serem monoparentais. Portanto, a mulher é a
única provedora dessa família e além de não contar com a ajuda financeira, elas não
possuem normalmente outras presenças que possam assumir as responsabilidades
de cuidados do lar e dos filhos na sua ausência, levando assim a necessidade desses
laços que são estabelecidos nas comunidades, pois muita vezes a falta de creches e
escolas limita essas mulheres de irem em busca de trabalho por não terem quem
cuide dos filhos pequenos, já que em alguns casos nem os mais velhos possuem
idade suficiente para liderar a responsabilidade pela casa e irmãos.
Esse tipo de relações coletivas muito presente na vida de povos indígenas, não
possuem espaço na sociedade capitalista, em que tudo é definido pelo valor
agregado, até mesmo as relações pessoais são delimitadas nessa dimensão. A
cidade perde seu valor social e passa a ter um valor de mercadoria, tudo que ocorre
nela tem uma dimensão de consumo, ou seja, a cidade e suas relações são regidas
por um produtivismo. A ótica coletiva que era regida na sociedade brasileira, foi
suplantada pela colonização, que constituiu um sistema de exploração, no entanto
128 | Gênero, violência e estruturas de poder
essa relação de sociabilidade foi conservada pelos negros e povos indígenas com o
objetivo de sobreviverem a exploração. Lefebvre8 diz que:
Atribuir a crise da cidade à racionalidade limitada, ao produtivismo, ao economicismo, à
centralização planificadora preocupada acima de tudo com o crescimento, à burocracia
do Estado e da empresa, não é falso. No entanto, esse ponto de vista não supera
completamente o horizonte do racionalismo filosófico mais clássico, o horizonte do
humanismo liberal.
As desigualdades sociais sofridas pelas populações empobrecidas que foram
empurradas para as áreas marginalizadas da cidade no processo de urbanização,
que encontra respaldo no capitalismo para produzir áreas lucrativas, portanto esse
processo tem aspectos classicistas que visam uma melhoria física e social nos
bairros enobrecidos, enquanto os bairros pobres são esquecidos. Pior ocorre com as
ocupações informais, que surgem também desse urbanismo capitalista, já que o
valor agregado à terra passa a ser inalcançável para alguns cidadãos que não
possuem nem mesmo direitos garantidos através de políticas assistencialistas,
levando assim a essas pessoas a necessidade de residir em áreas de ocupação
informal e favelizadas, que possuem na maior parte das vezes uma estrutura física
degradante, devido a falta de recursos básicos para atender decentemente essa
população.
Os problemas relacionados à terra não são poucos no Brasil, nesse caso a
discussão está centralizada na dimensão urbana, mas o fato é que ocorre essas
dificuldades também na dimensão do rural. A especulação imobiliária faz com que o
preço dos lotes e imóveis cheguem a valores exorbitantes, para se tenha essa
valorização são tomadas medidas, nos bairros de classe média e alta, como o uso
melhoramento de aspectos físicos ligados como revitalização e construção de
praças e parques, além da gentrificação que é um fato empregado a fim de vender
não um imóvel mas a experiência de viver em uma área. Harvey 9 fala do caráter
classicista da urbanização, devido ao excedente ser tirado de alguém sendo o
8
9
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2008. p.75.
HARVEY, David. O direito à Cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n.29, p. 2, dez. 2012.
Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 129
controle da distribuição concentrado em poucas mãos, sendo a persistência dessa
situação de responsabilidade do capitalismo que produz o excedente, levando a uma
conexão estreita entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbanização
No entanto, nota-se com isso que tal ação possui um caráter segregatório,
visto que a oferta de empregos e salários não são as mesmas para a população. A
mulher já possui uma certa dificuldade de ter acesso à terra, quando se acrescenta
o fator raça tal situação ainda tende a piorar devido ao duplo preconceito que elas
sofrem da sociedade e da herança social de empobreciemento do povo negro. A luta
por uma moradia digna marca a luta dessas pessoas racializadas, principalmente
das mulheres negras, pois como já mencionamos estão em maior número na
condição de pobreza e extrema pobreza levando assim a residirem em lugares que
não possuem uma estrutura básica adequada. Além disso, a própria relação da
mulher com o lar é diferente da que o homem possui devido aos vínculos criados pelo
cuidado com o próprio espaço e com seus entes, levando-as a buscarem de moradias
com o mínimo de conforto para atender a demanda da sua família e dar um bem estar
a todos que estão sob seus cuidados.
A luta dessas mulheres negras por moradias com melhores condições de vida
às levaram a um protagonismo nos movimentos sociais, segundo Isaias a
centralização feminina na dinâmica de organização e sustentação diária dos
territórios é recorrente nas lutas populares por moradia ou terra. A falta de garantia
dos direitos citadinos dessas mulheres e seus familiares não se restringe apenas à
falta de moradia digna, a própria cidade é negada a eles devido ao preconceito que
sofrem por parte de moradores e frequentadores de bairros de classe média e alta.
Como faltam praças, creches, jardins em seus bairros ou nas ocupações e favelas
em que moram essas pessoas buscam esses equipamentos urbanos nos demais, no
entanto devido a dimensão capitalista e classicista já mencionada eles não são bem
aceitos, causando assim uma disputa urbana por espaços das cidades.
Além de não serem bem aceitos nesses espaços públicos devido a sua
localização em bairros elitizados, pode se pontuar também a dificuldade de acesso a
esses locais via transporte coletivo, pois há o empecilho do valor da passagem e
também a questão do próprio tempo para lazer que falta principalmente as mulheres
empobrecidas, que em sua grande parte são negras, devido a carga de trabalho fora
130 | Gênero, violência e estruturas de poder
do lar ser grande e ainda terem o tempo de deslocamento que são extensos e em
condições precárias por terem excesso de passageiros, horários e frotas reduzidas.
Após todo esse tempo e esforço essas mulheres ainda possuem obrigações no seu
próprio lar, que gera um sobretrabalho a elas e faz com que o tempo de lazer ou
mesmo de ócio seja quase inexistente sendo portanto mais um fator de exclusão
dessas mulheres de espaços públicos, que fere o direito à vida citadina delas e as
deixa reféns de um uso da cidade exclusivamente na lógica do trabalho.
As redes de sociabilidades já citadas nesse texto agem como forma de reação
dessas pessoas marginalizadas, pois além de darem apoio para que as crianças
tenham onde ficar para que as mães possam trabalhar, elas também promovem
mutirões para levantar barracos, mutirões para trazer melhorias para seu bairro. Isso
mostra que por mais que a cidade seja excludente e desigual, as pessoas que sofrem
dia a dia com essas questões criam formas para sobreviver em meio a essa dimensão
capitalista que visam o lucro a todo o custo e esquecem de fazer valer a dimensão
social que a cidade deve ter. Levando em consideração raça, é notório que grande
parte dessa população que precisam usar de contravenções para sobreviver a cidade
são negras e portanto fica claro que as cidades brasileiras são herança da
colonizção, em que as pessas brancas herdaram ou ganharam a posse de terras,
enquanto os negros foram marginalizar-se precariamente nas bordas das cidades
após os anos de escravidão.
As dificuldades enfrentadas por mulheres negras na sociedade capitalista a
qual estão inseridas, não ocorre apenas em grandes cidades e metrópoles, o
preconceito e o racismo as perseguem também em cidades médias e pequenas, por
terem menos opções de empregos e a infraestrutura das cidades serem mais
carentes, é possível que elas tenham ainda mais dificuldades, devendo contar muito
mais com as redes de sociabilidade que construiu ao longo dos anos. A cidade de
Montes Claros, localizada no Norte de Minas Gerais, é caracterizada como cidade
média, sendo esta uma cidade universitária que recebe estudantes da região e
também do suldoeste da Bahia, com isso é notório que a cidade possui uma grande
quantidade de escolas e universidades, no entanto a cidade é quadro de diferenças
sociais e segregação que as pessoas empobrecidas passam.
Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 131
Os mapas e dados que serão apresentados possuem a função de comprovar
que, as mulheres negras das médias e pequenas cidades possuem grandes desafios
para que possam ter o direito citadino delas garantidos, aqui não retratando somente
o direito à moradia digna mas também o acesso à universidade, a empregos com
melhores salários. De modo geral, essas mulheres sofrem com a falta de políticas
públicas que atinjam efetivamente a classe social a qual pertencem visto que muitas
estão na classe c e d, os programas habitacionais por exemplo não conseguem
atingir essa camada da população pois não atendem aos critérios mínimos exigidos,
pois muitas dessas não trabalham de carteira assinada, estão inseridas de forma
informal no mercado de trabalho, o que não lhes dá nenhuma garantia de direitos.
Esses empregos são a fonte de sobrevivência delas, já que com a baixa escolaridade
aliada ao preconceito que sofrem é a única solução que encontram para manter as
famílias.
132 | Gênero, violência e estruturas de poder
Mapa 1: Total de Mulheres
Fonte: Atlas Ambiental10
10
Disponível
em:
https://www.posgraduacao.unimontes.br/uploads/sites/7/2020/03/atlascompactado.pdf. Acesso em: 17 de julho, 2023.
Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 133
Mapa 2: Mapa de renda por região
Fonte: Atlas Ambiental 11
11
Disponível
em:
https://www.posgraduacao.unimontes.br/uploads/sites/7/2020/03/atlascompactado.pdf. Acesso em: 17 de julho, 2023.
134 | Gênero, violência e estruturas de poder
Mapa 3: Estabelecimentos Educacionais
Fonte: Atlas Ambiental12
Ao analisar os mapas acima, nota-se que as mulheres estão inseridas em sua
maioria nos bairros que possuem uma baixa renda per capita, sendo que nos bairros
nobres da cidade não tem o maior número de mulheres presentes. O detalhe nesses
dados é a respeito dos bairros com baixa quantidade de mulheres, como o Vilage e o
Distrito Industrial é a quantidade total de habitantes desses serem baixas, o primeiro
segundo o Atlas possui 5.553 habitantes e o segundo 12.214 desse modo quando se
12
Disponível
em:
https://www.posgraduacao.unimontes.br/uploads/sites/7/2020/03/atlascompactado.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2023.
Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 135
leva em consideração tal fator nota-se que grande parte desses bairros é constituído
por mulheres. Esses bairros também possuem a renda per capita mais baixa do
gráfico e estão muito distantes do centro, além disso o quantitativo de escolas
nesses locais é baixo.
Nota-se que grande parte das escolas estão na parte mais central do mapa,
ficando assim uma proporção bem pequena para as margens, dessa forma tomando
por base a proporção de moradores dessas regiões pode-se concluir que essa
quantidade de escolas não suprem a demanda do bairro, levando assim esses
habitantes a buscarem escolas em outras regiões da cidade. Quando surge essa
demanda de ter que sair do bairro em busca desses serviços básicos, surge a
demanda de transportes, que nesses casos não possuem uma quantidade grande de
frota e nem de horários. Outra problemática ainda nessa linha educacional é a
distância de muitos desses bairros pobres e valorizados da principal universidade
pública da cidade,e também de outras universidades públicas e das faculdades.
Outro fator que pode ser levado em consideração é a dificuldade que essas
mulheres residentes nessas margens da cidade possuem é a de chegar nos serviços,
muitas dessas trabalham nas regiões mais próximas do centro, nos condomínios
fechados e nos bairros nobres. Os ônibus urbanos que fazem a linha para essas
regiões são poucos rodando apenas de hora em hora e aos fins de semana não
circulam, além disso eles não possuem uma linha que saiam desses bairros das
franjas das cidades e vão diretamente para essa região, tendo que ir até o centro e de
lá pegar outro para esses locais. Em questões financeiras isso dificulta a vida dessas
mulheres, ainda mais as que estudam pois como não há uma integração dessas
linhas é necessário ter o dinheiro para quatro passagens por dia. Esses fatores
diminuem a possibilidade dessas mulheres e seus familiares a entrarem na vida
acadêmica, pois além do preconceito que já os afastam desses locais ainda tem a
questão financeira, que como mostra o mapa muitas mulheres se localizam em áreas
com uma renda muito baixa, ou seja, essas estão inseridas na linha da pobreza.
Gonzales 13 fala que o mito da democracia racial tem funcionado na escala
pública e oficial, o branqueamento define os afro-brasileiros na escala privada e em
13
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro Latino Americano. 1 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2020. p.61.
136 | Gênero, violência e estruturas de poder
mais duas esferas. Esse mito da democracia é falado pois após algumas políticas
inclusivas como a de cotas nas universidades, a reserva de vagas em concursos,
ainda há uma ideologia de superioridade da população branca em relação à negra.
Quando se acrescenta à discussão o gênero, este fato fica pior, pois faltam políticas
de permanência dessas mulheres nas escolas, visto que muitas precisam trabalhar
e atender a demanda familiar ficando os estudos em segundo plano. Pode-se
perceber essa exclusão quando mencionamos acima a dificuldade que essas
mulheres têm de acessarem a cidades, no caso de Montes Claros, como a falta de
infraestrutura urbana adequada interfere nos direitos citadinos dessas mulheres, e
também os fatores econômicos, visto que as passagens de transporte público
possuem valores altos e possuem uma defasagem nas conexões. Além disso, a
questão econômica também está ligada à especulação imobiliária da cidade que
empurrou essas pessoas empobrecidas para as franjas da cidade, para que houvesse
uma valorização das áreas mais próximas do centro.
CONCLUSÃO
A segregação sofrida pelas pessoas racializadas ainda está presente na
sociedade, mesmo com o mito da democracia racial é notório o preconceito e as
marcantes diferenças sociais. Este fato torna-se pior quando acrescenta-se na pauta
a questão de gênero, pois as mulheres negras são vítimas de um duplo preconceito,
que muitas vezes é cometido até mesmo por homens negros e mulheres brancas.
Isso ocorre devido a inferiorização sofrida pelas mulheres por parte dos homens e
devido ao racismo, que é nutrido ainda por uma ideologia de superioridade dos
brancos .
Essas demandas sociais mencionadas no texto que não são supridas pelos
governos, fez com que as redes de sociabilidade muito usadas na cultura dos povos
indígenas fossem inseridas na vida dessas mulheres por meio da vida em
comunidade nas ocupações e favelas, onde o objeto é uma autoajuda dos moradores
a fim de sobreviverem na cidade capitalista, que prega o produtivismo e o lucro a todo
custo. A vida citadina dessas mulheres e seus familiares são feitas através de
contravenções, ou seja, mesmo com as dificuldades, falta de infraestrutura, falta de
Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 137
empregos com salários dignos e falta de políticas que atendam essa população eles
ainda solucionam os problemas com o apoio da própria comunidade para que
possam usar a cidade.
A urbanização classicista e segregadora, é fruto do capitalismo e reafirma a
cada dia o objetivo principal da cidade que é o consumo. Com isso, a população negra
empobrecida devido a histórica exploração foi desde o início empurrada às margens
da cidade para que seus assentamentos e ocupações não atrapalhasse a
especulação imobiliária das áreas que seriam enriquecidas da cidade. A situação das
mulheres negras atualmente é de grande empobrecimento, sendo que boa parte
delas estão na linha da pobreza extrema e pobreza, fato herdado dos tempos de
escravidão em que elas quando não trabalhavam em serviços braçais, trabalhavam
como empregadas domésticas, tarefa essa que continua sendo a fonte de renda de
grande parcela delas, permanecendo assim os baixos salários e a necessidade de
viver em favelas e ocupações onde a especulação imobiária ainda não toma conta.
Quando se analisa cidades médias e pequenas, não há uma melhoria nas
condições de vida dessas mulheres racializadas, pelo contrário, devido a um menor
investimento em políticas assistencialistas e um menor investimento em
infraestrutura. Foram analisados dados de Montes Claros-MG, onde mostra a grande
quantidade de mulheres em bairros favelizados e empobrecidos, sendo que um deles
possui quase 90% da população sendo mulheres. Nota-se que há uma tendência a
esses bairros empobrecidos terem uma quantidade maior de mulheres, e dessa
forma pode-se concluir que em sua maioria são mulheres negras e pardas, visto que
as pesquisas indicam que elas são a maioria das pessoas empobrecidas no país e
na citada cidade não faz-se diferente.
REFERÊNCIAS
ATLAS AMBIENTAL DE MONTES CLAROS/MG. Marcos Esdras Leite. Montes Claros:
Editora Unimontes, 2020. Atlas. Disponível em:
https://www.posgraduacao.unimontes.br/uploads/sites/7/2020/03/atlascompactado.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2023.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 1 ed- São Paulo: Boitempo, 2016.
138 | Gênero, violência e estruturas de poder
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro Latino Americano. 1 ed. Rio de Janeiro,
Zahar, 2020.
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2012.
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Sem Autor, Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. Instituto de Pesquisa
Aplicada. 4 ed. Brasília: Ipea, 2011. Disponível em:
<https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf>. Acesso em: 23 de julho de 2023.
7. AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O MOVIMENTO FEMINISTA: O FEMINISMO
ALCANÇA A MULHER PERIFÉRICA BRASILEIRA?1
https://doi.org/10.36592/9786554601566-07
Vitória Márcia de Freitas Oliveira
Resumo
O presente trabalho tem como objeto estudar se o feminismo e mais especificamente,
se as teorias feministas alcançam a mulher periférica brasileira. Mulheres essas que
sofrem diariamente com problemas relacionados à economia, de saúde,
habitacionais, entre outros, mas, principalmente apenas por serem mulheres. Este
trabalho mostrará, todavia, que apesar dos esforços significativos para que as
mudanças em relação à igualdade de gênero e o respeito as mulheres ocorra, a
realidade que as mesmas enfrentam diariamente, é diferente do que aquelas que
teorizam sobre o movimento feminista, uma vez que as políticas públicas são
insuficientes para que elas se sintam em segurança. Para tanto, será feita uma
conceituação do feminismo, da teoria feminista nas Relações Internacionais e a
ciência do construtivismo e pós-moderna, bem como a descrição sobre o que é a
periferia e a mulher periférica. A pesquisa será desenvolvida por meio da utilização
do método qualitativo bibliográfico, fazendo uma revisão de literaturas feministas,
das teorias feministas nas relações internacionais e relatos reais de mulheres
periféricas que discorrem sobre suas posições, além de outros autores que escrevem
sobre a periferia. Com isso, procura-se confirmar que as teorias feministas ainda não
conseguem alcançar efetivamente a mulher periférica brasileira.
Palavras-chave: Feminismo. Periferia. Mulheres. Relações Internacionais.
Abstract
The present work aims to study whether feminism and, more specifically, feminist
theories reach the Brazilian peripheral woman. Daily, these women face problems
related to the economy, healthcare, housing, among others, but mainly just because
they are women. However, this work will demonstrate that despite significant efforts
for gender equality and respect for women, the reality they face daily differs from the
theoretical discussions within the feminist movement. This is due to the insufficiency
of public policies to make them feel secure. To achieve this, the work will provide a
conceptualization of feminism, feminist theory in International Relations, and postmodern science. It will also describe what the periphery and who the peripheral
women are. The research will be conducted using a qualitative bibliographic method,
involving a review of feminist literature, theories in International Relations, and reallife accounts from peripheral women discussing their experiences. Additionally, the
work will analyze the perspectives of other authors writing about the periphery.
1
Artigo apresentado como trabalho de conclusão para a disciplina de Teoria das Relações
Internacionais, do curso de mestrado em Relações Internacionais da Universidade Federal de
Uberlândia.
140 | Gênero, violência e estruturas de poder
Through this approach, the study aims to confirm that feminist theories have not yet
effectively reached the Brazilian peripheral woman.
Keywords: Feminism. Periphery. Women. International Relations.
1 Introdução
No Brasil, a cada um dia, três mulheres são vítimas de feminicídio. A cada dois
dias, uma mulher transgênero é assassinada. A cada dez minutos, uma menina ou
mulher é estuprada e a cada hora, vinte e seis mulheres sofrem com agressão física.
Em 2022, mais de 61 mil mulheres sofreram violência doméstica, sendo essas, mais
de 65,5% pertencentes à população negra do país2. Esses fatos são apenas alguns
exemplos, entre centenas de dados encontrados sobre a condição atual da mulher
brasileira. Eles demonstram como a vida da mulher, no Brasil é frágil e pode ser
involuntariamente, interrompida a qualquer momento.
Para alguns, tais informações podem causar um misto de sentimentos
negativos, como indignação, perturbação ou fúria. Entretanto, a realidade
experienciada pelas mulheres, é de apatia, por parte de diversos setores da
sociedade, perante à absurdidade de violência, que permeia o cotidiano da vida
feminina. A partir daí, o feminismo entra como uma ferramenta para explicitar o que
se deve ser dito: as mulheres, vivendo em um sistema patriarcal e de hegemonia
masculina, estão em uma condição de dominação. E essa dominação é perpetuada
por aqueles que estão em uma posição dominante e de poder.
No âmbito das ciências sociais e no meio acadêmico em geral, é comum que
as teorias que estão emergindo e estejam em processo de construção de ideias
sejam estudadas para que se entenda as mudanças que estão ocorrendo, afinal a
construção de conhecimento é continuo. A teoria feminista, a partir dos estudos de
desconstrução do gênero, está inserida em um contexto relacionado ao terceiro
grande debate das relações internacionais, difundido a partir do final do século XX. E
atualmente no mundo, é presente a discussão acerca do movimento feminista e o
2
Dados
disponíveis
em:
<https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-efontes/pesquisa/visivel-e- invisivel-aimizacao-de-mulheres-no-brasil-4a-edicao-datafolha-fbsp2023/>
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 141
impacto que as teorias e produções sobre o tema, tem sobre os indivíduos e mais
especificamente sob as mulheres.
O objetivo do artigo é trazer a discussão sobre o papel das teorias feministas
e mais especificamente a teoria feminista para a mulher periférica brasileira: as
teorias feministas, as alcançam de fato? Utilizando como metodologia a teoria
feminista do ponto de vista ou feminist standpoint theory. Não obstante, a
problemática encontrada é a de que o movimento feminista, embora seja um
movimento que enfatiza a igualdade e a diminuição das diferenças e desigualdades
entre os gêneros, ainda é excludente, porque suas ações beneficiam e alcançam mais
as mulheres que são privilegiadas, em detrimento de uma parcela da população que
é marginalizada, excluída, e que estão em uma situação de dependência e que muitas
vezes não é ouvida e é silenciada.
Para que ocorra a explicação e análise de tais questões, o trabalho será
composto por quatro seções. Após esta introdução, será feita a contextualização do
tema, relacionando o feminismo com as relações internacionais contemporâneas,
analisando as teorias construtivista, pós-positivistas, e as teorias feministas e póscoloniais nas RIs. A terceira parte, terá como enfoque a periferia, respondendo como
a periferia é delimitada e seus aspectos caracterizadores, bem como relatos sobre a
condição da mulher periférica brasileira. A quarta e última parte traz a discussão
acerca das teorias feministas e se de fato elas alcançam a mulher periférica
brasileira, bem como a explicação sobre movimentos feministas surgidos na
periferia, e após as considerações finais.
A metodologia a ser emprega pesquisa será a indutiva, com abordagem
qualitativa por meio de pesquisa exploratória. Ela será utilizada no levantamento
bibliográfico de livros, textos, periódicos e informações em geral e de caráter
científico, que já foram publicados sobre a temática de feminismo, teoria feminista,
periferia e mulher periférica.
2 FEMINISMO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS
As mulheres têm trabalhado juntas através das fronteiras pelos direitos das mulheres
desde pelo menos a era da primeira onda do feminismo. A luta pelos direitos políticos e
142 | Gênero, violência e estruturas de poder
sociais, assim como pela paz e o antimilitarismo, uniram as mulheres nas primeiras
décadas do século XX. Em meados do século, o movimento de mulheres começou a
divergir, agrupando-se dentro de fronteiras nacionais ou zonas econômicas, enfatizando
diferentes prioridades e alinhando- se com correntes ideológicas divergente 3(tradução
da autora)4.
2.1 Teoria construtivista e o pós-positivismo
No âmbito acadêmico das Relações Internacionais, e mais especificamente
do chamado terceiro debate, destaca-se a teoria construtivista, e é a partir de sua
discussão conceitual e desestruturação de linha de pensamento teórico que as
teorias conhecidas como “pós-positivistas” irão se desenvolver. A partir daí,
podemos discutir questões acerca das teorias pós-coloniais e feministas nas RIs,
teorias estas que irão orientar o presente artigo.
Em um momento anterior a discussão das teorias pós-positivistas, a teoria
construtivista surge como um meio termo, entre à aplicação de ciências nas RIs por
meio de teorias classificadas dentro do primeiro grande debate das relações
internacionais - os racionalistas (ou realistas), que preferiam a explicação das
“relações internacionais como simples respostas comportamentais às forças da
física que atuam em objetos materiais a partir do exterior” 5 , e entre os grandes
cânones daqueles que escreveram teorias durante o conhecido “segundo debate
das relações internacionais” - os behaviouristas e ou cientificistas, que buscavam
entender o comportamento dos atores internacionais de uma forma científica,
baseando-se em metodologias experimentais para alcançar os pressupostos
científicos.
O construtivismo para Adler, é
3
Shepherd, L.J. Gender Matters in Global Politics: A Feminist Introduction to International
Relations (2nd ed.), Routledge, 2010, p. 295.
4
Women have worked together across borders for women’s rights since at least the era of first-wave
feminism. The struggle for political and social rights, as well as peace and anti-militarism, united
women in the early decades of the twentieth century. In mid-century the women’s movement began
to diverge, grouping itself within national boundaries or economic zones, emphasizing different
priorities, and aligning with divergent ideological currents.
5
ADLER, Emanuel. O construtivismo no estudo das relações internacionais: Where‘s the Power?. Lua
Nova: Revista De Cultura E Política, 1999, p. 204, 1999. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/ln/a/wtb8YfCjS5T3NsL4ZXtHnRR/?lang=pt#>. Acesso em: 27 de jun. 2023.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 143
a perspectiva segundo a qual o modo pelo qual o mundo material a forma, e é formado
pela ação e interação humana depende de interpretações normativas e epistêmicas
dinâmicas do mundo material. O construtivismo mostra que mesmo nossas instituições
mais duradouras são baseadas em entendimentos coletivos; que elas são estruturas
reificadas que foram um dia consideradas ex nihilo pela consciência humana; e que
esses entendimentos foram subsequentemente difundidos e consolidados até que
fossem tidos como inevitáveis. Além disso, os construtivistas acreditam que a
capacidade humana de reflexão ou aprendizado tem seu maior impacto no modo pelo
qual os indivíduos e atores sociais dão sentido ao mundo material e enquadram
cognitivamente o mundo que eles conhecem, vivenciam e compreendem. Assim, os
entendimentos coletivos dão às pessoas razões pelas quais as coisas são como são e
indicações de como elas devem usar suas habilidades materiais e seu poder 6.
Portanto, o construtivismo surge como alternativa para o campo
epistemológico das ciências nas RIs, aumentando o campo de discussão, para o
que poderia ser pensado de outras formas não convencionais e doravante
modernas para compreender a relação entre “agente- estrutura”, bem como a
introdução da discussão sobre como os agentes individuais constroem socialmente
essas estruturas que os “amarram”. A partir de então, os diálogos entre as correntes
teóricas clássicas e tradicionais do pensamento político tão necessários para a
discussão de questões nas relações internacionais, também passaram a dividir
espaço com novas e modernas filosofias, que hoje possuem maior abrangência
(mesmo que, atualmente ainda sutis) no campo teórico das relações internacionais,
como as discussões feitas pela teoria crítica, teoria pós-colonial, teoria pósmoderna, e teoria feminista. Assim, Adler enfatiza que
Do outro lado da divisa, pós-modernos e pós-estruturalistas (Ashley e Walker, 1990; Der
Derian e Shapiro, 1989), teóricos críticos (Cox, 1986; Hoffman, 1987; Linklater, 1989,
1996) e teóricos feministas (Runyan e Peterson, 1991; Tickner, 1992) constroem uma
filosofía da ciência relativista e uma sociologia interpretativista do conhecimento; eles
propõem que se debata a natureza das relações sociais internacionais e que se discuta
meio para seu estudo porque, no mundo social e interpretado em que (como eles o vêem)
vivemos, apenas as idéias importam e podem ser estudadas 7.
6
7
Ibid, p. 204.
ADLER, loc. cit.
144 | Gênero, violência e estruturas de poder
Após o desenvolvimento do construtivismo, a teoria pós-positivista entra em
debate. Barros argumenta que o pós-positivismo tem como característica “a crítica
à utilização de um único método nas análises de um objeto de estudo complexo
como as relações internacionais e destaca a ideia de construção social para o
entendimento do comportamento dos atores no campo da política internacional”8.
O pós-positivismo também se destaca principalmente em relação à critica ao
pensamento racionalista, pois para os pós-positivistas, o racionalismo e sua
episteme funcionava como uma forma de impor ao mundo uma “visão
epistemológica ocidental”, além disso, a metodologia pós-positivista empregada é
baseada na interpretação histórica e textual, dando ênfase na importância de que
para a produção de ciência é necessário que haja “a reflexão humana sobre a
natureza das instituições e sobre o caráter da política mundial além de
considerarem as Relações Internacionais como um conjunto de fenômenos
socialmente construídos” e os pós-positivistas tendem a ter “uma desconfiança
perante modelos científicos universais que explicam a política mundial”9. Assim,
As perspectivas pós-positivistas são de caráter fundamentalmente interrogativo. Não
se pretende a explicação do mundo, mas sim, a desmistificação de explicações já
formuladas e que hoje são entendidas como realidade sobre a qual não temos poder de
ação. Ao se tornar uma ideologia fundada em realidades reificadas, a ciência moderna
privou o ser humano da possibilidade de pensar em mudanças, como se o status quo
fosse o mundo em sua única possibilidade e nada pudesse ser feito a respeito.
Diferentemente do que a maioria dos críticos positivistas sugere, os pós- positivistas
não pretendem destruir o que fora até aqui construído, mas mostrar que como
construções sociais, outras construções podem ser feitas, mobilizando as questões
relativas ao conhecimento. Os pós-positivistas argumentam que a consciência da
prática política diária devolve para o homem a ideia de responsabilidade sobre o mundo
que ele constrói. O entendimento da política internacional como um ambiente onde a
moral não pode ser discutida tira a responsabilidade dos ombros daqueles que
8
BARROS, Mariana de Oliveira. Pós-positivismo em Relações Internacionais: contribuições em torno
da problemática da identidade. 2006. p. 14. (Flávia de Campos Mello) – Programa San Tiago Dantas
de Pós-Graduação em Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
Disponível em:
<https://www.academia.edu/5285963/TIAGO_DANTAS_DE_P%C3%93S_GRADUA%C3%87%C3%83O_
EM_RELA%C3%87%C3%95ES_INTERNACIONAIS>. Acesso em: 10 de jul. 2023.
9
BARROS, loc. cit.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 145
constroem a realidade internacional diariamente. O pós-positivismo é critico a essa
ideia10.
É nas correntes pós-positivistas que se situam as teorias feministas, as
teorias críticas, as teorias pós-modernas, as pós-estruturalistas e as póscolonialistas das relações internacionais.
As contribuições pós-modernas/pós-estruturalistas e as feministas questionam
qualquer visão logocêntrica de desenvolvimento ou de conhecimento cumulativo,
argumentando que a própria ideia de progresso – assim como qualquer outro discurso
de verdade - é composta por uma prática política que pretende privilegiar uma visão de
mundo em detrimento de outras11.
Não obstante, há de se destacar também a relação conceitual entre a teoria
feminista e a teoria pós-colonial, que pode ser feita para discorrer sobre a condição
da mulher periférica brasileira. A teoria pós-colonial enfatiza que os povos de
culturas não-dominantes, ou não- ocidentais, e que estão fora do eixo americanoeuropeu (e que recebe tanto foco nas RIs)12, também merecem ter suas questões
ouvidas bem como ter voz perante às comunidades (epistêmicas, acadêmicas e
etc)13. Portanto,
Estudos teóricos do pós-colonialismo refletem a perspectiva não hegemônica, não
ocidental de povos dominados e de culturas excluídas ao longo dos tempos pelas
principais potências. A escola pós-colonial abarca a perspectiva crítica das partes não
amplamente representadas pelos holofotes da academia do eixo americano-europeu das
Relações Internacionais. (...) Ou seja, há brados legítimos dos povos, das culturas, dos
10
Ibid, p. 61.
Ibid, 2006, p. 49.
12
MONTE, Izadora Xavier do. Gênero e Relações Internacionais – Uma Crítica ao Discurso Tradicional
de Segurança. Izadora Xavier do Monte – Brasília, 2010, p. 5, – 145 f. Disponível em:
<https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/7726/1/2010_IzadoraXavierMonte.pdf>. Acesso em: 07
de jul. de 2023.
13
Feminismos pós-coloniais são também conhecidos como anti-racistas ou anti-imperiais. A
economia é importante fator explicativo para essa corrente, mas sua principal ênfase está na
interseção entre imperialismo, colonialismo, capitalismo e racismo e a opressão das mulheres. As
mulheres do Terceiro Mundo experimentariam formas particularmente agudas de opressão por
causa dessas interrelações. As pós-coloniais desafiam a distinção entre o local e o global, afirmando
que estruturas de dominação perpassam esses níveis. (MONTE, 2010, p. 76).
11
146 | Gênero, violência e estruturas de poder
dialetos e das línguas “não universais” que precisam ser escutados até mesmo como
forma de consolidar o contraditório, ampliando o conceito de democratização analítica
das Relações Internacionais14.
Não obstante, as questões de gênero, raça e classe devem ser pensadas com
o mesmo valor e com o mesmo peso, mesmo que ocorra a priorização de alguma
em um determinado momento da análise intelectual, uma vez que elas estão, de fato,
intrinsecamente conectadas. Pode-se então, relacionar a teorias pós-colonial com
a teoria feminista, uma vez que a periferia e a mulher periférica, estão inseridas
nesse contexto de opressão de gênero e classe (e, também, muitas vezes de raça)15.
2.2 Teoria feminista nas RI
Os temas relacionados ao feminismo só começaram a ser colocados na
agenda dos debates das Relações internacionais a partir do final da década de 1980,
sendo pensados como uma alternativa para discutir questões importantes do
cenário político internacional 16 . O gênero passou a ser enfatizado como fator
importante para analisar as relações entre agentes e instituições internacionais,
entre o Estado, bem como a importância do gênero e suas implicações para a
construção do mundo atual. Castro argumenta que
O approach feminista é de natureza pós-positivista no lapso temporal do terceiro grande
debate das RI. Sendo pós-positivista, a escola feminista, como a escola construtivista e
perspectiva do sociologismo histórico, tece críticas sobre o método científico das
ciências sociais como ferramenta de operacionalidade e previsibilidade lógica. Advogam,
portanto, aspectos da teoria normativa como meio de superar as limitações do
14
CASTRO, Thales. Teoria das relações internacionais. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão FUNAG, 2016, p. 390.
15
D’ANDREA, T. Contribuições para a definição dos conceitos periferia e sujeitas e sujeitos periféricos.
Novos estudos. Cebrap, v. 39, n. 1, p. 19–36, jan. 2020. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/nec/a/whJqBpqmD6Zx6BY54mMjqXQ/?lang=pt#>. Acesso em: 01 de julho
de 2023.
16
MONTE, 2010.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 147
positivismo clássico vigente por durante as duas grandes gerações de debates teóricos
em RI17.
Além disso, Monte enfatiza que “as estudiosas feministas utilizam as análises
de gênero para desconstruir a estrutura teórica das Relações Internacionais e revelar
o enviesamento em conceitos de poder, segurança e soberania”18. Não obstante,
A inclusão do gênero como parte do campo de estudo das relações internacionais no
pós-Guerra Fria foi ponto de partida para o surgimento de um número considerável de
abordagens feministas na disciplina. Algumas delas têm ampla bagagem histórica e
caráter mais político do que propriamente um programa de pesquisa científico, como as
feministas liberais. Em comum, todas procuram nas instituições e normas do sistema
internacional explicações para a assimetria nas relações entre os gêneros e para a
construção das identidades baseadas nessa categoria; todas incluem no seu projeto
científico uma dimensão política – não apenas de superação da opressão feminina, mas
também de construção de uma ordem internacional mais justa, na qual hierarquias, de
gênero, classe ou raça não estejam presentes. A ênfase nas instituições não impede que
algumas dessas abordagens utilizem métodos empiristas, enquanto outras se
concentram na desconstrução do discurso científico tradicional – o uso do gênero como
categoria de análise continua sendo o fio de ligação entre elas 19.
Portanto, entende-se que a teoria feminista nas RIs tem como um dos
propósitos a desmistificação da relação entre o estudo de gênero e o campo político,
enfatizando que a ordem internacional tem um determinado olhar “masculino” para
lidar com questões tanto de high polítics (questões relacionadas à segurança e
defesa) e low polítics (questões relacionadas à economia e sociais). Assim, a teoria
procura que seja repensado o “olhar hegemônico-dominante masculino” para
estudar e explicar tais questões20, e também,
A teoria feminista pós-moderna lida com a constituição das relações internacionais por
gênero. Argumenta que as relações internacionais são resultado de um discurso
17
CASTRO, 2016, p. 405.
MONTE, 2010, apud True, 2005, p. 05.
19
MONTE, 2010, p. 35.
20
CASTRO, 2012.
18
148 | Gênero, violência e estruturas de poder
hegemônico masculino e que, consequentemente, "qualquer assunção de 'realidade' que
negue, sub-represente ou mesmo re-[a]presente as mulheres devem ser plenamente
contestadas e, portanto, radicalizada” 21.
A partir do explícito, o artigo fundamenta-se a partir da abordagem de
pensamento da teoria do ponto de vista feminista ou Feminist standpoint theory. A
teoria do ponto de vista feminista é uma vertente da teoria feminista “que enfatiza
a legitimidade e a autoridade da experiência e argumenta que as mulheres têm
acesso exclusivo a um tipo particular de conhecimento e experiência em virtude de
sua feminilidade22, tradução da autora23”.
Além disso, a teoria coloca menos ênfase à experiência individual dos grupos
socialmente construídos do que nas condições sociais dos mesmos 24 . Não
obstante,
A teoria do ponto de vista feminista tem uma compreensão explicitamente crítica do
estado como um conjunto de práticas patriarcais que apoiam, mas silenciam, as
desvantagens estruturais que as mulheres enfrentam. Crucial para colocar a crítica do
feminismo ao estado patriarcal é a separação histórica da esfera pública e privada, com
as mulheres localizadas na última, enquanto os homens seriam os governantes do
público, bem como da família patriarcal. Para trazer à tona as implicações do estado
patriarcal, deve-se, segundo o ponto de vista do feminismo, mudar o estudo de estados
abstratos para como mulheres vivas reais são impactadas por estruturas econômicas e
de segurança dentro e fora das fronteiras do estado. Isso envolve uma dupla mudança
de foco das principais relações internacionais e do feminismo racionalista, na medida em
que se move de estados para gênero e de estruturas abstratas para indivíduos concretos.
As feministas do ponto de vista argumentam ainda que se deve focar em particular nas
21
RUNYAN, A. S; PETERSON, V.S. “The Radical Future of Realism: Feminist Subversions of IR Theory”.
Alternatives: Global, Local, Political, vol. 16, no. 1, 199, p. 100. JSTOR. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/40644702>. Acesso em: 06 de jul. de 2023.
22
SHEPERD, 2010, n. p
23
That emphasises the legitimacy and authority of experience and argues that women have unique
access to a
particular kind of knowledge and experience by virtue of their femininity.
24
COLLINS, Patricia Hill. Comment on Hekman‘s "Truth and Method: Feminist Standpoint
Theory Revisited": Where‘s the Power?, Signs: Journal of Women in Culture and Society,
The University of Chicago Press, v. 22, ed. 2, 1997, p. 375-381. Disponível em:
<https://www.jstor.org/stable/pdf/3175278.pdf?casa_token=DYN4sgAPGIAAAAA:dCEduhKj0JENI_7
Ju_V8aEJlHgLols1X6nCl7IaRl9qlsCwLu4ORFOC31pvsb8MaKUeduW8_T8sIwnMheOpUsTHYe_IvJcE2
ZxoftB6pidIImxzWY>. Acesso em: 07 de jul. de 2023.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 149
mulheres marginalizadas, pois elas são particularmente desfavorecidas, mas
25
sistematicamente negligenciadas, tradução da autora .
Além disso, o feminismo liberal argumenta que a opressão das mulheres é
causada pelas barreiras legais que o Estado impõe, impedindo-as de terem seus
direitos individuais assegurados. Assim, o Estado é o principal agente para
promover a igualdade entre os gêneros e a maior autoridade para garantir os direitos
essenciais da mulher26. Portanto,
Qualquer que seja sua classificação racial/étnica, os pobres como um grupo enfrentam
barreiras semelhantes em questões básicas de sobrevivência. Nesse sentido, a teoria do
ponto de vista parece especialmente adequada para explicar as relações de raça e/ou
classe social porque esses sistemas de poder compartilham estruturas institucionais
semelhantes27.
Logo, o Estado não tem ações e políticas pontuais tendo em mente que as
mulheres são o grupo que mais sofrem com os problemas enfrentados pelas
pessoas que vivem nas periferias.
Relacionando a logica das teorias feministas mais tradicionais, percebe-se
que o debate acerca das causas “pró-feministas” ainda são operados dentro de uma
estrutura excludente e de privilégios. Quem tem voz perante à comunidade
internacional, que tem condições de irem a protestos e eventos feministas e liberais,
que podem debater e estarem presentes no movimento e na produção das teorias
feministas? A comunidade internacional. E essa comunidade é composto
principalmente por mulheres, brancas e europeizadas ou norte-americanas, de
25
Feminism has an explicitly critical understanding of the state as a set of patriarchal practices that
support, yet
silence, the structural disadvantages that women face. Crucial to standpoint feminism’s criticism of
the patriarchal state is the historical separation of the public and the private sphere, with women being
located in the latter whilst men would be the governors of the public as well as the patriarchal family.
In order to bring out the implications of the patriarchal state, one should, holds standpoint feminism,
shift the study from abstract states to how real living women are impacted by economic and security
structures within and across state boundaries. This involves a double shift of focus from mainstream
IR and rationalist feminism in that it moves from states to gender and from abstract structures to
concrete individuals. Standpoint feminists argue further that one should focus in particular on
marginalized women as these are particularly disadvantaged, yet systematically overlooked.
26
Monte, 2010.
27
COLLINS, 1997, p. 378.
150 | Gênero, violência e estruturas de poder
classe média alta, que tiveram acesso a todos os privilégios que suas classes
sociais permitem. A partir de então, entende-se que a periferia muitas vezes não é
incluída neste debate, nos debates acadêmicos e filosóficos sobre temas do
feminismo. A teoria feminista do ponto de vista surge como uma possibilidade de
dar voz e “lugar de fala” das mulheres periféricas, uma vez que prioriza as
experiências individuais de corpos femininos marginalizados.
3 A PERIFERIA E A MULHER PERIFÉRICA BRASILEIRA
3.1 O que é a periferia?
A periferia discutida aqui é entendida como um lugar ou lugares (espaciais e
geográficos) relacionados ao espaço urbano e social que existem nas cidades
(principalmente de países que tem problemas de subdesenvolvimento econômico),
e enfrentam problemas coletivos de precarização por diversos fatores, sejam eles
por questões habitacionais, de violência sistêmica, dependência econômica, falta
de acesso à serviços básicos como educação e saúde pública, etc).
Ivo argumenta que a periferia é o lugar que expressa criticamente a crise
urbana, as desigualdades sociais existentes nas cidades do país, bem como o
reflexo da precarização urbana28. É “um lugar de vivência contraditória de amplos
segmentos populares adensados pela expansão imobiliária e pelo disciplinamento
do espaço urbano promovido poder público”29. A periferia é, na linguagem popular,
“um lugar gente pobre” e “um lugar afastado dos centros e da parte desenvolvida
da cidade”.
Entretanto, a periferia ao mesmo tempo não é apenas um lugar, mas também
representa uma cultura, a cultura dos povos marginalizados, que estão em posição
subalterna e que muitas vezes são subjugados.
28
IVO, Anete B. L. A PERIFERIA EM DEBATE: questões teóricas e de pesquisa. CADERNO
CRH, Salvador, v. 23, ed. 58, 2010, p. 9-15. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/ccrh/a/YwrthSbRhk96YXtQXkfkQgm/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 2
de jul. 2023.
29
Ibid, 2010, p. 9.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 151
A condição de "periférico", portanto, não é natural, mas representa um ponto de vista do
"outro", ou seja, dos atores hegemônicos sobre o espaço construído e normatizado das
cidades. Contém, portanto, tensões e conflitos inerentes às perspectivas e usos distintos
atribuídos às cidades. Portanto, o periférico não se constitui num espaço apartado, mas
num lugar de resistência e também de inovação das condições de moradia e reprodução
da vida de seus moradores, na vivência da adversidade, do medo e da violência. Se, antes,
tais espaços foram analisados a partir da configuração dos mercados informais, das
lutas por moradia e pelas condições mínimas de reprodução social dos trabalhadores,
hoje a essas questões se agregam outras, que expressam vivências controvertidas,
amparadas e combinadas em normas compartilhadas de valores e disciplinamento
extremamente complexas, nas fronteiras entre a reprodução da vida, do trabalho, da
ordem e do disciplinamento do Estado, mas também da autonomia que sugerem os
novos sentidos da política, impondo a busca de novos caminhos da pesquisa 30.
Além disso, a periferia é o reflexo da exclusão, do distanciamento e
segregação de determinados grupos marginalizados pela sociedade: exclusão essa
que é reproduzida sistematicamente e principalmente pela camada da sociedade
que é considerada como “superior” ou aquela que é elitista. Não obstante, a periferia
para Jesus é
traçada pelo Estado, pelas forças que agem em conjunto com ele e pela própria
sociedade, uma espécie de linha: tênue o suficiente para se tornar invisível aos olhos de
todos, inclusive de quem se encontra nesses locais; e, em contrapartida, forte o bastante
para limitar a efetividade de políticas sociais, o fornecimento de serviços públicos
estruturais e a autonomia na vida pública desses sujeitos. Noutras palavras, reforçamse as desigualdades, ao mesmo tempo em que elas são naturalizadas31.
Portanto, a periferia carrega um sentido político, econômico e social, e que
representa a perpetuação das desigualdades sociais existentes32. Em relação à sua
dimensão demográfica, é impossível denominar ou delimitar a quantidade da
30
Ibid, loc. cit.
JESUS, Likem Edson Silva de. PERIFERIA, UM TERMO CRÍTICO: DISTANCIAMENTOS ESPACIAIS,
SOCIAIS E SIMBÓLICOS NAS CIDADES. Revista Movimentos Sociais e Dinâmicas Espaciais, Recife, v.
10, p. 58-78, 2021, p. 59. Disponível em:
<https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistamseu/article/viewFile/244989/38612>. Acesso em: 11 de
jul. 2023.
32
Ibid, 2021.
31
152 | Gênero, violência e estruturas de poder
população periférica no mundo, entretanto, por meio de pesquisas quantitativas e
levantamentos demográficos, pode- se estimar que existam mais de 200 mil favelas,
em que a população varia entre centenas até milhões de pessoas em cada uma
delas, assim, pode-se ter uma noção de que a periferia abrange milhares de pessoas
em todo o mundo.
No Brasil, a periferia surge como algo concreto em um contexto histórico a
partir do século XIX, durante a época conhecida como Brasil colonial,
principalmente no período em que os negros escravos passaram a ser considerados
“livres” e alforriados por seus senhores. Uma vez que os escravos não possuíam
mais serventia para os senhores, eles foram dispensados e em como toda história
de dominação, a reprodução sistemática de opressão apenas se transformou e
ficou encoberta. Mas será que eram livres de fato? Os mesmos não possuíam
propriedade ou terras, portanto, passaram a ocupar espaços urbanos considerados
inacessíveis, não ocupáveis e inabitáveis, afinal, era a única alternativa que tinham,
formaram-se então os cortiços e as favelas.
Além disso, pode-se considerar outros movimentos populacionais como
marcadores para o desenvolvimento da periferia como conhecemos atualmente:
“no Brasil, a construção do espaço urbano é marcada pelos intensos movimentos
populacionais do campo para as cidades e pela chegada de trabalhadores
imigrantes, principalmente para os aglomerados metropolitanos”33. Ivo argumenta
que
as metrópoles latino-americanas receberam a imigração massiva e viram crescer a
classe trabalhadora, cuja presença se manifestou na formação de subúrbios populares,
de moradias urbanas precarizadas, e nas diversas formas de lutas, às quais o Estado
respondeu, nas décadas de setenta e oitenta, com programas de urbanização popular.
Essa realidade expressava a convergência de uma modernização inconclusa, no sentido
de ter integrado parcialmente as novas massas urbanas no mercado de trabalho, mas de
modo muito limitado em termos da cidadania política e social 34.
33
34
Ibid, 2021, p. 61.
IVO, 2010, p. 10.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 153
Há de enfatizar também que utilização do termo “periférico” não substitui os
“marcadores raciais e de gênero que também explicitam as diferentes trajetórias e
opressões que são vivenciadas por determinados grupos sociais, ainda que estes
sujeitos possam compartilhar uma certa experiência urbana nas periferias e uma
dada realidade socioeconômica”35. Assim, o sujeito periférico não é caracterizado
apenas por estar em determinada localização, mas pelo poder de auto-atribuição
das características relacionadas à cultura, linguagem e costumes organizados nas
periferias36.
3.2 Problemas globais da periferia
São inúmeros os problemas que a população periférica enfrenta em seu
cotidiano. Os periféricos se encontram em risco a todo tempo, e o processo de
precarização da periferia é evidente entre diversos setores, e são relacionados a
problemas: econômicos, ambientais, sanitários, de saúde, de carência material, de
violência e segurança (como a violência doméstica, violência institucional, violência
institucional escolar), de discriminação, entre outros. Assim, “os pobres urbanos
têm de resolver uma equação complexa ao tentar otimizar o custo habitacional, a
garantia da posse, a qualidade do abrigo, a distância do trabalho e, por vezes, a
própria segurança”37.
Como argumenta Davis, é comum que nas periferias se encontre problemas
ambientais, seja pela poluição do ar (causada principalmente por indústrias
poluentes), desorganização de tráfego e trânsito congestionado, pela infraestrutura
que vive em colapso, até pela má geologia dos espaços ocupados, que muitas vezes
não suportam o contingente populacional que ali habitam38.
35
GOMES, Kátia Ramalho. Ser periférico: trajetórias materiais, perspectivas simbólicas. Le Monde
Diplomatique Brasil, Brasil, p. n. p, 14 out. 2023. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/serperiferico-trajetorias-materiais-perspectivas-simbolicas/>. Acesso em: 12 jul. 2023.
36
É importante destacar que o uso do termo “periferia” em um sentido de autoatribuição crítica pelos
próprios moradores dessas regiões não é uma prática que surgiu recentemente. Em São Paulo, na
década de 1970, mobilizações sociais nesses territórios já utilizavam expressões como o “povo da
periferia”, “mães da periferia”, “mulheres da periferia” (GOMES, 2020, n. p).
37
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo, Editora Boitempo, 1° edição, 2006, p. 82.
38
Por exemplo, “os solos lateríticos muito desgastados sob as favelas das encostas de Belo
Horizonte e de outras cidades brasileiras são catastroficamente suscetíveis a deslizamentos e
desabamentos de terra” (DAVIS, 2006, p. 340).
154 | Gênero, violência e estruturas de poder
Além disso, a falta de acesso à saúde pública de qualidade faz com que, na
periferia, seja crescente os números de pessoas com doenças crônicas, doenças
infecciosas e parasitárias (causadas pela contaminação da água e pelas péssimas
condições sanitárias), DST`s39, e até mesmo de subnutrição. A desigualdade social
presente também influencia nas questões de saúde, uma vez que problemas como
o alcoolismo, tabagismo e sedentarismo, são aumentados pelas condições sociais
e econômicas que os sujeitos periféricos estão inseridos.
“Os pobres urbanos” (...) são a interface entre o subdesenvolvimento e a industrialização,
e os seus padrões epidemiológicos refletem os problemas de ambos. Do primeiro
recebem o fardo pesado das doenças infecciosas e da desnutrição enquanto da segunda
sofrem a gama típica de doenças crônicas e sociais 40.
Neste cenário de vivência entre a precarização das condições materiais e
naturais naturalizadas na periferia, juntamente com a privação das condições
sociais básicas (ampliadas principalmente pela exclusão social e perpetuadas
principalmente pelo Estado que nega os direitos desses cidadãos), é evidente que
nesses locais, a violência esteja institucionalizada, e seja experienciada diariamente
por seus moradores.
Nestes locais, é comum que a violência seja causada principalmente pela
falta de segurança pública, e criminalidade exacerbada (causadas principalmente
pelo tráfico de drogas, roubos e posse de armas ilegais), além disso há a opressão
de gênero, violência contra adolescentes e crianças, entre outros. Não obstante, de
acordo com D´Andrea,
pontua-se aqui que existe também uma opressão territorial, sendo a periferia o polo
oprimido dessa relação de opressão. Resultante de uma produção e de uma distribuição
desigual da riqueza no espaço, a referida desigualdade se perpetua e se expressa por
39
Doenças sexuais transmissíveis, aumentadas principalmente pela falta de acesso à educação
sexual.
40
DAVIS, 2006, p. 405.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 155
meio da dominação que o polo dominante, a área de habitação das elites, exerce sobre o
polo dominado, a área de habitação dos mais pobres 41.
Todos esses fatores, perpetuam os moradores da periferia à condição de
indivíduos marginalizados.
2.3 A mulher periférica brasileira
Tão pequenina, uma linda
O sonho de vária das mãe, uma menina
Uma filha mulher pra tecer
pra trocar, pra tirar da solidão que existe lá Mães sofrem
em silêncio há tanto tempo
Nem todas tem a casa com equilíbrio no sustento As vezes
naquela mais bela mansão
Uma rotina de dor vai tecendo esse refrão Não é
emprego, nem é profissão
Mãe é mãe e a minha chora no caixão Ceis não
sabe o que é favela
Ceis nunca moraram nela
Ceis vivem as suas vidas e ainda criticam elas... as
mães...jovens, as filhas
Nascer pra ser feliz, não só pegar barriga Mãe solteira,
obesa, de periferia professora de escola pública, o alvo
do dia Filha de um preto com uma nordestina
O que pra vocês é vitimismo, pra nós, é nossa vida Abandono e
o descaso são temperos deste coração Eu prometi que ia ser
rico e cuidar dos meus irmãos Cuidar da minha irmã, agora só
em prece
Ela não tá mais aqui... é que esse mundo não te merece Eu vou
ganhar dinheiro, mãe
Porque é só assim que eles respeitam a gente
41
D’ANDREA, T. Contribuições para a definição dos conceitos periferia e sujeitas e sujeitos periféricos.
Novos estudos. Cebrap, v. 39, n. 1, p. 19–36, jan. 2020, p. 5. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/nec/a/whJqBpqmD6Zx6BY54mMjqXQ/?lang=pt#>. Acesso em: 01 de julho
de 2023.
156 | Gênero, violência e estruturas de poder
(Mas pensar assim, Kleber, não é vitória do sistema, tio?) (Da onde eu
vim, fi, sempre é vitória do sistema)
(Bairro que depende do bom prato) (E os que
nem bom prato tem?) (...)
Ceis não sabe o que é amor, ceis só sabe que é rancor Ceis não
têm dimensão do tamanho dessa dor
Uma mãe não abraçar seu filho na situação Isso é tão triste
da minha mais triste canção (...) Amor, precisamos de amor
Precisamos nos abraçar pra acabar com a dor Sorrir.
Cantar e resistir
Questionar o real motivo de tudo isso aqui
Pois abandono e o descaso são temperos desse coração 42.
A realidade diária de uma mulher periférica é a de luta e de desamparo. As mulheres
da periferia sentem diariamente o peso de não estarem inseridas em um contexto de
aparato social, (aparato este que deveria ser feito pelo Estado), quanto pela própria
estrutura em que a periferia foi institucionalizada. Além dos problemas comuns,
compartilhados pelo povo periférico943, as dificuldades econômicas, a falta de segurança e
a violência generalizada, se sobressaem na vida da mulher periférica brasileira.
Na periferia, se por um lado podemos enxergar a construção de uma identidade feminina
criada a partir do território, por outro percebemos agravantes promovidos pela falta de
direito de serviços públicos básicos como a saúde, educação, moradia e o transporte,
além de constantes violências advindas principalmente do Estado 44.
De acordo com Spivak, “a consciência de classe permanece atrelada a um
sentimento de comunidade ligado por conexões nacionais e por organizações
políticas, e não àquele outro sentimento de comunidade cujo modelo estrutural é a
42
PEQUENINA. Intérprete: Criolo, Jaques Morelenbaum, Liniker, Maria Vilani e MC Hariel.
Compositor: Criolo. In: SOBRE VIVER. Compositor: Criolo. São Paulo: OLOKO Records,
2022.faixa 8 (4:33 min). Disponível em:
<https://open.spotify.com/track/3aZy5TkQmjnVvxwaMikBAd?si=93ffbbc5ddf84854>. Acesso
em: 3 de jul. 2023.
43
Sejam eles problemas de: raça, mobilidade urbana, saúde, assistência social e etc.
44
AQUINO, De Lima C. DA GEOGRAFIA FEMINISTA À MULHER PERIFÉRICA NA ATUALIDADE. Revista
Espirales, [S.l.], p. 6–16, 2021, p. 12. Disponível em:
<https://revistas.unila.edu.br/espirales/article/view/2676>. Acesso em: 10 jul. 2023.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 157
família”45. Portanto, na periferia, o conceito de família é significativo para quando se
discute a questão de reprodução de modos patriarcais de opressão, pois muitas
vezes expressa que a mulher, precisa estar e viver naquele sistema de desamparo
social, pois ela “precisa conseguir” cuidar dos filhos, do marido, dos pais e etc.
A professora Núbia Amorim, em uma entrevista, indagada sobre a condição
da mulher periférica brasileira, argumenta que:
“Não existe opção, você nasceu mulher, preto e pobre periférica não existe opção ou você
vai pra luta e defende a sua vida ou você vai ser exterminado e você vai ser exterminado
sem ter ninguém pra lutar por você. (...) a partir do momento que nenhuma política
pública alcança essas mulheres, elas estão marginalizadas, elas não recebem nenhum
apoio de nenhum momento, o pouco apoio que chega é: eu te dou um prato de comida” 46.
Joana Ferreira Carvalho, conduz outro testemunho sobre a condição da
mulher periférica:
“Meu nome é Joana Ferreira Carvalho, eu moro no Parque Santo Antônio, tenho um filho.
Trabalho na Berrini há quinze anos na mesma empresa. E estudo no CIEJA. Tô me
realizando, tá voltando a estudar aos cinquenta anos, porque onde eu nasci não tinha
escola. Eu nasci no sertão da Bahia. Não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não
tinha não tinha ônibus, não tinha nada. Às vezes até faltava o alimento. Aí você não tinha,
não tinha escola mesmo. Não tem como você estudar. depois eu vim pra cá com os
dezenove anos eu cheguei aqui eu ia estudar aí eu fiquei fui criar meus filhos só e a minha
a minha prioridade foi cuidar dos meus filhos, trabalhar e cuidar deles. Quando eu tive a
oportunidade, que eles cresceram, eu fui trabalhar no horário que não dava. Não é todo
mundo que tem coragem, a coragem que eu tive de criar dois filhos sozinha, de ser
discriminado, você é discriminada, você é visto com outros olhos, você escuta coisas
que você que lhe assusta. Eles vão virar bandido. Eu escutei muito isso”47.
45
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte. Editora UFMG. p. 133, p. 48.
Disponível em:
<http://wisley.net/ufrj/wpcontent/uploads/2015/03/images_pdf_files_Pode_o_subalterno_falarSpivak.pdf>. Acesso em: 15 de jul. de 2023.
46
INSTITUTO CLARO. Mulheres periféricas formam rede de apoio para resistir à desigualdade.
Youtube. 15 de set. de 2021. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=ZjUm_wLXjs0>.
Acesso em: 15 de jul. de 2023.
47
NÓS, MULHERES DA PERIFERIA. Nós, Carolinas - vozes das mulheres da periferia. Entrevista com
Joana Ferreira Carvalho. Youtube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=firLn02imCM>. Acesso em: 15 de jul. de 2023.
158 | Gênero, violência e estruturas de poder
E em um lugar onde a educação sexual não é ensinada de uma forma eficaz,
que o índice de gestação na adolescência é alto, e que muitas vezes essas mulheres
são abandonas ainda gestantes ou ainda recém-nascidas, “sobra” para a mulher, o
pesado fardo de cuidar (em um ambiente muitas vezes hostil) de sua família. Restalhes então a preocupação com aqueles que elas cuidam, e o que ocorre é que muitas,
acabam não tendo a oportunidade de ter uma vida social, de cuidar de si mesmas,
e ficam presas a um ciclo entre trabalho, cuidar da família e cuidar da casa.
4 O FEMINISMO E A MULHER PERIFÉRICA
Se não nascemos mulheres, mas nos tornamo-las 48 , tornar-se mulher em
condições tão difíceis como as que se encontram em locais periféricos demonstra
ser um imenso desafio. Lidar também com o sentimento de não ser capaz ou
suficiente para poder sobreviver em um sistema que oprime a mulher apenas por
ser mulher, que faz o silenciamento dos corpos oprimidos, é exterminador. Os
oprimidos “podem falar e conhecer suas condições”49, entretanto, na realidade, não
é comum assistir mulheres periféricas falando sobre suas condições.
Dona Jacira, escritora negra e da periferia de São Paulo, em uma fala,
argumenta que a informação sobre suas condições de fato não alcança a mulher
periférica, ela diz que:
Devo dizer que assim eu assisto bem pouco os canais de televisão. Foi uma opção minha
porque eu precisava ler e buscar mais sobre a minha história. Mas no dia oito eu estava
na rua. Então todos os lugares que tinha televisão sempre estava se falando das
melhorias, “a partir do dia oito a vida da mulher vai melhorar”. Eu falei gente parece que
eu estou em outro mundo. Punha num canal e era um ministro, punha num outro canal e
era uma outra pessoa e todo mundo dizendo das coisas que nós estamos falando todos
os dias. Mas aí eu volto para o meu lugar. Jardim Brasil Novo, Jardim Ataliba Lionel, como
diz os meninos do rap, da ponte pra lá. As mulheres de lá não sabem disso. Eu conheço
toda a luta das meninas das mulheres do grupo e do meu grupo de resistência do
Iluminan. Mas isto me custa cento e trinta reais de condução. A gente não tem como
fazer essa travessia. Eu posso ir de outro meio, mas antes de tudo eu preciso que a
48
49
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,1980, p.
SPIVAK, 2010, p. 70.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 159
informação chegue aonde eu estou, e pra eu buscar esta informação, primeiro os meus
filhos tiveram que ir até lá e conseguir meios, para que eu conseguisse deslocar de um
lugar onde eu estou. A gente não aparece nas estatísticas. De manhã nos pontos dos
ônibus só tem mulheres. Não é? A gente vê os homens em várias situações, mas
quem comanda, quem vai buscar o dinheiro, quem vai trabalhar são as mulheres, mas
elas não conhecem a própria situação (RODA VIVA, 2019) 50.
Porém, alguns movimentos feministas estão conseguindo realizar, mesmo
que em passos lentos, a descolonização do conhecimento em algumas áreas
periférica que antes não tinham qualquer acesso à movimentos em prol da vida
feminina, principalmente nas periferias de cidades grandes e cosmopolitas, como
algumas regiões de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Tal descolonização seria um
meio para que as mulheres entendessem sua posição e suas necessidades
enquanto moradoras de periferia, desmistificasse conceitos relacionados ao
feminismo, e que pudesse dar mais espaço e voz para essas mulheres.
Medeiros51, fala que esse desenvolvimento do coletivo feminismo periférico
surge a partir dos movimentos artísticos e culturais na periferia, como os saraus
periféricos e o movimento de Hip-Hop. Assim,
O “feminismo periférico” é constituído por coletivos que, na maioria das vezes, se
autocompreendem como feministas e que surgem a partir do ano de 2010, por iniciativa
de mulheres jovens, nascidas nas décadas de 1980-90, sem estruturação políticopartidária e a partir do encontro entre movimentos culturais periféricos e debates sobre
feminismo nas redes sociais digitais. Suas principais práticas são de caráter artísticocultural52.
Spivak argumenta que na sociedade o subalterno não pode (ou não tem
condições) de falar, e que não há valor algum atribuído à "mulher" como um item
50
RODA VIVA. Dona Jacira sobre a importância da informação para mulheres periféricas. Youtube. 9
de março de 2021. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=6jihDD3HR3Q>. Acesso em:
08 de jul. de 2023.
51
MEDEIROS, Jonas. DO “FEMINISMO POPULAR” AO “FEMINISMO PERIFÉRICO”: MUDANÇAS
ESTRUTURAIS EM CONTRAPÚBLICOS DA ZONA LESTE DE SÃO PAULO*. Revista novos rumos
sociológicos. v. 7. n. 11. 2019.
52
Ibid, p. 302.
160 | Gênero, violência e estruturas de poder
respeitoso nas listas de prioridades globais 53 . Portanto, é necessário que as
mulheres comecem a falar sobre suas realidades e vivências, entretanto, o desafio
enfrentado é dar a oportunidade e as ferramentas necessárias para que as mulheres
periféricas falem sobre suas vidas. Esse apoio social, pode ser o primeiro passo,
para que a mulher subalterna fale.
Parece, entretanto, que o problema do sujeito emudecido da mulher subalterna, embora
não seja resolvido por meio de uma busca "essencialista" de suas origens perdidas,
tampouco pode ser determinado com o apelo por mais teoria no contexto angloamericano”54.
Porém, pode-se questionar, a teoria feminista tem esse papel? Ela precisa dar
voz à essas mulheres? Se o feminismo é popularmente conhecido como uma
oportunidade de “ação política” para que as mulheres conquistem direitos,
enquanto promotoras e agentes de mudança social, e as teorias, que falam sobre o
sistema de opressão global patriarcal, hegemônico e que trata as mulheres com
desigualdade, tem sim, como papel, fazer com que essas estruturas sejam
quebradas, modificadas e devem criar oportunidades para que essas disparidades
sociais sejam diminuídas. O papel do feminismo é abrir portas, e as mulheres
periféricas precisam desse espaço e acolhimento, para que a teoria alcance lugares
mais remotos.
Em relação a teoria feminista das relações internacionais, considerando que
a mesma, surgiu com o objetivo de poder ter um novo olhar ao se observar os
fenômenos no cenário político internacional, é imprescindível que não apena os
Estados (enquanto nações), mas que as feministas e aqueles que produzem
pesquisas científicas e trabalham para o desenvolvimento das teorias feministas,
olhem para a situação das mulheres marginalizadas e periféricas brasileiras.
Empoderar os pobres, incluindo as mulheres, de modo que eles tenham controle sobre
suas próprias estratégias de vida, certamente vale a pena lutar: uma época em que os
'pobres' são tão 'empoderados' que podem rejeitar os ditames de governança das
53
54
SPIVAK, 2010, p. 165.
Ibid, p. 116.
Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 161
instituições ocidentais será um fascinante um para viver, não menos pelas respostas das
instituições que eles rejeitam55.
Considerações Finais
O desenvolvimento deste estudo buscou apresentar de maneira breve uma
análise da relação entre feminismo, periferia e a mulher periférica brasileira, dando
enfoque para a teoria feminista do ponto de vista, com o propósito também de
levantar a discussão acadêmica sobre as condições das mulheres periféricas
brasileiras, que estão desamparadas e convivem com questões de violência de
gênero, violência doméstica, além de outros problemas no cotidiano, apenas por
serem mulheres que moram na periferia.
Não obstante, é um fato que as correntes teóricas feministas na disciplina de
Relações
Internacionais
encontram
diversas
intercorrências
em
seu
desenvolvimento e aplicabilidade. A dificuldade se encontra no assentamento da
disciplina como algo importante e que merece ter mais ênfase em seu estudo por
outras vertentes das RIs. O fato de que as teorias de gênero, as teorias feministas e
o feminismo não eram levados em questão e não eram vistas como importantes,
reflete o mundo e o sistema internacional como um sistema patriarcal, machista e
que mede seu poder por meio da opressão e violência em que vivemos por muito
tempo, afinal, mulheres sempre estiveram presentes nos conflitos, e principalmente
a partir do século XX, no desenvolvimento das teorias políticas e das relações
internacionais. As teorias clássicas lidavam, sobretudo, com questões de guerra e
paz, soberania e Estado. O feminismo só pode se desenvolver de fato dentro da
disciplina após as teorias clássicas demonstrarem estar defasadas e não terem
êxito em explicar questões atuais, do cenário político internacional. Não é à toa que
estamos estudando a todo momento sobre as mudanças. Entretanto, o debate
feminista das relações internacionais ainda é centrado no internacional.
Assim esse exercício de reflexão sobre a natureza dos Estados (que estão
inseridos no sistema internacional) e como eles lidam com os problemas
relacionados ao gênero e dão amparo às mulheres é necessário para que a realidade
55
SHEPERD, 2010, p. 229.
162 | Gênero, violência e estruturas de poder
das mulheres periféricas brasileiras, mudem. Pergunto-me qual o papel do
internacionalista e principalmente enquanto internacionalista feminista brasileira,
no papel da mudança e poder ser agente de transformação não apenas em algum
lugar ideal ou ideológico, mas de fato pela construção de novas ideologias. A
mudança está ocorrendo agora, e cabe a nós acompanhá-las.
Os centros urbanos e a classe social que habitam na periferia refletem
principalmente uma questão econômica, mas que também política. Porém, há,
principalmente entre aqueles cidadãos que são caracterizados como a “elite
econômica” a ideia de que a periferia é um lugar feio, sujo, e nominalmente horrível.
Talvez seja que de fato, a estética encontrada nos locais que estão longe do centro,
represente uma desigualdade e ou uma diferença social e econômica. Entretanto, é
na periferia que as garçonetes, as empregadas domésticas, os professores e grande
parte dos trabalhadores brasileiros, residem, existem e sobrevivem.
Todos os dias, é na conurbação periférica que milhares de pessoas se
relacionam e também participam ativamente da ordem política. E são essas
pessoas que não tem acesso à cultura, a arte, a educação e saúde de qualidade. Por
fim, a realidade é cruel e distante de uma utopia de segurança, paz e igualdade e
que é tão discutida quando se relaciona a conceitos das Relações Internacionais.
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8. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO FUNDADO TEMOR DE PERSEGUIÇÃO DENTRO
DO ESCOPO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS
https://doi.org/10.36592/9786554601566-08
Lúcia Pfeifer Cruz1
INTRODUÇÃO
Assim como o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito
Internacional dos Refugiados apresenta-se como um ramo relativamente recente no
Sistema Internacional. O contexto no qual a matéria de “refugiados” foi criada data
do Pós Segunda Guerra Mundial, uma vez que os documentos que regulamentam a
temática, quais sejam, a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967, são dessa época.
A Convenção de 1951, responsável por definir o status de refugiado, é vista
como um documento de caráter não discriminatório, uma vez que este não define em
seus critérios um gênero específico para o conceito de refugiado. Supostamente, tal
característica significaria que, sendo o solicitante de refúgio homem ou mulher, a
solicitação não seria condicionada com base no gênero. Concomitantemente, as
peculiaridades de determinado gênero, masculino ou feminino, tampouco seriam
consideradas – mesmo quando determinantemente inseridas em um contexto de
violação de direitos humanos.
A primeira questão a ser analisada aqui trata-se de que o elemento não
discriminatório não é exatamente verdadeiro quando se trata de mulheres que
tiveram experiências com perseguição por razões de violência de gênero. Para que
tal questão seja endereçada, um passo para trás deve ser dado: qualquer tipo de
violência de gênero não era considerada relevante no âmbito do Direito Internacional
até o fenômeno do Feminismo atingir uma escala global.
Nesse sentido, uma vez que a violência de gênero não é vista como uma
preocupação a ser endereçada internacionalmente, quando muito na seara
1
Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS
166 | Gênero, violência e estruturas de poder
doméstica, seu reconhecimento como fundamento para pedidos de refúgio estava
longe de ser considerado discutível por autoridades quando a Convenção de 1951 foi
redigida. Tal ausência de normativa não fez, nem faz, tal temática menos importante
ou perceptível, uma vez que a violência contra as mulheres trata-se de um problema
que sempre existiu.
Para endereçar apropriadamente a violência de gênero como uma questão que
requer atenção internacional, a perspectiva masculina e branca prevalescente no
Direito Internacional deveria ser adaptada aos movimentos feministas que
aconteciam para fins de alterar a narrativa de proteção aos direitos humanos. Para
que isso ocorresse, juntamente com o Feminismo, um movimento de acadêmicas,
pesquisadoras e advogadas de direitos humanos iniciaram um processo de crítica e
questionamento à falta de atenção existente no Direito Internacional em relação à
proteção dos direitos das mulheres.
Após a criação da CEDAW (Convenção de Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra as Mulheres) e o aparecimento de documentos de soft law que,
de certa forma, adaptaram o conceito de refugiado, inserindo a violência de gênero
como fundamento para pedidos de refúgio através da classificação de mulheres
vítimas de tal violência como pertencentes a determinado grupo social, foi possível
a alteração de um paradigma de que os direitos das mulheres seria apenas uma
questão de ordem privada e, portanto, pertencente ao âmbito doméstico.
Apenas após o surgimento do movimento feminista internacional que a lacuna
de gênero dentro do Direito Internacional dos Refugiados passou a ser questionada
e inserida no âmbito internacional de proteção aos direitos humanos.
1. A LACUNA DE GÊNERO NA CONVENÇÃO DE 1951 E NO PROTOCOLO DE 1967
A determinação do status de refugiado (Refugee Determination Status - RDS)
é demonstrada através da existência de elementos específicos, quais sejam, a
demonstração de fundado temor de perseguição em função de raça, religião,
nacionalidade, opinião política ou por tratar-se de membro de determinado grupo
social.
Lúcia Pfeifer Cruz | 167
No entanto, deve-se atentar ao fato de que os critérios para a determinação
do status de refugiado sofreu um processo de flexibilização através dos anos após
o avanço dos direitos das mulheres. Ademais, cumpre mencionar que para que a
lacuna de gênero fosse retratada no cenário da comunidade internacional, foi
necessária a realização de um processo crítico e questionador dos estáveis e
imutáveis critérios para concessão de refúgio, de forma que estes fossem adaptados
ao movimento global dos direitos das mulheres.
Ainda assim, para que tal processo seja tratado, o contexto no qual a
Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 foram criados deve ser analisado.
A Convenção relativa aos Estatuto dos Refugiados de 28 de julho de 1951 e
seu Protocolo de 1967 são os documentos legais que formam a base de trabalho do
Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Ratificados por
149 países, tais documentos definem o termo “refugiado” e seus direitos e, ao mesmo
tempo, reúnem as obrigações dos países signatários no que tange à proteção dessas
pessoas.2
A Convenção de 1951 foi redigida no contexto Pós Segunda Guerra Mundial e
tinha como objetivo proteger os cidadãos que tiveram que deixar seus territórios em
função do conflito. Já o Protocolo de 1967 expandiu o escopo de atuação da
convenção a nível global – antes havia certa limitação à proteção de cidadãos
europeus e, com o advento do Protocolo de 1967, houve uma preocupação em
aumentar a proteção de migrantes forçados no âmbito mundial, bem como
considerado que não haveria uma limitação em termos de datas ou espaços
geográficos para a aplicação das disposições da Convenção.
A ACNUR define refugiado como
“[...] alguém que é incapaz ou impedido de retornar ao seu país de origem em razão de
fundado temor de ser perseguido por razões de raça, religião, nacionalidade, por
pertencer a determinado grupo social ou por opinião política.”3
2
UNHCR, United Nations High Commissioner for Refugees, https://www.unhcr.org/1951-refugeeconvention.html#:~:text=The%201951%20Refugee%20Convention%20and,of%20States%20to%20pro
tect%20them, 2019
3
ACNUR, Texto da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, pág. 03, 1951
168 | Gênero, violência e estruturas de poder
A Convenção de 1951 também possui várias garantias contra a expulsão de
refugiados, sendo necessário citar a importância do princípio de non-refoulment, o
que implica que nenhum Estado pode expulsar ou devolver um refugiado contra a
sua vontade para o território no qual ele ou ela teme por ameaças a sua vida ou
liberdade4. A razão pela qual tal princípio existe se dá pelo comprometimento em
proteger a vida humana dos refugiados, sem a opção de devolve-los ao contexto de
abuso e vulnerabilidade dos quais escaparam.
Paralelamente ao desenvolvimento de uma consciência internacional no
contexto de proteção aos refugiados, alterações começavam a surgir no âmbito
internacional em termos de direitos das mulheres. Ao fim dos anos 1970, a
Convenção pela Eliminação de todas as Formas de Violência contra a Mulher
(CEDAW) foi criada e reconhecida como a Convenção dos direitos humanos das
mulheres. A CEDAW foi determinante, juntamente com o movimento feminista que
emergia à época, para o reconhecimento da importância de uma perspectiva de
gênero dentro do Direito Internacional e do Direito Internacional dos Refugiados – ou
mais especificamente, a percepção de uma lacuna de gênero existente no conceito
de refugiado desenvolvido pela Convenção de 1951.
A criação da CEDAW foi responsável pelo início de vários eventos referentes
aos direitos das mulheres que foram capazes de enfatizar a ausência de uma
abordagem de gênero no âmbito do Direito Internacional. A referida Convenção deu
início a uma série de conferências de nível global que trataram de questões
concernentes ao papel da mulher e seus direitos, tais como: I Conferência Mundial
sobre Mulheres, “Igualdade, Desenvolvimento e Paz” (México, 1975); II Conferência
Mundial sobre Mulheres, “Educação, Emprego e Saúde” (Copenhague, 1980); a III
Conferência Mundial sobre Mulheres, “Revisão e Avaliação das Conquistas da
Década para Mulheres pelas Nações Unidas”, (Nairóbi, 1985), IV Conferência Mundial
sobre Mulheres, “Ações por Igualdade, Desenvolvimento e Paz” (Pequim, 1995).
Mesmo sendo a definição de refugiado neutra em termos de gênero, a lacuna
existente na Convenção de 1951 pode ser referida pelo fato de que acadêmicas
feministas, por muito tempo, destacaram a falha em reconhecer e proteger mulheres
4
UNHCR, Text of the 1951 Convention Relating to the Status of Refugees; 1951
Lúcia Pfeifer Cruz | 169
de formas de dano relacionadas a sua condição de gênero em nível internacional 5.
Tal crítica feminista resta no fato de que a definição de refugiado reflete a filosofia
da época em que foi redigida no que tange à proteção de direitos humanos. Dessa
forma, a evolução referente às normativas sobre o tema foi desenvolvida através da
percepção de que solicitações de refúgio eram, majoritariamente, realizadas por
homens – o que implicaria que estes eram (ou ainda são?) os agentes principais de
resistências políticas e os que seriam dignos de proteção internacional contra
perseguições6.
A definição de refugiado na época da Convenção implica que as atividades
políticas
inseridas
na
esfera
pública,
a
qual
trata-se
de
um
espaço
predominantemente masculino, seriam mais legítimas de proteção do que atividades
associadas a mulheres, que eram vistas como pertencentes à seara privada 7 .
Crawley (2016) vai além e refere que
O Direito Internacional moderno, incluindo Direito Internacional dos Direitos Humanos e
Direito Internacional dos Refugiados, são baseados em e reproduzem inúmeras
dicotomias entre as esferas pública e privada: uma distinção é criada entre matérias de
ordem “pública” internacional e matérias “privadas” inseridas na jurisdição doméstica de
Estados, e sobre as quais a comunidade internacional não possui nenhum interesse legal.
Charlesworth (1994) refere que esse foco singular na esfera pública sustenta
e reproduz a dicotomia do público/privado existente no Direito Internacional, o que
significa que o “público” pertence a questões internacionais, enquanto matérias de
ordem “privada” são limitadas apenas ao campo doméstico. Através dessa
perspectiva,
temáticas
vinculadas
aos
direitos
das
mulheres
são
predominantemente situadas na esfera privada, fazendo com que as experiências de
5
CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”,
University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020
6
CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human
Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and
David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016.
7
CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human
Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and
David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016
170 | Gênero, violência e estruturas de poder
mulheres com violações a seus direitos, garantias e segurança por agentes não
estatais sejam invisíveis e irrelevantes à comunidade internacional8.
Além disso, em termos de proteção internacional, o significado de uma lacuna
de gênero, no âmbito do Direito Internacional como um todo, expressa que as
experiências de mulheres com agressões e violências não se encaixariam como
perseguição no escopo dos critérios necessários para que uma solicitação de refúgio
fosse concedida9.
Dessa forma, mesmo que a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967
possuam um teor não discriminatório em razão de sua neutralidade de gênero, no
que tange ao conceito de refugiado, tal deficiência possui o poder de negar direitos
de proteção internacional a mulheres10.
A relativamente recente flexibilização no conceito de refugiado foi possível
graças ao trabalho de acadêmicas feministas que buscaram preencher a lacuna de
gênero lançando luz sobre tais questões referentes à dicotomia público/privado. Tal
processo foi possível ao dar visibilidade às experiências de mulheres com
perseguições no âmbito privado, tais como o uso de estupro e violência sexual como
uma arma de guerra. Da mesma forma, ao destacar as dimensões estruturais da
violência contra as mulheres, em particular no âmbito de instituições como a família
e em suas comunidades, enfatizando normas e práticas culturais e ideológicas
opressivas, que constituem experiências nocivas vividas por mulheres, estas
passaram a ser vistas como violações aos direitos humanos das mulheres11.
Através de uma leitura pura da Convenção de 1951, tem-se que as
experiências de mulheres com danos ou agressões não são adequadas para fins de
serem inseridas na definição de refugiados. De acordo com Goldberg (1994), a
8
CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”,
University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020
9
BINDER, Andrea, “Gender and the ‘Membership in a Particular Social Group’ Category of the 1951
Refugee Convention”, 10(2) Columbia Journal of Gender and Law 167, 2001
10
VALJI, Nahla, DE LA HUNT, Lee Anne, MOFFETT, Helen, ‘Where are the women? Gender
discrimination in refugee policies and practices’, 55 Agenda: Empowering Women for Gender
Equity 61, 62., 2003
11
CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human
Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and
David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016
Lúcia Pfeifer Cruz | 171
dificuldade resta não na definição legal propriamente dita, mas sim em como tal
definição é interpretada e aplicada.
Uma maior consciência acerca de normativas de gênero dentro do escopo de
Direito Internacional foi responsável por uma mudança de paradigma a partir de
meados dos anos 198012. Tal alteração ocorreu através de esforços anteriores de
acadêmicas feministas que deram atenção apropriada às experiências de mulheres
com agressões, supostamente ocorridas na esfera privada, reconceitualizando-as e
desafiando o paradigma existente no âmbito do Direito Internacional dos Direitos
Humanos 13 . Ao dar uma leitura distinta a tais experiências de violência – por
exemplo, reconhecendo que a violência sexual sofrida por mulheres é
frequentemente tudo mesmo privada, uma vez que pode ser utilizada como arma de
guerra – elas também podem ser vistas como uma forma de perseguição em razão
de gênero utilizada como forma de opressão política14.
Como mencionado anteriormente, a criação da CEDAW e do seu Protocolo
Opcional foi uma conquista notável da crítica feminista direcionada ao Direito
Internacional dos Direitos Humanos 15 . A CEDAW foi responsável por inserir os
direitos das mulheres e reconhece-los como direitos humanos. É imprescindível
ressaltar o quão significativo foi para o Comitê da CEDAW, na Recomendação Geral
n.º 19, afirmar que a violência contra a mulher, estando inclusa a violência doméstica,
é uma forma de discriminação que impede e inibe as mulheres de usufruírem de seus
direitos humanos16.
Quando se pensa em todos os documentos sobre direitos humanos já
redigidos, a sua vasta maioria é posicionada através de uma perspectiva masculina,
até a criação da CEDAW – e é por isso que ela cumpre um papel fundamental no
campo dos direitos humanos das mulheres. Uma abordagem de gênero, e também
12
CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”,
University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020
13
Idem.
14
Idem.
15
CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”,
University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020
16
CEDAW, Committee on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women, General
Recommendation No. 19: Violence against women, 11th sess, UN Doc A/47/38 (1992) [6], 1992
172 | Gênero, violência e estruturas de poder
feminista, ao Direito Internacional era mais do que necessária para fins de endereçar
de forma apropriada a violência de gênero como um problema de ordem global.
Assim, uma crítica responsável, se não a mais relevante, por flexibilizar a ótica
internacional acerca de violência de gênero, pode ser demonstrada pelo fato de que
a violência doméstica não se trata de um conflito de ordem privada que surge em
razão de tensões diárias17, e sim de uma violência que funciona como ferramenta de
subordinação feminina autorizada por normas sociais, o que a faz legítima de
proteção internacional18.
Copelon (1994) define a violência doméstica como
um mecanismo de controle patriarcal de mulheres que é construído sobre ideais de
superioridade masculina e inferioridade feminina, papéis e expectativas acerca de sexo
biológico estereotipados e a predominância econômica, social e política de homens
sobre mulheres.
Graças a tais avanços, o Sistema Internacional no âmbito dos direitos
humanos tomou ações para fins de redigir documentos que estariam, finalmente, de
acordo com uma consciência pública do ato de inserir os direitos das mulheres como
uma preocupação internacional. Em 1985, o Comitê Executivo do Alto-Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) criou a Conclusão n.º 39, um
documento que reconheceu que “mulheres solicitantes de asilo que enfrentavam
situações severas ou de tratamento desumano por terem transgredido normas
sociais da sociedade” poderiam ser inseridas no conceito de refugiadas19.
Além disso, alterações e desenvolvimentos no Direito Humanitário
Internacional e no Direito Internacional dos Direitos Humanos, como a jurisprudência
do Tribunal Penal Internacional no caso de países que consistiam na Iugoslávia e no
17
WHO, World Health Organisation, ‘Violence Against Women’ (Fact Sheet, 29 November 2017)
<https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/violence-against-women>, 2017
18
CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”,
University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020; MARSDEN, Jessica,
“Domestic Violence Asylum after Matter of L-R”, The Yale Law Journal, 2512, 2514, 2014.
19
ACNUR, Executive Committee, Refugee Women and International Protection: Conclusion No. 39
(XXXVI), UN Doc A/40/12/Add.1 (18 October 1985), 1985
Lúcia Pfeifer Cruz | 173
caso de Ruanda20, ocorreram em conjunto e auxiliaram na mudança de paradigma
no contexto de refúgio envolvendo questões de gênero.
Com a chegada da Conclusão n.º 39, uma variedade de documentos
internacionais e diretrizes foram redigidas acerca da temática, indicando que
mulheres perseguidas por razões de gênero seriam legítimas da concessão de
refúgio. Uma das funções desses documentos era servir como recurso para que
tomadores de decisão desenvolvessem uma abordagem mais sensível ao julgar tais
pedidos de refúgio e obtivessem um melhor entendimento dos atravessamentos
existentes entre gênero e o contexto de perseguição sofrido por mulheres.
O advento de uma significativa lista de diretrizes e Position Papers acerca de
perseguição por razões de gênero redigida pela ACNUR e outros21 possibilitou que a
análise e o entendimento de questões de gênero no contexto de refúgio pudessem
avançar substancialmente em termos de jurisprudência, políticas públicas e
produção acadêmica. Isso é perceptível através de uma maior consideração pelas
diferenças entre sexo, como indicador em termos de biologia, e gênero, na forma de
papeis socialmente definidos associados a determinado sexo ou outro em termos
das relações entre homens e mulheres22.
O documento mais relevante no tocante ao papel do gênero na determinação
do status de refugiado são as Diretrizes de 2002 sobre Proteção Internacional. Tais
diretrizes foram responsáveis por fornecer uma interpretação sensível em termos de
gênero à Convenção de 1951 através da “[certificação] de que os procedimentos para
determinação do status de refugiado não marginalizariam nem excluiriam
experiências de perseguição relativas à gênero”23.
Em nível regional, os Estados puderam desenvolver e redigir suas próprias
diretrizes e documentos que reconhecessem a violência de gênero como uma forma
de perseguição sofrida por mulheres mundialmente. Por exemplo, em 1993, o
20
HAINES, Rodger, “Gender-Related Persecution”, Cambridge University Press, 2003
UNHCR, ‘Guidelines on the Protection of Refugee Women’, July 1991; UNHCR, ‘Sexual Violence
Against Refugees: Guidelines on Prevention and Response’, 1995; the Symposium on Gender-Based
Persecution held in Geneva, 22–23 Feb. 1996 (reported in International Journal of Refugee Law,
special issue, 1997, pp. 1–251), and UNHCR, ‘Gender-Related Persecution’, UNHCR Position Paper,
Jan. 2000 (hereinafter ‘UNHCR, 2000 Position Paper on Gender-Related Persecution’).
22
Idem.
23
ACNUR, Guidelines on International Protection: Gender-Related Persecution within the context of
Article 1A(2) of the 1951 Convention and/or its 1967 Protocol relating to the Status of Refugees, 2002
21
174 | Gênero, violência e estruturas de poder
Conselho de Imigração e Refugiados Canadense redigiu importante documento
denominado “Diretrizes sobre Mulheres Refugiadas Requerentes Tementes de
Perseguição em razão de Gênero”, que foi finalizado após extensiva consultoria
realizada com agentes não governamentais e governamentais. Em 1995, os Estados
Unidos desenvolveram as “Diretrizes de Gênero Estadunidenses”, que dariam aos
tomadores de decisões instruções específicas para fins de reconhecer o estupro e
outras formas de violência sexual como perseguição e, também, reconhecer que
mulheres que sofriam agressões e tortura ou que fossem sujeitas a tais tratamentos
como consequência de renúncia às suas crenças sobre direitos igualitários, seriam
legítimas de proteção internacional24.
A ACNUR, ativistas, críticos do Sistema Internacional, práticos de Direitos
Humanos e outros agentes foram capazes de construir as bases e fundamentos
relevantes à existência de uma adequada preocupação a questões de gênero
inseridas no âmbito do Direito Internacional dos Refugiados, elevando o direito
internacional dos direitos humanos das mulheres, bem como os esforços do
movimento internacional pelos direitos das mulheres. Para fins de endereçar as
experiências de mulheres com perseguição, esses agentes da mudança destacaram
que um processo de evolução nas normativas sobre refugiados era necessário
através de um procedimento interpretativo que “utiliza o framework do Direito
Internacional de Refugiados, em vez de alterá-lo incorporando novas previsões
específicas sobre gênero”25. Por exemplo, as Diretrizes de Gênero Estadunidenses
são transparentes de uma forma que solicitações de refúgio em razão de gênero
“devem ser vistas dentro do framework fornecido pelos instrumentos existentes de
direitos humanos internacionais e através da interpretação desses instrumentos por
organizações internacionais”, tendo estes sido ratificados pelo governo dos Estados
Unidos ou não26.
É possível afirmar que um corpo de normas internacional tem sido
desenvolvido desde a adição e reconhecimento dos direitos das mulheres como
24
CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human
Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and
David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016
25
Idem.
26
Idem.
Lúcia Pfeifer Cruz | 175
parte do sistema internacional de proteção de direitos humanos. Enriquecer o debate
acerca deste fenômeno é mais frutífero do que simplesmente adicionar o elemento
gênero ou sexo aos critérios e razões atualmente legítimos de refúgio – o problema
não restaria resolvido e tampouco seria possível analisar apropriadamente os casos
nos quais o dano temido (o elemento de perseguição) era inerente às mulheres, ou
por elas desproporcionalmente afetado, como nos casos de estupro ou mutilação
genital feminina27.
Apesar da perspectiva de gênero referente ao regime jurídico do refúgio ser
relativamente recente em termos de ordens jurídicas internacionais, os fundamentos
para uma abordagem mais sensível em termos de gênero já estão postos para serem
aplicados. Fornecendo as ferramentas e recursos adequados aos Estados e seus
tomadores de decisão para melhor aplicarem os entendimentos mais recentes no
que tange aos direitos das mulheres e à legítima proteção que estes requerem no
âmbito internacional, isto, por si só, já configura considerável avanço e uma
prospecção positiva para o futuro dos direitos das mulheres refugiadas.
2. VIOLÊNCIA DE GÊNERO – UMA CRÍTICA FEMINISTA AO DIREITO INTERNACIONAL
Conforme já mencionado, o movimento pelos direitos das mulheres, dentro do
Direito Internacional, foi responsável pelo fenômeno que criticou o status quo
imposto pela perspectiva masculina no âmbito do Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Juntamente com a criação da CEDAW, uma abordagem feminista ao
Direito Internacional foi iniciada por acadêmicas e pesquisadoras responsáveis por
tal alteração de paradigma.
Anker e Lufkin (2003) estabelecem um ponto importante ao referirem que
para começar, “gênero” no contexto dos direitos humanos se refere à divisão de papéis
socialmente determinados para homens e mulheres, a noções socialmente construídas
27
ANKER, Deborah E., LUFKIN, Paul T., Gender and the Symbiosis Between Refugee Law and Human
Rights Law, The Online Journal of the Migration Policy Institute,
https://www.migrationpolicy.org/article/gender-and-symbiosis-between-refugee-law-and-humanrights-law; 2003
176 | Gênero, violência e estruturas de poder
de feminilidade e masculinidade, e disparidades de poder resultantes destes aspectos
que moldam e definem as identidades e status das mulheres dentro de uma sociedade.
Para que o aspecto “gênero” fosse inserido nos critérios de refúgio, alguns
argumentos e assertivas foram destacados e, de certa forma, fundados pela referida
crítica construída. Primeiramente, cita-se o fato de que (i) a violência de gênero é
vista como um fator social pertencente à esfera privada e, em função disso, não seria
suficiente para caracteriza-la como motivo de fundado temor de perseguição para
solicitações de refúgio; em segundo lugar, há um debate acerca da possibilidade de
(ii) inserir mulheres vítimas de violência de gênero como membros de determinado
grupo social e, por último, a abordagem na qual (iii) há a impossibilidade de as
mulheres serem protegidas por autoridades domésticas e internacionais.
A violência contra a mulher ainda é vista como algo comum, ou um mero
infortúnio, por se tratar de um fenômeno que ocorre na esfera privada ou doméstica,
não se caracterizando como motivação suficiente para ser classificada como
perseguição. Ainda assim, mesmo tratando-se de um crime, a forma mais
exacerbada de violência de gênero ainda é percebida por um prisma que a conceitua
como um problema de natureza privada. Raramente, mesmo em contextos de
conflito armado ou estados de exceção, a violência contra as mulheres é tida como
um ato político ou um método de controle de um grupo que subjuga outro, como
símbolo de domínio ou resultado direto da violação de direitos humanos. Ainda nesse
contexto, mulheres que fazem pedidos de refúgio nessas ocasiões tem seus pedidos
negados – e tal negativa pode custar as suas vidas28.
Considerando os debates atuais acerca da temática, o movimento crítico
feminista mencionado é categórico ao referir que a razão pela qual ainda há uma
discussão concernente à ausência de um consenso global sobre violência de gênero
resta na (i) existência de flagrante negligência acerca de tal violência, ao ponto desta
ser subestimada como matéria de preocupação institucional e (ii) pelo fato de que
esta ainda é vista como um problema de ordem privada.
28
PATRICK, Erin, “Gender-Related Persecution and International Protection”, Migration Policy
Institute,https://www.migrationpolicy.org/article/gender-related-persecution-and-internationalprotection , April 1, 2004
Lúcia Pfeifer Cruz | 177
Casos de negativa de refúgio a mulheres, nos quais a violência de gênero não
preenche os requisitos para que o caráter persecutório seja reconhecido, refletem a
relutância de autoridades de Estado e migratórias em perceberem tal violência como
uma conduta que caracteriza a perseguição de determinado grupo social. Essas
negativas também podem ser explicadas pelo fato de que a violência contra
mulheres que buscam refúgio é vista como uma norma social nos seus países de
origem e, portanto, estaria vinculada a crimes inseridos na esfera privada29.
Como resultado, a violência de gênero é considerada uma categoria muito
abrangente para ser inserida como critério de perseguição – ela não é vista, nem
legislada, da mesma forma que a violência direcionada a determinadas minorias
étnicas em função destas pertencerem a determinado grupo social.
Ao considerar-se os casos dessas mulheres, Bhargava e Mukhopadhyay
(2020) ressaltam que a característica perseguição pode ser dividida em duas
categorias:
(i) o primeiro tipo está inserido na esfera privada, na qual o “perseguidor” é geralmente
um indivíduo que compartilha uma relação íntima com a vítima, na forma de um parceiro
ou parente. Aqui podem ser incluídos atos de violência sexual e violência doméstica,
abuso financeiro ou emocional, ou práticas culturais regressivas, como mutilação genital
feminina, homicídios por honra etc.
(ii) o segundo tipo é tolerado por agentes não-estatais, público ou privado, como
governos ou grupos militares que sujeitam mulheres de específica etnicidade à violência
sexual ou subjugação. Essa categoria abrange estratégias de controle de populações
forçadas, penas que restringem direitos reprodutivos femininos, abuso sexual, estupro,
tráfico humano, casamentos forçados etc.
Pela divisão supracitada, é possível perceber as diferenças entre a violência
sofrida por mulheres no âmbito privado, por agentes não estatais, e outra praticada
por normas culturais e tradicionais, sustentadas pelo poder do Estado. Em ambas
categorias, a perseguição sofrida por mulheres ocorre em razão de sua condição de
gênero e em função de seu particular status social como tais. Nesse sentido, ao
considerar-se a perseguição como um meio de exercício de controle sobre
29
Idem.
178 | Gênero, violência e estruturas de poder
determinada raça, religião ou determinado grupo social, as mulheres que sofrem
violência de gênero, claramente, podem ser inseridas na categoria que atesta a
existência de perseguição.30
O caso Ward, de 1993, foi responsável por afirmar a posição da ACNUR e
caracterizar a violência de um agente não estatal como perseguição através do
fracasso do Estado em proteger. Apesar de não se tratar de um caso de violência
doméstica sofrida por uma mulher solicitando refúgio, a Suprema Corte Canadense
determinou que sérias violações de direitos humanos por agentes não estatais
podem ser classificadas como perseguição, se o Estado em questão não protege ou
falha em proteger seus cidadãos de tais violações, sugerindo que tal falha pode ser
demonstrada por uma “confirmação clara e convincente” de tal inabilidade em
proteger31.
Crawley (2016) menciona que o conceito de “inclusão excludente”,
desenvolvido por Susan Keybone, trata-se de uma tentativa de explicar, e fazer
sentido, nas contínuas dificuldades vividas por mulheres em garantir proteção no
escopo do Direito Internacional dos Refugiados contra violações de direitos
humanos.
Tal conceito sugere que o problema mais significativo concernente à
dominante abordagem atual sobre pedidos de refúgio, trata-se da construção de um
estereótipo de mulheres refugiadas, que em razão de sua vulnerabilidade em
sociedades patriarcais nas quais mulheres são subordinadas a homens como
vítimas, ou potenciais vítimas, de violência sexual ou qualquer outra violência
direcionada a estas pelo fato de serem mulheres. Kneebone e acadêmicas feministas
também sugerem que tal construção pode fazer com que mulheres e suas
experiências sejam incorporadas ao regime de refúgio de forma particular em termos
30
BHARGAVA, Shebani; MUKHOPADHYAY, Shreenandini, “The Quest for Gender Based Asylum:
Exploring ‘Women’ as a Particular Social Group”, INTLAWGRRLS, Voices on International Law, Policy,
Practice, https://ilg2.org/2020/08/13/the-quest-for-gender-based-asylum-exploring-women-as-aparticular-social-group/ 13 Agosto de 2020
31
Patrick (2004) também apresenta como relevante o fato de que a Corte Canadense considerou se o
fundado temor de perseguição, baseado na inabilidade de proteger do Estado, subsiste se a solicitante
não abordou o Estado para que esta fosse protegida. Nesse caso, a falha consistente na não chamada
ao Estado pela solicitante apenas comprometeria seu pedido de refúgio, se a proteção estatal
estivesse às vias de acontecer. Contudo, no caso de tratar-se de um padrão do Estado em ser incapaz
ou relutante em fornecer referida proteção, o fundado temor de perseguição estaria presente de
qualquer forma, independentemente de a solicitante ter buscado auxílio do Estado.
Lúcia Pfeifer Cruz | 179
de gênero, de forma que isso serviria apenas para enfraquecer a proteção que estaria
disponível a elas.32
Para mulheres que fogem da violência doméstica e que almejam classificarse como refugiadas, deve haver um nexo causal entre o temor de perseguição e um
dos cinco quesitos estabelecidos na Convenção de 1951. Como já apontado, o
critério mais aproximado a ser utilizado por mulheres nessa situação, seria inseri-las
como membro de Determinado Grupo Social (DGS) – mesmo que a utilização de tal
critério tenha provado, também, ser um obstáculo.33
É possível perceber o escopo abrangente do critério Determinado Grupo Social
e a margem de apreciação dos Estados em relação este, o que leva a concluir-se que
não há, ainda, uma abordagem uniforme na sua forma de interpretação por
autoridades para fins de concessão de refúgio. Alguns Estados interpretam DGS de
uma forma que apenas dificulta inserção de mulheres que tentam se refugiar em
razão da violência de gênero, com base no referido critério. Mesmo que exista
determinado consenso acerca de alguns aspectos de DGS como um critério para
concessão de refúgio, é aceitável o fato de que inexiste qualquer requisito para que
um grupo exiba certa identificação interna para que este seja considerado DGS - da
mesma forma que um DGS pode ser constituído independentemente do seu
tamanho. Ademais, para que um grupo social seja considerado como tal, não basta
que seus membros compartilhem do mesmo temor de perseguição, bem como não
é necessário demonstrar que todos os membros estejam sob o risco de perseguição
para que sejam considerados DGS.34
Para que mulheres fossem devidamente inseridas em determinado grupo
social, sob qualquer contexto geográfico, tal tentativa dependeria das narrativas
predominantes acerca de mulheres em geral, sobre seus países de origem e sobre as
formas particulares de violência que estas alegam sofrer ou vivenciar.35
32
CRAWLEY, Heaven, ‘[Engendering] International Refugee Protection: Are we there yet?’ in Bruce
Burson and David Cantor (eds), Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice
and Theory (Brill, 2016); 2016
33
PATRICK, Erin, “Gender-Related Persecution and International Protection”, Migration Policy
Institute,https://www.migrationpolicy.org/article/gender-related-persecution-and-internationalprotection , April 1, 2004
34
Idem.
35
CRAWLEY, Heaven, ‘[Engendering] International Refugee Protection: Are we there yet?’ in Bruce
Burson and David Cantor (eds), Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice
180 | Gênero, violência e estruturas de poder
Patrick (2004) atesta que deve haver um reconhecimento legal que defina
gênero como uma característica de determinado grupo social. Mesmo que tal
reconhecimento já exista em documentos de soft law, como as Diretrizes sobre
Gênero da ACNUR e outros documentos domésticos, há um limite para sua aplicação,
uma vez que não se trata de documentos com força vinculante. Uma das alternativas
para impedir que tomadores de decisão formulem e estabeleçam determinados
grupos sociais “complicados demais e artificialmente forçados” para mulheres que
estão fugindo de violência doméstica, poderia ser precisamente codificar “gênero”
como uma das características definidoras de DGS na seara doméstica, obrigando
estes tomadores de decisão a utilizarem esse aspecto, instituindo a ideia e a cultura
de “mulheres em determinado contexto social” como DGS.36
Embora a ideia de criar um arcabouço legal pelo Legislativo doméstico, como
apontado supra, tenha ocorrido em países como Espanha e Austrália, ainda assim,
não há exatamente uma solução da problemática acerca da violência de gênero
dentro do Direito dos Refugiados. Mesmo que os países devam aprimorar seus
aparelhos normativos de forma a adaptar suas leis aos avanços internacionais no
âmbito dos Direitos Humanos, tal mudança é pouco provável de ocorrer, uma vez que
tais avanços não apresentam natureza vinculante ou estejam bem estabelecidos
pela comunidade internacional.
Ainda assim, há um movimento emergente em países da América Latina, no
qual consiste em alterações legislativas realizadas por Estados, através da inserção
da categoria “gênero” como fundamento para solicitações de refúgio em suas
legislações internas, indo além da alternativa supramencionada que encaixa
mulheres como Determinado Grupo Social e inserindo nos seus sistemas
domésticos as peculiaridades de gênero já abordadas por documentos de soft law.
Crawley (2016) cita Mullally (2011) de forma que
and Theory (Brill, 2016); 2016 sobre MCKINNON, Sara, ‘Positioned in/by the State: incorporation,
exclusion, and appropriation of women’s gender-based claims to political asylum in the United States’,
97(2) Quarterly Journal of Speech, 2011
36
PATRICK, Erin, “Gender-Related Persecution and International Protection”, Migration Policy
Institute,https://www.migrationpolicy.org/article/gender-related-persecution-and-internationalprotection , April 1, 2004
Lúcia Pfeifer Cruz | 181
o risco de tornar essencial a posição de mulheres em determinada sociedade perpassa
por várias solicitações de refúgio por questões de gênero e isso é particularmente
evidente onde mulheres são vistas dentro de parâmetros que as categorizam como
membros de determinado grupo social. Nestes casos, mulheres são vistas como
“vítimas”, um sujeito com atenção limitada em razão de diferenças históricas,
econômicas e de outras ordens que moldam e definem a experiência de discriminação
por gênero e que fragmentam a categoria “mulheres”
O problema das solicitações de refúgio que enquadram as experiências de
mulheres como membros de DGS é o fato de que elas refletem uma concepção
estática e particular de que o gênero é definido e replicado através de estruturas
normativas e masculinas de Direito Internacional dos Refugiados, reforçando a ideia
de que as mulheres não são atores políticos, e sim atores culturais e sociais,
negligenciando o contexto no qual tal violência de gênero acontece. A razão pela qual
isso ocorre provém de uma ênfase demasiada quando da determinação do status de
refúgio em formas de danos específicos contra mulheres e na falha em explorar
completamente a questão da não discriminação, da violação que pode fornecer uma
explicação pela qual tais danos ocorrem e do nexo para um dos critérios listados na
Convenção de 1951.37
Em suma, conforme já enfatizado, a ideia reforçada pelo Direito Internacional
dos Refugiados a qual consiste que mulheres não são atores políticos, reduzindo-as
a vítimas de um sistema patriarcal que as subjuga, retira qualquer poder de agência
destas e as coloca em uma posição de dependência e vulnerabilidade.
Foote (1994) ressalta que
a implicação é a de que mulheres refugiadas, em razão de serem mulheres, são vítimas
perenes e, portanto, pertencentes a determinado grupo social; mulheres, entretanto, são
colocadas na desconfortável posição de possuírem características biológicas que
determinariam sua vulnerabilidade e consequente status legal.
37
CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human
Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and
David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016
182 | Gênero, violência e estruturas de poder
A mudança de paradigma que surgiu nos últimos 30 anos é, indubitavelmente,
notável. Apesar de a mitigação da deficiência de gênero existente na definição de
refugiado tratar-se de um trabalho conjunto de parte da comunidade internacional
que, ao lançar críticas, denunciou o sistema corrente, os “transtornos” causados por
acadêmicas feministas, pesquisadoras e advogadas de direitos humanos tem, ao
menos, alcançado os tomadores de decisão e criadores de políticas públicas.
Apesar de haver um longo caminho a ser trilhado, mudanças estão ocorrendo.
Recentemente, o Brasil redigiu um documento através do Comitê Nacional para
Refugiados (CONARE) que reconhece como refugiadas mulheres vítimas de
mutilação genital feminina e que são oriundas de países onde tal prática é
institucionalizada38, o que denota a adoção de uma postura mais recente do país no
que concerne à problemática em questão.
CONCLUSÃO
É possível afirmar que a lacuna de gênero existente na Convenção de 1951 e
no Protocolo de 1967 não será preenchida, uma vez que não há indicação de que, em
breve, a definição de refugiado presente em tais documentos será alterada por
qualquer movimento dentro do Direito Internacional dos Refugiados.
As mudanças possíveis graças às funções desempenhadas por acadêmicas
feministas e praticantes pelos direitos das mulheres acerca da temática são,
naturalmente, emblemáticas no que tange à alteração de um paradigma
internacional quase estagnado. Apesar de claramente existir desafios no
reconhecimento da violência de gênero como uma matéria digna de preocupação
internacional pelos governos e tomadores de decisão, mudanças estão ocorrendo
tanto na ordem internacional quanto doméstica – conforme exemplos de países
latino-americanos mencionados acima.
A dicotomia do público e do privado sustentada e denunciada pelo trabalho da
escola crítica de Direito Internacional mostra a face de um status quo de longa data
que impede que os direitos das mulheres sejam garantidos e os perpetradores de
38
https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/conare-aprova-reconhecimento-de-mulheresrefugiadas-vindas-de-contextos-de-mutilacao-genital-feminina
Lúcia Pfeifer Cruz | 183
tais violações, responsabilizados. Ao atestar tal realidade, a comunidade
internacional pode operar de uma forma que não apenas a questione, mas também
desenvolva uma consciência acerca do mal que tal realidade cria, bem como
desconstrua os padrões que edificam e mantém essa dicotomia.
Não há mudança sem o desmantelamento desse status quo.
Ainda assim, tomadores de decisões ainda são resistentes à ideia de adaptar
os critérios de refúgio de forma a reconhecer a violência de gênero como fundado
temor de perseguição. Cabe às instituições globais imporem os mais recentes
avanços e novidades introduzidas pelo trabalho de agentes internacionais. A
demanda de mulheres vítimas de várias formas de agressão trata-se de um
crescente e sempre existente problema, e como tal, este deve ser endereçado como
a seriedade apropriada como qualquer outra forma de violação de direitos humanos.
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UNHCR, United Nations High Commissioner for Refugees,
https://www.unhcr.org/1951-refugeeconvention.html#:~:text=The%201951%20Refugee%20Convention%20and,of%20Sta
tes%20to%20protect%20them, 2019 (acesso em 18 de março de 2023);
VALJI, Nahla, DE LA HUNT, Lee Anne, MOFFETT, Helen, ‘Where are the women?
Gender discrimination in refugee policies and practices’, 55 Agenda: Empowering
Women for Gender Equity 61, 62., 2003;
World Health Organisation, ‘Violence Against Women’ (Fact Sheet, 29 November
2017) <https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/violence-againstwomen>, 2017, (acesso em 18 de março de 2023).
9. VIOLÊNCIAS DE GÊNERO E CONTROLE TERRITORIAL: O CONFLITO ARMADO
COLOMBIANO
https://doi.org/10.36592/9786554601566-09
Alice de Carvalho Nogueira1
Resumo
A presente pesquisa propõe uma análise acerca das formas de exercer controle
territorial e as violências de gênero envolvidas nesse processo, a partir do estudo de
caso do conflito armado colombiano. Ao compreendermos os mecanismos
empregados por grupos armados não estatais para dominar e, posteriormente,
manter controle sobre o território a ser conquistado, violências relacionadas ao
gênero surgem de forma sistemática e associadas a um continuum de violações
vividas em tempos de paz. No contexto colombiano, as disputas territoriais foram
travadas entre grupos guerrilheiros e paramilitares, em um cenário no qual os altos
índices de violações sexuais trazem à tona o seu uso como uma arma estratégica de
controle, atrelada a determinados objetivos políticos e econômicos. Destaca-se que
a compreensão do problema é proposta a partir de perspectivas locais, devido às
particularidades das formas de violência no território latino-americano, e vistas no
feminismo decolonial, tendo como eixo o conceito de femigenocidio colocado por
Rita Segato.
Palavras-chave: Violência de gênero; Violência sexual; América Latina; Colômbia.
Introdução
A América Latina tem menos de 10% da população mundial, mas produz um
terço dos homicídios de todo o mundo. Dados produzidos pelas Nações Unidas
indicam que a taxa de assassinatos anual da região é de 19,5 a cada 100 mil
habitantes, enquanto outras regiões como a África e a América do Norte, figuram com
taxas abaixo de 122. A situação se intensifica em países como El Salvador (62,1),
Honduras (41,7), Brasil (30,5) e Colômbia (26). Dentre as principais causas estão o
1
Mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI-UERJ) e bolsista da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2013409818595988. Contato: alicecnog@gmail.com.
2
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Global Study on Homicide: Homicide Trends,
Patterns and Criminal Justice Response. 2019.
186 | Gênero, violência e estruturas de poder
crime organizado, os conflitos internos, as desigualdades sociais, as hierarquias de
gênero e, essencialmente, a facilidade com que as redes paraestatais de controle da
vida se estabelecem e se expandem em toda região. Tais redes se relacionam com
um universo bélico de baixa formalização, caracterizado por lucros provenientes da
economia ilegal, por conflitos armados internos e pela repressão policial3. No Brasil,
por exemplo, a polícia já foi citada como a que mais mata no mundo, em ações
dirigidas à população jovem, pobre e periférica4.
Os dados são alarmantes e seus reflexos nas questões de gênero são
comumente deixados de lado, conforme indica a Agência das Nações Unidas para
Drogas e Crimes (2019). Apesar da legislação avançada em diversos países 5, doze
mulheres são assassinadas por dia em decorrência de violências de gênero e 98%
das mortes sequer chegam às instâncias judiciais na região6. Apesar das diferenças
históricas, políticas e culturais que caracterizam os países da região, é possível
afirmar que os elevados índices de mortalidade feminina estão intrinsecamente
relacionados com a formação e a manutenção de uma desigualdade estrutural de
gênero. As origens de tal sistema remontam ao período colonial, que não só insere
as hierarquias de gênero como binárias nas dinâmicas das relações de poder, mas
também endossa as diversas manifestações de subjugação da feminilidade7.
A conjuntura se intensifica em países que vivenciaram conflitos armados
internos no momento em que as dinâmicas violentas e masculinizadas da
militarização se alinham às hierarquias de gênero pré-sancionadas. Nestes
contextos, observa-se um continuum de violência que vai além das fronteiras
tradicionalmente definidas de guerra e paz, e que deve ser analisada à luz das
dimensões estruturais, políticas e sociais do problema. O país a ser analisado neste
trabalho, a Colômbia, é emblemático para a região por ter vivenciado o conflito mais
3
Destaca-se que a repressão policial é aqui vista como um registro da dualidade do Estado, em atuar
de forma estatal e paraestatal.
4
AMNESTY INTERNATIONAL. Use of force, guidelines for implementation of the UN basic principles
on the use of force and firearms by law enforcement officials. 2015; SEGATO, R.. La guerra contra las
mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019.
5
Como exemplo, a Lei Maria da Penha é reconhecida pelas Nações Unidas como uma das mais
avançadas legislações do mundo no combate a violência doméstica de mulheres. A promulgação da
lei levou a criação de novas estruturas judiciais, promovendo a atenção às vítimas e mecanismos que
facilitam as denúncias.
6
ONU Mujeres. Hechos y cifras: Poner fin a la violencia contra las mujeres. 2018.
7
SEGATO, R.. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019.
Alice de Carvalho Nogueira | 187
destrutivo da história contemporânea da América Latina, com marcas que perduram
até os dias atuais8. A violência de gênero no país é um problema persistente e que
enfrenta grandes obstáculos no que se refere a justiça e proteção adequadas.
No âmbito do conflito armado colombiano, todos os principais grupos
armados não estatais envolvidos no embate, divididos entre guerrilheiros e
paramilitares, instrumentalizaram as violências de gênero em busca de
determinados ganhos e/ou fins. A violência sexual, entendida no seu amplo aspecto,
desponta como a principal forma de subjugação e controle de gênero neste cenário,
perpetuando a marginalização e a vulnerabilidade das atingidas. Este trabalho busca
compreender este problema partindo de perspectivas locais que trazem à tona a
dinâmica interna dos países latino americanos.
Como o proposto por Davies e True (2015), o ponto é ir além das motivações
que levaram ou não ao crime, mas sim compreender as condições estruturais de
gênero que o tornaram possível em primeiro lugar — “ou seja, os papeis de gênero na
sociedade e as desigualdades de poder nas instituições da família, do Estado e do
mercado” 9 . Em outras palavras, o propósito é ir além da ideia sobre violência de
gênero na guerra como uma mera pauta de segurança, compreendendo que a
questão também deve ser vista a partir das intersecções com outras áreas da
formação social do país analisado.
Portanto, a presente pesquisa propõe uma análise acerca das formas de
exercer controle territorial em meio ao conflito e as violências de gênero envolvidas
nesse processo, a partir do estudo de caso do conflito armado colombiano. Destacase, que apesar do conceito violência de gênero ser aplicado para uma ampla gama
de casos, o trabalho busca trazer luz às violências cometidas contra mulheres. O
recorte temporal a ser analisado parte da década de 1990 até o início dos anos 2000,
período de intensificação da violência e também de abertura acadêmica para
produção de dados a serem observados.
Os objetivos a serem desenvolvidos, dentro das limitações aqui delineadas,
são: (i) investigar os aspectos que compõem a violência sexual e seu uso como
8
CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo: informe
nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017.
9
DAVIES, S.; TRUE, J. Reframing conflict-related sexual and gender-based violence: Bringing gender
analysis back in. Security dialogue, v. 46, n. 6, p. 495-512, 2015.
188 | Gênero, violência e estruturas de poder
estratégia de guerra, indicando questões ligadas ao binário de gênero e ao corpo da
mulher com o território em que habita, (ii) abordar as causas estruturais que
perpetuam as desigualdades de gênero e o controle sobre os corpos das mulheres
no território colombiano, e (iii) contextualizar o conflito armado colombiano, para a
compreensão das disputas territoriais envolvidas entre os grupos armados.
Conflito Armado e Violências de Gênero
Os efeitos da violência na guerra afetam todos à sua volta, e dentre os diversos
fatores que influenciam em como os impactos atingem o corpo e a sociedade em
que se encontram, o gênero é um dos mais relevantes. Em uma visão binária, a
experiência feminina e masculina em meio aos conflitos difere tanto no papel de
agente, quanto no de vítima. Homens costumam estar à frente de exércitos, grupos
armados, e a apresentar os principais papeis de instigadores da guerra, porém, as
principais vítimas, tanto em seu próprio ser, quanto em seu papel de gênero
socialmente construído, costumam ser mulheres. O papel feminino marginal ao
embate gera taxas de mortalidade menores em relação às masculinas, mas as torna
as principais vítimas de fenômenos como a violência e a escravidão sexual. Tais
fenômenos apresentam marcas profundas que vão além da morte, e deixam
cicatrizes nas vítimas, suas famílias e em toda a comunidade.
As violências de gênero surgem com formas e circunstâncias extensas dentro
das guerras e conflitos armados, o que suscita diversas questões para análise.
Embora o enfoque analítico deste estudo se concentre nas experiências de meninas
e mulheres, é importante reconhecer que o conceito de violência de gênero deve ser
entendido de forma inclusiva, abrangendo todos os gêneros, e compreendida como
um padrão de violência intrinsecamente relacionado às dinâmicas de poder. Como
Sara Meger defende, o uso do termo violência baseada em gênero deve ser entendido
como um formato de violência que tem o propósito de manter e reforçar as
hierarquias de gênero, incluindo tanto homens quanto mulheres nos papeis de vítima
e perpetuador10.
10
MEGER, S. The fetishization of sexual violence in international security. International Studies
Quarterly, v. 60, n. 1, p. 149-159, 2016.
Alice de Carvalho Nogueira | 189
Ao aplicarmos a perspectiva no cenário de guerra, trazer o tema para a esfera
pública se torna um ponto-chave, assim como ponderar a devida variação. Rita
Segato (2019) introduziu uma distinção fundamental entre as diferentes formas de
violência que ocorrem nos âmbitos privado e público, lançando luz sobre os
conceitos de femicídio, relacionado à violência interpessoal, e femigenocídio,
vinculado à violência sistêmica em contextos de conflito e guerra. As violências de
gênero comumente surgem associadas a esfera íntima, o que muitas vezes leva a
um movimento de deslegitimação das denúncias e ao desencorajamento de suas
vítimas a se manifestarem. Destaca-se a importância de estabelecer tipificações
rigorosas em prol do combate ao silêncio e a impunidade que permeiam tais
contextos. Nas palavras de Segato:
Se toda violência de gênero é estrutural e ceifa vidas em números que se aproximam de
um genocídio sistemático e em uma multiplicidade de cenários, é imprescindível, para
fins de estratégias de combate à vitimização das mulheres, ou seja, para poder investigar
e desmantelar os agentes perpetradores do dano, entender que existe um tipo de
violência de gênero que é gerada e transita por cenários absolutamente impessoais 11.
Os femigenocidios surgem atrelados a um cenário em expansão no território
latino-americano de guerra informal, em que as violações reafirmam o caráter
público e impessoal. Alguns exemplos podem ser vistos, como: na guerra repressiva
guatemalteca, em que agentes do Estado agiam de forma paraestatal violando
mulheres sistematicamente com fins de controle social; na Costa Pacífica da
Colômbia, em que mulheres convivem com a truculenta violência de grupos
paramilitares até os dias atuais; ou nos corpos de mulheres indígenas, como no caso
do povo Guarani Kaiowá no Mato Grosso (BR), torturadas e violadas pelo mandato
masculino12.
Outro ponto central da análise, é como a categoria corpo age como um local
de atuação da política global e se torna a base para entender as lógicas e os sentidos
11
12
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 84.
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 84.
190 | Gênero, violência e estruturas de poder
de tal violência13. Lauren Wilcox (2016), pontua que tais corpos tidos como alvos das
práticas violentas são intrinsecamente políticos, moldados em relação a contextos
políticos históricos e, simultaneamente, agindo sobre o nosso mundo.
O movimento de lançar luz ao corpo dentro da análise atua em direção à
compreensão de que a violência sexual em conflitos armados não se limita a países
ou grupos abstratos, mas sim atinge diretamente corpos, subjetividades e territórios.
O corpo não é só uma realidade material ou biológica, mas o produto de diferentes
normas e práticas regulatórias que o dão forma, sentido, o marcam e o classificam,
é um espaço material e simbólico, no qual ocorrem processos de construção de
significados, criação e resistências14. Os corpos em que as práticas de violência são
perpetuadas são profundamente políticos, constituídos em relação às condições
sociais e históricas na qual estão inseridos e, ao mesmo tempo, agindo sobre o
mundo em que vivem15.
Nas relações de gênero, a dominação social é exercida pelo poder masculino
e ocorre como um processo de reafirmação constante da assimetria, que produz uma
situação de vulnerabilidade para as mulheres e para os corpos com identidades de
gênero não normativas (CNMH, 2017). Laura Shepherd argumenta sobre o papel da
violência de gênero na constituição da subjetividade ao afirmar que esta "marca e
cria corpos", investigando os tipos de corpos que são impactados e formados por
meio desses atos violentos16. Para a autora, a “reprodução violenta de gênero” ocorre
no momento em que as vítimas da violência sexual são automaticamente
feminizadas, enquanto os perpetuadores dos atos violentos de agressão são
entendidos como masculinos, independentemente do sexo ou gênero real da vítima,
ou do autor.
Para Rita Segato, no contexto armado contemporâneo o corpo da mulher, por
sua afinidade arcaica com a dimensão territorial, se torna “o quadro, ou tábua, sobre
13
PURNELL, K. Rethinking the Body in Global Politics: Bodies, Body Politics, and the Body Politic in a
Time of Pandemic. 1a ed. Abngton, Inglaterra: Routledge, 2021.
14
BUTLER, J. Quadros de guerra. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. 288 p.
15
WILCOX, L. Bodies of violence: Theorizing embodied subjects in international relations. Oxford
University Press, 2015.
16
SHEPHERD, L. Gender, violence and security: Discourse as practice. Bloomsbury Publishing, 2008,
p. 2.
Alice de Carvalho Nogueira | 191
a qual os signos de adesão [do conflito] são inscritos”17. Na abordagem da autora, a
violência sexual é enfatizada como um crime de ordem pública, que atua em prol da
privatização da vida, do domínio dos territórios e da expansão de economias
extrativistas. O crime assume uma função dupla por permitir acesso a ganhos
econômicos e políticos, enquanto reafirma a dominação baseada em uma hierarquia
sexual. Em suas palavras:
O corpo e, muito especialmente, o corpo da mulher, pela sua afinidade arcaica com a
dimensão territorial, é, aqui, a moldura em que se inscrevem os sinais de adesão. Os
atributos de associação codificados são fragmentados ou anexados a ele. E nele,
principalmente no corpo feminino e feminilizado, os inimigos da rede gravam
ferozmente os sinais de seu antagonismo 18.
No contexto armado, a condição precária não leva a um reconhecimento
recíproco, ao contrário, a apreensão da precariedade conduz a uma intensificação da
violência, a uma percepção da vulnerabilidade física de certo grupo de pessoas que
incita o ímpeto de destruí-las. O poder militar busca maximizar a precariedade para
o outro, enquanto busca minimizá-la para si19. As hierarquias de gênero se reforçam
na conjuntura de dominação dos atores armados, onde os corpos das vítimas
passam a ser a propriedade sobre a qual as normas patriarcais são registradas para
punir, moralizar e disciplinar, tornando o ambiente um terreno fértil para a
manifestação das diversas formas de violências de gênero20.
Em sociedades colonizadas, tal como a colombiana, a conjuntura de gênero
se intensifica ao surgir atrelada às determinações coloniais em prol da dominação
e do disciplinamento de corpos. A imposição do gênero como princípio organizativo
aos colonizados foi imprescindível para a exploração do capitalismo global e
eurocêntrico, ao destruir os vínculos de solidariedade entre as vítimas da
dominação e a relativa complementaridade existente entre o feminino e o
masculino, que se opunham à nova lógica de poder. Com a hierarquização
17
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 84, p. 69.
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 84., p. 69.
19
BUTLER, J. Quadros de guerra. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. 288 p.
20
CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo:
informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017.
18
192 | Gênero, violência e estruturas de poder
entre o espaço público (ocupado pelos homens) e o espaço privado (ocupado
pelas mulheres), houve a despolitização deste último e a consequente perda de
poder político por parte das mulheres21.
Neste sentido, Rita Segato argumenta que a colonialidade impõe uma
estrutura binária sobres sociedades antes caracterizadas pela dualidade. No mundo
dual, os gêneros ocupam espaços distintos na vida social, mas ontologicamente
plenos e completos. As relações são baseadas na complementaridade, no sentido
em que espaço público, com suas tarefas políticas e de intermediação, não se
sobrepõe ao espaço doméstico e suas diversas atividades compartilhadas. Essa
estrutura é capturada pela colonialidade e seus binarismos, que se afirma “reduzindo
o ‘outro’ à função de alter do ‘um’”, do “sujeito universal”, extraindo sua plenitude
ontológica22. Como os teóricos pós-coloniais afirmam, este “outro” (feminino, não
branco, subdesenvolvido) se torna condição para existência deste “Um”.
A partir do conceito de colonialidade de gênero, elaborado por María Lugones
(2008), a autora reflete como as práticas de dominação, tutela e violência contra os
corpos de mulheres e homens colonizadas/os são recorrentemente legitimadas,
uma vez que esses corpos seriam classificados como pertencentes à uma subhumanidade e compreendidos como territórios de disputa. Desta forma, a
associação realizada por Rita Segato (2018) entre o corpo feminizado/racializado
e o território traz a tona a reflexão de como os corpos das mulheres são tratados
como território de conquista no cenário violento informal, sobre os quais os
grupos criminosos e as forças de segurança estatais e paraestatais desejam
exercer alguma tutela. Em suas palavras:
[...] a destruição do inimigo no corpo da mulher, o próprio campo de batalha em que a
insígnia da vitória é pregada e significada, está inscrito nele a devastação física e
moral do povo, tribo, comunidade, vizinhança, localidade, família, bairro ou gangue que
esse corpo feminino, por meio de um processo de significação próprio de um imaginário
ancestral, incorpora23.
21
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019.
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 99.
23
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 361-362.
22
Alice de Carvalho Nogueira | 193
É a partir de violências físicas e sexuais, e dos feminicídios perpetrados
contra mulheres de grupos rivais que esses atores afirmam seu poder sobre
determinado território.
O Caso Colombiano
O conflito armado colombiano é marcado por ser heterogêneo ao longo dos
seus mais de 50 anos de história, apresenta diversas transformações, alianças e
dinâmicas sociais complexas no âmbito de seus atores, de sua extensão territorial,
das suas vítimas e de seus repertórios violentos. Classificado como o conflito mais
sangrento da história contemporânea da América Latina pelo Centro de Memória
Histórica da Colômbia (2013), o número de vítimas contabilizadas pelo governo
chega a marca de 220.000 mortes entre os anos de 1958 e de 2012. A violência
expressiva é uma forte característica do conflito, junto com a incidência deste na
vida da sociedade civil.
O principal fator que transpassa toda história do embate, por meio do qual a
população civil é mais envolvida, é a questão agrária, a busca dos atores armados
por conquistar e afirmar seu poder sobre os territórios a serem possuídos. Os
ganhos econômicos, sociais e políticos dos atores armados se relacionavam com
as atividades extrativistas e de produção agrícola em grande escala, além da luta
política por demonstração de poder entre o Estado e as forças insurgentes. Apesar
dos diferentes impactos em cada região do país, o ponto comum era a busca pela
desconexão das populações de suas terras, empurrando-os para o deslocamento e
também minando a possibilidade de retorno24. Em outras palavras, um projeto que
buscou destruir as bases comunitárias e abrir espaço para a exploração.
A dinâmica social complexa e a preponderância do fator agrário no cerne das
disputas, leva o conflito ao interior das comunidades e de seus territórios, gerando
um movimento de migração da população em busca de segurança. Como indica
Lina Céspedes-Báez (2010), a ampla relação entre conflito armado interno e
território produz dinâmicas de deslocamento forçado, que, geralmente, culminam
24
CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo:
informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017.
194 | Gênero, violência e estruturas de poder
em crises humanitárias das quais os Estados não estão capacitados para atender.
Este delito raramente ocorre de forma isolada em relação às outras condutas ilícitas
como, por exemplo, a violação sexual, traçando assim a inter-relação entre as
violências25.
Ao tratarmos da violência sexual, o informe produzido pelo Centro Nacional
de Memória Histórica (2017), indica três principais fatores condicionantes que
facilitam a sua emergência no contexto citado, sendo estes: (i) a tolerância social a
prática, (ii) o sistema de normas socialmente aceito sobre gênero que promove as
masculinidades guerreiras, (iii) e os fatores econômicos, ligados a economia legal e
ilegal com a expansão da probreza. A tolerância social se conecta ao discurso social
que reduz a importância da violência de gênero perante as outras formas de
violência, alimentando imaginários que naturalizam e normalizam as violações
sexuais desde a esfera privada. Ao naturalizar, a narrativa promove a tolerância ao
crime e leva ao silenciamento das vítimas em receio a possível discriminação em
seus ambientes sociais.
O fator seguinte, se refere às relações raciais e de gênero que regem a
sociedade colombiana, estabelecidas em meio ao sistema patriarcal hierárquico,
excludente e violento. Neste contexto, diversas organizações feministas e
defensoras dos direitos humanos, apontam como o conflito armado vem reforçando
o binário de gênero e a subordinação das mulheres em seus territórios de maior
incidência26. O embate formou uma chave com a estrutura de gênero tradicional da
sociedade colombiana, contribuindo para a formação de “subjetividades
masculinas guerreiras e subjetividades femininas objetificadas”27.
As formas de socialização masculina se intensificam em meio ao conflito, de
modo que as demonstrações de virilidade por meio do militarismo se tornaram
símbolos de prestígio em diversos setores do país. Segundo Segato (2019), a
25
CÉSPEDES-BÁEZ, Lina María. La violencia sexual en contra de las mujeres como estrategia de
despojo de tierras en el conflicto armado colombiano. Revista Estudios Socio-Jurídicos, Bogotá:
Universidad del Rosario Bogotá, v. 12, n. 2, p. 273-304, 2010.
26
ABCOLOMBIA, Sisma Mujer et al. Colombia: mujeres, violencia sexual en el conflicto y el proceso
de paz. 2013.; CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el
cuerpo: informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017,
p. 156.
27
CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo:
informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017, p. 156.
Alice de Carvalho Nogueira | 195
masculinidade pode ser empregada como um mecanismo enunciativo, uma forma
de violência expressiva para manifestar a autoridade e o controle de alguns homens
sobre outros e seus territórios. A dominação sexual atua não somente no físico, mas
também no lado moral da vítima e de seus familiares: reduzir moralmente o outro é
um requisito para um poder completo, e a sexualidade, no mundo de hoje, está
diretamente ligada à moralidade (Segato, 2019). Com isso, a capacidade de manter
o controle absoluto e soberano no corpo das vítimas e em seu território está na
centralidade da mensagem que a violência sexual transmite. Isto é, uma
reivindicação da posse do corpo das mulheres, e por extensão, a posse dos seus
territórios28.
A dinâmica de conflitos e as disputas entre os grupos armados geraram um
cenário de violência, em que os corpos das mulheres foram utilizados como palco
para os embates e como marcadores de controle territorial 29 . Os paramilitares
priorizaram sua estética, sua masculinidade e barbárie acima da diversidade,
negando a possibilidade de uma vida digna nos territórios e transformando corpos
em palcos para controle, punição e batalha30. Na busca por impor sua própria ordem,
o grupo estabeleceu diversos mecanismos de regulação sobre a vida privada das
mulheres e punições para as que não cumprissem o dever que lhes fora imposto.
Observa-se que, ao instituir hierarquias e facilitar a normalização de diferentes
formas de violência contra a mulher, o ideal de "masculinidade hegemônica"
demonstrou sua força entre os símbolos de gênero presentes na sociedade
colombiana31.
Observa-se que na Colômbia as violações de gênero constituem uma
engrenagem crucial dentre as formas de embate empregadas. Uma violência que
ocorre em um cenário impessoal, uma forma de femigenocidio, em que o
perpetuador busca transmitir uma mensagem ao cometê-la e que transforma o
corpo da mulher colombiana em parte do campo de batalha. A violência sexual
28
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019.
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019.
30
QUINTERO BENAVIDES, Alexandra; CELY GÓMEZ, Laura; IDROBO ARAGÓN, Natalia; RAMÍREZ
CARDONA, Claudia; CHAPARRO MORENO, Liliana. Mujeres en Conflicto: Violencia Sexual y
Paramilitarismo. Corporación Sisma Mujer, Bogotá – Colombia. 2009.
31
THEIDON, Kimberly. Reconstructing masculinities: The disarmament, demobilization, and
reintegration of former combatants in Colombia. Human Rights Quarterly, v. 31, p. 1, 2009.
29
196 | Gênero, violência e estruturas de poder
relacionada ao conflito deve ser caracterizada como um ato criminoso de violência
por meios sexuais, um ato exibicionista de dominação e não relacionado a desejos
puramente sexuais. Retirar a ideia de libido do discurso é necessária para trazer à
tona a questão ao âmbito público da discussão, em um mundo no qual “tudo o que
nos passa enquanto mulheres é empurrado para o campo do íntimo”32.
Em 2008, o tema foi levado à Corte Constitucional da Colômbia, e por meio da
decisão judicial Auto 092, estabeleceu-se que a violência sexual é generalizada e
sistemática no conflito, sendo utilizada por todos os grupos armados. O Auto, e
posteriormente a Comissão da Verdade (2017), reconhecem o impacto
desproporcional do conflito para as mulheres e a conexão com os altos índices de
deslocamento forçado na Colômbia.
Apesar das cifras oficiais não refletirem a real magnitude, principalmente
devido ao fato de apenas 18% das mulheres denunciarem após serem vitímas da
violência sexual, os dados se tornam relavantes para compreensão sistemática do
ato 33 . De acordo com pesquisa promovida pelo Centro de Memória Histórica da
Colômbia (2017), entre os anos de 1997 e 2005 se registraram 8.242 casos de
violência sexual em ocasião do conflito armado, muitos dos quais seguidos de
morte. O aumento de casos na época está diretamente ligado ao maior período de
intensificação da violência, com a expansão do grupo paramilitar em todo território
nacional e a consolidação de suas alianças políticas e econômicas ligadas às
atividades do narcotráfico. A investigação estima que 4.342 destes casos foram
perpetrados por paramilitares, ou seja, 52,6% do registro. Enquanto os grupos
guerrilheiros estima-se que perpetuaram 1.941 casos no período citado, isto é, 24%
dos registros de violência sexual. Dentre os dados, 1.761 foram classificados como
propagados por autor desconhecido, 101 por grupos armados não identificados e
69 por agentes do Estado.
Destaca-se que as estruturas de gênero e os padrões de comportamento
presentes na sociedade colombiana a séculos, sustentam esta forma de violência
muito antes do advento do conflito armado. Além do sistema patriarcal baseado na
32
SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 227.
ABCOLOMBIA, Sisma Mujer et al. Colombia: mujeres, violencia sexual en el conflicto y el proceso de
paz. 2013.
33
Alice de Carvalho Nogueira | 197
dominação e na discriminação de gênero, outro fatores de risco ganham destaque,
como a marginilização social, política e econômica 34 . Tais condições se
intensificam para mulheres indígenas e afro-colombianas, que já vêem sua
existência marcada pela discriminação de raça e se tornam as mais afetadas pelo
conflito.
Considerações Finais
As dinâmicas violentas travadas dentro dos conflitos armados expõem a
população civil as mais diversas formas de violências em prol dos ganhos
econômicos e políticos dos grupos armados envolvidos. A conquista e o controle
territorial apresentam um papel relevante ao analisarmos este contexto e as
violências de gênero envoltas a este processo são diversas vezes deixadas de lado
ao propor uma pesquisa. Em direção a uma análise inclusiva dos fatores que
perpassam tais pontos, este trabalho apresentou um breve panorama das conexões
entre as formas de exercer controle territorial e as violências de gênero envolvidas
neste processo.
O caso observado, o conflito armado colombiano, evidencia as dinâmicas de
poder relacionadas às hierarquias de gênero e como elas se alinham as disputas
armadas em prol de determinados fins anteriormente pretendidos. As violências de
gênero são utilizadas como táticas de guerra, visando não apenas infligir danos
físicos e psicológicos nas vítimas, mas também desestabilizar comunidades e
grupos sociais, buscando afetar sua coesão e resistência. Os altos índices de
violência sexual ganham destaque neste cenário, atrelada ao deslocamento forçado
da população vitimada, evidenciando como as violações não surgem como produto
de um acaso, mas sim como parte de um conjunto de estratégias políticas e de
guerra que impulsionaram os interesses dos grupos armados em meio a suas
campanhas de expansão, dominação e controle territorial.
Por fim, destaca-se que na sociedade colombiana, as violações de gênero
antecedem a guerra, de modo que os valores patriarcais da sociedade se
34
ABCOLOMBIA, Sisma Mujer et al. Colombia: mujeres, violencia sexual en el conflicto y el proceso de
paz. 2013.
198 | Gênero, violência e estruturas de poder
intensificam dentro do conflito armado gerando uma maior vulnerabilidade às
mulheres, ou aos grupos historicamente excluídos. Isto é, é um formato de violência
que apresenta profundas raízes históricas, políticas econômicas e sociais. Como
indica o Centro de Memória Histórica da Colômbia (2017), tal fenômeno não segue
só uma interpretação, mas sim liga elementos da estrutura social que expressam,
de forma simultânea e indissociável, aspectos institucionais de caráter moral,
político, familiar, econômico, religioso, comunitário e simbólico.
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10. CORPO DESVIANTE FEMININO COMO CORPO POLÍTICO
https://doi.org/10.36592/9786554601566-10
Aline Tusset De Rocco1
RESUMO
A partir da ideia de que há um padrão esperado do corpo feminino no Brasil e que
este se reflete não só na estética, mas também na inclusão e exclusão social e
política da mulher, podemos refletir sobre estes corpos que estando fora da norma
também estão fora dos espaços de poder. Com isto, o artigo visa atrair maior
visibilidade ao tema, assim como discutir sobre corpos femininos desviantes e suas
relações sociopolíticas. Navegando pelas redes sociais como o Instagram
percebemos a presença de corpos femininos fora da norma, e percebemos que estes,
apesar da sua diversidade, demonstram uma unidade no que tange à resistência ao
padrão social imposto. Assim, a partir das manifestações no Instagram de mulheres
com corpos desviantes proponho uma reflexão abrangente sobre corpos desviantes
que se apresentam como corpos políticos.
Palavras-chave: Desvio; Corpo Político; Mulheres.
1 INTRODUÇÃO
Com a colonização e o estabelecimento de um padrão eurocêntrico de corpo
feminino no Brasil, institui-se a idealização dos corpos, o que também se reflete na
construção social e política de corpos que podem estar dentro ou fora deste padrão.
Deste modo, atenta-se que o corpo desviante de um padrão feminino magro, branco,
cisgênero e sem deficiência é também o corpo marginalizado socialmente,
economicamente e politicamente. Corpos fora da norma são corpos fora dos
espaços de poder. Assim, este artigo terá como foco dar maior visibilidade ao tema
de modo a aprofundar conhecimentos sobre práticas sociais de corpos desviantes e
suas relações sociopolíticas. Apesar da vigência de um padrão de corpo feminino, no
bojo das ações afirmativas têm emergido críticas ao padrão eurocêntrico e a um
corpo idealizado quase inalcançável. O discurso que une o movimento dentro e fora
da Internet é o da construção de uma identidade feminina brasileira que contemple
1
Doutoranda em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
202 | Gênero, violência e estruturas de poder
também mulheres com corpos considerados fora da norma, ou seja, corpos
desviantes. Este discurso tem se mostrado cada vez mais em evidência tanto na
mídia, quanto no interior da própria militância feminista, e tem sido relevante nas
redes sociais em diferentes contextos. Ao olharmos brevemente para o Instagram,
podemos perceber discursos diferentes, mas que possuem uma unidade no que
tange desafiar a norma social do corpo feminino e esta suposta unidade será o foco
do artigo aqui proposto. Assim, a partir das manifestações de mulheres com corpos
desviantes no Instagram proponho uma reflexão sobre estes corpos políticos. É com
isto em mente que buscarei aqui refletir sobre o conceito de biopolítica de Foucault
(2015) 2 relacionando aos corpos desviantes femininos no espaço do Instagram.
Assim, irei explorar o conceito de biopolítica atrelado ao conceito de desvio de modo
a incorporar a ideia de corpos que não atendem a uma norma social. Desta maneira,
pretendo abordar intersecções do gênero feminino com o corpo negro e gordo, e a
intereseccionalidade do corpo feminino trans e com deficiência motora; de modo a
compreender como o conceito de biopolítica pode nos ajudar a compreender mais
sobre feminilidades fora da norma.
2 O CORPO DESVIANTE
Para iniciar a conceituação de corpo, e assim também do corpo desviante,
podemos assumir o corpo como expressão de um sistema de comunicação, uma
demonstração tanto do coletivo como também do individual. Mauss 3 (2003) é o
precursor deste pensamento sobre o corpo. Para ele, o corpo não é nem apenas
natural, ou biológico; nem apenas social, já que cada cultura estabelece diferentes
formas de interagir e perceber o mesmo. Em Mauss (2003), vemos o corpo como o
primeiro objeto técnico da humanidade. A técnica do corpo para ele é um ato
tradicional transmitido a outras pessoas do grupo, e os gestos são formas de
linguagem nas interações sociais.
É a partir da ideia de técnica do corpo que Mauss (2003) apresenta também o
conceito de "habitus". O autor usa o termo em latim para exprimir o conceito de que
2
3
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Paz e Terra. 2015.
MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. Cosac Naify. 2003.
Aline Tusset De Rocco | 203
não existe expressão corporal que não seja adquirida, sendo gestos, andar, modos
de olhar, todos parte da cultura e não apenas trejeitos biológicos. Com a ideia de
Mauss podemos compreender o corpo como parte biológica, mas também com seus
traços e implicações culturais que se sobrepõem ao que muitas vezes delega-se ao
natural. O autor ressalta que "esses "hábitos" variam não simplesmente com as
pessoas e seu gestual, mas também com as sociedades, a educação, a moda e o que
é conveniente socialmente. Além disso, para Mauss (2003) toda atitude é permitida
ou não, podendo variar conforme seu contexto.
O ato se impõe de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao
corpo. O indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado
diante dele ou com ele pelos outros. É precisamente nessa noção de prestígio da pessoa
que faz o ato ordenado, autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se
verifica todo o elemento social. No ato imitador que se segue, verificam-se o elemento
psicológico e o elemento biológico. Mas o todo, o conjunto é condicionado pelos três
elementos indissoluvelmente misturados. (MAUSS, 2003. p. 405).
Assim, conforme Mauss (2003) na citação anterior, o reconhecimento de
posições é também o reconhecimento do que é aprovado. Logo, tudo que representa
o diferente, o estranho, o anormal, o que margeia as normas é percebido como
desestruturado. Quando pensamos em corpo, este corpo quando está fora das
proximidades ele se torna também fonte de inquietação e medo. Esta percepção é
possível de ser percebida, por exemplo, em corpos femininos com deficiência no
Instagram. Mulheres com deficiência motora geram não só aversão aos seus corpos
quando ao expor imagens deles, mas geram também uma inquietação no público que
muitas vezes se transforma em comentários pejorativos e até mesmo no riso.
É complementando essa ideia de Mauss (2003) que Rodrigues4 (2006) em seu
livro intitulado "Tabu do corpo" atenta que o corpo carrega em si a marca da vida
social, expressando o que a sociedade define que deve ser impresso no mesmo. O
autor percebe o corpo como uma massa de modelar à qual a sociedade impõe suas
formas. Sendo assim, teríamos um corpo biológico, mas também um corpo
4
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. SciELO - Editora FIOCRUZ, 2006.
204 | Gênero, violência e estruturas de poder
social/cultural, indo assim de encontro com Mauss (2003). Para Rodrigues (2006)
somos incapazes de perceber o que são necessidades naturais, e o que são
necessidades sociais, pois consciente ou inconscientemente o corpo expressa
práticas e representações que são parte do processo de socialização. Toda a
atividade é uma expressão da estrutura social e a "estrutura biológica do homem
possibilita-lhe ver, ouvir, cheirar, sentir e pensar, mas a cultura fornece o rosto de
suas visões, sentimentos e pensamentos, criando novos cheiros, sons e visões,
constituindo novos universos e novos corpos (RODRIGUES, 2006)".
Ao tratarmos o corpo como em parte biológico, mas ao mesmo tempo também
cultural, podemos percebê-lo como uma força que reproduz o que a sociedade
deseja, mas também o que ela teme já que paralelamente ao fato de ser culturalizado,
este corpo também desvia do controle. O corpo feminino desviante no Instagram não
só desvia da norma, como também escandaliza a norma demonstrando a existência
de uma reprodução de um padrão impossível. Rodrigues (2006) afirma com esse
pensamento que o corpo representa a dualidade da estrutura social, já que a pessoa
se reconhece em seu corpo, ao mesmo tempo que tende a rejeitá-lo em seus
aspectos que não atendem à expectativa social. Para afirmar-se culturalmente a
pessoa se vê obrigada a rejeitar esse corpo natural, e por assim dizer animal, e todos
os processos orgânicos cabidos a ele. Em contraponto, a pessoa busca reconhecerse em um corpo cultural, aquele que tem a "dignidade da natureza humana", como
aponta o autor. Esse corpo cultural separa a pessoa de sua própria natureza,
tentando controlá-la e moldá-la, tentando imprimir a morte das dimensões que
diferem da norma.
Mesmo que haja esse reconhecimento do corpo cultural, é essencial lembrar
que ele é ferramenta da sociedade que o manipula a fim de expressar-se. Assim, ao
pensar o corpo estamos também pensando sobre a estrutura social, e ao codificá-lo
estamos codificando a sociedade. É deste modo que Rodrigues (2006) afirma que ao
controlar e evitar o que é considerado "inapropriado" controla-se também as
relações sociais. O autor também lembra que a cultura é quem dita as relações do
corpo, e que cada pessoa aprende comportamentos aos poucos e então torna-os
naturais. Este ponto evidencia o fato de que o corpo biológico está sempre sendo
conformado pela esfera cultural, por religião, família, classe, e outros aspectos
Aline Tusset De Rocco | 205
sociais. Assim, é neste mesmo corpo conformado que vemos as conotações também
da publicidade, da moda, dos filmes, ou como atenta Hassen 5 (2001) o corpo é
atingido pelas diversas esferas do poder, inclusive pelo consumo, ou como no caso
trazido neste artigo, pela comunicação de consumo e redes sociais. Agregando a
esta percepção, Hassen (2001) recorda que se o corpo é atingido pelas diversas
esferas do poder, ele é também capaz de se mostrar um veículo de transformação
cultural, logo, se o corpo reproduz poder ele também é a arma necessária para
combatê-lo.
Sabe-se também que além dos atributos citados que são elegidos pela cultura
a fim de moldar o corpo, é necessário reconhecer a educação como meio de inculcar
nas crianças tais atributos de modo que aos poucos se adequem às exigências
sociais. Nesse movimento sabemos que muitos dos atributos impostos são
impossíveis ou inalcançáveis, mas são idealizados pela sociedade e aprendidos
pelas pessoas em seu processo de socialização. Para Rodrigues (2006) a
socialização é o processo pelo qual a criança aprende a ser um membro da
sociedade, quando abre mão da sua autonomia em favor do controle social. A
socialização difere em cada sociedade, e pode ser baseada em leis ou acordos
informais que constituem valores sociais capazes de transformar comportamentos,
e assim também corpos.
Rodrigues (2006) ainda aponta que não é apenas por medo de penalidades
que pessoas seguem regras, mas também para que se sintam parte de uma
comunidade. Apesar da maioria das pessoas respeitar a maior parte das regras
sociais, normas formalmente estabelecidas são percebidas de maneiras diferentes
por pessoas em sua implementação prática. Em um raciocínio rápido, o autor lembra
que se toda regra existe para ser obedecida, existe também para ser quebrada; e isso
é imperativo estrutural do sistema social. Tanto é verdade que toda sociedade admite
algum nível de transgressão às suas regras.
5
HASSEN, Maria de Nazareth Agra. Da visão íntima na prisão: A corporalidade negociada. In: Corpo e
significado: ensaios de antropologia social. 2001.
206 | Gênero, violência e estruturas de poder
Com isto em mente podemos pensar a partir de Becker 6 (2008) e sua ideia de
desvio. De acordo com Becker (2008) todos os grupos sociais criam regras e definem
comportamentos apropriados, e as pessoas que apresentam um comportamento
desviante são chamadas de "outsiders". Assim, para o autor, a pessoa "outsider" se
molda a partir do que a sociedade e as demais pessoas têm como imagem dela. Por
essa lógica, podemos relacionar à expectativa ao corpo feminino também a uma
regra social e à uma imposição do que é adequado, e o que é desviante. O desvio
pode ser um traço de exclusão e pode impedir com que a pessoa com corpo
desviante participe de grupos, o que pode resultar também em grupos organizados
desviantes. Este movimento de grupos organizados desviantes é algo que vemos,
por exemplo, no movimento Body Positive, no qual mulheres gordas apresentam
seus corpos desviantes também como corpos bonitos e aceitos.
Para Rodrigues (2006) o desvio não estaria na conduta em si, mas na
interação entre as pessoas, na reação das mesmas ao perceberam a transgressão.
Para o autor, a consciência sobre transgressões nada mais é do que o reflexo das
pessoas sobre as sanções sociais, seja qual a forma que se apresente, desde as
manifestações da opinião pública até a própria culpa individual sobre um ato. Desta
maneira para ele, nem atos e nem transgressões estão diretamente ligados às
pessoas, mas sim às condições sociais responsáveis pelo sentimento. Logo, tornar
os corpos desviantes mais aceitos socialmente também pode tirá-los do espaço de
desvio e assim também da própria exclusão social derivada dele.
Quando começamos a pensar sobre corpos femininos desviantes retomamos
Mauss (2003) onde encontramos uma ideia que reforça a diferenciação do olhar, e
do corpo, feminino e masculino. Em Mauss (2003) já encontramos a ideia de que as
técnicas corporais podem ser segmentadas por gênero. Apesar dos estudos de
gênero muitas vezes negligenciar estudos sobre o corpo quando fala-se de
identidades, é pelo corpo que se produz e vivencia a sociedade. O corpo é assim uma
expressão de uma pessoa ou grupo social, e é também uma expressão do que é
considerado "ser mulher". Um exemplo que o autor traz é de como homens fecham
o punho com o polegar para fora, enquanto a mulher faria o mesmo gesto com o
6
BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Editora Schwarcz-Companhia das
Letras, 2008.
Aline Tusset De Rocco | 207
polegar para dentro. Isso está diretamente relacionado à educação do que é ser
homem, nesse caso saber dar um soco, e do que é ser mulher em nossa sociedade.
É neste ponto que entendemos que existe uma maneira de ser do corpo feminino, um
corpo que deve se apresentar com determinadas características, mas que também
deve gesticular, olhar e falar de maneiras tipicamente femininas que são sociais, e
não naturais à mulher.
Em Rodrigues (2006) entendemos que as definições de gênero estão
relacionadas diretamente a direitos e obrigações, e assim expectativas, sobre cada
gênero. Em todas as sociedades as crianças são ajustadas conforme o papel de
gênero que devem exercer, papel esse que é comportamental. O social, assim, está
presente nas menores e menos prováveis ações humanas e produz comportamentos
e pensamentos inconscientes sobre os gêneros. Com isso em mente temos um
trecho de Lopes 7 (2001) no livro Corpo e Significado onde a autora aponta a
importância da socialização para a feminilidade de uma travesti, de modo a adaptar
o seu corpo (e com ele seus trejeitos e toda a sua expressão) para uma expressão
que possa ser percebida enquanto feminina.
Fui percebendo que tornar-se travesti é bem mais que se "montar" de mulher e sair por
aí. Deixa-se os cabelos e as unhas crescerem, as sobrancelhas num estilo Gilda ou
Elizabeth Taylor, acessórios em abundância e roupas femininas, rendas, transparências,
decotes e cores. Um exagero que se aproxima do Drag-Queen. Mas isso não é o
suficiente. Carol Karydan, uma amiga travesti, fala que, nessa fase de transformar-se
travesti, o máximo que se consegue ser é uma "caricata", expressão utilizada para
designar a travesti iniciante. A construção desse "feminino" envolve tempo e
familiaridade com esses novos elementos. O que usar com o quê, a busca de um estilo
próprio. "Usar fuso, tênis e uma camisa de seda não dá, né? É preciso usar só renda,
langerie, uma linha jeans ou clássica". Essa forma econômica, discreta, só vem com o
tempo. (LOPES, 2001, p. 228).
7
LOPES, Suzana Helena Soares da Silva. Corpo, metamorfose e identidades: de Alan a Elisa Star. In:
Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001.
208 | Gênero, violência e estruturas de poder
No trecho apresentado, Lopes (2001) atenta que tornar-se travesti vai além de
apenas escolher uma roupa, mas se relaciona especialmente às escolhas, a
adaptação de uma norma de corpo e vestir feminino. O sistema de normas sobre o
corpo que cria o desvio a partir da sua percepção, também define as expectativas
relacionadas ao que é ser mulher e o que é ter um corpo feminino. Mesmo que a
construção da feminilidade seja temporal e cultural, os corpos que divergem deste
padrão social sofrem com uma violência coletiva através da exclusão. Ao mesmo
tempo que sofrem violências, esses corpos também abrem a possibilidade da
concepção de um novo modelo de corpo feminino.
É assim que Victora8 (2001) compreende que ao mesmo tempo que o corpo
se adequa às normas e expressa significados, ele próprio é discurso sobre a
sociedade passível de leituras diversas por diferentes pessoas. Postura, forma,
manifestações, trejeitos, tudo emite significados e imagens do que é constitutivo de
ser mulher, ao mesmo tempo que também permite a leitura e interpretação desta
imagem. Assim, existe o discurso expresso pelo corpo, mas também o discurso
compreendido por quem o percebe, podendo estes dois pontos divergirem. Não só a
linguagem expressa o corpo, mas também as representações o fazem. Logo,
podemos observar o habitus de Mauss no discurso e imagens produzidos pelos
corpos femininos que estão divergindo da norma, do mesmo modo que podemos
compreender de que maneira eles são lidos.
3 O CORPO POLÍTICO EM FOUCAULT
Se em Mauss (2003) têm-se a ideia de técnica do corpo, e em Rodrigues
(2006) o corpo carrega a marca da vida social, em Foucault (2015) podemos explorar
o corpo político. Em seus múltiplos trabalhos Foucault estudou o disciplinamento
dos corpos e prestou especial atenção às práticas e discursos que agem sobre
corpos visando à produção de determinados modos de ser e agir. É a partir deste
disciplinamento que Foucault9 (1977) vê as subjetividades hegemônicas munidas de
8
VICTORA, Ceres G. As imagens do corpo: Representações do aparelho reprodutor feminino e
reapropriações do modelo médico. In: Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001.
9
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1977.
Aline Tusset De Rocco | 209
aptidões e habilidades e que percebe o treinamento do corpo humano para se tornar
mais produtivo na sociedade capitalista. Assim, Foucault (1977) entende que os
corpos foram construídos como "dóceis" de forma a se tornarem mais capacitados
e adequados ao capitalismo industrial. Ao mesmo tempo que todo corpo está
inserido no contexto capitalista e na docilização para produção, mulheres com
corpos desviantes ao confiscar o discurso sobre seus corpos, mesmo que apenas
por alguns momentos, quebram o monopólio do discurso sobre um suposto padrão
do corpo feminino apresentando um corpo que cria fissuras na norma.
De acordo com Foucault (2015) o corpo "é destroçado por ritmos de trabalho,
repouso e festa; ele é intoxicado por venenos - alimentos ou valores, hábitos
alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria resistências". É a partir desta
linha de pensamento que Foucault (2015) apresenta o corpo como efeito de diversas
práticas e que podemos entender um conceito que vem a ser central quando
pensamos em corpos e resistência, a ideia de "biopolítica". Para ele, existe um
biopoder que age sobre o corpo humano com o objetivo de gerir a vida do corpo
social. O corpo social aqui não é apenas corpo biológico, mas é um corpo que emerge
como espaço que abrange um corpo físico e também cultural, ele é o corpo
apresentado também por Mauss (2003) e Rodrigues (2006). Este biopoder, segundo
Foucault (2015), gere nascimento, mortalidade, duração da vida, e não se restringe a
um poder meramente disciplinar. Quando falamos de poder temos a tendência de
imaginar o poder pela repressão, pela lei que proíbe. Porém em Foucault (2015) o
poder não é aquele que apenas proíbe, pois se assim fosse jamais seria obedecido.
Para ele, se o poder agisse apenas de modo negativo e produzisse uma repressão
exagerada, se tornaria frágil. Deste modo, para Foucault (2015) o poder só é forte
porque produz efeitos positivos a nível de desejo e saber, produzindo discurso e
induzindo ao prazer. "Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa
todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função
reprimir" (FOUCAULT, 2015, p. 45). É a partir do poder sobre o corpo que a medicina
conseguiu progredir enquanto saber, e é a partir do desejo do corpo perfeito que o
poder domina os corpos. É o poder que faz com que nós mulheres tenhamos o desejo
do corpo ideal, e é ele que produz a exclusão daquelas que não conseguem estar de
acordo com a expectativa do corpo feminino. O autor retoma afirmando que cada
210 | Gênero, violência e estruturas de poder
sociedade tem seu regime de norma, seus próprios discursos que são tidos como
verdade, e também o estatuto daqueles que dizem o que funciona como verdadeiro.
Assim, podemos relacionar que cada sociedade tem seu próprio padrão de corpo
feminino, e suas expectativas sobre o mesmo. Se toda sociedade apresenta um
padrão, resistir ao poder pode ser apresentar um corpo em desvio, que pode vir ser o
corpo feminino gordo e negro; como também o corpo feminino trans e com
deficiência.
Quando Foucault (2015) aborda o poder, ele trata também de regras e relações
de dominação. Para ele, as regras substituíram a guerra e a humanidade instalou sua
violência nelas para prosseguir com novas dominações dobrando aqueles que antes
dominavam. Nesta lógica foucaultiana, as regras são um grande jogo, onde existem
os que as utilizam, e outros que as invertem para uma nova vontade submetendo-a
a uma nova interpretação. Neste caso, percebemos as mulheres gordas e negras ou
trans e com deficiência não só como estes corpos desviantes, mas também como as
pessoas capazes de inverter essa regra e apresentar uma nova interpretação para
seus próprios corpos. As redes sociais permitem com que mulheres fora do padrão
invertam a norma e produzam resistência. É também com a criação e interação a
cerca de um corpo desviante que criam-se locais seguros para a resistência e para
a troca a partir de um pensamento de confronto à norma.
Ainda assim, vale atentar que em Foucault (2015) o poder não é fixo e é capaz
de se deslocar e muitas vezes incorporar as fissuras criadas pela resistência.
Percebemos este ponto quando olhamos para o corpo da mulher gorda. Ainda que
pouco, a mulher gorda tem passado a ser representada nas imagens de consumo e
nas passarelas de moda, entretanto, ao mesmo tempo esta mulher gorda continua
sendo recusada em vagas de emprego e tem dificuldades ou não consegue acessar
todos os espaços sociais e políticos. Logo, mesmo que minimamente incorporada
ao poder através do consumo, ela ainda se mantém excluída socialmente e
politicamente, ou seja, ela é minimamente incorporada em uma sociedade capitalista
que não a incorpora em seus direitos como cidadã.
É também com o pensamento de Foucault (2015) que encontramos a ideia de
que as relações de poder são fenômenos complexos, e entre estes fenômenos
podemos perceber a tentativa de domínio do corpo, através da exaltação de um
Aline Tusset De Rocco | 211
suposto corpo belo, um corpo idealizado. Esta reflexão demonstra como o poder
exerce domínio sobre o corpo, levando-nos à busca de um corpo ideal e à
desaprovação do corpo que não atende esta expectativa. Entretanto, apesar do
domínio do poder, uma consequência produzida pela dominação é também a
resistência. Podemos entender os corpos femininos gordos e negros ou trans e com
deficiência como corpos que se rebelam ao se afirmar possíveis, como corpos que
fissuram o poder com seu discurso e buscam a resistência à dominação. Assim, o
que era poder, passa a ser resistência. Logo, se o poder é capaz de se deslocar, ele
também se mostra menos fixo do que o suposto. Assim, Foucault (2015) desfaz a
ideia, que era vigente até a década de 1960, de que o poder é algo rígido e fixo,
demonstrando que o poder pode ser tênue quando sobre o corpo.
Ao falarmos do poder, e assim dos grupos poderosos e subordinados, é
essencial voltar a Foucault (2015) e a sua afirmação sobre não ser possível
identificar sujeito ou grupo como fonte do poder. Desta maneira, podemos
compreender que o poder não pode ser irradiado para grupos subordinados. A ideia
defendida é de que tanto grupos poderosos quanto grupos sem poder estão no
mesmo circuito, embora de forma desigual. Quando tratamos do grupo que tem
poder estamos falando sobre grupos de decisão que tentam moldar a sociedade de
acordo com sua visão de mundo e valores, estabelecendo assim o que é visto como
normal e o que é visto como anormal. Este grupo faz com que o normal pareça tão
natural para todas as pessoas que acaba por conseguir estabelecer a hegemonia.
Como afirma Foucault (2015, p. 138) "Ninguém é, propriamente falando, seu titular;
e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, (...) não se sabe ao certo
quem o detém; mas se sabe quem não o possui."
Foucault (2015) afirma que cada resistência tem um foco particular e que
designar o alvo da luta é o primeiro passo para inverter o poder. Assim, mulheres
com corpos desviantes ao confiscar o discurso sobre seus corpos, mesmo que
apenas por alguns momentos, quebram o monopólio do discurso que socialmente
se impõe sobre seus próprios corpos. É desta maneira que o autor entende que todas
as pessoas que sofrem com a impressão do poder sobre seus corpos podem
começar a lutar a partir de seu próprio lugar. Se, conforme Foucault (2015), o controle
212 | Gênero, violência e estruturas de poder
da sociedade capitalista começa pelo corpo, e não pela ideologia, é apenas a partir
do corpo e do discurso sobre o mesmo que pode-se romper com o poder.
Ao mesmo tempo, a sociedade capitalista é capaz de absorver revoltas do
corpo. Como resposta, muitas vezes o poder se utiliza do controle-estimulação.
Assim, vemos o que Foucault (2015) chama de investimento do corpo pelo poder, ou
seja, o trabalho insistente e meticuloso que o poder exerce a fim de conduzir e
dominar o corpo. Ao mesmo tempo que o poder investe no trabalho sobre o corpo, o
corpo reivindica o prazer e a diferença como uma contra ofensiva, mantendo esta
uma batalha contínua. Porém a cada movimento de luta, o poder também se
movimenta e cria novos efeitos.
A partir de tal, se Foucault (2015) compreende a dominação como algo que
não ocorre de um grupo sobre o outro, mas de maneira múltipla, então não temos
uma posição central, mas temos diversas sujeições no interior do corpo social.
Assim, para ele o poder se exerce em rede já que as pessoas em um momento
exercem poder e em outro momento sofrem sua ação. Se por um lado uma mulher
com deficiência sofre com a dominância do poder e suas implicações sobre seu
corpo, esta mesma mulher pode ser branca e repercutir uma ação que propaga um
ideal de branquitude.
Ainda assim, o poder não se aplica às pessoas, mas passa por elas, sendo
essas produto da relação de poder, desejos, movimentos e forças que se exercem
sobre seus corpos. Logo, cada pessoa é efeito do poder ao mesmo tempo que é
também sua fonte de transmissão. A circulação do poder permite que seus efeitos
cheguem aos corpos, gestos, e a cada prática cotidiana. Assim, as estratégias do
poder estão nas microrrelações, e com elas que avançam sobre novos domínios
produzindo novos efeitos. Esta linha de análise vai de encontro à proposta aqui neste
trabalho, já que ao retomarmos Foucault (2015), temos conhecimento dos
mecanismos gerais da dominação, logo, podemos agora compreender também as
microrrelações e como se dão as possíveis resistência destes corpos femininos no
contexto brasileiro.
Aline Tusset De Rocco | 213
Conforme Guizzo e Invernizzi10 (2012), no século XVIII com a introdução deste
novo grupo de saberes para controle e manutenção da população, que Foucault
(2015) veio a chamar de "biopolítica", é que os corpos femininos se tornam alvo de
estratégias de normalização. É a partir deste momento que corpo e saúde se tornam
pauta e que se constrói socialmente a figura da mulher, tomada a partir de um
discurso que ressalta sua condição cultural. Esta nova dinâmica de poder é
instaurada e também propagada pelas novas tecnologias no século XIX e XX a partir
do o controle do corpo feminino e do papel social esperado de uma mulher. Assim, a
mulher deixa de ser problema meramente político, mas se torna um problema
biológico já que agora a biopolítica controla suas vidas muito mais do que apenas o
controle do Estado através do controle e adestramento, ou mesmo da imposição da
morte.
Guizzo e Invernizzi (2012) apresentam quatro exemplos das estratégias de
dominação sobre os corpos: "a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do
corpo da criança, a socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização dos
prazeres perversos". No caso da histerização da mulher, conforme Foucault11 (1988),
este corpo foi analisado, qualificado e desqualificado, tornando-se locus dos
exercícios de micropoderes que investem e modelam os corpos.
A preocupação com as diferenças entre feminino e masculino, derivação da
biopolítica, começa a se instaurar e a propagar a ideia que o corpo masculino é
superior ao feminino. Os estudos médicos aos poucos reforçam esta ideia, atribuindo
inclusive doenças à própria natureza da mulher. Além do reforço à condição de
gênero, estabelece-se um paradigma onde o ser mulher está atrelado ao papel social
da mesma. Ali, a própria divisão do trabalho se faz presente, quando entende-se que
algumas habilidades são naturais à mulheres e outras não. Assim, vemos que a
preocupação médica e social não se restringe às mulheres, mas se ocupa delas como
algo primordial à construção biopolítica. Com isto em mente, vemos a ideia
foucaultiana de não-neutralidade do saber, já que a verdade é produzida a partir do
10
GUIZZO, Daniele Cristina; INVERNIZZI, Noela. A potencialização das práticas biopolíticas pela
tecnologia: novas produções do corpo e gênero feminino. Revista Ártemis, v. 13, n. 1, 2012.
11
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
214 | Gênero, violência e estruturas de poder
poder e se impõe sobre o que deve ser o corpo feminino e para que este deve ser
utilizado.
Partindo da ideia de que Foucault (2015) defende que as novas formas de
controle ultrapassam as disciplinas do corpo, para Bentes12 (2017) com a transição
das tecnologias também vemos o surgimento de políticas de resistência que
atravessam diferentes campos e que se confundem muitas vezes com a própria ideia
de entretenimento. Assim, a partir da perspectiva foucaultiana e da ideia de um novo
campo político através da tecnologia, podemos pensar como um novo ativismo
identitário surge, produzindo imagens e discursos, mas também novas narrativas e
propondo novas possibilidades de experienciar o próprio corpo. O uso de perfis do
Instagram por mulheres com corpos desviantes pode assim ser percebido como uma
estratégia individual para responder a demandas e a discursos sociais, ao mesmo
tempo que também pode contribuir para dar novas formas ao ser mulher no Brasil.
Logo, se para Foucault existe um biopoder, para Latour 13 (2008) "ter um corpo é
aprender a ser afectado", ou seja, estar sempre em constante movimento de
mudança, assim deveria haver também um biocontra-poder onde se localiza a busca
por liberdade dos corpos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o conceito foucaultiano de biopolítica atrelado a ideia de desvio de
Becker (2008) podemos refletir sobre o padrão esperado do corpo feminino no Brasil,
seja por conta dos trejeitos ou habitus esperados de maneira inerente ao feminino,
seja pelo corpo enquanto forma, cor e aparência. Um pouco do que foi apresentado
aqui, para além dos conceitos, foi a possibilidade de buscar o entendimento do
movimento de corpos desviantes em redes sociais, mais especificamente no
Instagram.
Se o desvio produz exclusão, é a partir do desvio e da percepção de unidade
de corpos desviantes que surgem novos grupos de resistência, tanto na Internet,
12
BENTES, IVANA. Biopolítica feminista e estéticas subversivas. Matrizes, v. 11, n. 2, p. 93-109, 2017.
LATOUR, Bruno. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. Objectos
impuros: experiências em estudos sobre a ciência, v. 10, n. 2004, p. 39-61, 2008.
13
Aline Tusset De Rocco | 215
quanto nos movimentos que transbordam para o meio não digital. Os corpos
femininos apresentados no Instagram são os mesmos corpos que habitam a
sociedade fora das telas, e são estes corpos que buscam o respeito na Internet, mas
também a inclusão sociopolítica fora dela. Em espaços como o Instagram
encontramos uma diversidade de corpos femininos que se apresentam e se impõem
enquanto possíveis. Entretanto, mesmo nas fissuras geradas pelos corpos em
resistência ainda assim podemos perceber que muitas vezes o padrão se readapta,
absorvendo partes das reivindicações. De todo modo, a resistência destes corpos na
Internet é capaz de agrupar uma diversidade de corpos que se reconhecem nesta
luta e que se impõe em movimento de resistência também nos espaços
sociopolíticos.
Para finalizar, é essencial retomar que independente do corpo feminino
desviante, a Internet, e em especial o Instagram, tem se mostrado como um espaço
seguro de resistência. Mesmo que lá haja discursos que diminuem esses corpos
femininos em desvio, também é lá que cria-se uma grande rede de apoio e de objeção
a ideia de que só existe um corpo feminino possível, o corpo branco, magro, cis e sem
deficiência.
REFERÊNCIAS
BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Editora SchwarczCompanhia das Letras, 2008.
BENTES, Ivana. Biopolítica feminista e estéticas subversivas. Matrizes, v. 11, n. 2, p.
93-109, 2017.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Paz e Terra. 2015.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Petrópolis:
Vozes, 1977.
GUIZZO, Daniele Cristina; INVERNIZZI, Noela. A potencialização das práticas
biopolíticas pela tecnologia: novas produções do corpo e gênero feminino. Revista
Ártemis, v. 13, n. 1, 2012.
216 | Gênero, violência e estruturas de poder
HASSEN, Maria de Nazareth Agra. Da visão íntima na prisão: A corporalidade
negociada. In: Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001.
LATOUR, Bruno. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a
ciência. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência, v. 10, n. 2004,
p. 39-61, 2008.
LOPES, Suzana Helena Soares da Silva. Corpo, metamorfose e identidades: de Alan
a Elisa Star. In: Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001.
MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. Cosac Naify. 2003.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. SciELO - Editora FIOCRUZ, 2006.
VICTORA, Ceres G. As imagens do corpo: Representações do aparelho reprodutor
feminino e reapropriações do modelo médico. In: Corpo e significado: ensaios de
antropologia social. 2001.
11. A MULHER E O TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO NA TEORIA DAS
CAPACIDADES E NA INTERSECCIONALIDADE
https://doi.org/10.36592/9786554601566-11
Carem Barbosa de Castro1
Maria Laura Maciel Fernandez2
Resumo
O presente artigo tem o objetivo de verificar que a problemática brasileira do trabalho
invisível do cuidado, assumido massivamente por mulheres e, principalmente por
mulheres negras, pode ser analisado e enfrentado sob a perspectiva da Teoria das
Capacidades de Martha Nussbaum, mas também pela interseccionalidade. O artigo
se divide em três capítulos. No primeiro capítulo, busca-se demonstrar o panorama
do trabalho invisível do cuidado assumido pelas mulheres e, principalmente, pelas
mulheres negras brasileiras. Após, passa-se à análise de mencionada problemática
pela perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum e como esta pode
ajudar a enfrentá-la. Por fim, busca-se demonstrar que mencionada problemática,
além de ser enfrentada pela Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum e pelo
recorte de gênero, também deve ser analisada e enfrentada através da
interseccionalidade, principalmente pela intersecção com a raça. Para isso, foi
utilizado o método de abordagem dedutivo, como forma de, partindo de análises
gerais acerca da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum e da
interseccionalidade, analisar o fenômeno específico do trabalho invisível do cuidado,
assumido massivamente pelas mulheres, no contexto brasileiro. Foi utilizado como
procedimento a pesquisa bibliográfica, com o estudo de artigos e publicações
científicas sobre o tema.
Abstract
This article aims to verify that the Brazilian problem of invisible care work, undertaken
massively by women and, mainly, by black women, can be analyzed and faced from
the perspective of Martha Nussbaum's Capabilities Theory, but also through
intersectionality. The article is divided into three chapters. In the first chapter, we
seek to demonstrate the panorama of the invisible care work undertaken by women
and, mainly, by black Brazilian women. Afterwards, we analyze the aforementioned
problem from the perspective of Martha Nussbaum's Capabilities Theory and how it
can help to face it. Finally, we seek to demonstrate that the aforementioned problem,
in addition to being faced by Martha Nussbaum's Capabilities Theory and the gender
perspective, must also be analyzed and faced through intersectionality, mainly
1
Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em
Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Email: castrocarem@gmail.com.
2
Mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Graduada em
Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Email: maria-laura-95@hotmail.com.
218 | Gênero, violência e estruturas de poder
through the intersection with race. For this, the deductive approach method was
used, as a way of analyzing the specific phenomenon of invisible care work,
massively undertaken by women, in the Brazilian context, based on general analyzes
about Martha Nussbaum's Theory of Capabilities and intersectionality.
Bibliographical research was used as a procedure, with the study of articles and
scientific publications on the topic.
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, cada vez mais, torna-se latente a necessidade de se enfrentar o
problema do trabalho invisível do cuidado assumido, principalmente, pelas mulheres.
Tendo em vista essa necessidade, o presente artigo procura demonstrar, ante dados
brasileiros da massiva carga sustentada pelas mulheres no trabalho do cuidado,
como estas precisam da atuação do Estado e de políticas públicas para conseguirem
serem capazes de buscarem uma vida que elas considerem boa, sob a perspectiva
da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum. Além disso, o presente artigo visa
demonstrar que não basta enfrentar o problema apenas com um recorte de gênero,
mas também com um recorte de raça, utilizando a denominada interseccionalidade,
uma vez que as mulheres negras sofrem massivamente mais que mulheres brancas
nessa problemática do trabalho do cuidado.
Como metodologia, foi utilizado o método de abordagem dedutivo, como
forma de, partindo de análises gerais acerca da Teoria das Capacidades de Martha
Nussbaum e da interseccionalidade, analisar o fenômeno específico do trabalho
invisível do cuidado, assumido massivamente pelas mulheres, no contexto brasileiro.
Foi utilizado como procedimento a pesquisa bibliográfica, com o estudo de artigos e
publicações científicas sobre o tema.
O artigo se estrutura em três capítulos. No primeiro capítulo, busca-se
demonstrar o panorama do trabalho invisível do cuidado assumido pelas mulheres
e, principalmente, pelas mulheres negras brasileiras. Após, passa-se à análise de
mencionada problemática pela perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha
Nussbaum e como esta pode ajudar a enfrentá-la. Por fim, busca-se demonstrar que
mencionada problemática, além de ser enfrentada pela Teoria das Capacidades de
Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 219
Martha Nussbaum e pelo recorte de gênero, também deve ser analisada e enfrentada
sob a ótica da interseccionalidade, principalmente pela intersecção com a raça.
Outrossim, após o exame em todos esses capítulos, busca-se verificar que a
problemática brasileira do trabalho invisível do cuidado, assumido massivamente
por mulheres e, principalmente por mulheres negras, pode ser analisado e enfrentado
sob a perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum, mas também
pela interseccionalidade.
2 A MULHER E O TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO NO BRASIL
Em 2023 no Brasil, surpreendentemente, o tema da redação do Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi “Desafios para o enfrentamento da
invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Os quatro
textos motivadores que os alunos dispunham para redigir um texto dissertativaargumentativo frisavam que o trabalho do cuidado é essencial para a sociedade e
para a economia. Esse trabalho de cuidado engloba o trabalho, por exemplo, de
cuidar das crianças, idosos e pessoas com doenças e deficiências físicas e mentais,
bem como o trabalho doméstico diário que engloba cozinhar, limpar, lavar, consertar
coisas e buscar água e lenha. Entretanto, sinalizavam uma problemática com relação
à divisão desse trabalho de cuidado: ele é desproporcionalmente assumido por
mulheres e meninas3.
Mais, atestam que as mulheres são responsáveis por mais de três quartos do
cuidado não remunerado e compõem dois terços da força de trabalho envolvida em
atividades de cuidado remuneradas.
Frisam, inclusive, que esse trabalho não
remunerado ou, muitas vezes, mal pago, é assumido principalmente por mulheres
que pertencem a grupos que, além da discriminação de gênero, sofrem preconceito
em decorrência da raça, etnia, nacionalidade ou sexualidade4.
3
EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de linguagens,
códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em:
https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD1.pdf.
Acesso
em: 29 mar. 2024.
4
EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de linguagens,
códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em:
220 | Gênero, violência e estruturas de poder
Segundo dados do IBGE, trazidos pelo ENEM, a medida de horas semanais
dedicadas pelas pessoas de 14 anos ou mais de idade aos afazerem doméstico e/ou
às tarefas de cuidados de pessoas, por sexo, era de 11 horas semanais para os
homens e 21,4 horas semanais para mulheres, ou seja, quase o dobro. Esses dados,
ressaltam os textos, demonstram que, apesar das inúmeras transformações sociais
pelas quais a sociedade brasileira tem passado nas últimas décadas, como, por
exemplo, as mudanças de percepções sociais a respeito dos valores e das
convenções de gênero e a forma como as mulheres têm se inserido na sociedade,
uma permanência choca: como a delegação quase que exclusiva às famílias – e,
nestas, às mulheres -
de atividades relacionadas à reprodução da vida e da
sociedade, usualmente denominadas trabalho de cuidado5.
Por fim, o ENEM traz dados da Revista Pesquisa da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) que alerta sobre os desafios do cuidado.
Há um aumento no número de pessoas que demandam serviços de assistência,
como por exemplo, o envelhecimento cada vez maior da população brasileira com o
aumento da expectativa de vida, obrigando o país a repensar seu sistema de atenção.
Entretanto, no Brasil, o protagonismo dessa assistência continua no âmbito familiar
e, dentro deste, o protagonismo dessa assistência continua com a mulher. Portanto,
o tema da redação do ENEM de 2023, apenas da visibilidade à uma problemática que
há muitos anos acomete as mulheres no Brasil, sendo pertinente6.
Entretanto, a divisão do trabalho de cuidado no Brasil não se caracteriza
apenas pelas desigualdades de gênero e de classe, mas está profundamente
marcado também pelas desigualdades raciais. No país, boa parte da provisão de
cuidados é de responsabilidade de mulheres negras, tanto no que se refere ao
trabalho doméstico e de cuidados não remunerados exercido no interior de seus
https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD1.pdf.
Acesso
em: 29 mar. 2024.
5
EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de linguagens,
códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em:
https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD1.pdf.
Acesso
em: 29 mar. 2024.
6
EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de linguagens,
códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em:
https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD1.pdf.
Acesso
em: 29 mar. 2024.
Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 221
domicílios quanto ao trabalho remunerado do cuidado. Mais, os dados do IBGE
demonstram que, quando analisado sobre o recorte de raça, as 21,4 horas semanais
em média que as mulheres despendem ao trabalho do cuidado, refere-se,
principalmente, às mulheres brancas. Já, paras as mulheres negras, essa média sobe
pra 22,3 horas por semanais. Ainda que essa diferença aparente ser pouca, ao final
de um ano ela significa que as mulheres negras realizam quase 68 horas a mais de
trabalho de cuidados não remunerados do que as mulheres brancas, o que equivale
a uma semana e meia adicional de trabalho por ano, considerando a jornada de
trabalho legal de 44 horas semanais7.
Portanto, a problemática do trabalho invisível do cuidado não apenas se refere
à uma desigualdade de gênero e à uma sociedade machista, misógina e patriarcal,
mas também racista. O referido problema deve ser enfrentado pelo Estado e por
políticas públicas, para que as mulheres sejam menos sobrecarregadas e consigam
cuidar de si mesmas, perseguindo uma vida que considerem boa.
3 O TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO NA TEORIA DAS CAPACIDADES DE
MARTHA NUSSBAUM
Após a exposição acima de como as mulheres brasileiras são as principais
encarregadas do trabalho invisível do cuidado e como isso afeta a sua persecução
por uma vida que elas considerem boa, deixando de lado seu bem-estar em prol da
família, expõem-se, sob o olhar da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum,
como o problema pode ser enfrentado para que as mulheres sejam vistas como seres
humanos com desejos, sonhos, necessidades e que também necessitam de
cuidados. Estas, ao estarem sobrecarregadas, não conseguem perseguir o que
consideram ser uma vida boa ou, em outras palavras, a felicidade subjetiva que
desejam.
Martha Nussbaum é uma das mais famosas filósofas estadunidenses,
referência em filosofia do Direito e moral. Ademais, é professora emérita de Direito e
7
BRASIL. Nota Informativa nº. 1/2023 – Secretaria Nacional de Cuidados e Família – As mulheres
negras no trabalho de cuidado. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e
Combate à Fome, 2023.
222 | Gênero, violência e estruturas de poder
Ética da Universidade de Chicago. Em seus trabalhos, bem como em sua Teoria das
Capacidades, ressalta a grande influência do economista e ganhador do Prêmio
Nobel de Economia, Amartya Sen, e do filósofo estadunidense John Rawls8.
A denominada “abordagem das capacidades” ou “Teoria das Capacidades”, é
um guarda-chuva que abrange diversas espécies de teorias desenvolvidas em seu
bojo e nas mais diversas áreas do conhecimento. No caso de Martha Nussbaum, esta
desenvolveu sua espécie da Teoria das Capacidades no âmbito da Teoria da Justiça,
sendo influenciada por ambos teóricos acima referidos. Mais, Martha Nussbaum, em
sua Teoria das Capacidades, realiza um recorte de gênero, para demonstrar como
estas carecem de promoção nas ditas capacidades9.
Segundo Amartya Sen, uma das principais preocupações na vida das pessoas,
não é apenas focar no tipo de vida que se consegue efetivamente levar, mas também
na efetiva liberdade que realmente se tem para escolher entre diferentes estilos e
modos de vida. Assim, segundo o autor,
Na verdade, a liberdade para determinar a natureza de nossas vidas é um dos aspectos
valiosos da experiência de viver que temos razão para estimar. O reconhecimento de que
a liberdade é importante também pode ampliar as preocupações e os compromissos que
temos10.
Assim, a Teoria das Capacidades afirma que para as pessoas alcançarem o
bem-estar, estás devem se questionar o que são capazes de fazer ou ser e, portanto,
o tipo de vida que efetivamente são capazes de levar. Ou seja, não é observado se a
pessoa efetivamente consegue fazer algo ou ser algo, e sim, caso esta queira fazer
algo ou ser algo, esta tenhas as condições substanciais para tanto. Nesse sentido,
Amartya Sem narra o exemplo de uma pessoa que passa fome pela pobreza e outra
que jejua por livre e espontânea vontade. A que passa fome, caso não queira passar,
não possui as condições necessárias para sair de seu estado de miséria e falta de
alimentos. Entretanto, a pessoa que jejua por sua livre e espontânea vontade, o faz
8
NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
9
NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.
10
SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 261.
Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 223
porque quer e, caso deseje não mais passar fome, possui as condições substanciais,
reais e materiais para tanto11.
O economista Amartya Sen foi pioneiro ao apontar que uma nação rica não é
a nação com o PIB mais elevado e sim, a que distribui melhor essa riqueza entre seus
cidadãos. O autor analisa essa distribuição pelo viés de sua Teoria das Capacidades,
em que uma nação com igualdade é a nação que promove igualmente as
capacidades das pessoas para quando desejarem algo ou quando quiserem ser algo,
consigam efetivamente e substancialmente lograrem êxito12.
Martha Nussbaum, coaduna com o exposto por Amartya Sen. Entretanto, sua
Teoria das Capacidades, uma das espécies dentro do guarda-chuva da abordagem
das capacidades, vai além. A autora, além de defender a promoção das capacidades
dos cidadãos para efetivamente serem livres para escolher a boa vida que desejam
levar, esta cunha uma lista efetiva de dez capacidades que são primordiais e que
devem ser promovidas para todos os cidadãos indistintamente, sob pena de, na falta
de apenas uma, as pessoas não serem efetivamente livres e iguais. Segue a lista:
As capacidades humanas centrais
1. Vida. Ter a capacidade de viver até o fim de uma vida humana de duração normal; não
morrer prematuramente, ou antes que a própria vida se veja tão reduzida que não valha
a pena vivê-la.
2. Saúde física. Ser capaz de ter boa saúde, incluindo a saúde reprodutiva; de receber
uma alimentação adequada; de dispor de um lugar adequado para viver.
3. Integridade física. Ser capaz de se movimentar livremente de um lugar a outro; de estar
protegido contra ataques de violência, inclusive agressões sexuais e violência doméstica;
dispor de oportunidades para a satisfação sexual e para a escolha em questões de
reprodução.
4. Sentidos, imaginação e pensamento. Ser capaz de usar os sentidos, a imaginação, o
pensamento e o raciocínio – e fazer essas coisas de um modo “verdadeiramente
humano”, um modo informado e cultivado por uma educação adequada, incluindo, sem
limitações, a alfabetização e o treinamento matemático e científico básico. Ser capaz de
usar a imaginação e o pensamento em conexão com experimentar e produzir obras ou
eventos, religiosos, literários, musicais e assim por diante, da sua própria escolha. Ser
11
12
SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
224 | Gênero, violência e estruturas de poder
capaz de usar a própria mente de modo protegido por garantias de liberdade de
expressão, com respeito tanto à expressão política quanto artística, e liberdade de
exercício religioso. Ser capaz de ter experiências prazerosas e evitar dores não benéficas.
5. Emoções. Ser capaz de manter relações afetivas com coisas e pessoas fora de nós
mesmos; amar aqueles que nos amam e que se preocupam conosco; sofrer na sua
ausência; em geral, ser capaz de amar, de sentir pesar, sentir saudades, gratidão e raiva
justificada. Não ter o desenvolvimento emocional bloqueado por medo e ansiedade.
(Apoiar essa capacidade significa apoiar formas de associação humana que podem se
revelar cruciais para seu desenvolvimento).
6. Razão prática. Ser capaz de formar uma concepção de bem e de ocupar-se com a
reflexão crítica sobre o planejamento da própria vida. (Isso inclui proteção da liberdade
de consciência e de prática religiosa).
7. Afiliação.
A. Ser capaz de viver com e voltado para os outros, reconhecer e mostrar preocupação
com outros seres humanos, ocupar-se com várias formas de interação social; ser capaz
de imaginar a situação do outro. (Proteger essa capacidade significa proteger as
instituições que constituem e alimentam tais formas de afiliação e também proteger a
liberdade de associação e de expressão política).
B. Ter as bases sociais de autorrespeito e não humilhação; ser capaz de ser tratado como
um ser digno cujo valor é igual ao dos outros. Isso inclui disposições de não
discriminação com base em raça, sexo, orientação sexual, etnia, casta, religião, origem
nacional.
8. Outras espécies. Ser capaz de viver uma relação próxima e respeitosa com animais,
plantas e o mundo da natureza.
9. Lazer. Ser capaz de rir, brincar, gozar de atividades recreativas.
10. Controle sobre o próprio ambiente.
A. Político. Ser capaz de participar efetivamente das escolhas políticas que governam a
própria vida; ter o direito à participação política, proteções de liberdade de expressão e
associação.
B. Material. Ser capaz de ter propriedade (tanto de bens imóveis quanto de móveis) e ter
direitos de propriedade em base igual à dos outros; ter o direito de candidatar-se a
empregos em base de igualdade com os demais; ter a liberdade contra busca e
apreensão injustificadas. No trabalho, ser capaz de trabalhar como ser humano,
exercendo a razão prática e participando de relacionamentos significativos, de
reconhecimento mútuo com demais trabalhadores13.
13
NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 91-93.
Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 225
Mas, Martha Nussbaum, vai além de Amartya Sen e, não só cunha uma lista
de dez capacidades, mas realiza um recorte de gênero em sua Teoria das
Capacidades, ressaltando que as mulheres compõem um dos grupos minoritários
que não possuem suas capacidades efetivamente promovidas por conta da
sociedade misógina e patriarcal. É, principalmente em Woman and Human
Development: The Capabilities Approach, que Martha Nussbaum demonstra como as
mulheres são esquecidas quando da promoção das capacidades pelo Estado e sua
máquina pública (administração), uma vez que para ela, estes são os principais
responsáveis por promoverem as dez capacidades mencionadas anteriormente14.
Segundo Martha Nussbaum, principalmente no capítulo 4, denominado “Amor
cuidado e dignidade”, de Woman and Human Development: The Capabilities
Approach, as mulheres são taxadas como naturalmente doadoras de amor e
cuidados. Entretanto, seguindo a mesma esteira de John Stuart Mill, em A sujeição
das mulheres, a autora ressalta que essa falácia da natureza da mulher para o
trabalho do cuidado é algo eminentemente artificial15.
Segundo Martha Nussbaum, praticamente em todas as culturas, o papel
tradicional das mulheres implica na criação dos filhos e o cuidado do lar, marido e
família. Esse papel designado a elas está associado à falácia de que estas possuem
virtudes morais, tais como a preocupação altruísta, a sensibilidade para as
necessidades dos demais e uma disposição para sacrificar seus próprios interesses
a favor dos demais16.
Entretanto, Martha Nussbaum, como uma feminista liberal igualitária, aduz
que quando grupos minoritários em situações específicas de vulnerabilidade, em que
suas capacidades não conseguem serem promovidas, como as mulheres no caso do
maçante trabalho do cuidado, precisam de promoção substancial e efetiva de suas
capacidades pelo Estado e sua máquina pública, bem como serem vistas como um
fim em si mesmas e não como um meio para o fim de terceiro. Nesse caso,
14
NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.
15
MILL, John Stuart Mill. A sujeição das mulheres. São Paulo: Penguim Classics Companhia das
Letras, 2017.
16
NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.
226 | Gênero, violência e estruturas de poder
claramente Martha Nussbaum se coaduna com o tão criticado individualismo que o
liberalismo prega17.
Explica-se. Quando a mulher, no seio da família é tida como a cuidadora por
natureza, esta não é vista como um fim em si mesma ou, em outras palavras, como
um indivíduo separado do corpo “família” com objetivos, sonhos e desejos próprios,
sem relação com esse bolo denominado “família”. Assim, quando se preceitua que
esta precisa ser vista como um fim em si mesma, a mulher, dentro da família e como
um membro desta, deve possuir um plano de vida e desejos, necessidades, sonhos,
separados do resto do corpo da família. A mulher, não pode ser um meio para o fim
dos filhos, marido e outras pessoas que dependam do seu cuidado. Ela deve ser
tratada como um indivíduo que necessita que suas capacidades sejam promovidas,
para buscar o que considera uma vida boa18.
No caso da promoção das capacidades, uma vez que o Estado e a máquina
pública são os responsáveis pela promoção das mencionadas dez capacidades, este
não deve promover a separação estanque entre privado e público e sim, deve
adentrar na família para corrigir essa distorção, surgida no âmbito de uma sociedade
machista, misógina e patriarcal, onde a mulher é sobrecarregada com o trabalho do
cuidado e forçada a esquecer de si mesma19.
Em muitos casos, os danos que as mulheres sofrem na família assumem uma forma
particular: a mulher é tratada não como um fim em si mesma, mas como um agregado
ou um instrumento das necessidades dos outros, como mera reprodutora, cozinheira,
lavadora, lugar de descarga sexual, cuidadora, mais do que como fonte de capacidade de
escolha e busca de objetivos e como fonte de dignidade em si 20.
Assim, Martha Nussbaum ressalta a sobrecarga que mulheres sofrem ao
serem, “naturalmente”, colocadas nesse papel de cuidadoras, sendo forçadas a não
17
NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.
18
NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.
19
NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.
20
NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000, p. 327.
Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 227
se verem como um fim em si mesmo e, tendo em vista a sua sobrecarga, não
possuem as capacidades listadas, uma vez que não possuem tempo, por exemplo,
ao ócio, que ajuda na capacidade de número 4, sentidos, imaginação e pensamento,
bem como não possuem tempo para efetivarem substancialmente a capacidade de
número 9, lazer. Nessa falta de promoção de suas capacidades, Martha Nussbaum
ressalta:
A saúde sofre, seu equilíbrio emocional fica gravemente comprometido e perdem muitas
outras capacidades que teriam, de outra forma, desfrutado. Uma sociedade digna não
pode assegurar que todos os cuidadores tenham vidas felizes, mas pode lhes
proporcionar um nível mínimo de capacidade em cada uma das áreas-chave21.
A autora menciona que as perguntas que devem ser feitas são: e as
cuidadoras? Quem cuida das cuidadoras? E as suas capacidades? E para resolver
essa problemática, a autora ressalta o papel do Estado e das políticas públicas para
promoverem as capacidades das mulheres no seio da família, espaço este privado,
mas que também é âmbito de ingerência do Poder Público, na seara do liberalismo
igualitário, para serem consideradas como fins em si mesmas e para possibilitar que
procurem a vida boa que desejarem, evitando que sejam sucateadas pelo trabalho
invisível do cuidado que, pelos olhos de uma sociedade patriarcal, machista e
misógina, é taxado de natural para as mulheres22.
4 A NECESSIDADE DA INTERSECCIONALIDADE NA PROMOÇÃO DAS CAPACIDADES
FEMININAS QUANDO NO ÂMBITO DO TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO
Entretanto, Martha Nussbaum, ao ressaltar o papel do Estado e das políticas
públicas na promoção das capacidades das mulheres no âmbito privado e, mais
especificamente, no âmbito da família, para serem consideradas como fins em si
mesmas e para que possam efetivamente e substancialmente terem capacidade de
21
NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 209.
22
NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
228 | Gênero, violência e estruturas de poder
buscar uma vida que considerem boa, olvida-se de que no âmbito da sociedade, o
trabalho invisível do cuidado é mais sentido por mulheres negras e/ou pobres. Dito
olhar, pela perspectiva desse grupo específico de mulheres, pode ser realizado por
meio da denominada interseccionalidade.
Essa, é o estudo da sobreposição ou intersecção de identidades sociais e
sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação, como a raça, por
exemplo. O conceito da interseccionalidade surgiu a partir de círculos sociológicos
no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, em conjunto com o movimento
feminista multirracial23.
O termo foi cunhado pela jurista negra norte-americana Kimberlé Crenshaw24
em sua tese de doutorado, em 1989, e demarcou o paradigma teórico e metodológico
da tradição feminista negra, proporcionando, desta forma, conexões políticas e
jurídicas 25 . Entretanto, Lélia Gonzalez, filósofa brasileira, no final dos anos 1970,
articulou questões ligadas à opressão de gênero, raça e classe, e já alertava sobre a
interseccionalidade, mas sem usar claramente a expressão que foi penas cunhada
anos mais tarde. Assim, “apesar de não ter cunhado o termo feminismo
interseccional, a gênese do conceito já estava em sua obra e em sua intervenção
política”26.
Lélia Gonzalez ressaltou que estava cansada de perceber que nem na escola
e nem nos livros onde as pessoas estudavam, não se mencionava a efetiva
contribuição das classes populares, das mulheres, dos negros, dos índios, na
formação histórica e cultural do Brasil, sendo que, na verdade, o que se fazia, era
folclorizar todos eles27. Assim,
23
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2023.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em espaços para discriminação
racial relativos ao gênero. In: Revista Estudos Feministas, v.10, n.1. p. 171-188, 2002. Disponível em:
chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j
8fSBQQ/?format=pdf&lang=pt.
25
COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021
26
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p.
254.
27
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje,
Anpocs, 1984, p. 223-244. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509709/mod_resource/content/0/06%20%20GONZALES
%2C%20L%C3%A9lia%20%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf.
Acesso
em: 25 jun. 2023.
24
Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 229
As mulheres negras (compreendidas como pretas e pardas) são vítimas das mais
diversas formas de desigualdade, mulheres negras apresentam duas características
decisivas nas dinâmicas sociais que contribuem para vulnerabilidades específicas, ser
mulher e negra28.
A mulher negra, principalmente, conforme exposto anteriormente, é a mais
negligenciada no que tange à promoção de suas capacidades, quando estas são
analisadas sob a perspectiva da Teoria das Capacidades, uma vez que
O mito da “mãe preta” fez perpetuar o histórico papel desempenhado pela mulher negra:
é ela quem cuida até hoje da casa e dos filhos da mulher branca! A relação entre mulheres
brancas e negras é caracterizada pela dominação, com mulheres brancas exercendo
poder sobre mulheres negras. E o ambiente doméstico era onde essa relação desigual
ficava mais aparente29.
Assim, mesmo estando sujeitas a sofrer discriminação de gênero, as mulheres
negras e brancas, não estão em condições de igualdade e suas experiências vão ser
diferentes, uma vez que em razão da discriminação racial, a mulher negra é exposta
a múltiplas discriminações. A mulher negra é massivamente considerada um meio
para o fim alheio, principalmente pelo histórico escravagista do Brasil, em que as
mulheres negras apenas eram consideradas como cuidadoras do lar, fazenda, filhos
do senhor e, até mesmo, do próprio senhor de escravos, a despeito deste possuir uma
esposa, branca30.
Portanto, as mulheres negras, no Brasil, sofrem mais ainda com a designação,
dita natural, do trabalho invisível do cuidado. Assim, para estancar o problema da
massiva designação das mulheres ao trabalho invisível do cuidado e carência de
uma promoção efetiva de suas capacidades, sob a perspectiva da Teoria das
Capacidades de Martha Nussbaum, não basta se fazer apenas um recorte de gênero,
mas também é preciso observar o problema pela perspectiva da raça, pois as
28
SILVA, Silvana Oliveira da et al. A cor e o sexo da fome: análise da insegurança alimentar sob o olhar
da interseccionalidade. In: Cadernos de Saúde Pública [online]. v. 38, n. 7, e00255621, 2022. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/0102-311XPT255621. Acesso em: 27 nov. 2023.
29
HOOKS, Bell. Escrever além da raça: teoria e prática. São Paulo: Elefante, 2022, p. 77.
30
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Revista Estudos Avançados, 2003.
230 | Gênero, violência e estruturas de poder
mulheres negras precisam de um Estado e de políticas públicas mais incisivos para
estancar mencionado problema e promover suas capacidades, uma vez que estas
não sofrem apenas com o machismo, mas também com o racismo e o histórico
escravagista do país, que as colocam em um papel de eternas cuidadoras,
mascarando esse papel como natural de sua raça31.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo buscou demonstrar que o trabalho invisível do cuidado é de
maneira desproporcional, assumido pelas mulheres. Não porque estas querem, mas
sim, por uma concepção dita natural de sua natureza para tanto, fruto de uma
sociedade patriarcal, machista e misógina, que desemboca na desigualdade de
gênero latente na sociedade brasileira.
Conclui-se que o trabalho das mulheres de cuidado nas famílias não é
reconhecido como tal. Mas, o reconhecimento da natureza política da instituição da
família é o começo do avanço, pois leva imediatamente às perguntas: quais leis estão
implicadas nos problemas que enfrentamos atualmente, e como a lei poderia fazer
melhor o seu trabalho?
O enfrentamento do problema pela perspectiva da Teoria das Capacidades de
Martha Nussbaum é importante na medida em que se busca, pelo Estado e políticas
públicas, a promoção das capacidades das mulheres para que estas sejam
consideradas como fins em si mesmas, com sonhos e desejos próprios, e que
tenham a capacidade real e substantiva de quando desejarem fazer algo ou serem
algo, estas consigam lograr êxito. Essa virada de chave é importante, uma vez que a
mulher, na sociedade machista, patriarcal e misógina, é vista como um meio para fim
alheio, sendo essa engolida pela instituição família da qual faz parte.
Segundo Martha Nussbaum, muito pode ser feito para estancar esse problema
pelo Estado e sua máquina pública, como forma de promover as capacidades das
mulheres, como por exemplo: (a) pagamento direto a membros da família que
realizem o trabalho de assistência (salário); (b) municipalidade contratar assistentes
31
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 231
para a realização de certos serviços de cuidado; (c) compensação pela perda de
renda durante um período de assistência a um parente deficiente; (d) apoio à licença
remunerada do trabalho dos pais; (e) estipular um Serviço Nacional da Juventude
para que jovens ajudem no trabalho do cuidado na sociedade em que vivem; (f)
oferecer, alternativamente, serviço militar por dois anos ou um serviço civil por três
anos; (g) oferecer uma educação pública que modifique a concepção de
masculinidade que torna os homens relutantes em assumir a tarefa do cuidado e (h)
mudanças nos locais do trabalho, com flexibilidade do tempo e do local do trabalho
e meio expediente sem comprometimento do progresso de carreira32.
Entretanto, conclui-se que não basta apenas enfrentar o problema sob uma
perspectiva da Teoria das Capacidades de Marthe Nussbaum, com um recorte de
gênero apenas. Mas, também, a interseccionalidade pode ser utilizada para uma
investigação precisa e sistemática dos indicadores de (des)igualdade social, assim
como para a elaboração de políticas públicas e estratégias pertinentes para
alteração desse quadro e para a luta de movimentos sociais, principalmente no que
tange às mulheres negras, com a intersecção do estudo e dos enfrentamentos do
problema, não apenas com o gênero, mas com a raça. O próprio conceito de
interseccionalidade e sua flexibilidade decorre de sua natureza aberta que permite
que as pessoas a usem de maneiras diferentes para projetos distintos. A
interseccionalidade é uma metodologia maleável, ou, como afirmam Collins e Bilge 33,
uma teoria crítica social ainda a ser muito trabalhada.
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2023.
BRASIL. Nota Informativa nº. 1/2023 – Secretaria Nacional de Cuidados e Família –
As mulheres negras no trabalho de cuidado. Ministério do Desenvolvimento e
Assistência Social, Família e Combate à Fome, 2023.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Revista Estudos Avançados, 2003.
32
NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
33
COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.
232 | Gênero, violência e estruturas de poder
COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo,
2021.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em espaços
para discriminação racial relativos ao gênero. In: Revista Estudos Feministas, v.10,
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EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de
linguagens, códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e
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https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD
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GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências
Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. Disponível em:
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0%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasi
leira%20%281%29.pdf. Acesso em: 25 jun. 2023.
HOOKS, Bell. Escrever além da raça: teoria e prática. São Paulo: Elefante, 2022, p.
77.
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SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SILVA, Silvana Oliveira da et al. A cor e o sexo da fome: análise da insegurança
alimentar sob o olhar da interseccionalidade. In: Cadernos de Saúde Pública
[online]. v. 38, n. 7, e00255621, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102311XPT255621. Acesso em: 27 nov. 2023.
12. INTERSECCIONALIDADE E O DEVIR DO GÊNERO? “O PESSOAL É POLÍTICO”:
ATIVIDADES REALIZADAS NO SISTEMA PRISIONAL PELO COLETIVO TERRITÓRIO
EM JUSTIÇA SOCIAL
https://doi.org/10.36592/9786554601566-12
Renata Guadagnin1
RESUMO
Este ensaio pretende, muito timidamente, trazer primeiramente elementos da
necessidade da interseccionalidade para se pensar o fazer acadêmico e pesquisa
hoje. Depois, para dialogar com isso na prática, faz um breve relato das experiências
e ações que estão sendo desenvolvidas pelo Coletivo Território em Justiça Social
através de metodologias ativas que procuram construir as narrativas a serem
contadas de modo coletivo. Por fim, trazemos alguns elementos do porquê um devirgênero que permeia todas essas questões. Trata-se, portanto, de um texto aberto e
coletivo, de um ensaio verdadeiramente experimental, mas com uma entrega muito
importante: romper a solidão acadêmica é um passo fundamental para as mudanças
do mundo por vir, ouvir mais do que falar e escrever, talvez nos permita contar uma
outra história que não a unívoca. Há aí a necessidade das tramas coletivas e
interseccionais.
Introdução
Não há um texto pronto, não se trata de um estudo consolidado. Assim como
as práticas, é um texto sobre vivências. De experiências que experimentam, de algum
modo, pensar o como fazemos pesquisa e de que forma é possível construir
coletivamente tramas que dialogam entre si, entre esse lugar do saber, do
conhecimento que chamamos academia e as ruas, ou melhor, tudo que está do lado
de fora.
É também sobre o desejo, a premissa de uma estética política que nasce nas
ruas dos movimentos feministas da Argentina: nos mueve el deseo, acrescentandose nisso a presença política do que nos move intimamente, raiva, fúria e coragem. De
tal modo que o pessoal é político e que talvez não haja a possibilidade de se fazer
1
Pós-doutoranda em Direitos Humanos pela UniRitter, bolsista Capes; Consultora de Projetos na
Terceiro Andar; Doutora em Filosofia pela PUCRS com estágio doutoral em Hamburg, Alemanha;
Mestra em Ciências Criminais pela PUCRS; Co-fundadora do Coletivo Território em Justiça Social. Email: pesquisadora.reguadagnin@gmail.com.
234 | Gênero, violência e estruturas de poder
uma produção do conhecimento e dos saberes que não seja interseccional, ou que
pelo menos leve em consideração os recortes que isso implica.
Na apresentação no Congresso de Estudos em Gênero e Interseccionalidade
de 2023 minha intenção e inquietação era muito clara: quero falar sobre as coisas
que faço para além da academia mas que conversam com ela para falar sobre gênero
e interseccionalidade, raça e classe. Quero contar como sobre as nossas práticas e
nossas lutas para fazer pequenos movimentos que, apesar de parecerem pequenos,
exigem esforços e uma energia que está em outra ordem, e só é possível de
movimentar porque nos movemos coletivamente. Talvez não haja muito espaço para
escrever desse modo na academia. Mas, me parece que esses espaços precisam, de
algum modo, começar a dialogar proximamente na e para a construção de apoio
mútuo.
Com uma gama de pensadoras que vem colocando as torções das teorias
feministas e do tornar-se mulher na sociedade que vivenciamos, desde o slogan
emblemático de muitos movimentos feministas do “o pessoal é político” ao “não se
nasce mulher, torna-se mulher” até os slogans dos movimentos feministas das
campanhas surgidas especialmente na Argentina:“nos mueve el deseo” e “disculpen
la molestia, nós estan matando”, para muito além da construção metodológica das
filosofias feministas, o saber feminista é também uma memória dos combates com
uma epistemologia sólida e própria, tal como nos diz Elsa Dorlin em “Sexo, Gênero e
Sexualidade”2. O recorte deste ensaio será uma espécie de experimento sobre como
atravessamentos teóricos e práticos de uma ética em pesquisa buscam pequenas
ações cotidianas para adiar o fim do mundo combatendo as violências. Os rastros
teóricos e filosóficos que irão marcar a tentativa de tal experimento, passam por
Fanon, Beauvoir, Krenak, bell Hooks, Elsa Dorlin e outras pensadoras, às vezes
citadas diretamente e, às vezes, presentes demais para serem citadas.
Tentarei, assim, construir uma narrativa que, por um lado, fricciona como uma
forma de contar uma história de modo hegemônico, da história unívoca, auxilia para
anular, reduzir à categoria de coisa, qualquer pessoa que se identifique como mulher
ou que seja desviante do gênero masculino e da heteronormatividade e também da
2
Dorlin, E. (2008) Sexo, Gênero e sexualidade - introdução à teoria feminista. [recurso eletrônico] São
Paulo: Crocodilo/Ubu, 2019.
Renata Guadagnin | 235
branquitude. Isso quer dizer, os efeitos de poder dos discursos filosóficos, históricos,
antropológicos, jurídicos, totalizantes sobre o corpo das mulheres, pessoas
lgbtqiap+ e pessoas negras.
Compreendemos que há nas teorias feministas e de autores atualmente
chamados de interseccionais e decoloniais um terreno entre insubordinação e
dispositivo defensivo a partir dos quais podemos colocar alguns questionamentos
tanto do ponto de vista teórico como prático: o que a violência produz nos corpos
dominados? Como aquele que a sofre, que é anulado enquanto sujeito e objetificado
chega a transformá-la? Como se dá o processo de reapropriação do seu corpo e de
sua potência? Quais as estratégias mobilizadas?
Essas questões ecoam, através de Dorlin, desde Fanon. Através delas, Dorlin
desenvolve uma ética do combate. Acenando para como a autodefesa permite a
irrupção de um sujeito no contexto de dominação colonial e neocolonial. É então o
esforço de compreender como nossos corpos, ainda que marcados por expressões
como: caça (Márcia Tiburi), presa (Fanon e Dorlin), carne (Derrida), escravo.a (Hegel
e Beauvoir), vem construindo a possibilidade de contar uma outra história e de
constituir espaços seguros de sobrevivência, de reapropriação de si e dos nossos
corpos-territórios, corpos-arquipélagos.
“Nós não é plural de eu”: porquê a interseccionalidade é necessária
Para a filósofa Elsa Dorlin a expressão “o pessoal é político” continua sendo
compreendida como um emblema feminista e diz respeito ao “trabalho de
historicização de uma relação de poder e ao trabalho de conscientização sobre essa
relação”3. Isso significa dizer que os saberes feministas também se relacionam com
um trabalho histórico em diversos campos e tradições disciplinares. Tratam de
questionar o estatuído enquanto dentro e fora do âmbito político: “os papéis de sexo,
a pesonalidade, a organização familair, as tarefas domésticas, a sexualidade, o
corpo”4.
3
Dorlin, E. (2008) Sexo, Gênero e sexualidade - introdução à teoria feminista.[recurso eletrônico] São
Paulo: Crocodilo/Ubu, 2019, p. 07.
4
Dorlin, E. (2008) Sexo, Gênero e sexualidade - introdução à teoria feminista.[recurso eletrônico] São
Paulo: Crocodilo/Ubu, 2019, p. 07.
236 | Gênero, violência e estruturas de poder
Dorlin, que será a autora mais presente aqui, trata na sua obra Sexo, Gênero e
Sexualidade - introdução à teoria feminista, através das contribuições de Franz
Fanon e de Homi Bhabha, do processo de racialização dos homens árabes, negros e
indígenas. Apontando como historicamente esses grupos foram tratados sob duas
perspectivas opostas, ou enquanto excessivamente viris e agressivos, ou femininos
e passivos. Na primeira opção considerados bestiais, na segunda passíveis de serem
simbolicamente castrados, sujeitos à castração genital e estupro. Assim como
discute a necessidade de uma compreensão mais profunda do termo patriarcado,
analisando o quanto ele é marcado por duas características cruciais: o patriarcado é
branco e o patriarcado é imperial. A compreensão da presença desses dois conceitos
enquanto constituintes do patriarcado são, para a autora, a chave de análise das
relações de poder racistas e coloniais que fabricam o desenvolvimento do
capitalismo, a partir de problemáticas caras ao feminismo interseccional, não se
restringindo às questões de classe ou de raça, mas demonstrando a interligação dos
usos coloniais para a subalternização das mulheres e de toda pessoa que não fosse
branca e imperial.
A fabricação deste patriarcado também produz os lugares ocupados pelos
feminismos ao longo da história, sem deixar de fora a crítica necessária a ser feita
ao racismo inerente ao feminismo branco, Dorlin retoma a crítica de Angela Davis e
a contribuição feita por todo movimento “black feminism” para a perspectiva
interseccional que temos hoje. Diante deste cenário, o saber feminista coloca no
percurso da história um trabalho histórico realizado a partir de múltiplas tradições
disciplinares. Logo, todos esses trabalhos, até então à margem do político, na
verdade significam um trabalho de historicização, portanto, de politização do espaço
considerado privado, do íntimo, da individualidade, isso é, o político é reintroduzido
necessariamente pela condição de ser mulher, ser negro ou uma pessoa dissidente
do gênero heteronormativo, no âmbito privado, nas nossas esferas íntimas, em
nossas individualidades. Se o político é reintroduzido nessas esferas, aí também
estão as relações de poder. A introdução das relações de poder significa também
conflito. Isso tudo, de algum modo, faz pensar que o corpo é, portanto,
atravessamento político em transe. Melhor dizendo, o corpo que resiste ao modo
Renata Guadagnin | 237
operacional do patriarcado e do capitalismo é um movimento, um acontecimento
político. E como tal, é resistência.
O conflito se dá em diversas camadas que não serão abordadas aqui. Mas,
não seria difícil de intuir que em algum momento haverá sempre uma tentativa de
captura dessa resistência pelos dispositivos de poder. Os ambientes acadêmicos e
dos movimentos sociais também são lugares em que há uma captura constante. É
também um terreno bastante árido e áspero para que os gêneros e raças dissidentes
circulem. Exatamente por isso, tenho pensando que só há uma maneira de fazer com
que nossos corpos resistam nestes espaços como forma de resistência e como
aposta ético-política dos feminismos subversivos, se infiltrando coletivamente,
sendo um corpo coletivo. É neste sentido que não há possibilidade de se construir
saberes sem considerarmos a interseccionalidade (termo cunhado pela autora
Kimberlé Crenshaw5). Sabendo que há nela limites, que há na interseccionalidade,
fronteiras. Mas que trata-se de um conceito necessário para a compreensão das
formas de opressão, discriminação e desigualdade, e do modo como elas se
sobrepõem e integragem entre si. O que, por sua vez, promove experiências
interconectadas e inseparáveis.
Olhar para o nosso modo de fazer pesquisa através de uma lupa interseccional
permite, então, uma abordagem complexa para compreensão das opressões e
privilégios, como essas interações moldam as experiências individuais e coletivas
das pessoas. Nesse sentido, criando um corpo coletivo que ocupe os lugares e que
também construa espaços seguros, significa construir um outro modo de fazer
pesquisa também levando em consideração todos estes aspectos enquanto
manejamos o fazer pesquisa.
Relatos de tramas para pensar outras práticas e narrativas na pesquisa
Neste trecho, gostaria de contar a vocês que nós, do Coletivo Território em
Justiça Social, que foi criado no final de 2021, nesses dois anos construímos projetos
que procuram trazer respostas de apoio mútuo para mulheres em situação de
5
Crenshaw, Kimbeler. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against
Women of Color. Califórnia: Stanford Law Review, Vol. 43, p.1241-99, jul. 1991.
238 | Gênero, violência e estruturas de poder
vulnerabilidade e encarceramento. Temos desenvolvido algumas atividades
pontuais e outras de período mais longo. Entre elas: 1) Projeto Folhear; 2) Poéticas
da Liberdade; 3) Elaboração coletiva de artigo que conta a história de Tatiane Santos;
4) Oficinas de Arte, criação e escrita.
O primeiro projeto elaborado foi o Projeto Folhear, que visa cursos de
formação em sustentabilidade econômica para mulheres do presídio Madre Pelletier
e de Guaíba, além de grupos de remição pela leitura. Com esse projeto nós
enfrentamos dois anos de burocracias do sistema de justiça para que todos os
partícipes, que são sete instituições, assinassem o Termo de Convênio da Susepe
que permitiria realizarmos o curso. Apesar dos entraves, que merecerão ser descritos
em outro momento, no início de novembro de 2023 finalmente o termo foi assinado,
de modo que será possível realizarmos as atividades formativas a partir de março do
ano que vem. O detalhe curioso disso é que foi a própria Susepe que em novembro
de 2021 nos solicitou a elaboração de um projeto com esses objetivos. Pontuo isso
para falar da dificuldade que temos de trabalhar com o sistema carcerário, em
especial, o feminino e que, desde já, vale a pena pontuar que há uma questão de raça
e gênero que perpassa o encarceramento de pessoas. E esperamos que isso depois
fique mais claro.
O segundo projeto nasceu da demanda da Direção do Instituto Penal Feminino
de Porto Alegre, o IPF - POA, que é o lugar onde pessoas privadas de liberdade
cumprem pena no regime semi-aberto. Tendo em vista a dificuldade que muitas das
mulheres em situação de encarceramento enfrentam ao saírem do regime fechado
para o semi-aberto, a Direção expressou a vontade de que fosse possível realizar
algum curso para algumas das mulheres fora do Instituto. Vale destacar que, no
cumprimento da pena no regime semiaberto, a saída da pessoa privada de liberdade
só é permitida no caso de ter um contrato de trabalho (geralmente intermediado pela
própria Susepe) ou em caso de visita à família ou o chamado passeio, que são
direitos adquiridos pela pessoa conforme a pena e o comportamento. Pois bem,
nesse sentido, conversamos com um professor da Escola de Humanidades que
estava iniciando a elaboração de uma cadeira extensionista que visava integração
comunitária. Tratava-se de uma cadeira chamada Antropologia Filosófica,
ministrada na graduação de Filosofia. Houve interesse por parte do professor e então
Renata Guadagnin | 239
elaboramos o projeto que pretendeu, ao longo deste segundo semestre de 2023,
promover 6 encontros com a vinda das pessoas privadas de liberdade até a PUCRS,
e realizar uma integração comunitária com a turma. A proposta foi de discutir
expressões como: justiça, narrativas de si, direitos humanos, abolicionismo; como
seria um mundo sem prisões; e por fim redigir cartas sobre suas experiências
autobiográficas com inspiração no livro Cartas para Minha Avó, de Djamila Ribeiro.
Este projeto foi executado, no entanto, houve o seguinte entrave: como resultado dos
encontros se pretendia realizar uma roda de debates e uma exposição aqui na PUCRS
com os materiais produzidos e a presença das pessoas privadas de liberdade que
participaram da integração comunitária.
No entanto, mesmo havendo um termo de consentimento livre e esclarecido
que foi assinado pelas participantes, a Susepe, o Departamento de Tratamento Penal
sinalizou que, qualquer coisa que gerasse material a ser apresentado publicamente,
deveria passar por um processo interno deles para aprovação. Nesse sentido, ainda
estamos vendo como conduzir. Mas a pergunta que gera: uma vez que há uma
autorização judicial para que a pessoa que está sob custódia do Estado possa sair
para realizar um curso fora da casa prisional, ela não deveria ter a liberdade para
pensar, expressar e produzir aquilo que quisesse, desde que em conformidade com
a Lei, obviamente? Essa não configura mais uma forma de controle sobre os corpos
e cerceamento da liberdade?
E o terceiro projeto sobre o qual eu gostaria de relatar é o desenvolvimento de
um artigo que narra uma história escrita por múltiplas mãos, com a participação ativa
de Tatiane da Silva Santos, uma mulher preta, periférica, que teve sua vida
atravessada pelo sistema punitivo e por todas as nuances de punição que uma
mulher pode sofrer em nossa sociedade, e das integrantes do Território em Justiça
Social, propondo pensar em que medida a violência, a punição e os sentidos de
justiça atravessam a realidade vivenciada por Tatiane e por outras mulheres
sobreviventes ao sistema punitivo carcerário brasileiro e latino-americano. Tivemos
acesso a Tatiane porque uma das integrantes do coletivo a conhece e Tatiane está
agora em regime semiaberto.
Para a construção da escrita estabeleceram-se como perguntas orientadoras:
“Em que medida a violência, a punição e os sentidos de justiça atravessam a
240 | Gênero, violência e estruturas de poder
realidade vivenciada por Tatiane e outras mulheres sobreviventes ao sistema
punitivo brasileiro e latino-americano? E de que modo é possível pensar nas
estratégias feministas de autodefesa como modos de produção de resistência
coletiva ao cenário de violência e punição?”
Temos por objetivo mobilizar certas categorias como violência, justiça e
punição, e, assim, fazer ecoarem as vozes de milhares de mulheres atravessadas
pela violência do cárcere e do sistema de justiça criminal para pensar estratégias de
autodefesa e resistência feminista. Pois bem, a intenção aqui não é a de transcrever
o artigo que foi escrito, mas dar a notícia da possibilidade de adoção de metodologias
que permitam essa intersecção mais direta com as pessoas de fora da academia, de
modo que elas também sejam narradoras e escritoras da própria história. O artigo
em si deverá ser publicado no próximo ano pela rede internacional de investigação e
pesquisa feminista La Laboratoria.
Gostaria, de outra parte, mencionar, ainda que de modo muito breve a história
que levou Tatiane à prisão para que possamos compreender a importância de se
pensar outras metodologias em pesquisa que deem espaço para uma real
construção coletiva de compreensão das camadas da estrutura de poder
cisheteronormativa, falocêntrica, patriarcal, excludente, ou como se queira dominar,
os modos de silenciamento e de poder sobre os corpos, a importância dos estudos
interseccionais e o devir de gênero.
Tatiane da Silva Santos6, uma mulher proveniente do Rio Grande do Sul, estado
do sul do Brasil, teve sua vida marcada por uma série de eventos trágicos e abusivos
que culminaram em um julgamento controverso e uma condenação impactante. Em
2013, ela foi acusada de homicídio qualificado comissivo, tortura e maus-tratos
relacionados à morte de seu filho mais novo de apenas um ano, Diogo. Desde sua
infância, Tatiane foi testemunha de um relacionamento abusivo entre seus próprios
pais. Essa exposição precoce à violência deixou marcas profundas em sua vida. Com
apenas 17 anos, engravidou e logo conheceu Amilton, o homem com quem teve
outros três filhos.
6
Estes trechos compõem também o artigo escrito coletivamente pelo Coletivo, Tatiane e o nodo
brasileiro da Rede La Laboratoria e que em breve será publicado pela rede.
Renata Guadagnin | 241
A dependência de drogas de Amilton o transformou em uma figura agressiva
e volátil, e Tatiane enfrentou inúmeras dificuldades para manter a segurança dela e
de seus filhos. Seus esforços para buscar ajuda através da polícia e do sistema de
justiça frequentemente caíram em ouvidos surdos, inclusive, quando do pedido de
Medida Protetiva, Tatiane escutou palavras como “ele se comprometeu em se tratar,
dá mais uma chance”.
O assasinato de seu filho Diogo ocorreu em 2013, quando Tatiane,
desesperada para sustentar seus filhos, deixou Diogo aos cuidados de Amilton
enquanto trabalhava em uma padaria. O que se seguiu foi uma sucessão de eventos
aterrorizantes: Amilton agrediu brutalmente Diogo, resultando na morte da criança.
A cena que Tatiane encontrou quando foi amamentar o filho era de horror
indescritível. O julgamento que se seguiu lançou luz sobre a complexidade do caso.
Amilton, réu confesso, foi condenado a 42 anos de prisão pelo homicídio. Tatiane,
porém, também enfrentou acusações. Investigada, denunciada e pronunciada, foi
julgada pelo tribunal do júri. Pela acusação, ela foi retratada como imprudente,
masoquista, narcisista e mãe negligente. No entanto, essa narrativa esqueceu de
capturar a realidade mais ampla das violências que Tatiane havia sofrido ao longo
de toda sua vida, bem como os esforços para se manter viva.
O caso de Tatiane revela um padrão brutal de negligência e ineficácia por parte
das autoridades. Ela enfrentou uma vida repleta de maus-tratos e abusos, mas as
tentativas de escapar desse ciclo de violência muitas vezes foram frustradas por um
sistema de justiça que não conseguiu fornecer apoio e proteção adequados e que a
puniu quando buscou autonomia financeira, porque afinal ela deveria estar em casa
cuidando do filho sem ter o que dar para os outros comerem. Razão que levou
Tatiane deixar o filho sob os cuidados do pai da criança. Após o julgamento, Tatiane
foi considerada culpada pela morte de Diogo e condenada a 24 anos de prisão por
omissão e tortura.
Dentro de uma perspectiva interseccional, a história de Tatiane da Silva
Santos revela a emergência da violência como um intrincado tecido que afeta corpos
feminizados de maneiras interconectadas e estratégicas. Sua trajetória foi marcada
por uma série de violências que se entrelaçam, abrangendo diferentes formas de
opressão, exemplificando como o conceito de violência, conectando-o a uma rede de
242 | Gênero, violência e estruturas de poder
opressões que inclui o feminicídio, exploração econômica, racismo e repressão
estatal.
Foi nesse sentido que procuramos desenvolver o artigo escrito em conjunto
com Tatiane, tornando-a voz ativa na narrativa, onde ela não só é protagonista como
também autora como um prática de autodefesa.
A construção é coletiva, ou não será
Desde uma “interseccionalidade radical” 7, desdobra-se a percepção de que
“os corpos estão carregados de inúmeros marcadores, como raça, classe, religião,
local de nascimento, lugar de moradia, idade, orientação sexual, que vão além de
sexo e gênero”8, como elementos de exposição desigual à violência. Nesse sentido,
talvez possamos dizer que não existe hierarquia de opressão, pois elas se
atravessam, contaminando umas às outras de acordo com território, idade,
localização, gênero como relatamos. A opressão assume um acordo sem fronteiras,
em que, apesar das diversidades que revelam as desigualdades, esse se mantém
como aspecto comum compartilhado de precarização, independente dos contextos
em que se associa. É nesse sentido que pensar as vulnerabilidades, considerando
esses marcadores e suas nuances na reivindicação por justiça, é tarefa indissociável
às análises que propõem frear as demandas de punição.
A dimensão colonial da violência encontra eco nas histórias das pessoas em
situação de encarceramento, e na de Tatiane. Sua resistência em meio a essas
adversidades se alinha à ideia de mobilizações massivas como demonstrações de
poder coletivo que desafiam estruturas de poder existentes, um exemplo concreto da
autodefesa proposta por Elsa Dorlin 9 . Ainda estar viva e criando narrativas,
fabricando sua própria história combativamente àquela que foi criada para poder
punir seu corpo, Tatiane e todas as pessoas com as quais estamos tendo, de algum
7
Butler, Judith. Bodies that matter: On the Discursive Limits of ‘Sex’, London: Routledge. [Corpos que
pesam. Tradução de Veronica Daminelli e Daniel Yago Françoli. Revisão técnica Daniel Yago Françoli,
Carla Rodrigues e Pedro Taam. São Paulo: N-1 Edições, 2019].
8
Rodrigues, C. Por uma filosofia política do luto.In Revista O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29,
n.46, p.58-73, jan.-jun.2020. Disponível em:
<https://www.academia.edu/44140282/Por_uma_filosofia_pol%C3%ADtica_do_luto>.
9
DORLIN, Elsa. Se défendre: une philosophie de la violence. Paris, Zones, 2017.
Renata Guadagnin | 243
modo, essa construção coletiva sempre em movimento, num momento em que todas
nós compartilhamos o comum, há ali um senso de que há algo que nós atravessa
comumente ainda que com todas as nossas subjetividades. Uma ânsia e uma
necessidade de luta por nossas liberdades a partir dos atravessamentos
interseccionais (sem deixar de dizer que é importante, nessa coletividade é preciso
que os homens, na posição privilegiada na ordem patriarcalista, traia a supremacia
masculina, hétero, cis, branca, colonial imperialista).
Ampliamos a expressão de Beauvoir, devir-mulher, para devir-gênero, e neste
sentido, passa pela ruptura de construções sociais ancoradas no patriarcado, que
limitam a existência aos moldes de gênero e afirmam um ideal de mulher e de homem
deslegitimando outros, passando também pelo ato de tensionar políticas que
subjugam e encarceram o feminino em um padrão. Além disso, devir-gênero se dá
ainda pela transgressão e destruição da concepção de um modelo de masculinidade
enrijecido, traindo-o.
É crucial que questionamos o lugar determinado para nós, na sociedade
patriarcal, entendendo-nos não apenas como um corpo regulado por sistemas que
impõem padrões quase intransponíveis de desigualdades de gênero, mas como um
corpo político em combate que tem por direito viver; no entanto, é preciso criar
possibilidades para que este entendimento coletivo e político aconteça, pois
acreditamos, enquanto pesquisadora e em coletividade com outras pesquisadoras,
que a construção de metodologias ativas e esse olhar para estudos de gênero e
interseccionais que formam epistemologias desde um outro lugar, é um caminho
singular e importante para produzir tais possibilidades, sendo a produção de
integração comunitária, a criação de possibilidades de sustento, e a escrita coletiva
ferramentas potentes de autodefesa feminista, agenciamento coletivo para que
todos esses corpos-territórios tomem para si a potência de suas existências e de
suas lutas em todos os espaços.
Assim, a intenção foi a de fazer um caminho experimental, com relato de
experiência, a intersecção com as teorias de gênero e a necessidade de realizarmos
de modo muito sério investigações e pesquisas interseccionais inclusive como modo
de produção de apoio mútuo e autodefesa coletiva como meio para adiarmos o fim
do mundo.
244 | Gênero, violência e estruturas de poder
Não, para mim, para nós, não há uma possibilidade de existir pesquisa sem
campo, campo sem esfera pessoal, e essas duas condições depõem sobre a
impossibilidade de existir sem o que é político nos afetos, naquilo onde colocamos
nossa energia independente de que grupo temático ou que área da vida estejamos
falando, as escolhas que fazemos são impactadas e são políticas. Fazer pesquisa
interseccional é então uma escolha sobre qual a academia queremos no mundo por
vir.
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Butler, Judith. Bodies that matter: On the Discursive Limits of ‘Sex’, London:
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Renata Guadagnin | 245
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13. HISTÓRIAS DE VIDA DAS MULHERES DA FLORESTA NACIONAL DE TEFÉ ENTRE RESISTÊNCIAS E AFETO
https://doi.org/10.36592/9786554601566-13
Marcela da Silva Barbosa1
Rita de Cássia Fraga Machado2
RESUMO
Este trabalho é um recorte de uma dissertação de mestrado, que trouxe como uma
das metodologias a técnica da história de vida e a fotografia que conta através da
imagem a história de três mulheres. Estas são protagonistas femininas da Floresta
Nacional de Tefé – Flona. Com a técnica da história de vida, temos a oportunidade
de conhecer o indivíduo desde a infância à vida adulta. Conhecer o que é nos
permitido. Na entrevista, temos o tempo da fala, o tempo da observação e,
principalmente, o tempo do ouvir. A técnica da história de vida exige o ouvir, o
escutar. Para isso o ouvir precisa ser transformado em escutar. Sobre, de sermos
tocadas, foi o que senti fazendo esta pesquisa do mestrado. Em vários momentos,
durante as entrevistas, ou na hora da transcrição das entrevistas, que levou horas a
fio, fiquei conectada às histórias de vida dessas mulheres, como também trouxe, em
alguns pontos entrelaçados às histórias de vida delas, a minha própria história de
vida e da minha família. O ouvir pede o afeto e o respeito pelo que se ouve. A história
de vida dessas mulheres, regadas por resistências, dificuldades e afetos, é o ponto
que nos faz refletir, que sem essas mulheres e seus povos, não existiria floresta viva.
Precisamos, enquanto pesquisadores, trazer e dar visibilidade para esses povos que
vivem no meio da floresta, pois elas são as verdadeiras protagonistas dessas
vivências.
Palavras-chave: Floresta Nacional de Tefé; Mulheres; Protagonismo feminino na
floresta; Histórias de vidas.
ABSTRACT
This paper constitutes an excerpt from a master's thesis, utilizing the life history
technique and photography as methodologies to narrate the experiences of three
women. These women emerge as the female protagonists within the Tefé National
Forest - Flona context. Employing the life history technique affords us the opportunity
to comprehensively understand individuals from childhood through adulthood, within
the bounds of what is permissible. The interview process encompasses periods of
dialogue, observation, and, crucially, attentive listening. The life history technique
necessitates a form of listening that transcends mere hearing, demanding a deeper
level of engagement. Throughout the course of this master's research, there was a
palpable sense of emotional connection, particularly during interviews and the
1
Mestre, Universidade do Estado do Amazonas UEA/PPGED, Tefé, Amazonas, Brasil, E-mail:
miguel261016@gmail.com
2
Doutora, Universidade do Estado do Amazonas UEA/PPGED, Tefé, Amazonas, Brasil, Email:rmachado@uea.edu.br
248 | Gênero, violência e estruturas de poder
subsequent transcription process, where I found myself deeply immersed in the life
stories of these women. Furthermore, I integrated aspects of my own life and familial
history at certain intersecting points with theirs. Effective listening demands both
empathy and respect for the narratives being shared. The narratives of these women,
characterized by resilience, adversity, and bonds of affection, compel us to recognize
that the vitality of the forest hinges upon their presence. As researchers, it is
imperative to elevate the visibility of these communities residing within the forest, for
they are the true protagonists of these narratives.
Keywords: Tefé National Forest; Women; Female protagonism in forest
environments; Life narratives.
1 INTRODUÇÃO
Refletir sobre a história de vida das mulheres da Floresta Nacional de Tefé é
reviver as narrativas de nossas ancestrais, marcadas pelo protagonismo e sabedoria
ancestral. Essas histórias, muitas vezes esquecidas ou ignoradas, são fundamentais
para entender a importância das mulheres no passado e como suas ações moldam
o presente e podem transformar o futuro. Este relato é parte de uma dissertação de
mestrado que documentou as experiências dessas mulheres, frequentemente
compartilhadas na intimidade do lar, ao ar livre ou à beira do rio, e capturadas não só
em palavras, mas também em fotografias. A técnica da história de vida permite um
mergulho profundo na jornada do indivíduo pesquisado, no caso dessa pesquisa, as
mulheres da Floresta Nacional de Tefé, enfatizando a importância de escutar e
observar.
A técnica da história de vida exige o ouvir, o escutar, que as autoras Diniz e
Gebara (2022, p. 17) assim o definem:
Ouvir exige silenciar-se, abdicar do poder e da sedução da palavra. Mas ouvir não é o
mesmo que pausar a voz, é gesto ativo para o encontro feminista – somente sendo capaz
de ouvir é que seremos tocadas por outras vidas diferentes da nossa. Para isso o ouvir
precisa ser transformado em escutar.
Sobre a reflexão das autoras acerca do encontro, de sermos tocadas, foi o que
senti fazendo esta pesquisa do mestrado. Em vários momentos, durante as
entrevistas, ou na hora da transcrição das entrevistas, que levou horas a fio, fiquei
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 249
conectada às histórias de vida dessas mulheres pela minha própria identidade de
mulher da floresta, “Ouvir não pede só ouvidos, mas muitos afetos” (Diniz; Gebara,
2022, p. 18).
O ouvir pede o afeto e o respeito pelo que se ouve. Eu fiz duas entrevistas com
dona Raimunda. Ela, com sua idade avançada, já não escuta tão bem. Havia algumas
vezes em que eu falava e era obrigada a repetir inúmeras vezes para que ela
compreendesse o que estava dizendo. Naquele papel de pesquisadora, eu não era
superior a ela e tive que usar uma linguagem mais simples para explicar minha
pesquisa, que era sobre a história de vida delas. E foi como dona Raimunda sempre
falava: “a gente aprende e ensina”. O afeto é revolucionário.
Este trabalho tem como objetivo, identificar as identidades das mulheres da
Flona através de suas histórias de vida, e entender como esse processo de
identidade, e cultura fazem parte de uma educação transformadora, que é gerada na
própria comunidade no meio da floresta e das águas. Ações que acontecem de várias
maneiras, como, reuniões comunitárias, a escola da comunidade, o roçado de
mandioca feito em ajuri, a horta, e a igreja.
Essas pedagogias do movimento que norteiam a vida e cultura dessas
mulheres, é identificada também, através das fotografias, como diz Martins (2022, p.
37), “A fotografia conta uma história”, que neste trabalho, se encaixa como técnica
de visibilização dessas mulheres, com seus rostos, seus traços, que contam suas
vivências, lutas e resistências para além das palavras.
A fotografia assume seu papel de texto visual nesta pesquisa, conferindo
visibilidade às mulheres da Flona. A fotografia nos remete à memória. Lembram um
tempo em que foram felizes, tempo de união, tempo de vivência em comunidade para
um projeto que era benéfico para todos. “O registro fotográfico oferece poucas
garantias de uma leitura inequívoca, pois o discurso que produz é poroso, permeável
às intenções com as quais é confrontado” (Samain, 2012, p. 142). Pensar a fotografia
como narrativa é pensar a fotografia como movimento, do recordar ao se conhecer,
é um movimento que protagoniza outros movimentos, trazendo visibilidade, como no
caso desta pesquisa.
250 | Gênero, violência e estruturas de poder
Abaixo vamos conhecer a história de vida das protagonistas da floresta,
vamos tecer reflexões, da infância, a vivência no trabalho/educação, e a participação
na comunidade como protagonismo individual e coletivo.
2 HISTÓRIA DE VIDA DA DONA EDNA LOPES
Imagem 1: Dona Edna participando da feira
Fonte: Arquivo projeto das feiras agroecológicas.
Eu sempre tenho uma coisa comigo, que a gente tem que sofrer e valorizar e mais na
frente contar o que a gente passou, para experiências para os outros. Porque senão a
gente não tem nada para contar para os outros. A gente tem que ter história (Dona Edna,
comunidade de Bom Jesus).
Dona Edna Lopes tem 48 anos e sua escolaridade é o ensino médio completo.
Ela mora na comunidade de Bom Jesus, na Floresta Nacional de Tefé, é casada, mãe
de cinco filhos. É uma das lideranças comunitárias na Flona, principalmente para as
mulheres.
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 251
2.1 Infância e vivência pelo trabalho
Dona Edna, como a maioria das mulheres que participaram desta pesquisa,
morou desde o seu nascimento na comunidade. Desde pequena, ajudava os pais na
roça, uma realidade bastante comum na vida do ribeirinho.
Minha vida assim, como na agricultura, comecei desde nova no trabalho, no pesado, hoje
eu sou toda arrebentada, porque eu tive esse trabalho, e não tive essa oportunidade de
estudos, porque meus pais não tinham condições de me manter na cidade para eu
estudar. A gente como agricultor, que mora no interior, a gente não tem essa condição
toda (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus).
Diante deste depoimento de dona Edna, podemos perceber que, ainda que não
tivessem condições de estudar fora, na cidade, essas mulheres não deixavam apagar
o desejo de frequentar uma escola. Percebe-se a realidade do trabalho braçal,
pesado, desde muito cedo, para as crianças, o que é “comum”. As crianças tinham
que acompanhar os pais para o centro, onde ficavam dias dentro da mata, como diz
Dona Edna.
Minha mãe e meu pai vieram do Maranhão, eles vieram na época da borracha. Aí vieram
para cá, e aqui eles, começaram também na borracha, foram para dentro do rio Tefé, para
os centros. A minha mãe trabalhou e sofreu muito. Eu também sofri muito, porque eu via
o sofrimento dos meus pais, que não era aquela coisa boa que a gente conviveu.
Dona Edna traz lembranças muito duras da sua infância. Ela me fez lembrar
da minha própria história de vida, em que toda sorte de dificuldade e principalmente
a fome faziam parte da minha realidade, pelo menos naquela época. Tudo era mais
difícil.
Eu já conto coisa ruim que eu vivi, eu conto que se eu pedisse café para beber, meu pai e
minha mãe me batia, por que nós tinha que tomar chá, porque café era só para os mais
velhos, o que mais me revoltava é que se chegava em casa gente que não era da nossa
família, chegava e eles serviam café e nós que era da família, nós só tomava chá, até hoje
252 | Gênero, violência e estruturas de poder
eu tenho trauma de chá. Estou tentando superar. A farinha tinha que molhar, tufar, fazer
pirão, para dar um pouquinho para cada (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus).
Durante as partilhas, um detalhe me chamou a atenção. Dona Edna sempre
lembrava o quanto todos estavam sempre juntos, nas dificuldades e nos momentos
felizes, e aquilo fazia deles mais fortes.
2.2 Adolescência de dona Edna e a escola
Na sua adolescência, a vida de dona Edna era pautada pelo trabalho na roça e
pela vontade de estudar.
Na época da escola, eu e minha irmã Ezimar tinha muita vontade de estudar na cidade,
mas nossos pais não tinha condição de deixar nós na cidade para gente ficar estudando.
E eu tinha um desejo no meu coração, de vim para Tefé estudar, eu ia estudar de manhã,
de tarde e se tivesse oportunidade estudar de noite. Porém não sei se ia dar certo, pois
não tive essa oportunidade. Esse era o desejo do meu coração, mas as condições do meu
pai e da minha mãe nunca deu. E quando foi a época que as aulas começaram no interior,
nós abraçamos, e estudamos, e hoje eu e as minhas irmãs o que a gente sabe foi o que a
gente aprendeu por lá mesmo na comunidade. Lá eu fiz até o nono ano, do primeiro ao
quinto ano, estudei com outros professores e com a minha irmã, Raimunda, ela nos
ajudou muito (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus).
Essa dificuldade do acesso à escola ainda é muito presente nas comunidades,
principalmente quando termina o ensino fundamental e os adolescentes têm que
seguir para a cidade e cursar o ensino médio. Muitas famílias não têm condições de
manter seus filhos na cidade, e esses jovens acabam desistindo da escola. As
meninas casam e têm filhos, se tornam donas de casas e também trabalham na roça,
mesmo que isso não seja o desejo dos pais ou até mesmo o desejo dessas jovens.
Em outro momento da conversa, Dona Edna disse o seguinte:
Tudo que eu sei, eu tive que aprender lá no sítio, e eu brigava com a minha irmã, quando
ia secar aqueles pacotes de bolacha para gente fazer a mochila para ir para escola, nós
amarrava duas alças na sacola e ia embora feliz. O nosso lápis era um dividido no meio,
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 253
e ai de nós se quebrasse ou acabasse logo, nós apanhava do nosso pai. A nossa borracha
era o solado da sandália.
Quando dona Edna fala de toda a dificuldade que passava com sua irmã, para
conseguir ir à escola na comunidade, lembrando que “nós amarrava duas alças na
sacola e ia embora feliz”, expressa um sentimento genuíno de agradecer até pela
dificuldade. Claro que aqui não estamos romantizando a pobreza, a fome, a falta de
escola, porém, mesmo sem condições de acesso ao estudo, por conta da ausência
de políticas públicas voltadas à população das florestas, percebe-se nesse
depoimento de dona Edna o sentimento de “felicidade” de poder ir à escola. Mesmo
que tivesse que usar a sacola plástica do açúcar ou dividir o lápis, o importante era
estudar.
Assim é minha vida, hoje posso dizer que melhorou um pouco, do que a gente vivia no
interior, mas, não é bom, hoje eu posso testemunhar como mãe que não é bom, eu lutei
pelo bem dos meus filhos, para que eles possam ter esse estudo melhor que eu não tive,
eles terem (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus).
Como Dona Edna diz, a realidade dos filhos melhorou um pouco em relação à
que ela enfrentou. É diferente do que foi a vida dela e das irmãs, porém, ainda há
muita dificuldade e elas precisam lutar por uma boa educação dos seus filhos e pela
própria educação.
E eu com 48 anos, que agora eu entraria em uma faculdade. Porque eu vejo exemplos de
pessoas na televisão que passam na faculdade com 60 anos, e eu com 48, será que eu
não posso? Então é isso que sempre questiono em reunião que eu tou, assim para gente
ter oportunidade, assim, pessoas lá da roça, mulher agricultora, que faz os seus trabalhos
e tudo mais, a gente ter essa oportunidade, e até questão assim, de cor, que hoje as
pessoas, eu não sei ainda qual o preconceito, da raça. A gente quer ter o mesmo espaço
que o branco tem. A gente não é diferente, pode ser diferente em outra coisa, mas no
saber, estudos, a gente também quer ser igual eles (Dona Edna, comunidade de Bom
Jesus).
254 | Gênero, violência e estruturas de poder
Cansada da labuta na roça, sob o sol quente, Dona Edna encara o estudo como
uma saída para a melhoria de vida. O mais bonito de ver é a vontade dela de entrar
na faculdade. Mesmo com toda dificuldade, e de ter terminado o ensino médio
somente há pouco tempo, ela pensa em entrar na universidade, e tem questionado,
nas reuniões, as posições das mulheres sobre esse desafio, além de abordar a
questão do racismo. Podemos perceber o quanto essas mulheres estão cientes dos
seus direitos hoje. No terceiro capítulo, vamos abordar mais a fundo essa relação
das mulheres e a organização para a sua emancipação dentro da comunidade e fora
dela.
2.3 A participação na comunidade
Sobre o seu período de estudos, que tiveram de ser interrompidos. Dona Edna
conta o seguinte:
Quando eu fiquei com o Falcão (esposo) eu já tinha 19 anos, eu já queria arriscar a sétima,
oitavo e nono ano para gente concluir, né? E aí cheguemos até o nono ano, aí não deu
para nós, nem vim para cidade. E para nós ficou difícil lá, porque era só o tecnológico, e
também a gente ia para o retiro (local onde planta roça) aí a gente perdia muita aula,
passávamos semanas por lá, aí não dava para estudar. A roça fica longe da comunidade,
porque não tem terra para todo mundo da comunidade, tínhamos que dormir lá no meio
do mato. Por isso passamos todo esse tempo sem estudar. Porém, agora eu e Falcão,
conseguimos terminar o ensino médio, graças a Deus, agora é entrar em uma faculdade.
No momento em que Dona Edna relata esse episódio da sua vida, quando teve
de deixar de estudar para trabalhar na roça junto com seu esposo, e que eles, depois
de mais maduros e com os filhos formados, conseguiram terminar o ensino médio
juntos, é com brilho nos olhos que ela partilha o seu desejo de entrar na universidade.
Assim, vê-se que não é uma questão de não ter vontade de estudar, por parte da
maioria dos jovens das comunidades, e, sim, falta de opção, ausência de políticas
públicas, como falamos anteriormente.
Movida por esse desejo de estudar e participar, Dona Edna faz a seguinte
reflexão sobre sua vivência na comunidade, e na família.
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 255
Na Flona, quando começou assim, em termo de participação, a nível da associação, ela
ainda era muito devagar na participação das mulher, na participação dos jovens, eram
muito pouco. Eu digo por que, logo que começou, eu não participava, só quem ia para
reunião era o Falcão, porque eu tinha que ficar com os meninos, aí depois eu fui
amadurecendo e vendo que não era só o Falcão que podia participar, eu também
precisava participar, depois a gente foi envolvendo os filhos, tinha que envolver eles
também. No momento que eu percebi que tinha que participar, tinha coisas assim, que
era informado e se eu não tivesse na reunião, eu não ia saber de nada, por que ele estava
indo, mas observando para ele, o que era dele, era dele. Por isso eu comecei a ir, e
incentivar meus filhos também.
Aqui Dona Edna retrata a sua vivência e a solidão pela ausência do seu
parceiro, principalmente na roça, que é um trabalho braçal muito pesado para ela
sozinha e os filhos. O marido de Dona Edna ocupa um papel muito importante de
organização na Flona. Com isso, Dona Edna via-se muitas vezes na premência de
ocupar esse papel dentro da comunidade, não igual ao do seu esposo, porém um
papel que pudesse inspirar outras a irem na mesma direção.
Porém hoje, isso não me impede mais não, tenho minhas funções na comunidade, na
Flona e ele também. E teve um momento que percebi isso, a gente precisa buscar nossa
memória, né? Teve uma época que meu esposo, foi presidente da associação e eu era
secretária, foi aí que eu percebi que era importante a participação das mulheres nas
reuniões, que a gente tinha força. Só que não tinha muitas mulheres, a que mais
participava era dona Raimunda, Dorimar. E aí a gente começava a chamar as mulheres
para as reuniões, incentivando. Então foi esse momento que lembro que tudo começou
(Dona Edna, comunidade de Bom Jesus).
Segundo Dona Edna, foi nesta época que tudo começou a fazer sentido a
respeito do seu papel de mulher na comunidade, e ela passou a convidar outras
mulheres a irem também às reuniões e participarem. Esse movimento de
participação teve mais mulheres com os projetos desenvolvidos pela universidade e
parceiros na Flona e com os projetos das feiras agroecológicas, que serão descritos
no terceiro capítulo deste trabalho.
256 | Gênero, violência e estruturas de poder
O projeto da feira nos aproximou muito, apesar de toda dificuldade das mulheres. Eu fico
puxando a Janete, a gente precisa se inteirar, precisa participar, o que a gente tem que
fazer quanto mulher é se inteirar mesmo, ter a direção da gente. Eu não quero nada só
para mim, se eu puder envolver os outros, eu envolvo. E é o que faço lá na comunidade.
Tem toda uma articulação para participar das coisas, tem que ligar, sinal ruim, mandar
mensagem, quando não dar, temos que ir de lancha até a comunidade para reforçar, tem
toda uma movimentação para se organizar (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus).
Quando Dona Edna diz “que a gente tem muita força” e a “feira nos aproxima”,
é essa potência feminina que paira sobre a Flona. Quando conheci essas mulheres,
como fotógrafa voluntária desde o ano de 2019, percebi claramente essa força e essa
potência através das minhas lentes, da minha memória. Vejo a relação de afeto que
paira entre essas mulheres, vejo a força que tem dona Edna neste processo. O seu
modo de falar, de se impor, é muito forte e isso, com certeza, empodera e inspira as
outras mulheres que a conhecem e principalmente as mulheres da Flona.
3 HISTÓRIA DE VIDA DA DONA MARIA EZIMAR ROCHA LOPES
Imagem 02: Dona Ezimar na feira de produtos agroecológicos
Fonte: Arquivo projeto das feiras agroecológicas.
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 257
Eu digo para as mulheres que elas não fiquem de braço cruzado, vai correr atrás do seu
trabalho, de se empenhar, de se organizar com as outras, porque eu digo, a gente
organizado, consegue tudo, a união faz força (Dona Ezimar, comunidade São Francisco
do Bauana).
Dona Ezimar Rocha Lopes tem 51 anos e mora na comunidade de São
Francisco do Bauana. Irmã de dona Edna, ambas vivenciaram a maioria de suas
experiências, quando crianças, juntas. Porém, como toda a história de vida, cada uma
tem sua singularidade.
3.1 Infância e vivência do trabalho
Dona Ezimar vive há exatamente 51 anos na comunidade do Bauana. O que
me chamou a atenção, no primeiro momento de partilha de sua história de vida, é que
ela repete, várias vezes, que vive na comunidade há 51 anos e nunca pensou em sair
de lá. A comunidade é sua casa.
Vivo na comunidade do Bauana há 51 anos, meus pais são de lá, faleceram, mas nós
continuamos lá, e foi lá que eu construí minha vida, dos meus filhos, e até hoje eu
continuo lá naquela comunidade. Tenho seis filhos (Dona Ezimar, comunidade São
Francisco do Bauana).
Essa importância que Dona Ezimar dá à comunidade é muito presente em
todas os depoimentos das outras mulheres. Elas falam da comunidade com
acolhimento e afeto. Mesmo que aquele lugar seja de muito trabalho, mesmo assim
é o lugar de onde tiram o dinheiro para sustentar a família e, nos rios, de onde tiram
os peixes para comer.
Na nossa infância era muito difícil, eu lembro que quando nós era criança, eu não lembro
nem quantos anos eu tinha, nós ia para dentro do Garapé do Jatuarana, com nosso pai e
nosso panerinho, cada qual tinha seu panerinho, e ele (pai) era só o quebrador e nós era
para juntar castanha, ele ficava sentado em cima de um pau quebrando castanha no meio
da mata e depois nós ia carregar. Ele não nos deixava em casa. Por cuidado
258 | Gênero, violência e estruturas de poder
mesmo. Antigamente se nossos pais iam para um canto, eles levavam a gente. (Dona
Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana).
Outro ponto importante que se deve ressaltar é o fato de ser bem nítido o
trabalho infantil, que eu vivenciava muito na minha comunidade quando criança e
adolescente. Minha mãe, desde muito pequena, trabalhou na seringa e na roça com
meus avós, meus irmãos, principalmente os homens. As meninas pequenas ficavam
para cuidar da casa ou dos irmãos. Essa questão é um ponto para reflexão.
Eu penso assim, que tudo eu aprendi com meu pai e minha mãe. Eles eram umas pessoas
que não eram rígidos, mas mostravam o trabalho porque a gente trabalhava, que era para
ter nossa alimentação. Eu nunca lembro de faltar alguma coisa para gente comer, sempre
dava um jeito de ter alguma coisa. Nós vivia na pobreza, mas nós tinha banana, cará,
macaxeira, nós era pobre, mas ricos dessas coisas (Dona Ezimar, comunidade São
Francisco do Bauana).
Quando Dona Ezimar diz que “mostravam o trabalho porque a gente
trabalhava que era para ter a nossa alimentação”, ela entende, quanto adulta, que
aquele trabalho de criança, muitas vezes no sol quente, carregando paneiros nas
costas, é um trabalho de cooperação para o bem comum da família, o qual não é
encarado como exploração.
Mamãe sempre dava um jeito de fazer mingau, bolinho de massa, de frutas. Eu digo que
eu fui no ritmo da minha mãe. A minha mãe era uma pessoa muito trabalhadeira, uma
guerreira, eu digo o que ela fazia ensinou para nós. Mas é assim, a vida, vivo na
comunidade porque eu gosto, meus pais faleceram, mas eu digo que é a minha terra, eu
tenho orgulho de ser o que sou. E eu digo assim, meu pai e minha mãe só ensinaram
coisa boa para nós, trabalhar na agricultura, na função deles, e foi uma função que eles
deixaram que eu faço porque eu gosto também (Dona Ezimar, comunidade São Francisco
do Bauana).
Assim, percebe-se, nesse relato sobre infância e trabalho, o quanto Dona
Ezimar tem honra e orgulho de tudo que seus pais deixaram como legado,
ensinando-a a trabalhar, e como ela sente satisfação em se dedicar à agricultura.
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 259
3.2 Adolescência e escola
Dona Ezimar tem um grau de escolaridade muito parecido com o de Dona
Edna. Quando mais novas, ambas não conseguiram estudar, o que só conseguirem
bem mais tarde.
Eu me lembro muito do meu pai, eu nunca esqueço, desde pequeninha meu pai e minha
mãe me ensinou nós a trabalhar na roça e na agricultura. Se ele ia ele não deixava nós.
Teve uma época que tinha umas escolinhas, e ele colocava nós, mas se a aula fosse de
manhã, a tarde nós ia para roça com eles. Nossa merenda eu lembro que era peixe, nós
pegava fritava um “bararuá” [nome do peixe], colocava farinha em cima, e levava, aquela
era nossa merenda na escola. Hoje está tão diferente, hoje tem apoio nas escolas, tem
merenda, tem o bolsa família (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana).
Era nesse ritmo que dona Ezimar levou sua vivência na escola na comunidade.
Quando ela diz “que nossa merenda eu lembro que era peixe, nós pegava e fritava,
colocava farinha e levava”, pensa-se na regionalidade e na riqueza local. Hoje, ela
reflete sobre como os programas sociais beneficiam muitas famílias ribeirinhas e
pelo Brasil afora, proporcionando a elas terem uma alimentação melhor.
3.3 A participação na comunidade
Dona Ezimar realça muito fortemente a questão da mulher agricultora. Um dos
pontos que ela destaca, a respeito disso, é o fato de o trabalho na roça ser muito
pesado.
Eu sou agricultora, trabalho na roça, sou animadora de setor da igreja, tenho essa função
na igreja, que é para ajudar na igreja, sou também uma das mobilizadoras das mulher, eu
oriento, procuro, nós temos um grupo de mulher. Eu faço meus plantios de hortaliça, de
tudo um pouco eu procuro fazer. Tudo isso para bens dos meus filhos, eu digo para eles,
o que eu não pude ter, meu estudo, ter um estudo para mim, ser alguém na vida, hoje eu
quero para meus filhos. O nosso foco é lá na comunidade, na agricultura, que é para tirar
260 | Gênero, violência e estruturas de poder
o sustento dos nossos filhos, ajudar eles nos estudos dele (Dona Ezimar, comunidade
São Francisco do Bauana).
A maternidade e o cuidado com o futuro dos filhos são questões muito
importantes para todas as mulheres que fizeram parte deste estudo. Todas se
preocupam muito com a educação dos filhos, com um futuro melhor, que não seja o
de trabalhar na roça.
Na roça é muito difícil, é um trabalho muito pesado, eu digo para as mulheres que não
querem participar, nós não podemos tirar nosso sustento só da roça. É um trabalho muito
pesado, o que então deveríamos fazer? Nós temos que criar galinha, nós temos que fazer
nossos canteiros de hortaliça, vender na feira. E eu incentivo elas. Hoje algumas mulheres
querem as coisas muito fácil, porém nada é fácil, tudo que a gente tem é com todo
sacrifício do mundo. E hoje eu agradeço muito a Rita, porque ela ajudou muito nós, e
continua ajudando. Eu dou muita força para as mulheres, elas sabem disso. Não é por
falta de convite, eu convido muito, desde quando marca as datas das feiras, eu já estou
falando, já estou articulando com elas, “olha vai ter feira, vamos ajeitar nossas verduras
para levar” nós faz o bem para pessoas, e faz o bem para nós mesmos, que dali nós tira
para comprar nosso rancho, nossa alimentação. Eu sou uma pessoa que eu bato muito,
eu não quero só para mim, quero para todas.
Dona Ezimar destaca o desafio do desinteresse de algumas mulheres em se
envolver no movimento das feiras, ressaltando a necessidade de evitar idealizar as
dinâmicas comunitárias, que, como qualquer grupo social, enfrentam problemas de
articulação e interesse. Ela incentiva a participação e destaca a importância do
projeto, inspirando outras mulheres com sua determinação e resistência. Sua fala
sobre querer benefícios não apenas para si, mas para todas, reflete a essência da
organização coletiva e a importância de entender esse processo.
Eu fico muito feliz quando recebo um convite, dizendo que vai ter uma feira, porque eu já
sei que lá vou ganhar meu dinheiro, porque quanto mais feira tem, mais eu vou ganhar
meu dinheiro. A goma, tucumã, que a natureza nos dá, que Deus deixou, minha comadre
um dia desses trouxe maracujá do mato, e ganhou muito dinheiro, porque só ela trouxe,
e são coisas que ela não plantou, só foi lá na natureza e só colheu e trouxe e vendeu. Para
mim, essas feiras, tem muito valor, para ganhar nosso dinheiro, dar para eu trazer minha
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 261
farinha, minha cebola, minha goma, macaxeira. Se as mulheres se esforçassem mais
seria mais forte e movimento, porque não adianta só ter a feira, tem que ter gente para
vender (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana).
Aqui ela destaca a relação das feiras com o sustento da família, e como isso é
importante para todas as mulheres da comunidade, a felicidade delas em participar,
de colher na floresta produtos que só a natureza dá, sentindo-se grata por isso.
Eu sou agricultora, pescadora, sou uma negra que gosto da minha raça, eu amo essa cor
que eu tenho. De primeiro eu dizia assim, aí eu não gosto do meu cabelo, do meu corpo.
Agora eu amo, meu cabelo, meu corpo, eu tenho que me sentir amada por mim mesmo.
Eu tenho orgulho de mim mesma, não tenho vergonha da minha cor. Não tenho mais
vergonha do meu cabelo, antigamente qualquer coisinha queria prender, colocar um
chapéu. O momento que foi revelado que eu tenho que gostar de mim, do jeito que sou,
foi no grupo das mulheres, eu vi todo tipo de mulher naquele encontro, de mulher negra,
mulher branca, lá tinha mulher corajosa, preguiçosa, todo tipo de mulher mesmo, então
nesse meio, eu acreditei que tem gente que dar força para gente, olha você é assim, você
é bonita desse jeito. E lá que eu fui acreditar que eu tenho que dar valor a minha cor, a
minha raça (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana).
Dona Ezimar compartilha seu orgulho e amor próprio, influenciada pelo projeto
“Elas Podem”, que aborda questões cruciais para as mulheres na sociedade. Sua
história emociona e inspira, destacando sua força como mãe, trabalhadora e líder. O
apoio mútuo entre as mulheres na comunidade é enfatizado, assim como a
importância de reconhecer e valorizar essas mulheres em pesquisas científicas,
honrando povos historicamente negligenciados.
262 | Gênero, violência e estruturas de poder
4 HISTÓRIA DE VIDA DE DONA RAIMUNDA MARQUES
Imagem 03: Dona Raimundinha na sua comunidade
Fonte: Arquivo projeto feiras.
Eu gosto das participações na comunidade, pois ensina muita coisa que eu não sei. A
gente aprende. O que eles não sabem a gente ensina, a gente vai aprendendo (Dona
Raimundinha, comunidade de Bom Jesus).
Dona Raimunda Marques tem 82 anos. É casada, agricultora, mãe e mora na
comunidade de Bom Jesus.
Dona Raimundinha, como gosta de ser chamada, é uma das moradoras mais
antigas da Flona. Sua história e seu protagonismo tiveram grande importância para
as todas as mulheres. Apesar da idade, sempre marca presença nos encontros das
mulheres e adora participar das feiras.
4.1 Infância e vivência do trabalho
Dona Raimundinha sempre trabalhou na roça junto com sua família, desde
muito nova, e esse trabalho majoritariamente era na produção de farinha. Ela
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 263
também conta que sua mãe e seu pai trabalhavam e dividiam o tempo também com
a seringa, nesse caso, só as irmãs mais velhas iam com eles. Porém, quando era
solicitado, Dona Raimundinha acompanhava suas irmãs nessa tarefa.
Minha mãe trabalhava na roça e meu pai na seringa, minha irmã e a minha mãe ajudava
meu pai no seringal, e aí nós se criemos. Tinha dia que até chovendo nós ia para roça,
mamãe dizia, bora para roça e eu e minha irmã iam, nós era seis irmã. Minha irmã serrava
as árvores para gente plantar, com serra mesmo. Uma do lado e uma do outro, ela serrou
muito para assoalhar nossa casa (Dona Raimundinha, comunidade de Bom Jesus).
Essa relação de trabalho nas comunidades é muito comum e se repete nas
histórias contadas nesta pesquisa. O trabalho é a vivência do comum. Ela fala, com
um sorriso no rosto, que ajudava principalmente a mãe a cuidar da casa ou dos
irmãos.
Outra lembrança que Dona Raimundinha compartilhou conosco foi a de sua
mãe trabalhando com o barro. Nas palavras que se seguem, ela narra essa memória,
sempre sorrindo.
Minha mãe trabalhava com o aguidá de barro, aí nós ia com ela de madrugada tirar barro,
eu sei temperar e fazer, minha mãe me ensinou. Nós ia todos juntos tirar o barro, levava
comida, na beira do Igarapé, grande e comprido, aí nós ia e tirava o barro, nós embrulhava
em uma folha, levava para canoa, no outro dia ela já ia fazer para não endurecer o barro,
aí já tinha o preparo na casa dela, a mesa, o caraipé que era o tempero do barro, é um
arvore grande, queima, peneira e mistura no barro. Ela ensinava nós a fazer, ela dizia
assim – minha filha é assim, botava, amassava, botava de novo. Se a gente amassasse
e não quebrasse, estava bom! Quando bota demais, ele parte todinho e aí não presta. Nós
ficava olhando e aprendia também, tudo ela fazia para nós de barro, prato, tigela, aqueles
filtro de barro, para colocar água, que o rio era longe. Nós fazia os oguidá, porque nós não
tinha dinheiro para comprar panela, prato.
No momento em que eu estava colhendo a história de vida de Dona
Raimundinha, essa parte do relato foi o momento em que ela mais se emocionou.
Ficou pensativa, como se aquele trabalho que sua mãe fazia e o aprendizado dele
que a sua mãe lhe deixou como herança tivessem sido tão marcantes na época da
264 | Gênero, violência e estruturas de poder
sua infância que, se na sua comunidade do Bom Jesus tivesse o barro próprio para
fazer o aguidá. Que são artesanatos. Era uma forma de manter a lembrança de sua
mãe mais viva na sua mente.
Eu não faço aqui, porque não tem esse barro que ela usava, aqui até acha nas beira do
garapé, mas não tenho mais saúde para isso não. Um dia eu fiz um aguidá bem
pequeninho para minha neta, eu pintei umas folhinhas, ficou muito bonitinho, mas foi só
aquele mesmo, mas se tivesse barro, eu fazia, sim (Dona Raimundinha, comunidade de
Bom Jesus).
O sentimento do amor, do afeto, pairava sobre Dona Raimundinha em suas
falas. O aguidá traz lembranças que, talvez, se não fosse eu a retomar a história de
sua vida, não se teria a oportunidade e o prazer de ouvir essas memórias.
4.2 Adolescência de dona Raimundinha e a escola
A vida escolar de dona Raimundinha é um retrato muito real das mulheres
ribeirinhas da nossa região. Lembro-me de que eu fui a primeira da minha família a
cursar uma faculdade. Incluindo a família da minha mãe, do meu pai e das tias e tios.
Minha mãe e suas irmãs eram todas analfabetas – minha mãe ainda conseguia
assinar o nome, bem devagarinho. Mas fazia questão de assinar, quando solicitado.
Exatamente da forma como Dona Raimundinha relata abaixo:
Quando a gente era criança, não tinha escola, a gente nem sabia o que era professor.
Quem me ensinava algumas coisas era meu pai, eu estudava em casa com o papai, ele
aprendeu algumas coisas lendo em sacos de fósforo que os patrão tinha. E ele
perguntava do patrão dele como formava aquelas palavras e foi assim que ele aprendeu
e aprendeu bem aprendido. E ele ensinava nós. Foi ele que ensinou a fazer meu
nome. Depois que ele morreu eu sentia muito falta. Porque ele que sabia e ensinava nós,
eu e meus irmãos. E ainda tem uma irmã minha que é até professora. Eu sentia falta de
estudar, mais a gente não sabia de professor. Teve um tio meu que pediu da minha mãe
para gente ficar e estudar, aí meu tio tinha roça, juta, nós fomos foi trabalhar, não
estudava nem nada.
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 265
Como já disse anteriormente, era como minha mãe dizia sobre a sua infância.
Ninguém pensava viver outra vida, porque ninguém teve oportunidade de vivenciar
uma outra possibilidade para ver se era melhor do que a vida na roça e na seringa.
4.3 O caminho para a participação na comunidade
Ativa na comunidade, dona Raimundinha é uma das mulheres mais
importantes na região da Flona. Ela participa desde o início das feiras, das
reuniões. Percebe-se na sua fala a importância da comunidade e da união entre as
mulheres e o fato de elas serem as protagonistas das suas vidas.
Mas até chegar à Flona e alcançar essa posição de protagonismo na
comunidade, Dona Raimundinha, na sua juventude, passou por dois relacionamentos
abusivos. No entanto, apesar da dificuldade financeira e da necessidade de criar seus
filhos, nunca deixou que os homens tomassem as rédeas de sua vida.
Eu vim de Copatana e vim para Tefé com minha patroa. Eu fiquei em Tefé e minha mãe
foi embora, e eu fiquei com minha vó, minha vó morreu, e eu tive empregada pelas casas,
aí achei um homem e fui para a acompanha dele, eu tive três filhos só. Aí abandonei ele,
porque ele era muito cachaceiro, as vezes queria me bater, aí eu deixei ele e fui embora
para casa da minha sogra, eu morei muitos tempos em Tefé. Aí arranjei outro e nós fomos
embora cortar seringa, aí ele também era malandro, não queria fazer nada, só queria viver
na custa do pai e da minha sogra, não esse vou me embora, eu tive dois filhos com ele.
Aí fui embora para casa do meu tio, a minha mãe me levou embora. Eu levei meus três
meninos junto comigo. Para lá se criaram, e depois com dez anos saíram de casa para
trabalhar. Só depois de adultos que eu fui ver eles de novo (Dona Raimundinha,
comunidade de Bom Jesus).
Na sua história, Dona Raimundinha nos lembra da força da mulher da floresta,
de conseguir se manter de pé, como as castanheiras, apesar das dificuldades. Mostra
que cada mulher é protagonista da sua vida.
Eu sempre trabalhei na roça, depois de velha que comecei a trabalhar com verduras para
vender, no projeto da feira. Deu muita verdura, deu muita pimenta, cheiro-verde, cebola.
Tudo deu! Fomos para Parintins levar nossas verduras, um monte de mulher foi. As
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nossas cebolas eram bonitas, a gente aprendeu que a cinza que dar debaixo do forno é o
mesmo que o calcário, aí a gente colocava tudo nas verduras e ficavam bonitas. Nós
fomos várias vezes nas feiras, vender mel, vender cebola, pimenta, tem até as fotos que
as meninas tiravam, tinha lá nossas fotos, trabalhando na horta, e as bacias de verduras,
tão bonitas, né? Lá em Parintins, também apareceu nós no telão lá. Eu achei bom. Só que
eu já não consigo mais carregar peso, até cortar alguma coisa eu tenho dificuldade. Esses
últimos tempos, tenho me sentido muito doente (Dona Raimundinha, comunidade de
Bom Jesus).
Dona Raimundinha se destacou nas feiras da Flona, onde apresentava seus
produtos e colaborava com outras mulheres da comunidade do Bom Jesus na
organização do evento. Ela se orgulha de suas plantas e produções. Anteriormente,
sua participação se limitava mais à organização da alimentação em reuniões
comunitárias, mas nas feiras, ela e as outras mulheres assumiam papéis centrais,
planejando e coordenando as atividades.
Muitas das mulheres não gostam de participar mesmo não, a gente convidava para
ajudar nós na cozinha, aparecia uma, duas, depois não vinha mais (Dona Raimundinha,
comunidade de Bom Jesus).
A comunidade, nesse sentido, se dá pela organização dessas mulheres, umas
em relação às outras, em que cada uma tem o seu papel.
Apesar do machismo que está estruturado na sociedade e de todas as
dificuldades, hoje em dia percebemos, através de nossas pesquisas, que a cada dia
mais mulheres estão ocupando esses espaços para além da cozinha. Principalmente
depois dos projetos de educação que foram disponibilizados na Unidade de
Conservação - UC, projetos que foram feitos para elas e que elas assumiram, como
o projeto das feiras.
Eu gosto das participações na comunidade, pois ensina muita coisa que eu não sei. A
gente aprende. O que eles não sabem a gente ensina, a gente vai aprendendo (Dona
Raimundinha, comunidade de Bom Jesus).
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 267
Apesar de todas as dificuldades apresentadas por essas mulheres para terem
o poder de participação e organização na comunidade, elas sabem o seu papel.
Quando Dona Raimundinha diz “O que eles não sabem a gente ensina, a gente vai
aprendendo”, essa partilha é exemplo claro da reflexão que estamos propondo, ou
seja, através da educação popular, as mulheres passam a ter consciência de que
seus conhecimentos são válidos e importantes e nos ensinam também.
Conhecimentos que vieram da vivência de viver na/da floresta e dos rios,
conhecimento esse que foi trazido de uma ancestralidade.
5 REFLEXÕES SOBRE TRABALHO, INFÂNCIA E FAMÍLIA
Todas as mulheres que participaram desta pesquisa lembram da sua infância
sempre com o “trabalho na roça”, como diz Dona Ezimar: “Desde que eu me entendo
por gente eu trabalho na roça” (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana).
E esse é um primeiro fato que trazemos para a reflexão. No caso das meninas, elas
trabalhavam na roça, trabalhavam em casa com a mãe nos serviços domésticos e
no cuidado com os irmãos e, muitas vezes, não podiam ir à escola.
O trabalho na roça, na maioria dos casos, no plantio de mandioca, é muito
exaustivo, exige muita dedicação e energia. “A região da Amazônia representa, sob o
ponto de vista ecológico, um tipo unitário de área alimentar muito bem caracterizado,
tendo como alimento básico a farinha de mandioca” (Castro, 2010, p. 41).
Na fabricação da farinha, a importância do trabalho feminino e infantil era muito
acentuada, assim como ainda é hoje. Para fazer a farinha é preciso juntar gente. Pois
todas as etapas devem ser realizadas em um só dia ou no máximo dois: arrancar a
mandioca, raspar, lavar, ralar, prensar e torrar. Embora normalmente o controle do
processo da farinha seja feito por um homem, que é que determina as quantidades, as
tarefas de cada um e o “ponto” de torrar a farinha, mulheres e crianças arrancam, raspam
a mandioca, lavam, carregam água. (Wolff, 1998, p. 126).
Sendo a farinha de mandioca a principal fonte alimentar dessas populações,
a organização do trabalho da família exige que todos ocupem o papel nesse
processo.
268 | Gênero, violência e estruturas de poder
Segundo dona Edna, quando o esposo saía para as viagens para a organização
da Flona, ela ficava em casa com as crianças e fazia o “básico” para sobreviverem
por aquele tempo sem o “homem no lar”. Olhando essa situação pela perspectiva
feminista de Silvia Federici (2019),
É importante reconhecer que, quando estamos falando de trabalho doméstico, não
estamos tratando de um trabalho como os outros, mas, sim, da manipulação mais
disseminada e da violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer
setor da classe trabalhadora. (Federici, 2019, p. 42).
É o que a autora chama de “trabalho do amor”, no qual, mesmo
sobrecarregada, a mulher entende que o que ela está fazendo é o básico, e não é.
Essa mulher vive uma tripla jornada, mesmo com o marido em casa. E, quando o
marido não está, ela também assume o trabalho que era para ser do esposo.
Durante as entrevistas, quando estávamos falando desse assunto de trabalho,
quando as mulheres compartilhavam a sobrecarga de trabalho, no final, sempre
diziam: “mas eu sou feliz”. Como se, mesmo ao compartilhar as suas dores de
sobrecarga materna, trabalho na roça, cuidado do marido, estar feliz era cumprir o
que a sociedade exige. “Quem nasce mulher, sente e sabe a discriminação de cada
dia, mesmo que diferente para algumas, a carga de discriminação e é contra essa
educação, sexista, machista, patriarcal e capitalista que estamos a questionar,
permanentemente” (Andrade; Machado, 2018, p. 47).
6 REFLEXÃO SOBRE O ACESSO À EDUCAÇÃO PELAS MULHERES DA FLORESTA
NACIONAL DE TEFÉ
A educação das mulheres da floresta é a ferramenta que liberta. É uma
educação marcada pelo compromisso, pelo afeto; é uma educação pelo comum, pela
igualdade; é uma educação popular.
Na maioria das partilhas que tivemos com as mulheres e no tempo que
trabalho como fotógrafa voluntária nos projetos das feiras, pude perceber que a
fraternidade das mulheres umas com as outras é muito forte. Porém, essa
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 269
fraternidade é marcada pelo difícil acesso à educação dessas mulheres, não
somente pelo fato de as comunidades serem longe da cidade. Mas, principalmente,
pelo impedimento por parte do pai ou do marido.
Nesse processo, percebemos uma infância e uma adolescência silenciadas
por homens, que, no papel conferido a eles pelo machismo e pelo patriarcado,
oprimem a vida dessas mulheres, querendo ser seus donos e mandar nas suas
vontades, sendo que a vontade delas é de ser elas mesmas, de fazerem sua própria
história. Como diz Rejane: “Se não sairmos daqui para estudar, não vamos ser
nada”. Como diz Perrot (2005), sobre o silêncio das mulheres.
O silêncio é o comum das mulheres. Ele convém à sua posição secundária e subordinada,
ele cai bem em seus rostos, levemente sorridentes, não deformado pela impertinência do
sorriso barulhento e viril. Bocas fechadas, lábios cerrados, pálpebras baixas, as mulheres
só podem chorar, deixar as lágrimas correrem como a água de uma inesgotável dor
(Perrot, 1998, p. 9).
Desse modo, o silenciamento dessas mulheres é muito real. Está em Rejane,
que não podia estudar fora, porque o pai não deixava que ela e as suas irmãs saíssem
de casa para estudar. O silenciamento está em Janete, que queria continuar seus
estudos, mas o seu esposo não deixou.
Conforme vamos conhecendo a história dessas mulheres, percebemos que há
toda uma estrutura de silenciamento que é proposital, que é intencional. Por essa
estrutura, a mulher não foi feita para sair de casa e fazer a sua história.
Principalmente a mulher que vive na floresta, pois, além de tudo, existe a questão da
geografia do lugar. A mulher foi feita para trabalhar na roça, parir, cuidar dos filhos e
do marido, segundo o pensamento patriarcal dominante.
No entanto, Dona Raimundinha, junto com o seu pai, quebrou e ultrapassou
essa barreira. Seu pai, mesmo não sabendo ler e escrever, desafiou seus próprios
limites de opressão e aprendeu a ler sozinho, em sacos de fósforo, movido pela
curiosidade de perguntar para os seus patrões as palavras. Com isso, aprendeu a ler
e pôde ensinar seus filhos e filhas. Quando o pai faleceu, Dona Raimundinha sentia
saudade dele e também da educação que dele recebera. No meio da floresta, eles
270 | Gênero, violência e estruturas de poder
tinham seus próprios meios de aprender, sua mãe ensinando a fazer o oguidá de
barro, ou seus remédios da floresta.
Um conhecimento usado na comunidade para seu povo, que passa de geração
em geração. “O pensar a vida não era pensar apenas a partir de pensamentos de
outros, mas era sobretudo o desafio de tomar sua própria vida, seus hábitos, seus
conhecimentos, como fonte primeira do pensamento” (Gebara, 2016, p. 192).
Essa sementinha da educação popular e a organização e a participação
dessas mulheres nesses espaços proporcionam uma outra mentalidade para
mulheres que foram oprimidas: a de pensar diferente de seus pais e seus maridos,
mantendo sua afetividade com o lugar da comunidade. Como diz Dona Edna, “O
maior desejo do meu coração, para a comunidade, eu tinha vontade dos meus filhos
cursarem uma faculdade direitinho e eles voltarem para aplicar o conhecimento
deles onde eles saíram, esse é o maior sonho”.
7 REFLEXÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA COMUNIDADE
Este último tópico é de muita importância, pois compreender esse processo
de participação é o eixo principal desta pesquisa. Deixamos este ponto como o
último neste capítulo, pois esse processo de organização das mulheres da floresta
que analisamos foi um longo caminho trilhado. Não foi um processo rápido nem teve
um autor principal ou se constituiu de uma ação única. Mas, sim, foi o resultado do
esforço de uma junção de processos, que contribuíram para a influência da
organização para além da comunidade.
Tanto na infância como na juventude dessas mulheres, a falta de acesso à
educação foi uma das principais dificuldades que elas enfrentaram em suas
vivências na comunidade.
Marcia Kambeba (2020) propõe uma reflexão sobre o bem viver, a busca da
coletividade, do bem comum, que foi a forma de essas mulheres se encontrarem nas
suas comunidades e, juntas, transformarem a sua realidade, contornando as
dificuldades por meio de ações que beneficiaram todo o coletivo. “Nascer e viver em
aldeia me fez entender que a resistência precisa começar dentro de cada um de nós,
buscando manter vivas as memórias no compromisso de lutar, junto com uma
Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 271
coletividade por direitos e formas de seguirmos sendo comunidade” (Kambeba, 2020,
p. 17). Que corrobora com o que diz Simonian (2001, p. 34), “[...] organiza-se e crer
no potencial”. As mulheres perceberam, por meio das ações de estímulo que tiveram
na Flona, a potencialidade de se organizar e que podiam conseguir muita coisa,
através da organização.
A crescente mobilização feminina em busca do reconhecimento de parte da sociedade e
do Estado, para que as mulheres tenham direito a voz e a possibilidade de tomada de
decisões, no contexto do desenvolvimento, chega a ser revolucionária. Ademais cresce o
número das mulheres que passam a constituir-se em sujeitos mais participativos, com
o que superam invisibilidade e desconsiderações de toda ordem (Simonian, 2001, p. 34).
Em conformidade com o que a autora observa no seu texto, a
mobilização/participação gera visibilidade para essas mulheres, gera pertencimento
pela ação conjunta, pois a organização não se faz sozinha. Esse movimento é
impulsionado por agente sociais, os quais, nesta pesquisa, são as mulheres da
Floresta Nacional de Tefé.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, portanto que as vidas das mulheres da floresta são essenciais no
papel no fortalecimento dos cuidados da floresta e das águas. Suas histórias
destacam seu protagonismo em outros espaços da vida, desde a família até a
participação na comunidade. Essas mulheres se unem para fortalecer a identidade
coletiva
e
a
organização
comunitária,
influenciando
positivamente
suas
comunidades e reforçando sua conexão com a floresta.
A educação do povo da floresta, se dar por uma educação pautada através da
identidade do seu povo e sua cultura, que passa de mãe para filha. Conhecimentos,
crenças ancestrais que povoam as florestas e seus povos, trazendo orgulho de
pertencimento, apesar de todas as dificuldades enfrentadas por suas ancestrais e no
tempo presente, viver na floresta/comunidade é um presente, e esse sentimento é o
que faz manter vivo a luta e dever de lutar pelos seus direitos, de educação, cultura e
272 | Gênero, violência e estruturas de poder
saúde. E não tem como protagonizar essas ações, sem os afetos que norteiam as
mulheres da Floresta Nacional de Tefé.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Êmila da Silva; MACHADO, Rita de Cássia Fraga. Mulheres da Floresta:
dizendo sua palavra autonomia, participação e emancipação. In: MACHADO, Rita de
Cássia Fraga; GAMA, Aildo da Silva (Org.). Mulheres, organização e produção
agroecológica: Floresta Nacional de Tefé. Curitiba: CRV, 2018.
CASTRO, Josué. Geografia da fome. 10 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.
DINIZ, Debora; GEBARA, Ivone. Esperança feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2022.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta
feminista. São Paulo: Elefante, 2019.
GEBARA, Ivone. Educação popular: a ressignificação das expressões. In: CASTRO,
Amanda Motta; MACHADO, Rita de Cássia Fraga (Org.). Estudos feministas,
mulheres e educação popular. Curitiba: CRV, 2016.
MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2022.
KAMBEBA, Marcia Wayna. Saberes da floresta. São Paulo: Jandaíra, 2020.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Florianópolis: Edusc,
2005.
SAMAIN, Etiene. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2012.
SIMONIAN, Lígia. Mulheres da Amazônia Brasileira: entre o trabalho e a cultura.
Belém: UFPA/NAEA, 2001.
WOLFF, C.S. Mulheres da floresta: uma história – Alto Juruá, Acre (1980-1945). São
Paulo: Hucitec, 1998.
14. ANÁLISE DAS FUNDAMENTAÇÕES DAS SENTENÇAS EM PEDIDOS DE HABEAS
CORPUS EM BENEFÍCIO DAS MÃES ENCARCERADAS PREVENTIVAMENTE POR
CRIMES DA LEI DE DROGAS1
https://doi.org/10.36592/9786554601566-14
Jessica Katharine Gomes Marques2
Tainá Ferreira e Ferreira3
RESUMO
A forma que o sistema penal incide sobre as mulheres, sejam vítimas ou criminosas,
só começou a ter maior destaque dentro do campo acadêmico a partir do
desenvolvimento da criminologia feminista e do estudo do fenômeno criminal pela
ótica de gênero. Ainda sim, a forma que o sistema de justiça criminal recebe essas
mulheres demonstra que há muito ainda a se discutir acerca dos efeitos desse
sistema sobre a vida das encarceradas. Com base em tais premissas, o problema
proposto nesse artigo foi questionar como o TJPA está decidindo sobre a
aplicabilidade do HC coletivo n.º 143.641 em casos de pedidos de Habeas Corpus
com a conversão de prisão preventiva em domiciliar de mães encarceradas. Como
objetivo geral busca-se aferir como tal HC está funcionando como mecanismo
desencarcerador nos julgados do Pará, e, como objetivos específicos, se tem o
estudo de como a criminologia feminista é uma ferramenta de estudo necessária
para entender a forma com o sistema de justiça criminal incide sobre as mulheres, a
análise de como os juízes estão decidindo sobre o trafico dentro da residência
familiar da autora e dos filhos e como estão manejando o conceito de “situações
excepcionalíssimas”. Para tanto, foi aplicado o método dedutivo, a partir do
referencial teórico da criminologia feminista, com aplicação das técnicas de
pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, através da análise de conteúdo dos julgados
do TJPA. Como conclusão da pesquisa, verificou-se que as decisões analisadas, em
sua maioria, foram denegadas a partir de argumentos que não se adequam as
exigências firmadas pelo HC coletivo, o que demonstra a lógica punitiva contra as
apenadas.
PALAVRAS-CHAVE: Encarceramento feminino. Maternidade. Tráfico de drogas. HC
coletivo n.º 143.641. Jurisprudência do TJPA.
1
Artigo apresentado ao evento Congresso de Estudos de Gênero e Interseccionalidades de 2023 como
fruto do resumo de mesmo nome e conteúdo apresentado no referido evento.
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará. E-mail: jessicakgmarques@gmail.com
3
Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC
Minas. Mestra em Direito pela Universidade Federal do Pará. Doutoranda em Direito pela Universidade
Federal do Pará. E-mail: Ferreira.taina@yahoo.com.br
274 | Gênero, violência e estruturas de poder
INTRODUÇÃO
Muito se discute sobre as funções declaradas e as funções reais das penas. A
criminologia crítica demonstrou que o sistema penal é um dos mecanismos de
controle mais eficientes, de modo que, ao longo da história brasileira foi voltada,
majoritariamente, para o encarceramento de homens, pobres, com pouca
escolaridade e negros.
Um breve olhar sobre o Código Penal de 1940, e ainda vigente, demonstra que
as penas de crimes contra o patrimônio foram estabelecidas pelo legislador em
patamares bem mais rigorosos em relação a outros delitos, o que indica uma
tendência de proteção aos que são detentores desse patrimônio e colabora com o
aumento de prisões dos mais pobres.
Criminólogos, portanto, muito contribuíram para que tais percepções se
tornassem essenciais para a compreensão do funcionamento do sistema penal,
entretanto, restava um questionamento fundamental: e as mulheres?
Em meio a tantos estudos sobre a seletividade penal e os processos de
criminalização, pouco se falava sobre como esse sistema atua sobre as mulheres,
qual o perfil da mulher encarcerada, os impactos do cárcere, os processos de
revitimização entre outros temas que durante muito tempo permaneceram
silenciados dentro dos estudos sobre as prisões.
A Lei de Execução Penal brasileira foi promulgada em 1984, porém pouco
trouxe disposições sobre como as mulheres deveriam cumprir suas penas, de
maneira que, apenas em 2009, houve modificações mais incisivas acerca da
assistência à saúde, à convivência com filhos menores, entre outras.
Historicamente, portanto, as prisões foram pensadas por homens para
homens, entretanto, não há como ignorar que mulheres também compõe a massa
carcerária, e enquanto aos homens os crimes que mais levam à prisão são os
patrimoniais, para mulheres é o tráfico de drogas o crime que mais prende. Isso
implica que compreender como esse sistema incide sobre elas requer um método de
pesquisa diferenciado, que não cabe na epistemologia tradicional da criminologia.
Com base em tais percepções, o questionamento que se coloca deste breve
artigo é o seguinte: Como o Tribunal de Justiça do Estado do Pará está decidindo
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 275
sobre a aplicabilidade do HC coletivo n.º 143.641 em casos de pedidos de Habeas
Corpus para conversão de prisão preventiva em domiciliar?
O objetivo geral é traçar um parâmetro de como o HC coletivo mencionado tem
funcionado como mecanismo desencarcerador através de sua implementação nos
julgados do Estado do Pará. Para tanto será analisado como a criminologia feminista
é uma ferramenta essencial para o estudo do sistema penal e sua relação com as
mulheres; de que modo os juízes estão decidindo acerca do tráfico de drogas na
residência da autora onde seus filhos também habitam e; como o conceito de
“situações excepcionalíssimas”, contido no julgando, está sendo empregado.
A metodologia selecionada será a aplicação do método dedutivo, pois tem
como premissa teórica a criminologia feminista de autoras como Soraia da Rosa
Mendes, Vera Regina Pereira de Andrade, Carmen Hein Campos, com aplicação da
técnica de pesquisa jurisprudencial com a análise de conteúdo, através da utilização
do sistema do Tribunal de Justiça do Estado do Pará na pesquisa de suas
jurisprudências com a busca pelos descritores “HC coletivo n.º 143.641” entre o ano
de 2018 e 2019, e a pesquisa bibliográfica a partir do referencial teórico mencionado.
2. A MULHER CRIMINOSA E O ESQUECIMENTO PENAL
Soraia da Rosa Mendes 4 afirma que para compreender o etiquetamento
feminino, seja da mulher autora ou vítima de crimes, é necessário entender como
historicamente o poder patriarcal e o poder punitivo articularam-se para sua
custódia pela família, na sociedade e pelo Estado.
Nas ciências em geral, a mulher foi relegada ao segundo plano, seja como
pesquisadora, seja como sujeito e objeto das discussões. No campo das ciências
criminais não foi diferente.
Para Campos5 a crítica feminista ao caráter androcêntrico das ciências, de um
modo geral, e às ciências sociais, em particular, aliada ao desenvolvimento da teoria
do feminismo forneceram as bases para a crítica feminista à criminologia.
4
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017,
p. 14.
5
CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia Feminista: Teoria feminista e crítica às criminologias. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 217.
276 | Gênero, violência e estruturas de poder
De maneira geral, graças ao feminismo, foi possível constatar que os modelos
tradicionais de investigação social e sua concepção de definição de campo de estudo
esqueceram importantes áreas para se concentrar na racionalidade do “ator social”
consciente e pragmático. Assim, partindo do estereótipo de que sentimentos e
emoções são ligados às mulheres e a racionalidade aos homens, elas foram
negligenciadas como sujeito e objeto de pesquisas6.
Ademais, as investigações das ciências sociais, durante longo período,
centraram-se em situações públicas, oficiais e visíveis, deixando de lado o espaço
privado também importante para a análise das organizações sociais. Com isso, os
homens foram mais visualizados como criadores de estruturas sociais, em
detrimento do isolamento das mulheres7.
Com o surgimento do paradigma etiológico, na criminologia, enfatizou-se a
relação da mulher com a sexualidade, de modo que em uma mulher considerada
“normal” encontrava-se subordinada à maternidade, portanto, sendo aquela que
coloca os filhos como prioridade absoluta. De maneira contrária, as criminosas
seriam aquelas que abandonam seus filhos ou induzem as filhas à prostituição8.
Nesse contexto, a prostituta torna-se o melhor exemplo de delinquente
feminina. Lombroso ainda mencionava que a prostituição decorrida de uma
predisposição orgânica à loucura moral, o que durante muito tempo serviu de
embasamento para o estabelecimento de políticas para o tratamento dessas
mulheres9.
Com o nascimento da criminologia crítica, e o giro epistemológico que passou
a analisar os processos de criminalização do indivíduo, deu-se o primeiro passo para
uma proposta que se contrapunha à ideia do delito como uma doença e, portanto, a
superação do paradigma etiológico.
O crime e o criminoso, então, passam a ser analisados à luz do contexto social
em que estão inseridos, com influência da epistemologia marxista, o estudo do
fenômeno criminal não pode ser desprendido da investigação acerca da seleção
6
Ibidem. p. 217.
CAMPOS, Carmen Hein de. Op cit. p. 218.
8
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017,
p. 44
9
Ibidem. p. 44-4.
7
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 277
penalizante realizada a partir de um sistema penal formado por agências que
colocam em prática os processos de criminalização.
Ocorre que, mesmo na criminologia crítica, o foco de pesquisa recaiu sobre
situações definidas pelo que é o espaço público, limitando seu conceito de atores
sociais aos que são visíveis na esfera pública, tal como ocorre com as classes
sociais10.
A partir dessa perspectiva, os estudos feministas conseguem ganhar espaço
e, por conta disso, são promovidos estudos sobre as diferentes formas que o sistema
de justiça criminal atua sobre a mulher, nos marcos da ideologia capitalista e
patriarcal11.
2.1. O protagonismo da mulher nas ciências criminais
Uma das características centrais de uma criminologia dita feminista é a
análise do sistema penal a partir do gênero. Campos12 afirma que o desenvolvimento
desta categoria revolucionou as análises feministas que, aplicadas a criminologia,
não apenas questionaram seus pressupostos androcêntricos, mas construíram um
novo referencial teórico capaz de analisar a criminalidade e demandas femininas, até
então ignoradas. Para esta breve discussão, pode-se trabalhar com o conceito de
gênero apresentado por Mendes13:
Desde os anos setenta, portanto, o feminismo conhece do conceito de gênero para fazer
referência à construção cultural do feminino e do masculino através de processos de
socialização que formam o sujeito desde a mais tenra idade. O conceito foi libertador
porque permitiu às mulheres demonstrar que a opressão tinha como raiz uma causa
social, e não biológica ou natural
10
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017,
p. 226.
11
Ibidem. p. 63.
12
CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia Feminista: Teoria feminista e crítica às criminologias. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 221.
13
MENDES, Soraia da Rosa. Op cit. p. 86.
278 | Gênero, violência e estruturas de poder
A autora também esclarece que patriarcado é a manifestação e
institucionalização do domínio masculino sobre as mulheres e crianças da família e
que se estende à sociedade em geral. Como consequência, os homens têm poder nas
instituições importantes da sociedade, enquanto as mulheres são privadas de
acesso a elas14.
Campos15 afirma que em uma primeira fase a crítica feminista à criminologia
se preocupou em expor o caráter androcêntrico da disciplina; visibilizar as mulheres
que cometem crimes; revelar o sexismo institucional do estudo do crime e das
maneiras pelas quais criminosos e vítimas eram tratados; problematizar a
conformidade feminina como natural e auto evidente.
Na segunda fase, houve preocupação com a incorporação do debate pós
moderno e as feministas. Assim, passou-se a problematizar o termo mulher como
categoria unificada; a incorporação das experiências das mulheres; relações de
sexo/ gênero entre outros16.
Como expõe a autora, a necessidade de repensar a criminologia decorre não
apenas das transformações estruturais e culturais ocorridas nas últimas décadas,
mas também da atual fragmentação do conhecimento. Dessa maneira, não é mais
possível compreender a narrativa sobre o delito de maneira unificada, mas sim como
um campo de incidência de diversas agências, práticas, políticas e discursos
diferentes17.
2.2. O sistema de justiça criminal e a mulher criminosa
Segundo Andrade18, o sistema de justiça criminal reflete o androcentrismo
existente na sociedade. Falar sobre mulheres implica tratar sobre os espaços, papéis
14
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017,
p. 88
15
CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia Feminista: Teoria feminista e crítica às criminologias. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 223.
16
Ibidem. p. 223-224.
17
CAMPOS, Carmen Hein de. Op cit., p. 289.
18
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: O sistema de justiça criminal no
tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n 48,
maio/jun. 2004. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15185/13811, p. 84-85.
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 279
e estereótipos que a elas são atribuídos. A autora afirma que temos duas esferas: a
pública, configurada como esfera das relações produtivas, de propriedade,
trabalhista e que é reservada ao homem e a privada, reservada ao lugar das relações
familiares, cujo protagonismo é dado à mulher.
Estamos perante o simbolismo de gênero com sua poderosa estereotipia e
carga estigmatizante. Este simbolismo (enraizado nas estruturas)que homens e
mulheres, no entanto, reproduzem apresenta a polaridade de valores culturais e
históricos como se fossem diferenças naturais(biologicamente determinadas) e as
pessoas do sexo feminino como membros de um gênero subordinado, na medida em
que determinadas qualidades, bem como o acesso a certos papéis e esferas (da
Política, da Economia e da Justiça, por exemplo) são percebidos como naturalmente
ligados a um sexo biológico e não ao outro19.
Nesse contexto, a mulher é vista como um não sujeito no funcionamento do
sistema de justiça criminal. Aos homens poderosos e improdutivos, cabe o ônus da
periculosidade e da criminalização e para as mulheres fragilizadas, resta o bônus (?)
da vitimização20.
De acordo com Mendes21 para as mulheres o cárcere não foi uma novidade
moderna para aquelas que eram pobres e ociosas. Na historiografia, são muitas as
menções aos conventos como locais de encarceramento, no Brasil a administração
penitenciária feminina esteve sob a coordenação de ordens religiosas até meados
do século XVI.
Para as mulheres, portanto, os mecanismos de controle são diversos daqueles
que incidem sobre homens, sobre elas recai um controle informal materializado na
família (pais, irmãos, maridos etc.) e ainda em instituições como escolas, igrejas para
que operem os papeis que lhe são atribuídos na vida privada. Por essa razão, que no
19
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: O sistema de justiça criminal no
tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n 48,
maio/jun. 2004. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15185/13811, p. 85.
20
Ibidem. p. 86.
21
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017,
p. 142-153.
280 | Gênero, violência e estruturas de poder
Código Penal, nas prisões, a mulher criminosa é tratada somente de maneira residual,
pois o sistema a classifica prioritariamente como vítima22.
Atualmente, Andrade 23 considera o sistema de justiça como androcêntrico,
pois constitui um mecanismo masculino de controle para o controle de condutas
masculinas, em regra geral, praticadas pelos homens, e só residualmente feminino.
O cárcere não foi tradicionalmente pensado para mulheres, mas sim para
homens. Isso explica a realidade dificultosa e pouco debatida acerca da relação entre
o encarceramento e a maternidade. Se no Brasil temos o princípio da
intranscendência das penas, ou seja, a vedação de que a pena passe do condenado
para membros de suas famílias, como considerar a realidade de filhos que passam
os primeiros meses de vida encarcerados junto com suas mães?
Pode-se notar, então, que o fato de historicamente a mulher ser considerada
apenas como vítima, fez com que o sistema de justiça não estivesse preparado para
recebê-la como acusada. Um breve olhar sobre a Lei de Execução Penal brasileira
(Lei 7.210/1984) demonstra que somente em 2009, foi inserido o §3 do artigo 14 que
previu a necessidade e prover a assistência necessária à mulher encarcerada grávida
e o artigo 89 que trouxe a criação de creches para acolher os filhos dessas mulheres.
Ou seja, mais de vinte anos após a promulgação da lei é que se percebeu a
necessidade de adequar o cárcere para as presas.
3. AS MULHERES E O CÁRCERE BRASILEIRO
Segundo os dados promovidos pelo INFOPEN mulheres 24 , 37,67% das
mulheres encarceradas estão privadas da liberdade de modo provisório, ou seja,
tiveram sua liberdade restringida antes de uma sentença condenatória transitada em
julgado. De modo regionalizado, no Pará as encarceradas preventivamente
representam 46,12% do total das apenadas paraenses.
22
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op cit., p. 88.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op cit. p. 88.
24
BRASIL. Ministério da Justiça. Infopen Mulheres, 2018, Brasília. Disponível em: https://www.gov.br/
depen/pt-br/servicos/sisdepen/mais-informacoes/relatorios-infopen/relatoriossinteticos/infopenjun-2017.pdf/view.
23
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 281
Quanto às necessidades básicas de mães, gestantes e lactantes por estrutura
adequada do cárcere brasileiro, tem-se que somente 14,2% unidades prisionais do
País têm espaço próprio para grávidas e lactantes, 3,20% dos presídios nacionais
dispõe de berçário e 0,66% das carceragens tem creches para alocar filhos maiores
de 02 anos das internas.
Segundo o mesmo levantamento do INFOPEN mulher 25 , o coletivo de
mulheres brasileiras encarceradas são, majoritariamente, jovens (25,22% com 18 a
24 anos de idade), tem cor preta ou parda (63,55%), possuem ensino fundamental
incompleto (44,42%), são encarceradas pelo delito de tráfico de drogas (59,9%), e,
possuem filhos (28,9% têm um filho, 28,7% possuem dois filhos e 21,7% com três
filhos).
Em 2015, o projeto intitulado “Dar à luz na sombra: Condições atuais e
possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de
prisão”, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA em 2015,
fez um estudo para mapear a situação do exercício da maternidade nas prisões
brasileiras, algumas das conclusões apontadas é de que a as carceragens femininas
brasileiras são preenchidas por grupos mais vulneráveis, de acordo com os quesitos
de raça e classe, e de que toda a mulher encarcerada exerce sua maternidade de
modo vulnerável e sua gestação com diversos riscos, tendo em vista as diversas
precariedades do cárcere. Sobre o tema26:
Um dos paradoxos, que enfrentamos desde o início da pesquisa, é a escolha entre a
institucionalização da criança ou a separação da mãe. Ao serem colocadas frente a esse
paradoxo do sistema de justiça, diversas opiniões apareceram no campo revelando que
não há consenso entre as mulheres sobre o assunto, tendo algumas priorizado a
permanência com o recém-nascido, enquanto outras foram enfáticas de que prisão não
é lugar para bebês.
Uma das saídas desse (falso) paradoxo, entre institucionalizar a criança ou separá-la da
mãe, seria a prisão domiciliar, essa opção choca com a cultura do encarceramento e a
25
Ibidem.
ANGOTTI, Bruna; BRAGA, Ana Gabriela. Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidade
futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Ministério da Justiça,
IPEA, 2015. Série Pensando o Direito, 51. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/201clugarde-crianca-nao-ena-prisao-nem-longe-de-sua-mae201d-diz-pesquisa/pesquisa-dar-a-luz-nasombra-1.pdf, p. 79.
26
282 | Gênero, violência e estruturas de poder
priorização do “combate ao crime” presente nos discursos e práticas do sistema de
justiça. O aumento do encarceramento feminino, e logo do número de gestantes,
puérperas e mães encarceradas demonstra que o sistema de justiça criminal vem
ignorando recomendações de organizações internacionais contra o uso de prisão para
essas mulheres. Concluímos que uma melhor possibilidade de exercício de maternidade
ocorrerá sempre fora da prisão e, se a legislação for cumprida, tanto em relação à
excepcionalidade da prisão preventiva como no tangente à aplicação da prisão
domiciliar, grande parte dos problemas que afetam a mulher no ambiente prisional serão
resolvidos.
Diante destas informações pode-se notar como o cárcere feminino é
preenchido por mulheres em situação de vulnerabilidade, quanto ao gênero, raça e
classe, e formado por mulheres mães, que não gozam de qualquer acesso a uma
estrutura adequada para exercer sua maternagem sem causar riscos a si ou a sua
prole.
3.1. Tráfico de drogas e o encarceramento feminino
Como dito anteriormente, a maior causa de encarceramento do público
feminino brasileiro ocorre por conta do crime de tráfico de drogas, sobre essa relação
é preciso refletir sobre as possíveis motivações e explicações para o fenômeno.
O tráfico de entorpecentes é um delito com rápido retorno econômico, que
pode ser realizado como uma atividade secundária às demais tarefas do dia a dia,
por conta disso, torna-se uma forma de complemento da renda financeira e uma
oportunidade de obter dinheiro enquanto exerce presença em sua casa com a criação
de seus filhos, cumprindo o papel social tradicional destinado ao gênero feminino27.
Sobre esse cenário, citam-se os dados produzidos pelo Núcleo de Pesquisa
em Direitos Humanos e Cidadania – NUPEC (2015) por meio da produção da autora
27
CHERNICHARO, L. P. e BOITEUX, L. (2014). Encarceramento Feminino, Seletividade Penal e Tráfico
de Drogas em uma perspectiva feminista crítica. In: Seminário Nacional de Estudos Prisionais, Marília,
SP, Brasil, p. 04.
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 283
Monica Cortina em um estudo feito nos centros prisionais do Estado de Santa
Catarina28:
Após a coleta de dados, através de questionários e entrevistas semiestruturadas,
constatou-se que no universo de 35 mulheres pesquisadas, 65% estavam presas por
crimes relacionados ao tráfico de drogas.3 A par da notável cifra, concluiu-se também
que o perfil dessas mulheres agrega variantes comuns: 77% relataram histórico de abuso
de drogas em algum momento da vida; 66% estavam desempregadas no momento da
prisão; 60% possuíam baixo grau de escolaridade (sendo que 57% tinham o ensino
fundamental incompleto e 3% eram analfabetas); 51% eram solteiras, viúvas ou
separadas e 91% possuíam filhos/as.
Nota-se que as mulheres seguem pelo caminho do comércio de entorpecentes
não somente alguma influência de seus companheiros, muitas veem essa via como
uma oportunidade de crescimento financeiro e de status social, um dos grandes
fatores gira em torno da feminização da pobreza, tendo em vista que esse fenômeno
socioeconômico atinge de maneira mais grave o público feminino29. Sendo assim, há
a problemática das precárias formas de inserção de mulheres em espaços de
trabalho, ocorrendo em muitos casos a exposição a tarefas mal remuneradas, o que
leva ao empobrecimento de diversos lares que delas dependem. Segundo o tema30:
O conjunto dos dados revela o cenário de exclusão escolar subjacente à redução de
oportunidades formativas e laborais antes do aprisionamento e que permanece durante
o cumprimento da pena, considerando as condições precárias gerais das unidades
prisionais também nessa seara. Em contexto macroestrutural, o cenário de
encarceramento em massa de mulheres em todo o planeta resulta de um conjunto de
processos em curso desde a década de 1970: a ascensão de políticas neoliberais
reduzindo o Estado Social (WACQUANT, 1999), a consolidação da política global de
guerra às drogas e endurecimento das penas (BOITEUX, 2006A, 2010, 2015;
CHERNICHARO, 2014; DEL OLMO, 1998; MOURA, 2005), a feminização da pobreza e o
28
CORTINA, Monica Ovinski de Camargo. Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia
feminista. Revista Estudos Feministas (online). 2015, v. 23, n. 03. Acesso em: 12 out 2022. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/0104-026X2015v23n3p761. ISSN 1806-9584, p. 761.
29
Ibidem, p. 767.
30
GERMANO, I. M. P., MONTEIRO, R. A. F. G., & LIBERATO, M. T. C. (2018). Criminologia crítica,
feminismo e interseccionalidade na abordagem do aumento do encarceramento feminino. Psicologia:
Ciência e Profissão, 38(n.spe.2), 27-43. https://doi.org/10.1590/1982-3703000212310, p. 34.
284 | Gênero, violência e estruturas de poder
crescente empobrecimento de lares chefiados unicamente por mulheres (COSTA,
PINHEIRO, MEDEIROS, & QUEIROZ, 2005), e o fenômeno geral da criminalização da
pobreza, que fomenta a penalização das camadas pobres das populações.
Portanto, as mulheres encarceradas brasileiras lidam com uma dinâmica de
exclusão aos mecanismos legais de ascensão social por meio do trabalho e, ao
mesmo tempo, precisam chefiar seus lares para prover o sustento de seus filhos,
sem nenhuma forma de auxílio governamental o Estado se faz silente a tal mazela
social, o que torna esse público extremamente vulnerabilizado e impulsiona soluções
de rápida obtenção de dinheiro: o crime de tráfico.
3.2. O Habeas Corpus coletivo nº. 143.641 do Supremo Tribunal Federal
Com o advento da Lei 13.257 de 2016, conhecida por Marco Legal da Primeira
Infância houve uma modificação no Código de Processo Penal Brasileiro em seu art.
318 ao acrescentar no rol de possibilidades de substituição da prisão preventiva em
domiciliar as gestantes e mães com filho de até 12 (doze) anos incompletos:
Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
IV - gestante;
V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;
Diante disso, houve uma questão incontroversa quanto a hermenêutica
interpretativa do termo “poderá”, o que levou ao questionamento: durante a análise
da aplicabilidade do benefício da conversão do encarceramento preventivo em
regime domiciliar haveria a possibilidade de discricionariedade do magistrado diante
da situação fática do delito ou haveria uma obrigatoriedade em conceder a
conversão mediante o reconhecimento dos critérios objetivos da lei?
Tal questão levou a diversas formas de aplicação da norma por todo o País, o
que gerou a impossibilidade de aplicação plena do dispositivo legal, ou seja, o
mecanismo desencarcerador se tornou inoperante.
Por conta disso, houve a impetração do Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641
ao Supremo Tribunal Federal impetrado em favor das mulheres preventivamente
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 285
encarceradas que estejam gestantes ou estejam no puerpério, bem como, que
tenham filhos sob sua responsabilidade, para resguardar os direitos subjetivos da
própria mãe como também das crianças. Assim, tal pleito visava deflagrar a condição
degradante a qual essa parcela social era e é submetida durante o encarceramento
que não dispõe de estruturas adequadas para que a maternagem seja exercida de
modo saudável.
Importante salientar a manifestação da Procuradoria-Geral da República por
meio de seu parecer final que ponderou pelo descabimento do Habeas Corpus
Coletivo citado anteriormente, dentre os diversos pontos de irresignação, há a
argumentação de que a maternidade não poderia significar uma garantia contra a
prisão da autora do delito, atribuindo ao art. 318 do Código Penal a interpretação de
que há a primazia pela proteção das crianças, não representando uma prerrogativa
de sua genitora.
Entretanto, o voto do Relator Ricardo Lewandowski posicionou-se pelo
conhecimento do Habeas Corpus e sua devida concessão, assim, destaca-se as
teses arguidas quanto ao mérito do julgado:
Há, como foi reconhecido no voto, referendado por todos os ministros da Corte, uma falha
estrutural que agrava a “cultura do encarceramento”, vigente entre nós, a qual se revela
pela imposição exagerada de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis. Tal
decorre, como já aventado por diversos analistas dessa problemática seja por um
proceder mecânico, automatizado, de certos magistrados, assoberbados pelo excesso
de trabalho, seja por uma interpretação acrítica, matizada por um ultrapassado viés
punitivista da legislação penal e processual penal, cujo resultado leva a situações que
ferem a dignidade humana de gestantes e mães submetidas a uma situação carcerária
degradante, com evidentes prejuízos para as respectivas crianças. (...)
O cuidadoso trabalho de pesquisa de Eloísa Machado de Almeida, Bruna Soares Angotti,
André Ferreira, Nathalie Fragoso e Hilem Oliveira, constante da inicial, revela, inclusive
por meio de exemplos, a duríssima - e fragorosamente inconstitucional - realidade em
que vivem as mulheres presas, a qual já comportou partos em solitárias sem nenhuma
assistência médica ou com a parturiente algemada ou, ainda, sem a comunicação e
presença de familiares. A isso soma-se a completa ausência de cuidado pré-natal
(acarretando a transmissão evitável de doenças graves aos filhos, como sífilis, por
exemplo), a falta de escolta para levar as gestantes a consultas médicas, não sendo raros
286 | Gênero, violência e estruturas de poder
partos em celas, corredores ou nos pátios das prisões, sem contar os abusos no
ambiente hospitalar, o isolamento, a ociosidade, o afastamento abrupto de mães e filhos,
a manutenção das crianças em celas, dentre outras atrocidades. Tudo isso de forma
absolutamente incompatível com os avanços civilizatórios que se espera tenham se
concretizado neste século XXI. 31
Nesse sentido, ao analisar-se o teor da argumentação do Ministro Ricardo
Lewandowski é notória a utilização de teses em defesa tanto dos direitos subjetivos
da criança como os da mulher encarcerada, não havendo uma ponderação quanto a
sobreposição de interesses entre esses dois públicos.
Além disso, o do Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641 primou pela concessão
da ordem e estabeleceu parâmetros a serem observados pelos juízes durante suas
decisões pela denegação do benefício: se a situação fática tratar de crime praticado
mediante violência ou grave ameaça, se for praticada contra seus descendentes ou
em casos de situações excepcionalíssimas, mediante a fundamentação do
magistrado. Houve, também, a extensão da tutela às demais mulheres presas,
gestantes, puérperas ou mães de filhos com deficiência e às adolescentes que
cumpram medidas socioeducativas que se enquadrem nas características do HC.
Outro ponto abordado trata da credibilidade que deve ser atribuída à palavra
da mãe quanto às afirmações sobre a situação de guarda de seus filhos, cabendo ao
juiz, de modo subsidiário e em caso de dúvida, solicitar laudo social que ateste a
situação.
Houve, ainda, o claro reconhecimento da situação de insalubridade do cárcere
brasileiro quanto a questões de saúde femininas, ocorrendo à menção a diversos
problemas estruturais que assolam as instituições prisionais além do conceito de
“cultura punitivista”, utilizado para se frisar a situação de vulnerabilidade das
mulheres frente à persecução penal mediante diversas prisões provisórias
descabidas.
A Lei do Marco Legal da Primeira Infância conjuntamente com o do Habeas
Corpus Coletivo n.º 143.641 representam uma evolução normativa na tutela de
31
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC 143.641/SP, Relator Min. Ricardo Lewandowsk, data do
julgamento 20/02/2018, Segunda Turma, data de Publicação 09/10/2018.
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 287
direito de um dos públicos vulnerabilizados pelo sistema penal: as mulheres mães,
bem como, representou uma valorização das prerrogativas da própria prole, a quem
necessita de sua genitora para seu completo desenvolvimento.
Somada a essas garantias a Lei 13.769 de 2018 também dispõe das formas
de estabelecer a conversão da prisão preventiva em domiciliar para encarceradas
mães, e, alterou o Código de Processo Penal ao adicionar tais artigos:
Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável
por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde
que: (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018).
I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; (Incluído pela Lei
nº 13.769, de 2018).
II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente. (Incluído pela Lei nº
13.769, de 2018).
Art. 318-B. A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem
prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste
Código. (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018).
Diante de todo esse contexto, consagrou-se que a penalidade atribuída às
mães encarceradas mediante diversas violações de direito advindas do recolhimento
ao cárcere não pode representar uma baliza à efetivação de seu direito subjetivo de
exercer a maternidade bem como dos direitos dos próprios infantes a um saudável
desenvolvimento com a presença materna.
3.3. Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Pará
Durante a pesquisa realizada à nível de 2ª instância no site eletrônico do
Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em sua guia de pesquisa de jurisprudências,
utilizou-se os descritores: “Habeas Corpus Coletivo nº 143.641” e a delimitação
temporal de 20 de fevereiro de 2018 a 20 de fevereiro de 2019, com o fito de traçar
como tal mecanismo desencarcerador se efetivou em seu primeiro ano de vigência
dentre os julgados do Pará.
288 | Gênero, violência e estruturas de poder
Com tal busca foram encontrados 59 resultados, dentre eles fez-se necessária
uma seleção daqueles que mais se alinhavam metodologicamente à pesquisa
desenvolvida, ou seja, processos que em seu teor trata-se de delitos relacionados à
Lei n.º 11.343 de 2006 com o pedido de substituição da preventiva por prisão
domiciliar com o fulcro no HC coletivo n.º 143.641.
Sendo assim, restaram 32 decisões que embasarão este estudo, sendo todos
Habeas Corpus, nos quais em apenas em 11 casos houve a concessão da benesse
da conversão da prisão preventiva em domiciliar e em 21 ocorrências tal pedido foi
denegado.
Durante a análise das decisões encontradas, pôde-se observar que dois
pontos se tornaram relevantes na escolha dos magistrados: a exigência de
comprovação de que as mães eram indispensáveis para o desenvolvimento de seus
filhos e a ocorrência do delito se dar dentro do lar em que aquelas crianças residiam
junto de seus familiares.
Mediante a leitura apurada do Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641 e do
dispositivo legal presente no art. 318 e 318-A do CP é notória que a aplicação da
substituição do cárcere em prisão domiciliar deve ser analisada pelo juiz ao ponderar
sobre a situação fática em consonância com a aplicabilidade da norma, entretanto,
não se deve alargar a margem de discricionariedade do magistrado para abranger
questões morais no julgamento, como ocorreu em muitos dos casos de não
acolhimento do pleito.
Diante das exigências do HC coletivo: que o crime não tenha sido cometido
mediante grave ameaça ou violência, que não tenha como alvo o próprio infante ou
em casos de situações excepcionalíssimas, nota-se que os crimes previstos na Lei
n.º 11.343, tais como tráfico ou receptação, não representam delitos que envolvam
violência ou ameaça de nenhum gênero, não é cometido contra a criança, assim, sua
correlação ao mecanismo do HC coletivo n.º 143.641 é observada, excetuando a
ocorrência de situações excepcionalíssimas.
Nesse sentido, quanto à análise dos motivos da denegação da ordem de HC
impetrados com base no pedido de conversão da prisão preventiva em domiciliar
obteve-se os seguintes dados: em 10 decisões houve a argumentação de que não
houve a comprovação da vulnerabilidade da criança e a consequente necessidade
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 289
do convívio com a mãe, em 1 decisão ocorreu a denegação pelo crime de tráfico
ocorrer nas dependências do lar que a criança habitava, em 1 primou-se pela não
concessão do pedido por tratar de situação excepcionalíssima. Por fim, em 01
decisão houve a negativa por não haver uma adequação da situação fática às
exigências para a concessão da benesse e em 01 julgado houve a denegação por
insuficiência de outras medidas cautelares alheias à prisão preventiva.
Além disso, observou-se que há decisões que coadunam as motivações
citadas anteriormente: em 03 casos os juízes entenderam pela denegação tendo em
vista que o tráfico ocorreu na residência da autora e das crianças o que caracteriza
situação excepcionalíssima, em 04 decisões houve argumentação pela não
caracterização da vulnerabilidade do infante e a citação do crime ocorrer no domicílio
familiar.
Dessa forma, conclui-se que em 8 casos de denegação, houve a relação com
o julgamento à prática ocorrer dentro da casa da paciente do Habeas Corpus e 14
decisões primaram pela não concessão segundo a não comprovação da
necessidade do convívio materno com o infante. Como exemplo, cita-se:
HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINAR. ARTS. 33 E 35 DA LEI Nº
11.343/06.
(...)3.
PEDIDO
DE
PRISÃO
DOMICILIAR
SOB
A
ARGUIÇÃO
DE
IMPRESCINDIBILIDADE DA PRESENÇA DA ORA PACIENTE PARA A CRIAÇÃO DOS FILHOS:
NÃO ACOLHIMENTO. A SIMPLES JUNTADA DE CERTIDÕES DE NASCIMENTO E OUTROS
DOCUMENTOS, NÃO FAZEM PROVA DA IMPRESCINDIBILIDADE DE SUA PRESENÇA, BEM
COMO QUE SUA AUSÊNCIA DEIXARIA OS FILHOS DESAMPARADOS. PACIENTE QUE
SEGUNDO INFORMAÇÕES DO MAGISTRADO SINGULAR “É PROPRIETÁRIA DA
RESIDÊNCIA EM QUE AS DROGAS FORAM ARMAZENADAS E COMERCIALIZADAS, AINDA
QUE NÃO RECEBESSE DIRETAMENTE O DINHEIRO DOS SEUS CLIENTES, VISTO QUE TAL,
PROVAVELMENTE, ERA TRANSFERIDO DIRETAMENTE PARA AMADO BATISTA. ALÉM
DISTO, NILZA TINHA FUNÇÃO DE RESPONSÁVEL FINANCEIRA DO GRUPO CRIMINOSO,
RESPONSÁVEL PELAS TRANSAÇÕES ORIUNDAS DA MERCANCIA ILÍCITA E PAGAMENTO
DE FUNCIONÁRIOS", BEM COMO FAZIA DE SUA RESIDÊNCIA, LOCAL QUE VIVE COM SEUS
FILHOS MENORES DE IDADE, LOCAL PARA COMERCIALIZAÇÃO DE DROGAS, EXPONDOOS A DIVERSOS RISCOS INERENTES A CONDUTA DELITUOSA, RESTANDO EVIDENTE QUE
A ORA PACIENTE NÃO É IMPRESCINDÍVEL PARA O CUIDADO DOS FILHOS. OUTROSSIM,
O CONVÍVIO COM A IMPUNIDADE DIANTE DE CRIME TÃO GRAVE CAUSA IGUAL
COMPROMETIMENTO E ABALO, NÃO SÓ NA CRIANÇA, QUE VÊ COM OLHOS DE
290 | Gênero, violência e estruturas de poder
NORMALIDADE ESSA SITUAÇÃO, MAS TAMBÉM NA SOCIEDADE QUE, IMPOTENTE, SE VÊ
À MERCÊ DO EFETIVO AUMENTO DA CRIMINALIDADE FEMININA. NESSA TOADA É
IMPORTANTE ASSINALAR QUE O DIREITO A SEGURANÇA INDIVIDUAL E COLETIVA
TAMBÉM É UMA GARANTIA FUNDAMENTAL E UM DEVER DO ESTADO. (...) HABEAS
CORPUS PARCIALMENTE CONHECIDO. ORDEM DENEGADA. 32
Tal entendimento notou-se majoritário durante a análise das decisões,
entretanto, houve ainda julgados que contestaram essa forma de aplicar o HC
coletivo, firmando a tese de que a comprovação da necessidade da presença da mãe
para o desenvolvimento do infante não é imprescindível para a concessão do
benefício pleiteado, bem como, que há a possibilidade de aplicação do Habeas
Corpus mesmo que a comercialização dos ilícitos se dê dentro da residência da
autora:
habeas corpus liberatório com pedido de liminar. tráfico de drogas praticado na
residência da paciente. prisão em flagrante convertida em preventiva. sentença
condenatória de 5 anos e 6 meses de reclusão que negou o direito de recorrer em
liberdade, proferida em 11/10/2018. pleito de substituição da prisão cautelar por
domiciliar com base no art.318, III e v, do cpp. paciente mãe de uma criança de 4 anos de
idade. possibilidade de substituição. presença dos requisitos legais. proteção integral à
primeira infância. prioridade. mudança de paradigma pelo stf. atendimento à decisão
proferida pelo ministro Ricardo lewandowski no acompanhamento do cumprimento da
ordem concedida pelo supremo tribunal federal no habeas corpus coletivo n. 143.641/sp.
ordem concedida para substituir a prisão cautelar por domiciliar e aplicar
cumulativamente as medidas cautelares previstas no art.319 do CPP, com exceção da
fiança. decisão unânime. (...) 4. Na hipótese dos autos, a paciente foi condenada pela
prática do crime tipificado no art.33, caput, da Lei nº 11.343/06, à pena de 5 (cinco) anos
e 6 (seis) meses de reclusão e 550 (quinhentos e cinquenta) dias-multa, a ser cumprida
no regime semiaberto, sendo-lhe negado o direito de recorrer em liberdade. Através do
presente writ a paciente pretende ter substituída a sua prisão por domiciliar, por ser mãe
de uma criança menor de 12 anos de idade. Tratase, portanto, de reiteração do HC nº
0808837-20.2018.8.14.0000, o qual teve a Ordem denegada, à unanimidade, por esta
Seção de Direito Penal, em 17/12/2019, ao entender caracterizada circunstância
excepcionalíssima capaz de afastar a substituição da prisão cautelar pela domiciliar
32
HC 0805003-09.2018.8.14.0000 PA, Rel. ROSI MARIA GOMES DE FARIAS, Órgão Julgador Seção de
Direito Penal, Julgado em 2018-08-27, publicado em 2018-08-28.
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 291
(tráfico realizado na residência em que residia o menor). No entanto, esta Seção, em
consonância com a decisão proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no
acompanhamento do cumprimento da Ordem concedida em sede do Habeas Corpus
Coletivo nº 143.641 do STF, referente aos Documentos Eletrônicos nº 471 e 550,
modificou o entendimento anteriormente firmado e passou a admitir a substituição da
custódia por domiciliar, em que pese se tratar de tráfico realizado na residência em que
residia o menor. 5. Constata-se que a paciente comprovou ser mãe de uma criança de 4
anos de idade (certidão de nascimento - ID nº), aduzindo ser imprescindível aos cuidados
da menor, o que preenche o requisito objetivo insculpido no art.318, V, do CPP.
Depreende-se dos autos, além disso, que não estão presentes, in casu, nenhuma das
exceções descritas pelo Pretório Excelso, já que o crime imputado à paciente (art.) não
foi praticado mediante violência ou grave ameaça, ou contra seus descendentes, bem
como não se trata de ré tecnicamente reincidente. Dessa forma, demonstrado, portanto,
os pressupostos autorizadores da substituição da prisão cautelar pela domiciliar,
elencados no art.318, inciso V, do Código de Processo Penal, revela-se adequada e
proporcional a substituição da custódia por prisão domiciliar. Precedentes do STF e STJ.
6. Ordem conhecida e concedida para substituir a prisão cautelar da paciente por
domiciliar, aplicando-lhe cumulativamente as medidas cautelares previstas no art.319
do CPP, com exceção da fiança. Decisão unânime. 33
4. CRÍTICAS ÀS DECISÕES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ
Da leitura atenta do disposto no voto do Relator que concedeu a Ordem de HC
n.º 143.641 depreende-se que a palavra da mãe que pleiteia o benefício goza da
presunção de veracidade, assim, a simples comprovação da existência de filiação
entre a ré e a prole juntamente com a manifestação da genitora deve ser o bastante
para caracterizar a necessidade do convívio entre ambos.
Outrossim, durante as argumentações de denegação dos pleitos pelos Habeas
Corpus utilizou-se do fato de que os delitos ocorreram dentro do lar da família, para
promover um julgamento moral da prática, atrelando o fato típico a uma depravação
na maternidade exercida pela paciente. Entretanto, essa circunstância não se
encontra no rol dos motivos para denegar a ordem de Habeas Corpus.
33
HC: 0809751-84.2018.8.14.0000 PA, Rel. ROMULO JOSE FERREIRA NUNES, Órgão Julgador Seção
de Direito Penal, Julgado em 2019-02-04, publicado em 2019-02-06.
292 | Gênero, violência e estruturas de poder
Tal situação já foi julgada pelo próprio Supremo Tribunal Federal e sua
respectiva decisão foi utilizada em fundamentações da própria jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Estado do Pará para conceder ordens de Habeas Corpus,
porém, foi posição minoritária entre os julgados.
Destarte, nota-se que os principais motivos para a denegação não giram em
torno da análise se há a possibilidade de conceder a ordem com base nas exigências
firmadas pelo HC coletivo, e sim, uma análise discricionária acerca do modus
operandi da autora do ilícito, promovendo um duplo julgamento: à mulher direcionouse a análise moral como criminosa que “contamina” sua prole com sua atuação e
como uma mãe incapaz de exercer a maternidade por conta do crime.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, conclui-se que a Lei 13.257 de 2016, representando o Marco Legal da
Primeira Infância, conjuntamente com o HC coletivo n.º 143.641 e a Lei 13.769 de
2018, representaram uma importante evolução normativa que objetivava promover a
real aplicação de direitos subjetivos tanto das crianças como das mulheres
encarceradas, uma vez que o aprisionamento ocorre em circunstâncias insalubres e
indignas para ocorrer um convívio saudável entre mãe e filho.
Durante a análise da forma com que os julgadores paraenses de 2ª instância
estão decidindo acerca da concessão da conversão da prisão preventiva em
domiciliar com fulcro no HC coletivo, pôde-se observar que tal mecanismo
desencarcerador não encontrou terreno fértil de aplicação no Estado do Pará em seu
primeiro ano de vigência, tendo em vista que em 21 dos 35 casos analisados houve
a denegação.
Porém, mais importante do que a constatação do número de denegações aos
pleitos de Habeas Corpus, é de fundamental importância citar a forma argumentativa
com que as decisões foram desenvolvidas: na maioria dos casos, ocorreu um
julgamento moral acerca da prática do crime ocorrer na residência da família, o que
caracteriza uma análise além do crime e invade as circunstâncias da intimidade da
relação materno-infantil, julgando a autora como uma “mãe ruim” não passível da
concessão da liberdade.
Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 293
Quanto à utilização do termo “circunstâncias excepcionalíssimas”, notou-se
que, majoritariamente, tal motivação foi atrelada a outras argumentações, tais como
a não comprovação da imprescindibilidade da mãe para a criação de seu filho e a
ocorrência do crime ser no local da casa familiar.
Desse modo, a minoria dos casos analisados que foram denegados tratou-se
dos requisitos objetivos traçados pelo HC n.º 143.641 para a não concessão da
liberdade, infelizmente, a grande maioria tratou de julgamentos éticos e morais à
prática, não primando pela aceitação por invalidação da figura materna que tenha
incorrido em um crime como alguém passível de prover uma boa criação a sua
própria prole.
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Ciências Criminais, n 48, maio/jun. 2004. Disponível em:
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ANGOTTI, Bruna; BRAGA, Ana Gabriela. Dar à luz na sombra: condições atuais e
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prisão. Ministério da Justiça, IPEA, 2015. Série Pensando o Direito, 51. Disponível
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______. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus nº 143.641/SP, da 2ª Turma do
Supremo Tribunal Federal. Brasília, DF, 20/02/2018. Disponível em:
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CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia Feminista: Teoria feminista e crítica às
criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
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15. FEMINISMOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES: DA ABERTURA
DEMOCRÁTICA (ANOS 80) AO BOLSONARISMO (2018-2022)
https://doi.org/10.36592/9786554601566-15
Francisca Elizabeth Cristina Araújo Bezerra
Carmem Emmanuely Leitão Araújo
RESUMO
Desigualdades são estruturais, múltiplas e interseccionais, são fontes de resistência
e contestação feministas, desde o século XIX, os movimentos feministas são
movimentos políticos e organizados que buscam proteção e garantia de direitos
materializados, também, via políticas públicas para mulheres. Portanto, o presente
artigo objetiva apreender a relação entre os movimentos feministas e o Estado
brasileiro no processo de construção de políticas públicas para mulheres. A
metodologia adotada é exploratória, descritiva e explicativa, com base em uma
pesquisa bibliográfica, com dados secundários (livros, artigos, teses, notícias,
ensaios, etc.). Os resultados demonstram as políticas públicas como formas de
garantir proteção social e cidadania enquanto investimento do Estado para um
desenvolvimento social justo e sustentável; quando específicas, há a incorporação
da questão de gênero e mulheres são beneficiárias, formuladoras e/ou executoras.
Porém, isso só é possível considerando que vivências e saberes e iniciativas
fortaleceram movimentos feministas e de mulheres em sua aproximação com o
Estado e em algum nível de institucionalização desses movimentos. Nos anos 80,
com a abertura democrática; nos anos 90, entre moldes neoliberais, mecanismos
institucionais de mulheres (ministérios, secretarias, conselhos, comissões, comitês
e afins) e a transversalidade de gênero às políticas públicas; entre 2003 e 2015, houve
aumento na movimentação e desenvolvimento de políticas públicas para mulheres,
processos participativos, democráticos e inclusivos; após 2016, com o impeachment
da Presidenta Dilma, deslegitimação das mulheres enquanto sujeitos políticos via
extinção de políticas e cortes orçamentários; de 2018 a 2022, o Governo Bolsonaro é
marcado por retrocessos políticos e institucionais e perseguição moral versus
agentes de mudanças que se movimentavam contra ao desmonte. O enfrentamento
dessa situação persistente depende da coalizão de forças entre sociedade civil
(movimentos sociais gerais, de mulheres e feministas) e Estado. Mesmo diante de
um contexto extremamente desafiador, mulheres têm se organizado a partir de
grupos, organizações, associações, ativismos e coletivos; trabalhando pautas na
busca por fortalecer o reconhecimento, redistribuição e representatividade, que se
interligam mutuamente, a fim de estreitar e manter as relações com o Estado para
uma agenda solidária que vislumbra justiça social.
PALAVRAS - CHAVE: Feminismo. Política Pública. Mulheres. Desigualdade de
Gênero. Retrocesso Político.
296 | Gênero, violência e estruturas de poder
INTRODUÇÃO
As estruturas desiguais que conformam a sociedade são múltiplas,
relacionam questões de gênero, classe, raça, sexualidade, geração, entre outras
problemáticas que ocupam um lugar enquanto originário de resistência e
contestação feministas frente a injustiças materiais e simbólicas - de trabalho e
exploração, androcêntricas, desrespeitosas, marginalizadas e excludentes 1 . Tais
injustiças interagem e como consequência dessa interação acabam por demarcar
fronteiras, subjugando e dominando, estabelecendo e reforçando hierarquias que
instituem a produção social, as preferências e as possibilidades, bem como as
restrições versus a ampliação de horizontes2.
Mulheres, enquanto grupo vulnerabilizado3, vêm se posicionando ao longo da
história. Desde o século XIX, os Movimentos Feministas são reconhecidos como
movimentos políticos e organizados, com mulheres em diversos pontos do mundo
se rebelando contra as opressões mútuas. A organização dos movimentos
feministas em períodos, ondas (quatro) - sufragistas e a luta pelo voto; tornar o
pessoal como político e desfazer o muro entre esfera pública e privada; a
interseccionalidade e o movimento/feminismo negro; e o uso das mídias sociais e
digitais e a aproximação ao Estado -, nos dá uma visão histórica do caminho
percorrido, da organização das lutas, de quem levanta essas pautas, de como ou se
elas se relacionam e onde ocorrem, das conquistas alcançadas, das lutas que ainda
serão traçadas4.
O conhecimento desses processos assevera a percepção e identificação da
negação, negligência e violação de direitos, em diferentes níveis, de forma individual
ou coletiva. Para assim estabelecer estratégias que visam à alteração do status quo,
no qual grupos privilegiados subalternizam e vulnerabilizam outros, estabelecendo
ciclos de desigualdades que podem ser quebrados a partir da tomada de
conhecimento, bem como por meio da redistribuição, reconhecimento e
1
Fraser, 2003; 2006.
Biroli, 2013.
3
Matta et al, 2021; RBMC, 2021.
4
Marques, 2019; Hanisch, 2022; Beauvour, 1967; Davis, 2019; Gonzalez, 2020; Cochrane, 2013;
Paradis, 2013; Matos, 2014; Silva, 2019.
2
Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 297
representatividade 5 viabilizados pela instituição e institucionalização de direitos
materializados a partir de políticas públicas6.
Portanto, o presente artigo objetiva apreender a relação entre o Movimento
Feminista e o Estado brasileiro no processo de construção de políticas públicas para
mulheres. Em específico, buscamos apontar em meio às ondas e que marcam as
trajetórias históricas dos feminismos e da instituição de políticas públicas para
mulheres; apresentar as articulações, reivindicações e conquistas; e analisar a
relação entre os movimentos feministas e o Estado, como também o potencial de
intervir nos processos de construção de Políticas Púbicas para mulheres.
Na busca por maior conhecimento e entendimento sobre essas questões, foi
selecionada como metodologia o uso de pesquisa bibliográfica, com dados
secundários, por se realizar com base em registros disponíveis de pesquisas já
realizadas (livros, artigos, teses, notícias, ensaios, etc.), definidos pelos temas
estudados e áreas nas quais os trabalhos se situam7.
Com isso, para além da Introdução, o presente artigo está divido em duas
sessões: a primeira com foco na conceituação de políticas públicas e políticas
públicas de gênero com foco em mulheres; e a segunda abordando a historicidade
dos movimentos feministas em suas ondas e os direitos conquistas por e para
mulheres dos anos 80 (ao longo da abertura democrática que representa a transição
do fim da ditadura militar para o regime democrático) ao Governo Bolsonaro (20182022). Trajeto que oportuniza elaborar considerações que relacionam a coalizam de
formas nesses processos que não são ou estão acabados; mas contínuos, entre
direitos ainda não garantidos e novas demandas que venham a surgir
1 POLÍTICA PÚBLICA E POLÍTICA PÚBLICA DE GÊNERO
A invisibilidade da mulher, ou melhor, torná-la visível, “foi o grande objetivo
das estudiosas feministas... a segregação social e política a que as mulheres foram
historicamente conduzidas tivera como consequência a sua ampla invisibilidade
5
Fraser, 2006.
Menicucci, 2018, pág. 19.
7
Severino, 2013.
6
298 | Gênero, violência e estruturas de poder
como sujeito”8. Assim, ser mulher em diferentes contextos é equilibrar-se em meio
aos seus desafios e oportunidades (também imbricadas por desafios), desde a
sobrevivência/subsistência diária, na produção do conhecimento e na busca por
interferir nas decisões relacionadas garantia de direitos, logo, a constituição de
políticas públicas que compreendam e estejam de acordo às necessidades das
mulheres.
As políticas públicas representam formas de o Estado garantir proteção frente
à riscos sociais e com isso promover o bem-estar das pessoas, com o incremento
dos sistemas de proteção social, essas políticas assumiram um lugar
intrinsecamente ligado à cidadania, “são vistas como investimento e produtoras de
um desenvolvimento mais justo e sustentável”9.
A autora supracitada, descreve grupos de políticas sociais, nos quais as
formas de ações estão classificadas com base em seus objetivos, políticas e os
grupos os quais abrangem. São especificamente três grupos: Proteção social:
previdência social, saúde, assistência social e seguro desemprego; Promoção social:
educação, cultura, qualificação profissional, agricultura familiar, habitação,
mobilidade urbana, etc. Transversais – inclusão, proteção e promoção social: gênero,
raça, jovens, idosos, etc. São consideradas reparadoras e afirmativas
Nancy Fraser, teórica feminista, na busca por desenvolver uma teoria que
especificasse as desigualdades e as opressões e formas de consertá-las/mitigá-las,
com o intuito de desfazer a contraposição público x privado e refundar uma teoria
democrática e de justiça social 10 , argumenta sobre grupos que precisam da
redistribuição, outros do reconhecimento e outros que demandam os dois,
denominadas como ambivalentes, para assim atender suas demandas e alcançar
justiça
social;
para
esse
redistributivos/transformativos
alcance
a
e
reconhecimento/afirmativos para correção/
de
teórica
discorre
sobre
remédios
compensação de seus déficits11
A autora em questão explica que os remédios para injustiças econômicas
levam à reestruturação político-econômica por meio da Redistribuição (Ex.: Classe);
8
Louro, 1997, Pág. 17.
Menicucci, 2018, pág. 19.
10
Matos, 2008.
11
Fraser, 2006.
9
Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 299
já para as injustiças culturais se faz necessária uma mudança cultural ou simbólica
por meio do Reconhecimento (Ex.: Sexualidade); e nas coletividades intermediárias,
bivalentes, elas são hibridas, o que faz com que surjam injustiças na economia,
política e cultura, exigindo assim os dois remédios (Ex.: Gênero e Raça). Ao
reavaliar/reconsiderar sua proposta, parte para um sistema tridimensional,
acrescenta a representação (dimensão político-representativa, condição para o
alcance das demais dimensões), considera que chega a um sistema que une uma
visão multidimensional ao monismo normativo para atender a formas de justiças não
típicas, que denomina como justiça abnormal, em um mundo globalizado12.
Os grupos de políticas especificados por Telma Menicucci 13 relacionam-se
com a teoria proposta por Nancy Fraser. Por meio da redistribuição, reconhecimento
e representatividade políticas públicas são construídas ao mesmo tempo que
representam as conquistas decorrentes das reivindicações de determinados grupos
organizados, dentre eles, dos movimentos feministas, que são incorporadas
enquanto legislações e que garantem acesso a direitos, serviços, benefícios e outras
garantias nas áreas de violência, saúde, direitos sexuais e reprodutivos, educação,
sexualidade, emprego e renda, política, etc.
Há autores que usam a denominação de políticas públicas de gênero para ser
referir a
Políticas sociais que incorporam a questão de gênero, o que pode ocorrer com políticas
voltadas exclusivamente para as mulheres, ou com políticas mais gerais que incluem as
mulheres como beneficiárias em potencial, como é o caso de algumas políticas de
combate à pobreza [...] ou pode ser um modelo no qual as mulheres são além de
beneficiárias, formuladoras e executoras, ou seja, assumem um papel de sujeito no
processo de formulação e implementação14
Para Flávia Biroli e Débora Quintela15, a pauta de gênero, a depender a forma
como é abordada, pode vir a restringir direitos (quando moralista) e ajustar políticas
públicas, pois, ao considerar as ideologias conservadoras, a divisão sexual do
12
Matos, 2008.
Menicucci, 2018.
14
Nascimento, 2016, Pág. 319.
15
Biroli; Quintela, 2021.
13
300 | Gênero, violência e estruturas de poder
trabalho é o que gera a sobrecarga para mulheres, o controle e regulação sobre seus
corpos e desejos, buscando promover uma socialização que reforça papéis
tradicionais. Por certo, vivências e saberes e iniciativas fortaleceram os movimentos
em sua aproximação com o Estado, nas interações. Pois para que suas demandas
fossem e sejam traduzidas enquanto legislações e consequentemente políticas
política, se faz necessário algum nível de institucionalização desses movimentos16.
2 FEMINISMOS, ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES
Para entender as particularidades dos movimentos feministas, deve-se
considerar a história dos movimentos e os processos de luta que produzem e
reproduzem uma reflexão crítica própria, relacionando militância e teoria (processo
raro), com base na particularidade de quem impulsiona a luta17. Em suas trajetórias,
desde o século XIX, pautas se destacaram em períodos específicos (ondas), desde
as sufragistas e a luta pelo voto (1ª onda) 18 ; a busca por tornar o pessoal como
político e desfazer o muro entre esfera pública e privada (2ª onda)19; a reivindicação
pelo reconhecimento identitário, a intersecionalidade entre opressões, com destaque
para o movimento punk, mas principalmente, a relevância de feministas ligadas ao
movimento/feminismo negro (3º onda)20; e a tomada do espaço virtual como meio e
estratégia de mobilização, articulação e propagação de ideias/pautas feministas e a
aproximação
junto ao
Estado, conquistando
espaço
e influenciando
na
institucionalização de suas reivindicações (4ª onda)21. Os movimentos feministas,
na quarta onda (em andamento), não olham (não mais) para uma versão genérica e
universal do ser mulher, olham para sua pluralidade, sua diversidade, reconhecem
em si e abraçam as lutas e desigualdades acima mencionadas. Pois a luta contra
opressões que se intersecionam, adapta-se às condições de luta e desenvolve novas
16
Sanchez, 2021.
Pinto, 2012.
18
Marques, 2019.
19
Hanisch, 2022; Beauvour, 1967
20
Davis, 2019; Gonzalez, 2020.
21
Cochrane, 2013; Paradis, 2013; Matos, 2014.
17
Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 301
estratégias para conquistar direitos que possam vir a atender às necessidades das
mulheres e com isso construir uma sociedade orientada por justiça social22.
2.1. ANOS 80 - ABERTURA DEMOCRÁTICA
Desde os anos 70 os movimentos feministas fizeram pressão e se opuseram
à Ditadura Militar. Nos anos 80, em sua abertura democrática, foi oportunizada a
interlocução e penetração no aparelho estatal e os movimentos feministas
alcançaram conquistas como conselhos, delegacias, programas de saúde e
igualdade formal23, a exemplo: 1984 - criação do programa de assistência integral à
saúde da mulher (PAISM) - para assegurar direitos sexuais e reprodutivos; 1985 criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DEAM) em São Paulo; 1985 criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), vinculado ao
ministério da justiça e o Fundo Especial dos Direitos da Mulher; 1985 - CNDM lança
campanha Mulher e Constituinte: “constituinte para valer tem que ter palavra de
mulher”; 1986 - Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes e Lobby do Batom;
1987 - abertura da Assembleia Nacional Constituinte, 26 mulheres eleitas deputadas
constituintes; 1988 - CF e igualdade formal de direitos, licença maternidade e
paternidade, planejamento familiar, contracepção; e o aborto que continua em pauta,
mantido, ainda, somente em caso de estupro e risco de vida24.
No Brasil, tudo acontece em meio à crise política, ao processo de golpe que
levou à Ditadura Militar, de restrições de direitos no geral, porém a luta feminista não
parou. Entre os anos 80 e 90 do século XX - Lélia Gonzalez, Filósofa, antropóloga,
professora, escritora, militante do movimento negro e feminista, suas publicações
vão de 1979 a 1994 (maior concentração nos anos 80), analisa como o capitalismo,
população relativa, exército industrial de reserva; de como mulheres e negros foram
drasticamente afetados por esses processos, tendo um baixo nível de participação
como força de trabalho, e quando participam, em acentuado grau de exploração,
perpetuados ao longo do tempo e percebidos numa discriminação de ocupação25.
22
Cochrane, 2013; Paradis, 2013; Matos, 2014.
Pitanguy, 2008.
24
Fundação FHC, 2020
25
Gonzalez, 2020.
23
302 | Gênero, violência e estruturas de poder
2.2. ANOS 90 - MOLDES LIBERAIS E POLÍTICAS PONTUAIS
Nos anos 90, mesmo nos moldes neoliberais de políticas pontuais, focais e
fragilizadas 26 , emergem os mecanismos institucionais de mulheres (ministérios,
secretarias, conselhos, comissões, comitês e afins) e, nesse sentido,
foram e
continuam sendo “catalisadores de demandas”, possibilitando a inserção e o
relacionamento de movimentos de mulheres (e outras populações vulnerabilizadas
já mencionadas), organizações não governamentais, redes feministas e coletivos
nas instituições estatais, levantando a discussão sobre transversalidade de gênero
na construção e implementação de políticas públicas27.
Entre os marcos da década de 1990, podemos citar: Esvaziamento do CNDM
no governo Collor (1990-1992), corte de recursos humanos e financeiros, assume
caráter apenas consultivo; 1992 a 1993 - CPI da esterilização; 1993 - Declaração pela
liberdade reprodutiva das mulheres, declaração de itapecerica da serra (geledes,
1993) (levou a programas como PNAISM em 2004); 1994 - Convenção de Belém do
Pará - para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, referência para lei
maria da penha; 1995 - CNDM volta à ativa (início do governo FHC); 1995 - lei
estabelece cotas para as mulheres nas eleições (20%); ampliada para 30% em 1997;
1996 - lei 9.263 - lei do planejamento familiar (concepção e contracepção,
laqueadura, vasectomia, pré-natal, parto, puerpério, neonatal); 1996 - Programa
nacional de prevenção e combate à violência contra a mulher; 1997 - Programa viva
mulher - prevenção do câncer do colo de útero; 1999 - Padronização do atendimento
de mulheres em situação de violência sexual, via norma técnica (ampliada em 2004
para atenção humanizada ao abortamento)28.
26
Cisne; Gurgel, 2008.
Paradis, 2013; Matos, 2014.
28
Fundação FHC, 2020
27
Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 303
2.3. ANOS 2000 - MOVIMENTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA MULHERES (2003-2015)
No início dos anos 2000 ocorreu a 1ª Marcha das Margaridas, com 20 mil
trabalhadoras rurais em Brasília, contra fome, pobreza e violência sexista; também
em 2000, Ellen Gracie Northfleet foi nomeada ministra do STF e no ano seguinte
(2001) foi instituída a lei 10.224 que tipifica e penaliza o assédio sexual. Destacamos
ainda que como reflexo das mudanças sociais ocorridas nos anos 80 foi aprovado o
novo código civil em 2002, seguido da criação da secretaria de estado dos direitos
da mulher (Sedim) como resposta aos movimentos de mulheres, ligadas ao
ministério da justiça; e, antecedendo a lei Maria da Penha, foi instituída medida
cautelar em casos de violência doméstica com a lei 10.455/200229.
Até 2010 podemos citar: 2003 - criada a Secretaria Especial de Políticas para
mulheres ligada diretamente à presidência com status de ministério, lançamento do
Programa Bolsa Família e instituição da notificação compulsória nos serviços de
saúde em casos de violência (Lei 10.778/2003); 2004 - violência doméstica entra no
código penal, atualização da PAISM e instituição da Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) abrange questão de gênero, racial e diversidade
e 1ª conferência nacional de políticas para mulheres (CNPM); 2005 - 1º plano de
políticas para mulheres (ao todo são três planos: de 2005 a 2008, de 2008 a 2011 e
2013 a 2015 o terceiro), 2005 - é instituída a lei 11.10/2005 para que gestantes
possam ser acompanhadas no parto e apresentação do anteprojeto de
descriminalização do aborto; 2006 - lei maria da penha; e 2007 - reação contra o
aborto no congresso e proposta do estatuto do nasciturno, instituição do Pacto
nacional pelo enfrentamento à violência contra a mulher que permite a formação de
redes de atendimento e 2ª conferência nacional de políticas para mulheres (CNPM)30.
A década de 2010 atravessa o governo Dilma (2011 a 2016), primeira
presidenta do Brasil, no qual podemos destacar que seu mandato teve o maior
número de ministras mulheres da história do País 31 . Também ocorreu: 2011 -
29
Fundação FHC, 2020
Fundação FHC, 2020
31
Fagundez, Mendonça, 2016
30
304 | Gênero, violência e estruturas de poder
primeira marcha das vadias no mundo (canadá) e Brasil (São paulo) e 3ª conferência
nacional de políticas para mulheres (CNPM); 2012 - ocorre a legalização do aborto
de anencéfalos; 2013 - criação do programa mulher: viver sem violência (lançado
pela secretaria especial de políticas para mulheres), PEC das domésticas aprovada;
jornadas de junho e instituição da Lei 12.845/2013 sobre atendimento obrigatório de
mulheres em situação de violência sexual pelo SUS; 2015 - construção da 1ª casa
da mulher brasileira (espaço com diferentes serviços),
lei do feminicídio
(13.104/2015) e marcha das mulheres negras (30 mil pessoas em Brasília contra:
racismo, violência e pelo bem viver); também foi entregue carta das mulheres negras
à presidenta32.
Por certo, o ativismo de mulheres negras brasileiras avançou no quesito
visibilidade nas últimas décadas. Ocorreram mudanças de repertórios, surgimento
de novas estratégias, cooperação, novos atores, ideias, ações, questionamentos
sobre o lugar da mulher negra nas estruturas e processos sociais, em meio a uma
dinâmica diversa e vozes plurais33.
De forma ampla, entre 2003 e 2015, houve aumento na movimentação e
desenvolvimento de políticas públicas para mulheres, processos populares
participativos, envolvendo e desenvolvendo “rede de políticas públicas de
reconhecimento, antidiscriminatórias e de inclusão democrática”34. Esse período que
abrange os governos petistas (Lula e Dilma Rousseff), como evidenciados nos
parágrafos anteriores, ocorreu o fortalecimento da secretaria de políticas públicas
para mulheres, maior cooperação com o movimento de mulheres, representando
êxito para os movimentos feministas35 através da institucionalização de suas pautas
via programas, projetos, legislações e afins. Não restrito às mulheres, ocorreu
também maior abertura para participação dentro e fora da estrutura estatal, que
incluía mulheres, negros e LGBTQIA+, somado à intensificação de seus movimentos
que buscam direitos e superação de desigualdades36.
32
Fundação FHC, 2020
Rodrigues, Freitas, 2021.,
34
Campos, 2017, pág. 50.
35
Bohn, 2010.
36
Perez; Ricoldi, 2018.
33
Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 305
Dessa forma, faz-se relevante ratificar como as quatro Conferências
Nacionais de Políticas para Mulheres (CNMP), representam grandes marcos para a
garantia de direitos das mulheres; pois: na 1ª CNPM (2003) foi discutido o desafio
para a igualdade na perspectiva de gênero, a fim de propor diretrizes para um plano
nacional e sua consequente ao presidente; a 2ª CNPM (2007) analisou a realidade
nacional, os desafios para implantação do plano nacional idealizado na conferência
anterior, avaliando ações, princípios e diretrizes já estabelecidos e reforçando a
relevância da participação das mulheres nos espaços de poder; a 3ª CNPM (2011)
teve como tema “a importância da autonomia para a igualdade das mulheres”,
ratificando a discussão sobre políticas com esse fim nos domínios econômico,
social, cultural e político; e na 4ª CNPM (2016) foram reivindicados “mais direitos,
participação e poder para as mulheres”, para fortalecer a Política Nacional para
Mulheres e garantir qualificação, controle social, informações e ações capilarizadas
nas esferas nacional, estadual e municipal. Além dos avanços na representação de
grupos tradicionais (indígenas, quilombolas, de matriz africana, ciganas e pessoas
com deficiência)37.
Nesse período que abrange as últimas duas conferências, o ativismo digital se
fez presente, transitando do ambiente virtual ao presencial, como a primeira edição
da Marcha das Vadias (2011), as Jornadas de Junho (2013) e a “primavera
feminista1” que envolveram coletivos com pautas feministas, antirracistas,
anticlassistas e ampliação dos direitos para a população LGBTQIA+38.
Foi a partir da década de 90, que os movimentos feministas já vinham
ganhando um novo contorno político, com redes de atuação e base na comunicação
de massa e tecnologias39 em meio a 4ª onda feminista. Mas teóricas nacionais como
Marlise Matos 40 , mostram que essa onda foi/vai/está além disso, abordam uma
relação mais direta com o Estado, participação social e políticas públicas e a
internet/tecnologia acaba por ser um meio e não a característica central das lutas
travadas e conquistas já alcançadas até aqui.
37
Matos; Lins, 2018.
Perez; Ricoldi, 2018; Oliveira, Otto, 2019.
39
Matos, 2014.
40
Matos, 2014.
38
306 | Gênero, violência e estruturas de poder
Entre lutas iniciadas, denúncias feitas e conquistas alcançadas desde o início
do ano 2000, nacionais e internacionais; algumas manifestações aqui mencionadas
são exemplos e não a totalidade do que já ocorreu na constante da 4ª onda. Podemos
considerar que a quarta onda segue seu percurso, sua presença na América Latina,
envolve um feminismo estatal mais participativo41.
2.4. ANOS 2000 - GOLPE, RETROCESSOS DEMOCRÁTICOS E BOLSONARIMOS (2016
a 2022)
Entre 2016 e 2017, o golpe que levou ao impeachment da presidenta Dilma
coincidindo com a 4ºCNPM e essas mobilizações contra as violências que afligem
mulheres contrariam pautas debatidas e reivindicações realizadas até o momento. A
situação se agrava com “a extinção de secretarias e ministérios às quais estavam
vinculadas as políticas para mulheres [...] cortes orçamentários ou deslegitimação
progressiva das mulheres enquanto sujeitos políticos” 42 no ano de 2017, com a
extinção do ministério das mulheres, igualdade racial e DH e competências
transferidas para o ministério da justiça e cidadania.
Podemos exemplificar que entre 2016 a 2018 (governo Temer foi um período
de redução de orçamento para políticas para mulheres que chegou a mais de 60% e
perda de cargos de mulheres feministas no governo; além do fato que 2018 foi um
ano marcado pelo assassinato de Mariele Franco. Contudo, mesmo diante dos
retrocessos, timidamente foi lançada a campanha “você tem voz” - pela eliminação
da violência contra a mulher, instituição da lei 9.586/2018 que cria o sistema
nacional de políticas para as mulheres (Sinapom) que integra políticas de todos os
entes e a criação do plano nacional de combate à violência doméstica (PNaVID)
envolvendo diversas áreas43.
Os resquícios dos descompassos do Governo Bolsonaro antecederam à
pandemia da Covid-19, isso é fato, os diferentes diagnósticos apontaram que “o
período foi marcado pelo retrocesso político e institucional”44. No início do mandato
41
Paradis, 2013.
Campos, 2017.
43
Fundação FHC, 2020
44
Avritzer; Kerche; Marona, 2021, pág. 09.
42
Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 307
foi perceptível que “Jair Bolsonaro chegou à presidência não como um líder político,
e, sim, como um líder de um movimento capaz de destruir políticas e políticos”45, com
uma atuação anti-institucional, fora dos padrões liberais, do conservadorismo, de
qualquer forma de governo.
Fala-se em “calamidade triunfal”46 para se referir a um governo negacionista
em múltiplos sentidos, que conjugou diversas crises e o projeto de desconstrução
bolsonarista que relacionou: política externa rudimentar, agenda neoliberal forçada,
descaso com meio ambiente, desmonte da saúde, desestruturação da educação,
desregulação trabalhista e previdenciária, insegurança pública, conflitos ideológicos
e conservadorismo moral compensatório, tentativa de desvalorização da democracia
via autoritarismo e inviabilização dos movimentos sociais47.
É sabido que políticas públicas no geral devem considerar a diversidade da
população, como políticas públicas para mulheres devem considerar as opressões
que as impactam de forma interseccional; contudo, ocorreram ações pontuais,
isoladas e sem continuidade, discursos vagos que vão na contramão de políticas
públicas para as mulheres transversais, intersetoriais c comprometidas com a
garantia de direitos e proteção social das mulheres48.
No geral, o período de 2018 a 2022, com o agravamento do desmonte que já
vinha ocorrendo no que se refere ao cuidado e proteção social do Estado para com
as mulheres e demais pautas de gênero, a tragédia parecia anunciada, ao
considerarmos as múltiplas crises que atravessaram um país já atravessado por
uma desigualdade crônica 49 podemos agregar a perspectiva interseccional citada
anteriormente e nos referirmos a uma calamidade interseccional que triunfa
penalizando mulheres e outros grupos vulnerabilizados.
As estruturas construídas pelas feministas nos últimos anos (décadas) foram
movidas e/ou alteradas; desde 2018, a partir do governo Bolsonaro, os movimentos
vêm sofrendo e enfrentando uma perseguição moral 50 associada a um
45
Avritzer, 2021, pág. 13-14.
Musse, 2021.
47
Musse, 2021; Lopes, 2021; Dweck, 2021; Abrucio, 2021; Hochstetler, 2021; Oliveira; Fernandez, 2021;
Guerra; Camargos, 2021; Ribeiro; Oliveira, 2021; Biroli; Quintela, 2021; Szwako; Lavalle, 2021.
48
Tokarski et al, 2023.
49
Satyro, 2021.
50
Belançon, 2019.
46
308 | Gênero, violência e estruturas de poder
comportamento antifeminista (backlash) que vem despontando 51 . Contudo, nem
tudo pode ser desmontado, ao considerarmos os agentes de mudanças envolvidos
dentro (femocratas/ativistas institucionais – chefes, inclusas em outros caros ou
atuantes nos mecanismos de políticas públicas para mulheres) e fora do Estado, que
se movimentam na contramão do desmonte52. Pois, apesar dos (ainda) altos níveis
de desigualdades de gênero, o enfrentamento dessa situação persistente “depende
de uma coalizão de forças entre sociedade civil e Estado, através da ação dos
movimentos sociais e políticas públicas de gênero eficazes” 53 e os movimentos
feministas permanecem resistindo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da luta pelos direitos das mulheres para o desmembramento do que se
categoriza como mulheres, os feminismos em suas histórias, a cada passo e,
principalmente, na contemporaneidade, estruturam-se a partir de vozes plurais, de
forma inédita. Um movimento heterogêneo, que se desdobra em movimentos, que
congregam diferentes correntes de pensamento, nos quais o diálogo torna-se
essencial para interligar lutas, pensar em conjunto, respeitar diferenças e buscar
alterar quadros de injustiças sociais.
O caminho percorrido (até aqui e em sua continuidade) pelas mulheres,
desafios e conquistas ao longo das ondulações dos movimentos feministas são
estruturadas a partir da percepção da realidade, da sistematização e construção do
conhecimento que fundamentaram projetos de leis e construção de políticas
públicas (planos, programas, projetos e serviços).
Nos últimos anos, as políticas públicas e sociais no Brasil vêm sofrendo um
desmonte considerável, decisões e ações que contribuíram para a atual situação são
anteriores a 2018, porém, o Governo Bolsonaro (2018-2022) agiu de modo a agravar
ainda mais a situação de populações vulnerabilizadas, enquanto vulnerabilizou
51
Belançon, 2020.
Belançon, 2020.
53
Nascimento, 2016, pág. 334.
52
Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 309
outras, um governo marcado por retrocesso político e democrático e degradação
política e institucional54, uma calamidade interseccional.
Por certo, ainda é imprescindível considerar que a mudança de governo não
exclui a coalização de forças entre sociedade civil e Estado e, também, dentro
desses. Logo, a busca por uma “agenda solidária”55 que supere e/ou venha a mitigar
desigualdades via efetivação de políticas de gênero eficazes não está isenta de
desafios. Sem embargos, é nesse contexto que movimentos feministas e de
mulheres continuam se organizando com pautas diversas na busca pelo
reconhecimento, redistribuição e representatividade 56 de mulheres plurais e
interligadas mutuamente a fim de estreitar e manter relações com o Estado visando
a manutenção e conquista de direitos que assegurem justiça social.
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Sobre as autoras
Francisca Elizabeth Cristina Araújo Bezerra: Mestranda em Saúde Pública pela
Universidade Federal do Ceará (UFC), Membro do Observatório de Políticas Públicas
de Saúde (OPP-Saúde/UFC).
Carmem Emmanuely Leitão Araújo (Orientadora): Mestre em Saúde Pública (2009)
pela Universidade Federal do Ceará - UFC, doutora (2017) e estágio pós-doutoral em
Ciência Política (2018) pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
Professora Adjunta no Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Ceará (DSC/FAMED/UFC) onde coordena o
Internato em Saúde Coletiva. Coordena o Núcleo de Saúde Coletiva da UFC
(NESC/UFC) e o grupo de pesquisa Observatório de Políticas Públicas de Saúde
(OPP-Saúde/UFC). É professora permanente do colegiado do Programa de Pósgraduação em Saúde Pública (PPGSP/UFC) desde 2019. Coordenadora do
PPGSP/UFC no período 2020-2021 e 2021-2023.
Sobre o artigo
Esse artigo foi organizado a partir da pesquisa (defesa para o segundo trimestre de
2024) de mestrado da autora, desenvolvida sob orientação da coautora. Faz
referência a um recorte da construção histórica e revisão de literatura de uma
pesquisa mais ampla que relaciona saúde coletiva, desigualdade de gênero,
mulheres na ciência, movimentos feministas e de mulheres e políticas públicas para
mulheres.
16. A VALORAÇÃO DA PROVA NO JULGAMENTO DE CRIMES DE VIOLÊNCIA DE
GÊNERO: O TENSIONAMENTO ENTRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA E O PRINCÍPIO IN
DUBIO PRO REU
https://doi.org/10.36592/9786554601566-16
Romana Leite Vieira1
RESUMO
O papel da vítima no processo penal de persecução de crimes de violência de gênero
gera inquietações. Com efeito, trata-se de um processo voltado ao dever de punir do
Estado, contudo atinge diretamente as partes envolvidas, vez que as consequências
da pena, em caso de condenação, podem interferir diretamente na dinâmica do lar.
Por essa razão, as relações íntimas de afeto, o círculo de violência, o pensamento
patriarcal e a possível dependência econômica e socioemocional da vítima podem
interferir em seu depoimento, levando-a a alterar a verdade dos fatos, a fim de que
não haja a condenação do acusado. No mesmo sentido, caso apenas haja o
depoimento da vítima como elemento probatório, em razão de a atividade criminosa
haver ocorrido dentro do domicílio, sem testemunhas, em crimes que não deixem
vestígios, surge suposto tensionamento entre a palavra da vítima e princípio da
presunção de inocência. Todas essas questões fazem parte de um problema maior
que se resume em como dar concretude à dignidade das mulheres vítimas de
violência de gênero, sem tolher as garantias processuais inerentes à defesa do
acusado. Na presente pesquisa foi utilizado o método indutivo, através de uma
abordagem qualitativa, de natureza aplicada, com objetivo exploratório, descritivo e
explicativo, utilizando-se como procedimento a pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras-chave: Violência de gênero. Provas. Presunção de inocência.
ABSTRACT
The role of the victim in the criminal process of prosecution of crimes of gender
violence generates concerns. In fact, it is a process aimed at the duty of the State to
punish, however it directly affects the parties involved, since the consequences of the
penalty, in case of conviction, can directly interfere in the dynamics of the home. The
intimate relationships of affection, the circle of violence, patriarchal thinking and the
possible economic and socio-emotional dependence of the victim can interfere in his
testimony, leading her to alter the truth of the facts, so that there is no condemnation
of the accused. In the same sense, if there is only the testimony of the victim as an
evidentiary element, because the criminal activity occurred inside the home, without
witnesses, in crimes that leave no trace, there is a supposed tension between the
1 Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Mestre em Direito e Gestão de Conflitos pela
Universidade de Fortaleza (UNIFOR), 2022. Especialista em Direito e Processo Constitucional pela
ESMEC - Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC), 2017. Especialista em Direitos
Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC/RS), 2022. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), 2022. Atualmente é Promotora de Justiça do
Estado do Piauí, titular da 8ª Promotoria de Justiça de Picos.
316 | Gênero, violência e estruturas de poder
word of the victim and the principle of the presumption of innocence. All these issues
are part of a larger problem that boils down to how to give concreteness to the dignity
of women victims of gender violence, without hindering the procedural guarantees
inherent in the defense of the accused. The inductive method was used, through a
qualitative approach, of applied nature, with exploratory, descriptive and explanatory
objective, using as procedure the bibliographical and documentary research.
Keywords: Gender violence. Evidence. Presumption of innocence.
1 Introdução
A pesquisa que ora se propõe visa analisar o tensionamento entre a presunção
de inocência e a proteção à mulher vítima de violência de gênero, dentro do processo
penal, especificamente quanto ao valor probatório do depoimento da ofendida,
quando não há outros elementos de prova.
O papel da vítima no processo penal de persecução de crimes de violência de
gênero gera inquietações. Com efeito, trata-se de um processo voltado ao dever de
punir do Estado, contudo atinge diretamente as partes envolvidas, vez que as
consequências da pena, em caso de condenação, podem interferir diretamente na
dinâmica do lar.
Exemplifica-se: no caso de o agressor ser o provedor da família, eventual
prisão preventiva ou até mesmo o cumprimento de pena definitiva, pode prejudicar a
manutenção da companheira e dos filhos. Esse fator, agregado às relações íntimas
de afeto, ao círculo de violência, ao pensamento patriarcal e à possível dependência
socioemocional da vítima podem interferir em seu depoimento, levando-a a alterar a
verdade dos fatos, a fim de que não haja a condenação do acusado.
Por outro lado, caso apenas haja o depoimento da vítima como elemento
probatório, em razão de a atividade criminosa haver ocorrido dentro do domicílio,
sem testemunhas, em crimes que não deixem vestígios, prevalecerá qual versão?
Nesse momento o princípio da presunção de inocência terá preponderância sobre a
eventual vulnerabilidade da vítima? Até que ponto o julgador poderá valorar esse tipo
de prova contra o acusado?
Essas são as principais indagações que surgem, e desdobram-se em outras:
a insuficiência instrutória do inquérito policial em razão da falta de estrutura e
Romana Leite Vieira | 317
recursos humanos nas delegacias de polícia civil, falta de articulação da rede de
apoio à mulher vítima de violência de gênero, ausência de sensibilidade dos
operadores de direito quanto à temática de gênero – em que pese a inciativa do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em criar um protocolo para mudança dessa
visão –, medo de eventuais testemunhas em depor, por ainda entenderem se tratar
de um “problema familiar”.
Todas essas questões fazem parte de um problema maior que se resume em
como dar concretude à dignidade das mulheres vítimas de violência de gênero, sem
tolher as garantias processuais inerentes à defesa do acusado.
No presente trabalho foi utilizado o método indutivo, através de uma
abordagem qualitativa, de natureza aplicada, com objetivo exploratório, descritivo e
explicativo, utilizando-se como procedimento a pesquisa bibliográfica e documental.
2 Desenvolvimento
O processo penal é regido por regras e valores constitucionais que visam
orientar a persecução penal dentro do Estado Democrático de Direito. Previstos
primordialmente no artigo 5º da Constituição Federal (1988), congregam princípios
como a presunção de inocência, o contraditório, ampla defesa, legalidade,
inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e do domicílio, a anterioridade
da lei penal e a irretroatividade da lei penal, vedação de penas degradantes ou de
morte, dentre outros. Consoante GIACOMOLLI:
[...] o nível constitucional normatiza, delimita e exige o processo devido. Como base
principiológica da qual emanam todos os princípios e garantias constitucionais
(princípio-garantia), o devido processo fornece um modelo constitucional de processo
penal.2
Todo esse arcabouço constitucional reflete e direciona a interpretação do
Código de Processo Penal, o qual é aplicado indiscriminadamente aos tipos penais,
2
GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e
o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2016, p. 95.
318 | Gênero, violência e estruturas de poder
salvo um ou outro regramento próprio (como a Lei de Drogas ou rito do Tribunal do
Júri, por exemplo). Nesse contexto generalista se encontram os crimes resultantes
de violência de gênero.
A violência contra a mulher, ao contrário de outras criminalidades, encontra
especificidades que merecem destaque 3 : a relação de afeto, a convivência, a
existência de filhos, a possível dependência emocional, financeira, psicológica, a
influência da comunidade, e da sociedade como um todo, em razão da forte
influência do patriarcado.
Como bem ponderou Beauvoir4, a figura da mulher assemelhava-se a um bem,
e, mesmo após a revolução industrial, tanto a burguesia quanto a classe trabalhadora
ainda exigem “a presença da mulher no lar tanto mais vigorosamente quanto sua
emancipação torna-se uma verdadeira ameaça”.
Com efeito, o Estado brasileiro por muito tempo adotou a postura patriarcal e
paternalista sobre a mulher. A esfera pública foi reservada, ao longo dos séculos, à
figura masculina. A mulher era considerada um ser de capacidade limitada que
necessitava de proteção da família e do Poder Público. Essa visão restou
consubstanciada, por exemplo, no Código Civil de 19165 em que a mulher era tida
como relativamente incapaz, assim como os pródigos, os menores de idade e os
índios6.
Com o advento da Constituição de 1988 7 , a igualdade entre os gêneros é
alçada à proteção constitucional, e passa a ser diretriz a ser seguida em todos os
âmbitos da vida social. Contudo, o que se observa, especialmente através das lides
3
MONTENEGRO, Marília. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro, Revan,
2020.
4
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2017. V. 1, p. 19.
5
BRASIL, 1916 - BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do
Brasil. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 05 jan. 1916. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em: 22 nov. 2022.
6
“Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer: I. Os
maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156); II. As mulheres casadas,
enquanto subsistir a sociedade conjugal; III. Os pródigos; IV. Os silvícolas. Parágrafo único. Os
silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual
cessará á medida que se forem adaptando á civilização do paiz”..
7
BRASIL, 1988 - BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:
Presidência da República, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 nov. 2022
Romana Leite Vieira | 319
que aportam no Poder Judiciário, nas delegacias de Polícia Civil e nas promotorias
de justiça, é uma realidade diferente.
Deveras, o papel do gênero feminino, nos casos em apreço, é subjugado ao lar,
aos cuidados com a família. Ademais, os operadores do direito, ao aplicarem a lei, na
maioria das vezes, não se atentam as nuances sociais e familiares que são levadas
ao processo. O depoimento da vítima e até mesmo de outras testemunhas pode
acabar sendo “contaminado” com o intuito de obter a pacificação dentro do lar.
Contudo, algo que por muito tempo era considerado assunto privado, passou
à esfera pública, e aos cuidados do Estado: a violência de gênero deixou de ser
assunto exclusivamente de família, e passou a ser tratado publicamente, inclusive
por meio dos instrumentos de persecução penal, após os avanços dos movimentos
feministas em todo o mundo.
Como exemplos, tem-se o advento da Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres – CEDM, de 1979, adotada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas (BRASIL, 2002), e a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica Contra a Mulher, conhecida
como “Convenção de Belém do Pará”, incorporada ao ordenamento jurídico pátrio
por meio do Decreto nº 1.973, de 01 de agosto de 1996 8. Dentro desse contexto, foi
aprovada em 07 de agosto de 2006, após condenação do Brasil pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos –
CIDH/OEA por omissão, negligência e tolerância em relação a crimes contra os
direitos humanos das mulheres, em 2001, a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) 9.
8
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA. Convenção interamericana para
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, “Convenção de Belém do Pará”.
Belém do Pará, 9 jun. 1994. Disponível em:
http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em: 13 set.
2022.
9
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 08 ago. 2006. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso
em: 25 nov. 2022.
320 | Gênero, violência e estruturas de poder
Ao longo dos anos, as instituições foram se aperfeiçoando, a fim de melhor
conduzir o processo penal na área de proteção à mulher: foram criadas as delegacias
especializadas de atendimento à mulher, os juizados especiais, a Casa da Mulher
Brasileira, dentre outros aparatos. Contudo, as regras processuais permaneceram as
mesmas; focadas nos princípios constitucionais já elencados. Tem-se que na
relação Estado-acusado, a parte processada é a mais vulnerável, motivo pelo qual
carece de maior proteção frente ao poderio estatal.
Entretanto, os instrumentos normativos que surgiram visando à proteção do
gênero feminino costumam ir além da mera punição do agressor. Com efeito, a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres – CEDM (BRASIL, 2002) compreende diferentes alçadas: direitos civis,
políticos, sociais, culturais e econômicos. A Lei n. 11.340/0610, conhecida como Lei
Maria da Penha, possui natureza mista porque reúne institutos não apenas penais,
como também cíveis, assistenciais e administrativos.
Todo esse cuidado, porém, não encontra ressonância nas normas processuais
penais. Isso porque a vítima, como dito anteriormente, não é protagonista do
processo que interfere diretamente na sua vida. Apenas é tratada como meio de
prova – prova essa comum, submetida ao contraditório, ampla defesa e que deve
guardar ressonância com o acervo probatório. Quando o relato da vítima é isolado,
aplica-se o princípio in dubio pro reu, vez que “o grau de potencialidade do estado de
inocência afasta qualquer juízo condenatório lastreado em supedâneo probatório
insuficiente”11.
Com efeito, a vítima aparece apenas como meio de prova – não é sujeita
processual. O objetivo do processo resume-se no exercício do poder punitivo do
Estado. Contudo, essa visão tem se alterado ao longo dos anos diante do movimento
conhecido como “redescoberta ou movimento vitimológico”, segundo o qual:
10
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal,
o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
08
ago.
2006.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 25 nov. 2022.
11
GIACOMOLLI, op. cit., p. 119.
Romana Leite Vieira | 321
[...] a Dignidade da Pessoa Humana não pode ser entendida de modo estanque nem
atribuível, em processo penal, a apenas um dos envolvidos do caso penal, o acusado, sob
pena de se incorrer em grave injustiça, deixando a vítima ao desamparo e com sua
dignidade exposta e vilipendiada12.
O papel da vítima na persecução penal encontra três fases ao longo da
história: a) a fase da justiça privada, que vigorava a vingança; b) a fase dos estados
modernos, em que a jurisdição passou para a figura do monarca – a violação não era
mais contra a vítima, mas sim contra o Estado; c) após a Segunda Guerra Mundial,
surge a fase de redescobrimento da vítima, na qual a vítima deixa de ser simples
coadjuvante para ocupar o papel de também protagonista13.
A Vitimologia tem como fundador Benjamin Mendelsohn, professor de
Criminologia da Universidade Hebraica de Jerusalém, que publicou seu primeiro
estudo sistemático sobre o tema em 1940 (Giustiza Penale) 14 . Trata-se de uma
ciência desvinculada da criminologia que tem por objeto de estudo a vítima: quem
pode ser considerada como tal e como resgatar a sua importância dentro do contexto
criminal15.
Nessa mesma toada, a Declaração dos Direitos Fundamentais da Vítima,
aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU em
198516, preconiza que incumbe às instituições administrativas e judiciais melhorar a
capacidade de seus serviços:
a) Informando as vítimas da sua função e das possibilidades de recurso abertas, das
datas e da marcha dos processos e da decisão das suas causas, especialmente quando
se trate de crimes graves e quando tenham pedido essas informações;
b) Permitindo que as opiniões e as preocupações das vítimas sejam apresentadas e
examinadas nas fases adequadas do processo, quando os seus interesses pessoais
12
RODRIGUES, Roger de Melo. A tutela da vítima no processo penal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2014,
p. 61.
13
BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
14
RODRIGUES, op.cit.
15
KIST, Fabiana. O valor da vontade da vítima de violência conjugal para a punição do agressor:
oficialidade, oportunidade e justiça restaurativa. Leme – SP: JH Mizuno, 2019.
16
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos
às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder. 1985. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev29.htm. Acesso em: 20 nov. 2022, s.p.
322 | Gênero, violência e estruturas de poder
estejam em causa, sem prejuízo dos direitos da defesa e no quadro do sistema de justiça
penal do país;
c) Prestando as vítimas a assistência adequada ao longo de todo o processo.
Ao se analisar os crimes de gênero, verifica-se esses costumam ocorrer
dentro da esfera doméstica, na maioria das vezes sem testemunhas oculares. Em
caso de apenas haver a palavra da vítima contra a do agressor, acaba imperando a
versão do acusado, sob o arrimo da presunção de inocência. Com efeito:
Quando a valoração integral afastar a certeza cognitiva do julgador,
produzindo a dúvida razoável, a solução do processo é a absolvição, com a
proclamação do humanitário in dubio pro reu, o qual encontra sua
potencialidade máxima no momento da valoração da prova 17.
Nesse mesmo sentido, assevera Janaína Matida18:
Essa mais do que justificada importância da presunção de inocência, contudo, acabaria
por produzir o efeito perverso de se deixar impunes aqueles que cometem crimes de
natureza sexual ou doméstica? [...] O magistrado terá de reconstruir os fatos tomando
como ponto de partida a palavra da vítima. E, para isso, alguns cuidados devem ser
tomados, de sorte que a produção e valoração probatórias realizadas sejam conducentes
à uma correta determinação dos fatos. Também cabe cuidar para que o anseio por fazer
justiça à vítima não acabe por promover decisões tomadas sem observância da
presunção de inocência; assumindo mais riscos de condenar inocentes do que o sistema
jurídico permite.”
Contudo, aplicando-se a lei penal e processual, por meio de uma interpretação
restritiva, não é possível entender a realidade por trás do processo. A Lei Maria da
Penha (Lei n. 11.340/06)19, é multidisciplinar, e prevê a atuação multiagencial, de tal
17
GIACOMOLLI, op.cit.
MATIDA, Janaina Roland. A determinação dos fatos nos crimes de gênero: entre
compromissos epistêmicos e o respeito à presunção da inocência. In: NICOLITT, André;
AUGUSTO, Cristiane Brandão (orgs.). Violência de Gênero: temas polêmicos e atuais.
Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, p. 93.
19
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
18
Romana Leite Vieira | 323
sorte que se torna imprescindível a atuação de outros profissionais, como psicólogos
e assistentes sociais, na gestão dos conflitos de gênero.
Com efeito, à vítima cabe o direito de entender e ser compreendida. Nesse jaez,
importa também se evitar a revitimização, seja dentro do processo ou fora dele. Isso
porque, por se tratar de conflitos interpessoais de natureza subjetiva, a exposição da
mulher pode incorrer em danos psicológicos.
Na ação penal de crimes de violência de gênero, a ofendida conhece o seu
agressor previamente, e comumente desenvolve com ele uma relação de afeto que
pode afetar terceiros (filhos, familiares, círculo social). Toda essa dinâmica difere
daquela própria de outras criminalidades: nos crimes contra o patrimônio, por
exemplo, vítima e acusado não necessitam se conhecer e manter vínculos, para que
haja o cometimento do crime; ao contrário dos crimes de violência de gênero, que
necessariamente tem como requisito para sua configuração um relacionamento
anterior20.
A rede de proteção arquitetada em lei, infelizmente, não existe em todas as
comarcas do País. Isso porque nem todas as delegacias são especializadas e nem
sempre há varas e/ou juizados especializados, quiçá equipados com o núcleo
multidisciplinar. Segundo o CNJ21, em 2016 eram 109 o número de varas e juizados
exclusivos no País, número que aumentou apenas para 138 em 2020, mais
concentrados nas capitais dos estados.
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal,
o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
08
ago.
2006.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 25 nov. 2022.
20
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer
ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a
ofendida, independentemente de coabitação.
21
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Relatório: o Poder Judiciário no enfrentamento à
violência doméstica e familiar contra as mulheres. Brasília: IPEA, 2019. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/7b7cb6d9ac9042c8d3e40700b80bf207.pdf.
Acesso
em: 05 set. 2021.
324 | Gênero, violência e estruturas de poder
Tudo isso acrescido à falta de estrutura dos equipamentos de proteção pode
fazer com que os processos penais não se iniciem, ou sejam interrompidos sem
resultado eficaz. Nos casos de ação penal pública, muitas acabam sendo finalizadas
em razão da insuficiência probatória, já que a única prova, a palavra da mulher, não
guarda respaldo em outros elementos dos autos, ou até mesmo é modificada, em
detrimento à versão apresentada em sede policial.
Não havendo processamento ou responsabilização do agressor, nos casos em
que realmente houve a agressão, o ciclo de violência pode não ser interrompido, ou
ser reiniciado com outra mulher. Diante de tal contexto, há que se verificar as
soluções viáveis, já desenvolvidas por outras agências estatais.
Em que pese alguns tribunais firmarem o entendimento22 de que a versão da
vítima merece ser sopesada em razão da sua vulnerabilidade e do contexto social
vivenciado, há que se analisar até que ponto, no dia a dia dos fóruns, a palavra da
ofendida pode prevalecer sobre o depoimento do acusado, e a presunção de
inocência, haja vista que o ônus probatório da acusação, nesse tipo de ação penal,
costuma, segundo entendimento empírico, ser prejudicado em razão da aplicação
irrestrita e incondicional do princípio do in dubio pro reu.
Nesse ponto, vale destacar que do princípio da presunção de inocência (art.
5º, LVII, da CRFB) emanam duas regras: a regra de tratamento e a regra probatória.
Deveras, “a regra de tratamento aduz que o indivíduo deve ser tratado como inocente
até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” 23 . Já no momento do
julgamento, em caso de dúvida relevante, deve o acusado ser beneficiado, e ser
22
"em casos de violência doméstica, a palavra da vítima tem especial relevância, haja vista que em
muitos casos ocorrem em situações de clandestinidade" (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ.
Habeas Corpus nº 615.661/MS. Impetrante: Esio Mello Monteiro. Advogado: Esio Mello Monteiro.
Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Paciente: João Alves Pereira Neto.
Relator: Ministro Nefi Cordeiro, 24 de novembro de 2020. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 30 nov.
2020. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?i=1&b=ACOR&livre=((%27HC%27.clap.+e+@num=%2761
5661%27)+ou+(%27HC%27+adj+%27615661%27).suce.)&thesaurus=JURIDICO&fr=veja. Acesso em:
26 nov. 2022.).
23
LEITE, Hebert Soares; PINTO, Felipe Martins. O Princípio da Presunção de Inocência e a
impossibilidade de produção de provas ex officio pelo julgador. Presunção de Inocência – Estudos em
Homenagem ao Professor Eros Grau. Belo Horizonte: Instituto dos Advogados de Minas Gerais, 2020,
p. 126.
Romana Leite Vieira | 325
julgado inocente – concretização do princípio in dubio pro reu: “Se o réu é inocente,
não precisa provar nada e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição.”24;
Parte-se da premissa de que o ônus da prova incumbe exclusivamente a quem
acusa:
Os princípios democráticos e o modelo constitucional adotado impedem a culpa penal
por presunção ou a responsabilidade criminal por suspeita. Nestes exatos termos não
podem repercutir em desfavor do acusado situações jurídicas indefinidas, elementos de
informação não provados ou juízos prematuros de culpabilidade 25.
Voltando-se à condução dos processos de violência de gênero, o Conselho
Nacional de Justiça, em 2 de fevereiro de 2021, lançou o Protocolo para Julgamento
com Perspectiva de Gênero. Trata-se de um manual, cujo objetivo é
reconhecer que a influência do patriarcado, do machismo, do sexismo, do racismo e da
homofobia são transversais a todas as áreas do direito, não se restringindo à violência
doméstica, e produzem efeitos na sua interpretação e aplicação, inclusive, nas áreas de
direito penal, direito do trabalho, tributário, cível, previdenciário etc 26.
Trata-se de uma medida inovadora – contudo pouco conhecida pela
sociedade e até mesmo pelos próprios magistrados e operadores do direito – , a qual
despertou o interesse pelo assunto e levou ao presente estudo.
No referido protocolo, no que tange à valoração de provas e identificação de
fatos, há esclarecimento quanto à necessidade de se deixar de lado preconceitos de
gênero, isso porque “estupro, estupro de vulnerável, violência doméstica são
situações nas quais a produção de prova é difícil, visto que, como tratamos na Parte
I, Seção 2.d. acima, tendem a ocorrer no ambiente doméstico” 27 . O documento
informativo leva os julgadores às seguintes indagações no momento da produção
probatória:
24
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 220.
LEITE,; PINTO, op.cit, p. 129.
26
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ, op. cit., p. 8.
27
Ibid., p. 48.
25
326 | Gênero, violência e estruturas de poder
Uma prova geralmente considerada relevante poderia ter sido produzida? (ex.: existem
circunstâncias que poderiam impedir a produção de provas testemunhais, como medo
por parte de testemunhas oculares de prestar depoimento?).
Em vista da resposta conferida à primeira questão, é necessário conferir um peso
diferente à palavra da vítima?
[...]
Posso estar ignorando como as dinâmicas de desigualdades estruturais interferem na
vida de uma pessoa? Ou seja, é possível que dinâmicas de gênero tornem importantes
fatos que, pela minha experiência ou visão de mundo, poderiam parecer irrelevantes? (ex.:
uma mulher demorou para denunciar seu ex-marido por violência doméstica por medo
de retaliação ou por ser financeiramente dependente?) 28.
Tais questionamento encontram ressonância nas condições já apresentadas
em que comumente ocorrem os crimes de violência de gênero: vulnerabilidade e
hipossuficiência da vítima, influência de familiares e da sociedade, pensamento
social patriarcal, dentre outras.
Acrescente-se que a palavra da vítima, meio
probatório de maior relance nesse tipo de ação penal, segundo o CNJ, deve ser
valorada sob uma perspectiva de gênero:
Faz parte do julgamento com perspectiva de gênero a alta valoração das declarações da
mulher vítima de violência de gênero, não se cogitando de desequilíbrio processual. O
peso probatório diferenciado se legitima pela vulnerabilidade e hipossuficiência da
ofendida na relação jurídica processual, qualificando-se a atividade jurisdicional,
desenvolvida nesses moldes, como imparcial e de acordo com o aspecto material do
princípio da igualdade (art. 5º, inciso I, da Constituição Federal.29.
Diante dessa realidade, e particularidades do tema, importa investigar como o
processo penal que persegue a punição do acusado, nos crimes de violência de
gênero, poderá atingir a sua função de pacificação social e respeito à dignidade da
pessoa humana (especificamente da vítima e do acusado), em contraponto ao
conjunto de regras processuais tradicionais, e de operadores do direito incursos em
uma sociedade patriarcal, como é a brasileira.
28
29
Ibid, p. 49.
Ibid, p. 85.
Romana Leite Vieira | 327
Para tanto, propõe Janaina Matida30 propõe o uso da psicologia cognitiva, a
fim de que o testemunho da vítima seja humanizado:
É nesse contexto que o diálogo com a psicologia cognitiva não pode mais ser evitado. Se
o direito genuinamente presente abraçar o objetivo de oferecer decisões judiciais
racionais, não há mais qualquer espaço para manter-se ilhado, separado, isolado dos
conhecimentos conquistados por outras áreas de investigação. Nesse sentido, avanços
provindos das pesquisas de psicologia cognitiva devem ser ingressados o quanto antes
em nossas práticas jurídicas.
Por outro lado, a partir de uma visão mais audaciosa, um dos vieses seria a
teoria do sopesamento, desenvolvida por Robert Alexy31: “Ela faz com que fique claro
que o peso dos princípios não é determinado em si mesmo ou de forma absoluta e
que é possível falar em pesos relativos”. De fato, em caso de tensionamento de
princípios de igual envergadura (caso assim se considere nesse caso), há que se
levar em consideração o caso concreto de aplicação, e suas circunstâncias
especiais. Nesse diapasão, supõe-se que o sopesamento de valores faria parte da
decisão judicial, na qual o magistrado, através do livre convencimento motivado, faria
esse sopesamento a depender do caso posto em análise.
3 Conclusão
Em que pesem os avanços normativos em prol dos direitos das vítimas de
violência de gênero, há muito o que se refletir acerca da sua proteção dentro do
processo penal. Isso porque, a clássica relação existente entre Estado e acusado
acaba por conceber a ofendida como mero objeto de prova. Prova essa a ser inserida
dentro de um acervo probatório maior, a fim de que seja possível a responsabilização
do suposto agressor.
Dentro da comunidade jurídica o princípio da presunção de inocência,
especificamente a regra de julgamento in dubio pro reu, é visto como uma garantia
30
MATIDA, op. cit, p. 107.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 168.
31
328 | Gênero, violência e estruturas de poder
constitucional instransponível. Não obstante, os tribunais pátrios, voltados para uma
visão política do assunto, em crimes de gênero, sopesam positivamente a palavra da
vítima, ainda que não corroborada por outros elementos probatórios, haja vista que
muitos desses delitos são cometidos na clandestinidade.
Diante dessa tensão, visando proteger a dignidade da vítima, instrumentos de
proteção foram pensados, tal como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva
de Gênero, pelo Conselho Nacional de Justiça, o qual traz instruções aos julgadores,
a fim de evitar julgamentos permeados de conceitos patriarcais e distantes das
realidades vivenciadas pelas mulheres vítimas de violência de gênero.
Ainda nesse sentido, importa a conjunção de esforços multidisciplinares para
abordagem do problema, como o uso da psicologia cognitiva, a fim de reunir esforços
de vários profissionais, inclusive daqueles que não são operadores do direito, para
acolhimento e oitiva dessa vítima.
Em último caso, ainda, segundo a visão dessa autora, é necessário ao julgador
sopesar os princípios tensionados na espécie: a presunção de inocência e a
dignidade da vítima, sob pena de imputar a essa última um sofrimento maior, qual
seja, passar por todo desgaste de uma instrução processual, para ao fim ver seu
agressor impune, sob o argumento de ausência de provas de um crime que se deu
na clandestinidade, situação na qual a produção probatória era impossível. O Estado,
em sua função jurisdicional, também possui responsabilidades que perpassam o
processo penal, a fim de que a Justiça se realize no caso concreto.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da
Silva. São Paulo: Malheiros, 2006.
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração dos Princípios Básicos de
Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder. 1985.
Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus /prev29.htm. Acesso
em: 20 nov. 2022.
BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
Romana Leite Vieira | 329
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. V. 1.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26
nov. 2022.
BRASIL. Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979,
e revoga o Decreto no 89.460, de 20 de março de 1984. Diário Oficial da União,
Brasília, 16 set. 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm#:~:text=DECRETO%
20N%C2%BA%204.377%2C%20DE%2013,20%20de%20mar%C3%A7o%20de%201984
. Acesso em: 25 nov. 2022.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo
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17. REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO A PARTIR
DAS OBRAS DE MICHEL FOUCAULT
https://doi.org/10.36592/9786554601566-17
Alan Silva Carvalho1
Alene Silva da Rosa2
Resumo
O presente trabalho apresenta-se enquanto fruto das discussões e reflexões que
surgiram no processo de elaboração da dissertação. Com o ascendente debate
acerca da questão de gênero nas últimas duas décadas, identificamos uma
diversidade de pontos a respeito do assunto, tais como desconhecimento, distorção
e má interpretação de conceitos, bem como a disseminação de inverdades. Nesse
sentido, tendo como base a produção de Michel Foucault, buscamos compreender e
refletir sobre a construção da identidade de gênero, e dialogando com outras
elaborações contemporâneas como a obra de Judith Butler. O estudo de caráter
bibliográfico, buscou principalmente partir do conceito de cuidado de si elaborado
nas obras de Michel Foucault, a compreensão da construção da identidade de gênero
e do cuidado de si enquanto prática de liberdade. Concluímos que em cada pessoa
há uma necessidade de se ver como uma tela em branco, a qual cada um vai “se
pintando” com vistas a construir a sua própria obra. O cuidado de si vai ao encontro
deste exercício de autolibertação e se transforma em um pincel que pinta um novo
horizonte na luta contra o poder.
Palavras-chaves: Identidade de Gênero; Cuidado de Si; Michel Foucault; Judith Butler
INTRODUÇÃO
Nas últimas duas décadas temos visto ascender em distintas camadas da
sociedade, o debate sobre a questão de gênero. No seio dessa discussão o que
analisamos é a existência de uma vulgarização e um esvaziamento do tema e do
conceito, que inclusive se torna uma das temáticas centrais na disputa política
brasileira, o que contribuiu tanto para dar visibilidade à questão, quanto para
vulgarizar e esvaziar o conceito e o debate.
1
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul (UCS);
Assistente Social na Universidade Federal do Pampa. E-mail: alancarvalhosb@gmail.com
2
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos na Universidade
Católica de Pelotas (UCPEL). Professora Substituta do Curso de Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal do Paraná. E-mail: alenesilva@gmail.com
332 | Gênero, violência e estruturas de poder
Nesse sentido, esse trabalho nasce fruto tanto da observação das situações
da realidade cotidiana, quanto a partir das discussões e reflexões fomentadas na
elaboração da dissertação e de um artigo apresentado no SIEPE 2019. O trabalho se
caracteriza enquanto uma pesquisa qualitativa de caráter bibliográfico, que buscou
principalmente partir do conceito de cuidado de si elaborado nas obras de Michel
Foucault, a compreensão da construção da identidade de gênero e do cuidado de si
enquanto prática de liberdade, e a partir dessa apreensão elaborar o diálogo com
outras produções contemporâneas, como a obra de Judith Butler.
Para a elaboração desse estudo, definimos dividi-lo em dois momentos,
iniciando por visitar a obra de Foucault e apreender a partir do autor qual a sua
elaboração sobre cuidado de si e posteriormente a construção da identidade de
gênero, em seguida no segundo tópico abordaremos a temática a partir de Judith
Butler, considerando a contemporaneidade da sua produção.
I. O que nos ensina Foucault sobre cuidado de si e construção de identidade de
gênero
O debate acerca da sexualidade, tornou-se um fenômeno cada vez mais
recorrente no seio das discussões sociais, discussões estas permeadas por
questões que apontam para um horizonte de reformulação conceitual. O tema da
sexualidade sempre esteve presente nas estruturas hierárquicas sociais, basta
recorrer à história para encontrar evidências da relevância que este tema ocupou e
ainda ocupa, mostrando-se como um objeto de disputa e de controle, seja individual
ou socialmente.
Política e história balizam e ajudam a formar os significados identitários que
regulam as interações no âmbito social e institucional, no entanto, o debate oriundo
deste processo está constantemente em transformação, isto reforça a necessidade
de discutir não só a sexualidade, mas também a ideia de identidade de gênero, não
como meros fenômenos ou de forma isolada, mas a partir da politização da
sexualidade.
Foucault ao analisar documentos históricos nas mais variadas bibliotecas da
França, procurou entender como se davam os processos educacionais e
Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 333
disciplinares, onde foi possível constatar que até o advento da revolução francesa o
poder estava centrado na figura do soberano (rei), cabendo a ele, inclusive, o poder
de tirar a vida de seus súditos ou deixá-los viver se assim bem entendesse. Assim
não seria de se espantar que o ato de suicídio, configurava um crime, pois usurpava
o direito de morte que somente o soberano (rei ou Deus) poderia exercer (Foucault
1988).
No entanto, após a revolução francesa foi possível perceber uma mudança na
forma em que o Estado (até então centralizado na figura do soberano) exercia o poder
sobre a vida. A partir do momento em que o poder assume a função de gerir a vida,
se tornou cada vez mais difícil aplicar penas de morte. Pois para o poder se tornara
mais interessante e lucrativo garantir a vida dos súditos
A velha potência de morte em que se simbolizava o poder do soberano é agora,
cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da
vida. (Foucault 1988, p 131)
Assim, poderia ser o gênero a premissa para definir a identidade, ou seria o
inverso? Quais seriam as estruturas fundantes desta relação, que ao mesmo tempo
as normatizam e as condicionam? Dentro de uma sociedade marcada pela égide
patriarcal e falocêntrica, o campo no qual se faz, ou se pretende fazer, a discussão
sobre gênero e identidade não só é instável como também mutável. De uma forma
geral, a construção de nossa sociedade deu-se através de um processo binário,
admitindo-se o masculino/macho e o feminino/fêmea.
Percebe-se
que
concepções
pautadas
em
uma
perspectiva
biologizante/determinista de corpo, não podem dar conta (quando não agem
propriamente contra) da multiplicidade de gêneros e identidades que um indivíduo
pode assumir, assim sendo, a construção da superfície dos corpos que
pretensamente são construídos culturalmente e socialmente entra em xeque
exigindo uma análise interdisciplinar e quiçá pós-disciplinar. Frente a todas as
questões que advêm com tais considerações surge a pergunta a seguir. Se não é a
biologia e tão pouco a cultura, o que então constrói a identidade de um sujeito?
334 | Gênero, violência e estruturas de poder
Para Michael Foucault a construção desta categoria tão central na condição
humana advém da necessidade de conhecer a respeito do próprio sexo e aos dos
outros, tal necessidade só é igualmente grande aos mecanismos que a reprime,
lançando assim o que ele considerava ser a razão de tudo, “o sexo, razão de tudo”.
Contudo este mesmo autor elucida que a questão da sexualidade está estritamente
vinculada ao poder, mas sempre em relação de negação
Com respeito ao sexo, o poder jamais estabelece relação que não seja de modo negativo:
rejeição, exclusão, recusa, barragem ou ainda, ocultação e mascaramento. O poder não
“pode” nada contra o sexo e os prazeres, salvo dizer-lhes não, se produz alguma coisa,
são ausências e falhas; elide elementos, introduz descontinuidades, separa o que está
junto, mascara fronteiras. Seus efeitos tomam a forma geral do limite da lacuna
(Foucault, 1988, p. 81)
Não seria esta relação de negação o mecanismo que negligencia e dificulta a
abordagem desmistificadora acerca do gozo feminino e também acerca do
reconhecimento pleno de diferentes e novas manifestações da sexualidade? Para
Foucault a resposta a esta indagação é mais do que afirmativa, para ele as estruturas
que regem a moral da sexualidade se estabelecem através de ciclos de interdição
Não te aproximes, não toques, não consumas, não tenhas prazer, não fales, não apareças,
em última instância não existirás, a não ser na sombra e no segredo. Sobre o sexo, o
poder só faria funcionar uma lei de proibição. Seu objetivo: que o sexo renunciasse a si
mesmo. Seu instrumento: a ameaça de um castigo que nada mais é do que a sua
supressão. Renuncia a ti mesmo sob a pena de seres suprimido, não apareças se não
quiseres desaparecer (Foucault, 1988, p. 81)
A sobrevivência social de um corpo sexualizado só seria possível frente a um
processo de anulação das pulsões e em última instância de negação da sua
existência. Esta tentativa reducionista e punitiva tenta criar uma regra universal para
gerir a sexualidade, no entanto
Não existe uma estratégia única, global, válida para toda a sociedade e uniformemente
referente a todas as manifestações do sexo: a ideia, por exemplo, de muitas vezes se
Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 335
haver tentado, por diferentes meios, reduzir todo o sexo à sua função reprodutiva, à sua
forma heterossexual e adulta e à sua legitimidade matrimonial não explica, sem menor
dúvida, os múltiplos objetivos visados, os inúmeros meios postos em ação nas políticas
sexuais (Foucault, 1988, p. 98.)
Desta forma se faz necessário problematizar tais conceitos de forma a criar
as condições necessárias para o desenvolvimento de um novo design sobre a
sexualidade nos dias atuais, um design amplo, libertário, aberto e não binário.
Contudo não se quer com tal novo design aprisionar aquilo que é o cerne de toda a
questão aqui proposta, a liberdade, pois, ao tentar estratificar, classificar ou
conceituar também se aprisiona.
O processo de construção da(s) identidade(s) acontece no interior do
movimento histórico, social, cultural, nos quais as diferenças produzidas são as
características centrais pelas quais as diferentes identidades são produzidas. Nos
primórdios do século XVII, vinculando a construção das identidades e a questão da
sexualidade, temos esse período onde as manifestações sexuais são compelidas
somente a fator de reprodução, e toda prática contrária, deveria ser controlada e
punida, a partir de então criou-se uma gama de justificativas morais, acadêmicas,
científicas e religiosas para condenar essas manifestações.
Entendemos também que esse controle dos corpos, dos indivíduos e da
sexualidade, responde às necessidades de produção e reprodução de uma sociedade
capitalista, tais como mão de obra e a divisão sexual do trabalho. Para tal surge a
necessidade de dispositivos disciplinares, dispositivos de controle, dispositivos de
poder, para Foucault
A ideia de um dispositivo de poder, pode ser descrito como um conjunto de linhas que
atravessam o sujeito e a sociedade, linhas de visibilidade, de enunciação, de força, de
subjetivação, de ruptura que se enlaçam, se misturam e transformam o dispositivo. Que
não é estável e está em constante transformação. (Cardoso, p.325, 2019)
Quanto aos dispositivos de controle sobre a sexualidade, estes surgem e se
transfiguram como instrumentos que possibilitarão às classes sociais privilegiadas
não só autoafirmação enquanto detentoras do poder, mas tornar-se prescritora de
336 | Gênero, violência e estruturas de poder
diversas verdades sobre o sexo que posteriormente seriam difundidas por todo o
corpo social, visando o controle da natalidade e moralização das camadas
subalternas. Estes dispositivos vão ganhando força ao longo dos séculos XVII e XVIII
com o desenvolvimento, na sociedade ocidental, das relações de poder, em seus
diversos níveis (Cardoso, 2019), este fenômeno do biopoder adentra nas mais
variadas instâncias da vida individual e coletiva da sociedade, inclusive na anatomia
e psique humana através de padronizações comportamentais e de conduta.
Logo os dispositivos da sexualidade humana são uma, das principais
instancias a ser colonizada por esta nova forma de poder exercida sobre a vida,
estando estritamente ligado ao gerenciamento do sangue, ou linhagem, atrelada a
ideia da transmissão dos bons genes e manutenção da força de trabalho
Nesta lógica se instauram hierarquias sobre a temática da sexualidade, que
privilegiam e delegam poder à figura masculina à revelia da submissão e
subalternidade da figura feminina.
Estando os sujeitos sociais imersos nesta estrutura social falocêntrica e em virtude de
estarem a ela condicionados os sujeitos regulados por tais estruturas são formados,
definidos e reproduzidos de acordo com estas exigências (Butler, p. 8. 2003).
Assim o preconceito de gênero encontra o solo fecundo para fincar suas raízes
e legitimar-se enquanto prática de dominação frente a figura feminina. Mas tal
fenômeno não se manifesta única e exclusivamente sobre a figura da mulher,
apresentando-se em certos casos com ainda maior fúria contra homossexuais, a
homofobia.
Ao analisar a homofobia e possível questionar quais seriam suas origens
fundamentais que impigem, ainda nos dias de hoje, tal aversão? Ao recorrer a alguns
relatos históricos, percebe-se que tal incompreensão e aversão a cerca deste tema
tem sua origem no próprio preconceito com o mundo feminino
Nos textos do século XIX existe um perfil/tipo do homossexual ou do invertido, seus
gestos, sua postura, a maneira pela qual ele se enfeita, seu coquetismo, como também a
forma e as expressões do seu rosto, sua anatomia, a morfologia feminina de todo seu
Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 337
corpo, fazem, regularmente, parte desta descrição desqualificadora (Foucault, p.21.
1988).
Frente a isto pode-se inferir que a possível feminilização da figura masculina
demandou o nascimento de uma cultura valorativa que exaltasse a masculinidade e
virilidade do homem. Em diferentes graus, esta espécie de medo acerca da
feminilização do homem também ocorre com a mulher, em sentido inverso, pois
ainda nos dias de hoje homens e mulheres são compelidos a manterem-se
estratificados a sua identidade biológica, desempenhando seu papel social de macho
ou fêmea dentro de uma economia heterossexual e reprodutiva.
Para tal é imprescindível superar a ideia, que Foucault (1988) classificou como
sexualidades periféricas, tais práticas que destoam das ditas normais. Mas qual
seria a nascente deste fenômeno que prontamente se coloca contra a qualquer
pretensa “ameaça” ao muno da heteronormatividade, qual seriam suas origens
fundamentais que impigem, ainda nos dias de hoje, tal aversão (como ocorre por
exemplo frente a homoafetividade)? Ao recorrer a alguns relatos históricos, percebese que tal incompreensão e aversão a cerca deste tema tem sua origem no próprio
preconceito com o mundo feminino
Nos textos do século XIX existe um perfil/tipo do homossexual ou do invertido, seus
gestos, sua postura, a maneira pela qual ele se enfeita, seu coquetismo, como também a
forma e as expressões do seu rosto, sua anatomia, a morfologia feminina de todo seu
corpo, fazem, regularmente, parte desta descrição desqualificadora (FOUCAULT, p.21.
1988)
Qualquer conduta sexual que não estiver em consonância com os critérios
elencados anteriormente ainda é (em maior ou menor escala) tida como anormal ou
desviante segundo resquícios de preceitos sociais fundamentados em uma matriz
religiosa (Wolf 2014). Contudo inegavelmente é cada vez mais presente nos dias
atuais o movimento que busca se desvencilhar destes padrões morais de
comportamento, no que tange a sexualidade.
Logo, frente às mudanças e transformações do mundo, principalmente a partir
da organização coletiva dos movimentos sociais, há uma reivindicação pelo respeito
338 | Gênero, violência e estruturas de poder
e reconhecimento à diversidade de identidades, que deve ser considerada como um
conceito de representações que os sujeitos sociais fazem a respeito de si.
Com base nas produções analisadas, identificamos que o conceito de cuidado
de si tem sua origem na antiga civilização grega, sendo compreendido nesse período
enquanto um privilégio, um poder ou direito estatutário. Sobre a prática do cuidado
em si, entendemos que este pode envolver diversos aspectos, tais como: regimes de
saúde, o cuidar do corpo, a satisfação das necessidades, bem como a prática da
meditação, o exercício da leitura, e a conversa com amigos, um mestre ou guia.
A partir dessa compreensão, podemos afirmar que a prática do cuidado de si
pode ser um fazer individual e solitário, mas que se configura também como algo
coletivo e social, pois envolve atividades de si sobre si, e também com o outro,
estabelecendo uma comunicação com esse outro.
Seguindo na abordagem do trabalho de si sobre si, temos o entendimento de
que esse conceito apresenta o indivíduo como uma obra que encontra-se aberta,
ainda não concluída. A esse indivíduo inconcluso é concedido autonomia e liberdade,
pois somente através do cuidado e conhecimento de si, que se tem a possibilidade
de uma existência ética e verdadeiramente livre.
II. A atualidade da discussão na obra de Judith Butler
Estando os sujeitos sociais imersos nesta estrutura social falocêntrica e em
virtude de estarem a ela condicionados os sujeitos regulados por tais estruturas são,
formados, definidos e reproduzidos de acordo com estas exigências (Butler, p. 8.
2003).
Dentro desta lógica hegemônica a categoria de gênero necessita de
identidades estanques para passarem a ter significado, ou seja, o masculino
necessariamente tem que expressar o macho e o feminino tem que expressar a
fêmea. Esta lógica determinista parece não mais encontrar terreno para expandir
suas raízes, pois
Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a
distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável
Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 339
em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é
nem resultado causal do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo.
(Butler, p. 13. 2003).
Com esta concepção em tela, amplia-se o escopo do debate e lança-se um
feixe de luz sobre a questão da autodenominação dos sujeitos sociais que a rigor
não se reconhecem naquele sexo biológico observado fisicamente. Assumindo que
sexo e gênero são distintos, pode-se considerar que
O gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer
que ele ocorra de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico, a
distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e
gêneros culturalmente construídos [...] não há razão para supor que gêneros também
devam permanecer em número de dois. A hipótese de um sistema binário dos gêneros
encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o
gênero reflete o sexo ou é por ele restrito. (Butler, p. 13. 2003).
Este descolamento do sexo/gênero funciona como uma espécie de pilar
fundacional da política feminista de Butler, partindo da ideia de que o sexo é natural
e o gênero é socialmente construído, essa era a premissa que tal autora
problematizava no início dos anos de 1990. Discutir tal dualidade foi o ponto de
partida para que a pensadora questionasse o conceito de mulher como sujeito dentro
do próprio feminismo.
O conceito de gênero como culturalmente construído, distinto do de sexo,
como naturalmente adquirido, formaram o par sobre o qual as teorias feministas
inicialmente se basearam para defender perspectivas “desnaturalizadoras” sob as
quais se dava, no senso comum, a associação do feminino com fragilidade ou
submissão, e que até hoje servem para justificar preconceitos. O principal embate de
Butler foi com a premissa na qual se origina a distinção sexo/gênero: sexo é natural
e gênero é construído. Para Butler, “nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna
o destino”.
No livro intitulado O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir exprime a idéia que
não se nasce mulher, mas sim torna-se uma. Para Beauvoir, a questão do gênero é
340 | Gênero, violência e estruturas de poder
resultado de uma construção advinda da cultura, porém Judith Butler nos diz, ao
esmiuçar tal afirmação, que há aí uma controvérsia que a rigor se basearia na
dicotomia entre o livre-arbítrio e o determinismo. Em sua maneira de ver, Butler
considera que não há em Beauvoir, nada que garanta que o ser que se torna mulher
seja necessariamente fêmea (Butler, 2003).
Ainda em Beauvoir, é possível encontrar a ideia de que as mulheres são o
negativo dos homens, a falta em confronto com a qual a identidade masculina se
diferencia. Tal assertiva sugere que a diferença entre os gêneros/sexos só é possível
dentro de uma relação com o outro que é o oposto.
Dentro de um monismo ideológico conceitual isto equivaleria dizer que a
mulher é o inverso do homem, mas em situação de inferioridade, dada a configuração
anatômica e física. Esta explicação por si exclui o que Lucy Irigaray considera como
uma economia inteiramente significante, para ela é um equívoco tentar explicar o
feminino através da ausência ou da negação das características masculinas. Assim
este modo falocêntrico de dar significado ao sexo/gênero feminino oferece apenas
uma forma de cooptação e controle (Irigaray 1985). Em última instância cria-se uma
gama de valores ideológicos que justificam as diferenças comportamentais entre o
masculino e o feminino.
Para Butler, uma teoria ou política que defende uma identidade criada pelo
gênero e não pelo sexo mascara a aproximação entre gênero e essência, entre gênero
e substância. Segundo Butler, aceitar o sexo como um dado natural e o gênero como
algo construído culturalmente, seria aceitar também que o gênero expressaria uma
essência do sujeito. Ao estabelecer um diálogo com Beauvoir, Butler parece querer
“desnaturalizar” tal ideia de gênero de um sujeito uno, onde a categoria sexo é aceita
como substância, como aquilo que é idêntico a si mesmo, em uma proporções quase
metafísicas.
Para ela, tal posição observaria o gênero como uma “atributo do sujeito,
caracterizada essencialmente como uma substância ou um ‘núcleo’ de um gênero
estabelecido a priori”. Butler pega o ideário de Foucault e o reformula de uma forma
muito original ao afirmar que as estruturas que regem a moral da sexualidade se
estabelecem através de ciclos de interdição, onde as relações estabelecidas entre o
poder e o sexo só são possíveis através de proibições, interdições, o sexo não deve
Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 341
aparecer caso não queira desaparecer definitivamente, a existência do sexo deve se
dar nas sombras. A sobrevivência social de um corpo sexualizado só seria possível
frente a um processo de anulação das pulsões e em última instância de negação da
sua existência, esta tentativa reducionista e punitiva tenta a todo custo criar uma
regra universal para gerir a sexualidade.
Neste sentido, práticas sociais e discursivas servem tanto para
Disseminar o poder, como também pode miná-lo. Por exemplo, os textos antigos sobre
sodomia produziram duas reações: as penas severas de fogueira no século XVIII, sem
protestos e, por outro lado uma tolerância de certos testemunhos nas sociedades
masculinas no exército e na corte. Mais tarde, no séc. XIX, com o aparecimento da
homossexualidade nos tratados psiquiátricos, no direito e na literatura, possibilitou o
surgimento de um discurso de reação. Ou seja, não existe um discurso de poder de um
lado e um que se contrapõe de outro, assim podem existir discursos diferentes dentro de
uma mesma estratégia de poder ou podem circular em estratégias opostas, discursos
semelhantes. (Cardoso, p.324, 2019)
No cenário atual, são vistas mudanças, que nascem de reivindicações e
movimentos sociais, que expressam críticas aos modelos clássicos de análise dos
fenômenos da sexualidade contrariando o universalismo hegemônico sobre a
temática. Tais transformações demandam um novo conceito da identidade dos
sujeitos sociais, reunindo uma gama de multiplicidade de representações acerca do
“eu” agregando assim (ou não) valores morais. Surge daí uma possível forma de se
tratar a questão da sexualidade, que sob o prisma do conceito de respeito à
diversidade, adquire um novo viés teórico que engloba a pluralidade da vida social,
seja nas instâncias culturais, afetivas ou de identidade.
A diversidade de identidades hoje deve ser considerada como um conceito de
representações que os sujeitos sociais fazem a respeito de si. Estas identidades,
sejam individuais ou coletivas, são construídas na relação com o outro e na
alteridade (Hall, 2005). Mas esta construção não se dá de forma tranquila, pois a
hierarquização concernente a tal processo acaba por criar critérios de verdade que
fundamentam relações de poder.
342 | Gênero, violência e estruturas de poder
Esse poder tem suas especificidades, destinado ao controle dos corpos dos
indivíduos, por meio de mecanismos de controle, chamado poder disciplinar por
Foucault. É uma modalidade de poder que não atua do exterior, mas no corpo dos
indivíduos, manipulando seus elementos, produzindo seus comportamentos, ou seja,
fabricando um tipo de homem para o bom funcionamento da sociedade industrial
capitalista. (Cardoso, 2019)
Assim sendo, Butler avança na construção de um novo ideário realizando a
Inserção da concepção foucaultiana de poder produtivo em suas teorizações acerca dos
gêneros e das sexualidades, destacando o caráter performativo de seu funcionamento,
bem como propondo que a ela se acrescente uma preocupação maior com os aspectos
da formação psíquica. (Paiva, p.515, 2022)
Todavia o referido autor se contrapõe à ideia de haver uma política que exige
a constituição de uma identidade fixa, de um sujeito a ser representado, para que
essa política se legitime. Ao passo que propõe repensar tais restrições que a própria
teoria da diversidade enfrenta quando tenta representar/explicar o mundo da
sexualidade, mantendo uma crítica ao que ela considera uma exigência da política: a
presença de um sujeito estável.
Butler entende o ideário da diversidade como uma prática política que que
rompe o conceito de sujeito como uma identidade fixa, levando a uma concepção de
identidade em aberto, não meramente como algo que não englobe/organize a
pluralidade, mas que a mantenha em aberto sob permanente cuidado (de si). Nas
palavras de Butler: “A desconstrução da identidade não é a desconstrução da
política; ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais
a identidade é articulada”.
Desta maneira o gênero seria um fenômeno inconstante e contextual, que não
denotaria um ser substantivo, “mas um ponto relativo de convergência entre
conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes
Com esta concepção em tela, temos que as manifestações da sexualidade não
são meramente imputs da natureza ou sociais, mas também dispositivos históricos,
expressos em uma rede constituída de práticas, discursos, métodos de estimulação
Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 343
dos corpos e dos prazeres. Os dispositivos de sexualidade surgiram como maneiras
de afirmação da burguesia que não anulou nem desqualificou seu corpo, posto que
sua supremacia dependia não só da exploração econômica, mas também da
dominação física das classes subalternas, visto que uma das formas de consciência
de classe é a afirmação do corpo.
Assim, em se tratando da contemporaneidade, o conceito proposto por
Foucault e atualizado por Butler é que o surgimento da ciência do sujeito é parte
integrante do dispositivo de sexualidade, que abriu possibilidade de infiltração do
poder em aspectos particulares e íntimos da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo frente a todos os avanços e conquistas no campo da sexualidade, é
perceptível à existência de uma clara tentativa reguladora acerca da moral sexual
coletiva. Tal tentativa não só procura estabelecer um processo normativo sobre as
relações entre os indivíduos uns para com os outros, mas também acerca do
indivíduo para consigo mesmo adentrando assim na esfera individual da
sexualidade.
Assim pode-se inferir que esta tentativa de (re) normatizar a atividade sexual
humana tende a se caracterizar por um rol taxativo de proibições, em uma tentativa
de resgatar o conservadorismo moral. Posto isto, não seria um equívoco afirmar que
este processo visaria o renascimento da função puramente reprodutiva,
heterossexual e matrimonial das manifestações da sexualidade.
O horizonte para tal discussão ainda se mostra nebuloso, embora se tenha
avançado na problematização da questão, ainda existem importantes lacunas a
serem preenchidas. As conquistas fomentadas pelo desejo de liberdade
proporcionaram significativos avanços, mas não foram capazes de eliminar por
completo os preconceitos, as dúvidas, os medos e incompreensões concernentes ao
fenômeno da sexualidade.
Este panorama apenas demonstra a necessidade e a importância de um
continuado esforço reflexivo acerca destas questões na tentativa, não de esgotá-las,
344 | Gênero, violência e estruturas de poder
mas de possibilitar a construção de subsídios para um debate verdadeiramente
democrático.
REFERÊNCIAS
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Tradução de E. M. Parshley.
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comunicação. São Paulo: Cosacnaify, 2007.
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de Catherine Porter e Carolyn Burke.
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https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/39186. Acesso em: 3 mar.
2024.
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Manual de ética: questões de ética teórica e aplicada / João Carlos Brum Torres
(org.). – Petropolis, RJ: Vozes, Caxias do Sul, RS: Universidade de Caxias do Sul, Rio
de Janeiro: BNDES, 2014.
18. MAPEAMENTO DAS DENÚNCIAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
ASSOCIADAS AO CIÚME EM 2016 (DEAM-VITÓRIA)
https://doi.org/10.36592/9786554601566-18
Dionatan Miranda de Almeida1
Resumo
A presente pesquisa trata da violência de gênero associada ao ciúme e emergiu a
partir do relato de 35 mulheres que denunciaram as agressões cometidas por
homens na Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) de Vitória, Espírito Santo, no
ano de 2016. Nesse sentido, ressaltou-se a importância de fazer um mapeamento
dessa violência utilizando as informações que são fornecidas nos boletins, traçando
o perfil sociodemográfico dos agressores e das vítimas, como a questão da cor, da
escolaridade, da profissão, do estado civil e do vínculo entre os dois.
Palavras-chave: Gênero; violência; ciúme; mulher; patriarcado.
1. INTRODUÇÃO
No Espírito Santo, os números da violência de gênero são alarmantes, tanto
em âmbito estadual quanto municipal, já que o estado e a sua capital, Vitória,
aparecem nos primeiros lugares nos rankings nacionais desse tipo de violência, de
acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada2. Em seus estudos,
Nader3 evidenciou que o crescimento demográfico acelerado e desordenado foi, em
parte, responsável pelo aumento da violência de modo geral. Essa explosão
demográfica teve sua origem na política de erradicação dos cafezais, resultando na
deslocação de uma massa de trabalhadores agrícolas do interior do estado para a
capital e para as cidades vizinhas, atrás de novas oportunidades. Os amplos projetos
industriais que foram instalados na região atraíram não somente esse contingente
de trabalhadores rurais, como até pessoas de estados vizinhos que viam uma
oportunidade de emprego e melhoria de vida na cidade.
1
Mestrando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), orientado pela Profa. Dra.
Maria Beatriz Nader. E-mail: dionatan-almeida@hotmail.com
2
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil.
Brasília,
2013.
Disponível
em:
https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-efontes/pesquisa/violencia-contra-a-mulher-feminicidios-no-brasil-ipea-2013/. Acesso em: 15 dez. 2023.
3
NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo
caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível
em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 16 dez. 2023.
346 | Gênero, violência e estruturas de poder
Notou-se ainda, além do crescimento demográfico desordenado, a falta de
estrutura da região para acomodar as massas de migrantes como uma das razões
para o aumento da violência em Vitória na segunda metade do século XX. Um outro
aspecto que pode ser considerado como causador no que diz respeito às grandes
taxas do indicador de violência, além da explosão populacional e da falta de estrutura
para alocar quem chegava à cidade a partir da década de 1960, que é a cultura
patriarcal que já estava presente na formação da sociedade capixaba a partir do
período colonial e que se desenvolveu com a migração de italianos, alemães e árabes
no final do século XIX e início do século XX, povos que também trouxeram consigo
uma cultura machista.4
O processo de migração e favelização que ocorreu no estado fez pessoas se
concentrarem nas mesmas condições de miséria dos desassistidos, analfabetos e
desempregados, originando as graves problemáticas sociais estigmatizadas por
doenças, promiscuidade e criminalidade. A marginalização espacial e social da
maioria da população aconteceu nesse momento de industrialização e urbanização
da Grande Vitória e teve colaboração para a promoção e reprodução da violência
metropolitana.5
Portanto, o processo de urbanização de Vitória foi marcado tanto pelo
crescimento desordenado da população em seu espaço físico quanto pelo
crescimento das desigualdades sociais. Nader 6 e Siqueira 7 explicam que essa
explosão demográfica na cidade de Vitória foi assistida junto do crescimento da
concentração de renda por um grupo menor de pessoas, expandindo as diferenças
sociais e contribuindo para o aumento da violência. Ao analisar a relação entre esses
dois fatores, percebe-se que as intensas correntes imigratórias e aglomeração de
grandes massas populacionais em centros urbanos favorecem, potencialmente, a
4
NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo
caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível
em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 18 dez. 2023.
5
NADER, Maria Beatriz. Paradoxos do Progresso: a dialética da relação mulher, casamento e trabalho.
Vitória: EDUFES, 2008.
6
NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo
caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível
em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 20 dez. 2023.
7
SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da Grande
Vitória 1950- 1980. Vitória: EDUFES, 2001.
Dionatan Miranda de Almeida | 347
incidência criminal que concentra agressões individuais que transcendem o nível
social refletindo, sem dúvida, a dominação de um grupo e a subordinação do outro.
Nader 8 chama atenção para estudos feitos por Barata, Drumond Junior e
Freitas, que constatam que as maiores incidências de violência são de regiões
periféricas concentradoras de pobreza. Reitera ainda que, segundo Minayo, a
violência pode ter associação com as condições da vida metropolitana, que se
caracteriza por uma grande concentração populacional, desigualdades de riquezas,
impessoalidades das relações, fácil acesso a armas de fogo, abuso de álcool e tráfico
de drogas, bem como a baixa renda familiar e violência policial.
Desse modo, a grande corrente migratória que se direcionou para a capital do
estado, e o inchaço demográfico nesta principal zona urbana, daí decorrente,
juntamente à falta de estrutura econômica, social e de habitação para receber esse
contingente migratório, colaboraram para o aumento da violência na metrópole
capixaba. As taxas de homicídio do estado no final da década de 1980 subiram
180,7%, ou seja, 9% ao ano, de acordo com dados divulgados pelo Mapa da Violência.
Este aumento ocorreu principalmente devido ao crescimento substancial dos
homicídios na Região Metropolitana de Vitória, que mostraram uma alta de 379%,
isto é, 13,9% ao ano. No ano 2000, o Espírito Santo estava posicionado em terceiro
lugar entre os estados onde mais houveram homicídios, enquanto em 2010 ele
passou a ocupar a segunda posição. Vitória, por seu turno, passou da segunda
posição entre as capitais que mais mataram no ano 2000, para a terceira posição em
2010. De qualquer maneira, ambos, estado e capital, permaneceram entre as três
primeiras posições que indicam as regiões mais violentas em termos de homicídios
do Brasil.9
Juntamente com o aumento da violência de maneira geral, o número de
violência cometida contra as mulheres também teve um aumento, a ponto de, no final
da década de 2000, o estado do Espírito Santo figurar na primeira posição entre os
8
NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo
caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível
em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 22 dez. 2023.
9
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012: atualização: homicídios de mulheres no Brasil.
Cebela, p. 1-27, 2012. Disponível em:
http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf. Acesso em: 22 dez.
2023.
348 | Gênero, violência e estruturas de poder
estados da federação em homicídios femininos e de Vitória estar no topo do ranking
entre as capitais do país em feminicídios. 10 Enquanto no ano de 2010, o estado
ocupava na segunda posição e a capital ocupava a terceira em termos de homicídios
de maneira geral, os feminicídios ocorridos nas respectivas regiões estão em
primeiro lugar no ranking em homicídios de mulheres. Desse período até o ano do
recorte temporal dessa pesquisa, o número de mortes femininas por razão de gênero
no estado diminuiu, mas a quantidade ainda é muito preocupante. Em 2016, foram
registrados 35 casos de feminicídios em terra capixaba. Em outras palavras, é
alarmante o número de mulheres que são mortas todos os dias no Espírito Santo e
em Vitória, isso sem mencionar a violência física, psicológica, patrimonial e sexual
de que elas são alvos cotidianamente.
A primeira Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (DEAM) no
estado, em Vitória, foi instalada exatamente no momento histórico de crescimento
demográfico desenfreado na Região Metropolitana de Vitória e de empobrecimento
da população capixaba, no ano de 1985. No contexto nacional, as denúncias de
crimes cometidos contra as mulheres estavam a todo vapor. As DEAMs passaram a
ser instituídas em todos os estados da federação, incluindo o Espírito Santo, que
vivenciava um período crítico no que diz respeito à violência metropolitana. A
delegacia especializada da capital do estado do Espírito Santo tem o papel de receber
denúncias e investigar casos de violência contra as mulheres, exercendo uma tarefa
de suma importância para esse que é um problema social de destaque no Espírito
Santo.
2. DELEGACIA ESPECIALIZADA EM ATENDIMENTO Á MULHER (DEAM)
Na segunda metade do século XX foi visível a intensificação no combate à
violência contra as mulheres. Nessa mesma época, particularmente no ano de 1985,
como dito, foi instituída a primeira unidade de delegacia especializada, focada
somente para o atendimento de mulheres em situação de violência, fazendo parte de
10
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012: atualização: homicídios de mulheres no Brasil.
Cebela, p. 1-27, 2012. Disponível em:
http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf. Acesso em: 22 dez.
2023.
Dionatan Miranda de Almeida | 349
uma política nacional para atender às reivindicações feministas de políticas públicas
que identificasse a violência contra as mulheres como um problema social, e bem
como um problema político. O surgimento de uma unidade de polícia civil destinada
à denúncia desses casos marca a atuação governamental na busca do combate e
erradicação da violência doméstica de gênero.11 Contudo, essas unidades focaram
somente na punibilidade do agressor, se afastando de qualquer ideal feminista de
combate à violência contra as mulheres e negligenciando o atendimento distinto à
vítima. Por muito tempo, não houve, nessas unidades, a preocupação social de
responsabilizar os denunciados ou de conscientizar as denunciantes sobre as
questões de gênero e de poder envolvidas nas relações de violência estabelecidas
entre as partes. Não existiu a preocupação de formação de equipes treinadas para
atender as especificidades que envolvem esses casos. Não havia, por exemplo,
fornecimento de auxilio social e psicológico para as mulheres que procuravam essas
unidades para fazerem a denúncia da violência.12
Porém, anteriormente à criação das Delegacias Especializadas em
Atendimento à Mulher (DEAMs), foi instituído o SOS-Mulher em várias regiões do
Brasil em finais da década de 1970 e no início dos anos de 1980. A instituição foi um
marco no que diz respeito ao atendimento às vítimas de violência de gênero, pois foi
a primeira experiência de contato direto com estas mulheres, e dava visibilidade a
acontecimentos e consequentemente desafios, que até então eram imperceptíveis
para o conjunto do movimento e para a sociedade em geral. O trabalho era realizado
por feministas e militantes voluntárias, que colaboravam com uma quota mensal
para custear algumas despesas, como o aluguel, telefone, enfim, para garantir o
funcionamento do estabelecimento. Esse recurso financeiro era, também, usado
para auxiliar com o custo de transporte das vítimas que chegavam sem dinheiro para
o retorno a casa, pois estas mulheres, na maior parte dos casos, eram pobres, com
muitos filhos, negras, com baixa escolaridade, sem qualificação profissional,
11
NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo
caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível
em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 23 dez. 2023.
12
BOSELLI, Giane Cristini. Instituições, gênero e violência: um estudo da Delegacia da Mulher e do
Juizado Criminal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2003.
350 | Gênero, violência e estruturas de poder
desempregadas, residentes, no caso do Rio de Janeiro, por exemplo, das partes
menos favorecidas do estado, como as favelas, ou das regiões periféricas, como a
Baixada Fluminense, que chegavam ao SOS para atendimento, muitas vezes, sem ter
qualquer recurso para voltar para casa e apresentavam, para além da agressão
sofrida, um conjunto de situações de ordem social, econômica e cultural que, em
última instância, constituíam fatores de risco para a violência praticada pelo
marido.13
Apesar de todo o trabalho realizado, os SOS-Mulher não vingaram e acabaram
sendo extintos em 1983. Maria Amélia Azevedo (1985) 14 explica que a organização
não pôde dar continuidade devido aos problemas financeiros. No decorrer da década
de 1980, várias Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher (DEAMs), ou
Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), conforme foi chamada a primeira delegacia
voltada para o atendimento específico das mulheres vítimas de violência, de São
Paulo, implantada no dia 05/08/1985. 15 Heleieth Saffioti 16 salienta que as
denominações dadas a essas Delegacias são diversificadas, e que prefere chamar
de DDM, nome dado à primeira delegacia de defesa da mulher brasileira. Entretanto,
na presente pesquisa, denominaremos de DEAM, nome dado à primeira delegacia da
mulher instituída no Espírito Santo, no ano de 1985.
Ao revisitar a história da DEAM/Vitória, destaca-se também que no ano de sua
inauguração, em 1985, quando ainda se chamava Delegacia Especializada no
Atendimento à Mulher do Espírito Santo (DEAM/ES), a delegacia especializada de
Vitória funcionou numa sala da superintendência da Polícia Civil do estado, onde não
só era de difícil acesso para as vítimas, mas também a execução das atividades
13
MEDEIROS, Luciene Alcinda de. “Quem Ama Não Mata”: a atuação do movimento feminista
fluminense no enfrentamento da violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História (ANPUH), São Paulo, p. 1-16, 2011. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300848995_ARQUIVO_ArtigoAnpuhNacional.2
011.pdf. Acesso em: 27 dez. 2023.
14
AZEVEDO, Maria Amélia. Mulheres espancadas: a violência denunciada. São Paulo: Cortez, 1985.
15
COSTA, Jurandir. Apoio às vítimas: SOS-Mulher e Delegacias. In: MOREIRA, Maria Ignez Costa;
RIBEIRO, Sônia Fonseca; COSTA, Karine Ferreira. Violência contra a mulher na esfera conjugal: jogo
de espelhos. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (orgs). Entre a virtude e o pecado.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992.
16
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Violência doméstica: questão de polícia e da sociedade. Gênero e cidadania,
Campinas, vol. 1, p. 59-70, 2014. Disponível em:
http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2015/05/22/17_29_35_372_Viol%C3%AAncia_dom%C3%A9
stica_quest%C3%A3o_de_pol%C3%ADcia_e_da_sociedade.pdf. Acesso em: 28 dez. 2023.
Dionatan Miranda de Almeida | 351
judiciais era feita dentro de condições mínimas. Esse quadro só mudou no ano de
2003, a partir do momento em que a unidade foi transferida para um espaço físico
próprio e independente, que abrange uma casa residencial adequada para atuar
como delegacia.17
Nos dias atuais, a delegacia fica situada no bairro Santa Luíza, na região da
Grande Maruípe, e registra denúncias de violência (doméstica ou não) sofridas por
mulheres do município de Vitória e com idade a partir de 18 anos. Por meio de um
trabalho extremamente árduo, foram coletados todos os dados contidos nos boletins
do ano 2016, que totalizam 1385 casos. Naquela época, a cidade de Vitória tinha
pouco menos de 363 mil habitantes. 18 Todas as informações foram transcritas
manualmente para o banco de dados do programa Microsoft Excel, formulado
especificamente para esse fim, ficando mais acessível e prático o trabalho com os
boletins e facilitando a seleção e o cruzamento de dados. Vale destacar que o nome,
tanto da vítima quanto do agressor, bem como qualquer outra informação que
concede a identificação deles nas ocorrências, não compõe os arquivos que foram
confeccionados para a pesquisa. Não foi permitido a transcrição de informações que
identificasse os envolvidos nas fichas, isto é, não se poderia copiar os dados de
identificação das vítimas e dos agressores, tais como o nome, o número do
documento de identidade e do CPF, o endereço de residência e o telefone.
Ao analisar os 35 casos de violência de gênero registrados na DEAM-Vitória,
em 2016, cuja motivação tenha sido o ciúme, percebeu-se que um mapeamento
dessas denúncias poderia ser realizado, haja vista que nos dados dos boletins foi
possível encontrar informações referentes à vítima e ao agressor, e que foram
informadas pelas vítimas aos escrivães da delegacia no momento de registro da
ocorrência. Mas é importante destacar que alguns aspectos não foram fornecidos
das duas partes igualmente, logo, o que possuímos em relação aos autores são:
17
NADER, Maria Beatriz. Mapeamento e perfil sócio-demográfico dos agressores e das mulheres que
procuram a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher Vitória (ES) 2003-2005. Diásporas,
Diversidades,
Deslocamentos,
Santa
Catarina,
p.
1-8,
2010.
Disponível
em:
http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278008189_ARQUIVO_Trabalh
oprontoparapublicacaoFG9.pdf. Acesso em: 29 dez. 2023.
18
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estimativa da população brasileira por
munícipio, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2017/estimativa_dou.shtml. Acesso
em: 29 dez. 2023.
352 | Gênero, violência e estruturas de poder
informações sobre escolaridade e profissão; e das vítimas: a questão da cor e do
estado civil. No entanto, tal acontecimento não impede o cruzamento de dados e
apresentação de estatísticas, que podem dizer muito sobre as fontes, mesmo
considerando as suas limitações.
Além dessas informações básicas, a vítima costumava relatar para aos
escrivães fatos como a convivência do casal e dos filhos, a condição econômica da
família e o ocorrido no momento da agressão, expondo as motivações que elas
acreditavam terem levado à violência por parte de seus companheiros. Há um espaço
nos boletins intitulado “relato da vítima” onde os escrivães transcreviam tais
narrativas das mulheres vítimas de violência. Esses relatos também serão
analisados ao decorrer da pesquisa.
3. MAPEAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER MOTIVADA PELO CIÚME EM
VITÓRIA NO ANO DE 2016
No contexto dessa pesquisa, a violência associada ao ciúme emergiu a partir
do relato de 35 mulheres que denunciaram as agressões cometidas por homens na
Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM), de Vitória, Espírito Santo, no ano de
2016. Alfred Adler19 explica que o ciúme é uma maneira de lutar pela dominação sob
um indivíduo, restringindo a sua liberdade. Pode-se entender que esse ciúme é uma
consequência da cultura patriarcal, no qual o homem enxerga a mulher como sua
propriedade, dominando-a e controlando-a. Assim, o ciúme tem a finalidade da
dominação do homem em desfavor da mulher, fazendo-a andar em determinado
caminho ou mantê-la acorrentada. Por isso ressaltou-se a importância de fazer um
mapeamento dessa violência, traçando o perfil sociodemográfico dos agressores e
das vítimas, de acordo com o que é fornecido nos boletins.
Primeiramente, é necessário discutir as formas como as questões de raça/cor
se entrecruzam nos discursos sobre a violência de gênero, uma vez que a maneira
como as vulnerabilidades são vividas pelas mulheres variam fortemente de acordo
com suas experiências singulares de vida e seus marcadores sociais. Rocha e
19
ADLER, Alfred. A ciência da natureza humana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
Dionatan Miranda de Almeida | 353
Rosemberg20 ressaltam a especificidade da classificação racial no Brasil, bem como
na maioria dos países latino-americanos, que resulta na aparência e não na
ascendência, diferentemente dos Estados Unidos, que após a abolição da escravidão,
adotou leis segregacionistas e criou uma classificação racial legal baseada na
origem do indivíduo. Por esse motivo, alguns autores consideram que no Brasil não
se pode falar em grupos raciais, mas sim em “grupos de cor”. Os autores explicam
que existem três tipos de classificação racial: o modo oficial, que é do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o modo popular múltiplo e o modo
binário. O modo oficial, usado pelo IBGE, contempla cinco categorias: branco, preto,
pardo, amarelo e indígena. O modo popular múltiplo é relacionado à ampla
quantidade de termos que descrevem de raças e cores. O modo binário é o que tem
sido usado pelos Movimentos Negros, com somente dois termos: negro e branco.
16
14
12
10
8
15
12
6
4
5
3
2
0
Pardas
Negras
Brancas
Não informado
GRÁFICO – COR DAS VÍTIMAS QUE REGISTRARAM DENÚNCIA NA DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A
DEZEMBRO DE 2016
20
ROCHA, Edmar José; ROSEMBERG, Fúlvia. Auto declaração de cor e/ou raça entre escolares
paulistanos(as). Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 759-799, 2007. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/cp/a/5NbCwJ6ShDZ6sq9FPgpBRxc/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 30
dez. 2023.
354 | Gênero, violência e estruturas de poder
Percebe-se que a maior parte das mulheres se autodeclarou como parda
(42,86%), seguida por aquelas que se consideravam brancas (34,29%), negras
(14,29%) e três delas (8,57%) não informaram. De acordo com o Dossiê Mulheres
Negras 21 , a população negra compreende aos negros e pardos. No entanto, a
DEAM/Vitória cometeu um equívoco nesse sentido, haja vista que, se a classificação
era por cores, deveriam constar as cores parda, branca e preta, conforme a
classificação do IBGE, pois quando se fala em negro, está se falando de pardos e
pretos. Apesar desse engano cometido pela DEAM/Vitória, somando as mulheres
que se autodeclararam pardas e as mulheres que se consideraram negras, concluise que 58% das mulheres vítimas de violência por ciúme em 2016 eram negras.
20
18
16
14
12
10
20
8
12
6
4
3
2
0
Negras
Brancas
Não informado
GRÁFICO – RAÇA DAS VÍTIMAS QUE REGISTRARAM DENÚNCIA NA DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A
DEZEMBRO DE 2016
O Dossiê Mulheres Negras através da Pesquisa Nacional por Amostra em
Domicílio (PNAD) demonstra a desigualdade de gênero e raça ainda bastante
persistente no Brasil no final da década de 2010. Afim de definir a situação de
pobreza da população, o Dossiê evidencia, utilizando o Programa Brasil sem Miséria,
que os negros, mulheres e homens estão entre os mais pobres do país. No entanto,
21
MARCONDES, Mariana Mazzini. et al. (Org.). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida
das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013.
Dionatan Miranda de Almeida | 355
as mulheres são as maiores vítimas da pobreza e da miséria, mesmo dentre a
população negra. Por exemplo, o Dossiê faz um levantamento do ano de 2009 em
relação à população extremamente pobre, em que 7,4% são mulheres negras e 7%
são homens negros, enquanto 3,1% são mulheres brancas e 2,9% são homens
brancos. Percebe-se que as mulheres negras tem sido a maioria entre os
extremamente pobres, seguidas pelos homens negros, sendo que as mulheres
brancas e os homens brancos são o menor número entre os extremamente pobres.
Já entre os pobres, 13,4% são mulheres negras, 12,9% são homens negros, 5,5% são
mulheres brancas e 5,6% são homens brancos. Entre os vulneráveis, 53% são
mulheres negras, 52,2% são homens negros, 38,9% são mulheres brancas e 38,7%
são homens brancos. Por último, entre a população não pobre, 26,3% são mulheres
negras, 27,9% são homens negros, 52,5% são mulheres brancas e 52,8% são homens
brancos. Enxerga-se que a proporção se inverte ao passo que aumenta a renda dos
negros e brancos, com os primeiros se tornando minoria e os segundos a maioria da
população do Brasil. Os homens brancos estão no topo da hierarquia ao mesmo
tempo em que as mulheres negras estão na base da pirâmide social e econômica,
podendo se falar em feminização e negritude da pobreza.22
Esse exemplo posto, trata-se aqui da violência de gênero que foi denunciada
e perpetrada no interior de grupo social vulnerável em todos os sentidos, não
somente em termos de renda, como também de acesso às condições básicas de
existência, como saúde, educação, moradia e cultura, além da desigualdade de
gênero e racial persistente na nossa cultura que implica em representações e
símbolos da negritude, principalmente feminina, extremamente desvalorizados.
A escolaridade das mulheres vítimas de violência e dos homens agressores
também diz muito sobre a condição de vida e a situação sociocultural dos envolvidos
nas agressões de gênero registradas na DEAM/Vitória. Infelizmente nos boletins não
constam essa informação em relação às mulheres, o que seria igualmente
interessante de analisar, pois conseguiríamos discutir se as que não tem instrução
estão mais vulneráveis à violência de gênero, bem como relacionar com o grau de
22
MARCONDES, Mariana Mazzini. et al. (Org.). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida
das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013.
356 | Gênero, violência e estruturas de poder
escolaridade dos seus algozes, descobrindo qual deles são mais escolarizados. O
gráfico abaixo demonstra a escolaridade apenas dos autores da violência.
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9
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1
3
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1
1
GRÁFICO – ESCOLARIDADE DOS AGRESSORES DENUNCIADOS NOS BOLETINS NA DEAM/VITÓRIA,
DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016
O número de boletins em que não é informado acerca da escolaridade dos
autores é grande, representando 17,14% dos casos. Mas pode-se compreender que
a maioria dos agressores têm o segundo grau completo (34,29%) e o primeiro grau
incompleto (25,71%). Segundo grau incompleto e o terceiro grau incompleto refletem
8,57% e 5,71%, respectivamente. Já com ensino fundamental incompleto, terceiro
grau completo e ensino superior, os agressores são minoria, com 2,86% em cada
caso. Portanto, a violência de gênero é cometida, na maioria das vezes, por homens
que não concluíram o ensino médio. Ou seja, a escolaridade tem implicações, em
especial, no sentido de que os autores possuem um baixo grau de escolaridade.
Outro dado que consta nos boletins é acerca da profissão dos agressores, que
também pode desvendar muito sobre o assunto. O gráfico foi elaborado com base
nas profissões mais comuns entre os agressores nos registros da DEAM/Vitória no
ano de 2016. Na categoria “não informado” também estão inclusos os autores que
não possuem nenhuma atividade remunerada, isto é, que estão desempregados.
Dionatan Miranda de Almeida | 357
25
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15
23
10
5
0
3
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1
1
1
1
1
1
GRÁFICO – PROFISSÃO DOS AGRESSORES DENUNCIADOS NOS BOLETINS NA DEAM/VITÓRIA, DE
JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016
A profissão mais comum entre os autores é operador de caixa, somando
8,57%. Os demais tipos de serviços remunerados, como técnico de manutenção
eletrônica, pedreiro, atendente de lanchonete, técnico de laboratório industrial,
cobrador, empregado doméstico, auxiliar de escritório em geral, administrador e
comerciante varejista representam 2,86% dos agressores. O número de não
informado é grande: 65,71%. Isso porque nessa categoria, como dito, também estão
inclusos os desempregados, o que significa que na maior parte dos casos, o
indivíduo não possui vínculo empregatício.
O aspecto do desemprego merece ser destacado, pois está relacionado
diretamente à questão de o indivíduo do sexo masculino não conseguir continuar a
desempenhar o seu papel de provedor da família, na medida em que a identidade do
homem não tolera esse golpe, pois ele passa a ser visto socialmente como inferior,
incapaz por não se inserir no que seria tido como normal em seu grupo de
convivência.
Uma vez desempregado, o indivíduo do sexo masculino sente-se fracassado, e
exposto ao julgamento da falha pela sociedade, e isso porque o homem deve sempre
buscar ser o melhor, ter mais. A situação de desemprego, por outro lado, impossibilita
que esse quadro ideal da masculinidade contemporânea aconteça, a competitividade
masculina é impossibilitada pelo não exercício de uma atividade remunerada, o
358 | Gênero, violência e estruturas de poder
homem desempregado sente-se um pária diante do seu grupo de convivência, um
estigmatizado, uma parte fundamental de seu papel social é posta em xeque.23
Alex Silva Ferrari24 realizou uma pesquisa utilizando registros do ano de 2002
a 2010, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Vitória/ES,
acerca do desemprego como um agravante da violência contra a mulher, concluindo
que em algum momento essa questão foi parte de um conflito entre a vítima e o
denunciado, seja numa relação familiar durante a juventude, seja nas relações
afetivas, seja nas relações conjugais, sendo que nessa última, se a vítima possui
vínculo empregatício, subverte os tradicionais papéis sociais de gênero. Nesse
quadro, o conflito pessoal do autor de violência chega ao seu nível mais elevado. O
desemprego afeta sua identidade masculina: ele sofre com o estigma de não cumprir
com suas funções sociais, é castrado de sua posição de poder e, por fim, seu maior
medo transforma-se em realidade, que é o de ser “dominado” por sua parceira. Dessa
maneira, a violência contra a mulher pode ser uma das alternativas optadas pelo
homem para lidar com a situação, pois pode recorrer ao uso da força com o intuito
de demonstrar que mesmo destituído de sua posição de poder ele ainda exerce a
dominação sobre a mulher e os filhos, ou pode obrigar que esses informados
contribuam para o encobrimento de seu estigma. Assim, vê-se que a relação entre o
desemprego e a violência doméstica fica ainda mais aparente.
Utilizando uma pesquisa realizada por Ligia Maria Soufen Tumolo e Paulo
Sergio Tumolo, que tem o intuito de entender mais sobre o impacto do desemprego
no indivíduo do sexo masculino, Ferrari 25 escreve que por meio de entrevistas, os
23
FERRARI, Alex Silva; NADER; Maria Beatriz. Conflito de identidade: a relação entre o desemprego
masculino e a violência contra a mulher em Vitória – ES (2002-2010). XXVIII Simpósio Nacional de
História, Santa Catarina, p. 1-16, 2015. Disponível em:
http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439792598_ARQUIVO_AlexeBeatrizANPUH20
15.pdf. Acesso em: 03 jan. 2024.
24
FERRARI, Alex Silva. Patriarcado e violência: desemprego masculino e reviravolta feminina nos
papéis sociais de gênero. Vitória-ES (2002-2010). Orientador: Profª Drª Maria Beatriz Nader. 2016.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal
do Espírito Santo, Espírito Santo, 2016. Disponível em: http://repositorio.ufes.br/handle/10/9252.
Acesso em: 10 jan. 2024.
25
FERRARI, Alex Silva. Patriarcado e violência: desemprego masculino e reviravolta feminina nos
papéis sociais de gênero. Vitória-ES (2002-2010). Orientador: Profª Drª Maria Beatriz Nader. 2016.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal
do Espírito Santo, Espírito Santo, 2016. Disponível em: http://repositorio.ufes.br/handle/10/9252.
Acesso em: 12 jan. 2024.
Dionatan Miranda de Almeida | 359
autores sintetizaram a vivência de indivíduos desempregados, revelando alguns
aspectos que, se associados a um contexto patriarcal contemporâneo, apresentamse bastante nocivos à estabilidade psicológica de homens desempregado, haja vista
que a condição de desemprego intercede na vida do desempregado como um todo,
sendo o setor familiar o primeiro por eles apresentado. Os interrogados declararam
que os cônjuges eram a principal fonte de suporte, no entanto, reiteraram ocorrer o
desgaste da relação por conta do desemprego. Outro ponto que interfere na vida do
desempregado é o distanciamento social que sua condição o impõe. É válido
destacar que os participantes na pesquisa salientam que, devido à perda da atividade
fonte de renda, eles não se sentiam mais como tendo o controle sobre suas vidas. A
autora e o autor apontam que na maior parte dos casos, essa circunstância de
dependência tem uma conotação de submissão, em que os participantes sem
atividade remunerada sentem que deve se sujeitar às regras e decisões daqueles que
os sustentam.
Acerca do estado civil dos agressores, vê-se que na maior parte dos casos
analisados, ele permanece solteiro, mesmo quando possui um relacionamento de
muitos anos com a companheira, que pode ser sua amásia e/ou convivente. Assim,
57,14% dos autores são solteiros. Em seguida, estão os casados, representados por
14,29%, e os divorciados, que são cerca de 11,43%. É digno de ser citado o valor de
indivíduos conviventes: 8,57% dos autores. Os casos que não possuem essa
informação acerca dos autores também são de 8,57%.
360 | Gênero, violência e estruturas de poder
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3
0
Solteiros Casados Divorciados Conviventes Não informado
GRÁFICO – ESTADO CIVIL DOS AGRESSORES COM A VÍTIMA QUE REGISTROU DENÚNCIA NA
DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016
Outro aspecto que merece atenção de ser relatado na pesquisa acerca da
violência de gênero associada ao ciúme é justamente a proporção de agressores que
eram companheiros das mulheres agredidas quando cometeram o ato violento, e dos
que já não eram mais companheiros, em que o vínculo afetivo estava desfeito no
momento da agressão. O gráfico abaixo demonstra a proporção.
12
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7
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5
5
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0
Cônjuge
Ex-cônjuge
Convivente
Ex-namorado
Não informado
GRÁFICO – VÍNCULO DOS AGRESSORES COM A VÍTIMA QUE REGISTROU DENÚNCIA NA
DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016
Dionatan Miranda de Almeida | 361
Conforme visto, em 31,43% das ocorrências, o autor é convivente da vítima, ou
seja, é um indivíduo que não é casado em papel, mas convive (ou é “amigado”) com
a companheira. Em segundo lugar, está o cônjuge da vítima, com 20%. Em terceiro e
quarto lugar, o ex-cônjuge e o ex-namorado, representando 14,29% cada categoria.
Importante destacar que o conjunto ex-cônjuge engloba outros, como ex- noivo. O
percentual dos casos que não possuem a informação sobre o vínculo dos agressores
com a vítima também é de 14,29%.
Nos casos de violência doméstica, sabe-se que a agressão parte de pessoas
próximas à vítima e que por essa razão, há uma dificuldade maior em procurar a
Delegacia da Mulher para registrar uma denúncia, pois há diversos fatores
envolvidos nas relações entre as vítimas e os agressores, tais como as dependências
afetivas e financeiras, o receio de perder a guarda dos filhos, a preocupação com a
opinião de amigos e familiares quanto ao término da relação e a falta de poder e
independência, comum a muitas mulheres. Há também a questão do medo, quando
o agressor faz ameaças a vítima, que se estendem aos seus amigos, familiares ou
colegas de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que alguns aspectos das vítimas e dos autores não tenham sido
fornecidos de ambas partes igualmente, tal acontecimento, conforme observado, não
impediu o cruzamento de dados e apresentação de estatísticas, podendo-se concluir
que a maioria das mulheres vítimas de violência de gênero associada ao ciúme em
Vitória, no ano de 2016, são negras e foram agredidas pelos seus conviventes. A
maior parte dos homens denunciados não possuíam ensino médio completo e o
estado civil deles era solteiro, mesmo quando possuíam um relacionamento de
muitos anos com a companheira, que poderia ser sua convivente. Tais informações
são importantes para ter uma melhor compreensão da violência contra as mulheres
que são registradas na DEAM-Vitória.
362 | Gênero, violência e estruturas de poder
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19. POLÍTICA É LUGAR DE MULHER? UMA ANÁLISE SOBRE A SUBREPRESENTAÇÃO DE VEREADORAS NUM MUNICÍPIO DA BAIXADA FLUMINENSE,
REGIÃO PERIFÉRICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
https://doi.org/10.36592/9786554601566-19
Liandra Lima Carvalho1
Resumo
A realidade acerca da eleição de mulheres na Câmara Municipal de Duque de Caxias,
através da análise das vereadoras eleitas nas quatro última legislatura é apresentada
neste ensaio. O mesmo inicia-se com uma discussão acerca dos desafios
enfrentados pelas mulheres na política em âmbito nacional, posteriormente; é
apresentada de forma breve alguns aspectos da história política da Baixada
Fluminense, território onde o município de Duque de Caxias, encontra-se localizado;
e por fim, apresenta-se a análise acerca da presença de vereadores eleitos e
vereadoras eleitas, em cada uma das legislaturas, aliada a um estudo comparativo
acerca do número de eleitoras e eleitores do municípios, em cada uma daqueles
período históricos. Fica evidente através dos dados apresentados, o quanto a
política no referido município é misógina e machista, e esta corroborada, inclusive,
pelas eleitas.
1. Introdução
O presente artigo encontra-se organizado em três partes, a primeira, onde
abordaremos o cenário da participação da mulher na política brasileira e suas
complexidades; o segundo, onde apresentaremos características históricas e
políticas e da Baixada Fluminense, território onde está localizado o município de
Duque de Caxias, nosso campo de pesquisa; e a terceira onde apresentaremos a
realidade sobre a presença das mulheres como vereadoras do legislativo de Duque
de Caxias / RJ e ao mesmo tempo faremos uma comparação com o número de
eleitoras, no mesmo período histórico.
1
Pós Doutoranda em Educação, Cultura e Comunicação pela Faculdade de Educação da Baixada
Fluminense / UERJ.
366 | Gênero, violência e estruturas de poder
2. A hostilidade do ambiente da política brasileira para mulheres, ainda hoje
Ainda hoje falar de mulheres na política brasileira é falar da ausência, melhor
dizendo é a falar de sub-representação, já que embora sejamos 51,1% da população
brasileira, dentre os cinco Presidentes da República, eleitos após a Ditadura Militar,
somente uma era mulher, Dilma Rousseff, a única Presidenta em toda a história
política do Brasil.
Com base na eleição de 2022, a presença feminina é de 17,74% na Câmara de
Deputados, de 18,52% no Senado; e de 20% na Assembleia Legislativa do Estado do
Rio de Janeiro.
Embora o voto feminino seja permitido desde 1932, tais dados deixam
explícito o quanto quase 100 anos de depois, as mulheres ainda são
subrepresentadas2.
As chances das mulheres serem eleitas tornam-se menores porque
historicamente elas não fizeram parte do cenário político brasileiro, a elas foi
destinado durante muito tempo, somente o espaço privado. Dessa forma, ainda
causa estranheza a candidatura de mulheres a cargos do alto escalão. Sendo raras
as candidaturas de mulheres a cargos políticos, mas raras, ainda, são as eleições
dessas mulheres. É como se não fizesse parte do hábito da população brasileira, a
eleição de mulheres, mesmo sendo significativo o número de eleitoras. A política é
um dos universos onde fica evidente, ainda hoje, a dominação masculina.
Algumas iniciativas se deram ao longo do tempo visando diminuir essa subrepresentação, a primeira delas foi a Lei 9.100/1995, que tratou em seu artigo 11, da
obrigatoriedade de 20% dos candidatos aos cargos municipais, de cada partido
político, pertencerem ao do sexo feminino, tal legislação também é chamada de Lei
das Cotas, constitui-se uma das conquistas do movimento feminista brasileiro.
Sendo que verificou-se que a mesma apresentava lacunas, já que
se o partido não preenchesse todas as suas vagas, a política de cotas não teria então
nenhuma eficácia, primeiro porque a legislação criada não instituiu nenhuma sanção e
2
Sacchet, T. et al. Dinheiro e sexo na política brasileira: financiamento de campanha e desempenho
eleitoral em cargos legislativos. In: Alves, J. E. D. Mulheres nas Eleições de 2010, 2012.
Liandra Lima Carvalho | 367
também porque os partidos passaram a utilizar do argumento de que as vagas foram sim
“reservadas” para as mulheres, mas que seriam as próprias mulheres as responsáveis
pelo não preenchimento de tais vagas por não se candidataram.3
Visando uma ratificação da legislatura anterior, bem como um ampliação da
política de cotas para mulheres, foi promulgada a Lei n° 9.504/97, que pontou que
cada partido político poderia registrar candidatos para a Câmara dos Deputados,
Câmara Legislativa, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, desde que
apresentasse uma lista de candidatos composta por no mínimo 30% e no máximo
70% para cada sexo (Brasil, 2010).
Em 2009, mais uma iniciativa em prol do aumento do número de mulheres na
política se deu, a promulgação da Lei n° 12.034/1999, na qual foi estabelecido que
os partidos políticos são obrigados a destinar 5% do Fundo Partidário à criação e à
manutenção de programas de promoção e difusão da participação política de
mulheres. Uma novidade trazida por essa lei é a sanção aos partidos políticos que
não cumprirem tal determinação, com a multa de aumento de 2,5% do Fundo
Partidário, no valor de 5%. Tal legislação também estabelece que 10% do tempo de
propaganda deve ser usado para promover e difundir a participação política
feminina4.
O principal objetivo do sistema de cotas, voltado para as mulheres na política,
como uma ação afirmativa é “... criar condições para o estabelecimento de um maior
equilíbrio entre homens e mulheres no plano da representatividade política”5.
Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tais legislações fizeram com
houvesse um aumento de candidatas e também de eleitas em 2022, em comparação
aos anos anteriores. Sendo que o órgão pontuou o papel dos partidos políticos, para
o êxito de tal iniciativa, com o “o apoio necessário, legal e judicial às candidaturas
das mulheres para que se possa ter um equilíbrio maior na participação de gênero
em todos os segmentos da política nacional”6.
3
Brasil. Mais Mulheres no Poder – Contribuição à Formação Política das Mulheres, 2010, p. 23.
Brasil. Mais Mulheres no Poder – Contribuição à Formação Política das Mulheres, 2010.
5
Grossi, Miriam P. et al. Transformando a diferença: as mulheres na política, 2001, p. 169. Araújo,
Clara. As Cotas por Sexo para a Competição Legislativa: O Caso Brasileiro em Comparação com
Experiências Internacionais, 2001, p. 258
6 TSE. Mulheres e política: decisões do TSE combatem fraude à cota de gênero, 2023.
4
368 | Gênero, violência e estruturas de poder
Antes mesmo da eleição de 2022, o Congresso Nacional promulgou a Emenda
Constitucional 117, a qual obrigou dos partidos políticos a destinar 30% dos recursos
públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, mais conhecido como
Fundo Eleitoral, como também o Fundo Partidário para campanha eleitoral de
candidatas, distribuindo os mesmos de forma proporcional considerando o número
de candidatas. Tal reserva também se aplicou ao mínimo de 30% do tempo de
propaganda gratuita no rádio e na televisão às mulheres7.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já havia decidido desde 2018 sobre a
questão da distribuição do financiamento para campanhas de mulheres,
considerando a proporcionalidade apontada nas legislações anteriores de 30% das
candidaturas serem de mulheres. Sendo que o mesmo órgão havia anistiado os
partidos que não havia cumprido tal determinação8.
Segundo ainda o TSE, nas eleições ocorridas em 2022, 40% dos partidos
políticos não cumpriram a determinação do tocante à divisão de recursos e de tempo
de propaganda gratuita no rádio e na televisão às mulheres e pela primeira vez os
mesmos foram punidos9 (Brígido, 2023).
Com base no exposto fica evidente a complexidade que ronda a presença da
mulher na política brasileira, fenômeno que autoras, recentemente nomearam de
Violência política de gênero,
fato que acomete mulheres de todas as posições no espectro político ideológico. (...)
Tem a ver com toda e qualquer ação para cercear ou impedir mulheres de se
manifestarem e fazerem valer os seus direitos nos espaços de poder", conforme explica
a cientista política Mônica Sodré10.
A violência política de gênero não é algo novo, embora seu nome seja novo, na
verdade desde que as mulheres, passaram a não se contentar com os bastidores da
7 Câmara dos Deputados. Congresso promulga cota de 30% do Fundo Eleitoral para candidaturas
femininas, 2022.
8
Câmara dos Deputados. Congresso promulga cota de 30% do Fundo Eleitoral para candidaturas
femininas, 2022.
9
BRIGIDO, Carolina. 40% dos partidos descumpriram cota de recursos para candidaturas femininas,
2023.
10
G1. Mulheres na política: os obstáculos e as violências que dificultam a representatividade feminina
- e prejudicam a democracia, 2023.
Liandra Lima Carvalho | 369
política, sim, porque as mulheres participam da política, neste país, desde o BrasilColônia, organizando e construindo estratégias para o sucesso político de seus
maridos, filhos, afilhados 11 .
Ela pode ser definida como “a agressão física,
psicológica, econômica, simbólica ou sexual contra a mulher, com a finalidade de
impedir ou restringir o acesso e exercício de funções públicas e/ou induzi-la a tomar
decisões contrárias à sua vontade” 12 . Tal tipo de violência tem como base o
machismo e patriarcalismo, tão ainda presentes em nossa sociedade, Araújo, elenca
casos recentes de violência política de gênero, a qual pode de demonstrar de
diferentes formas: “o tratamento misógino dado, com o apoio da imprensa, à única
mulher a presidir o Brasil, impedida de cumprir até o fim o seu segundo mandato,
Dilma Rousseff” 13 ; os ataques com incitação ao crime de estupro, realizado pelo
deputado federal, na época, Jair Bolsonaro à deputada federal Maria do Rosário
(PT/RS), ao dizer em diferentes ocasiões, em 2003 e 2014 “que não a estupraria
porque “ela não merecia” e porque “era muito feia””14; “a importunação sexual sofrida
pela deputada Isa Penna (PSOL/SP), que teve seus seios tocados por um colega
deputado em meio a uma sessão legislativa na ALESP, em 2020”15 e o mais grave de
todos, o “o feminicídio político da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ) em pleno
centro do Rio de Janeiro, em 2018”16, o qual ainda hoje, mesmo tendo se decorrido 5
anos, criminalmente não foi elucidado.
A violência política de gênero se mostra presente antes mesmo das mulheres
formalizarem suas candidaturas, através da
resistência dos partidos em aceitarem mulheres como candidatas -, assim como durante
a campanha – com a falta de recursos, além de perseguições e ameaças -, e com ainda
11
Rocha-Coutinho, M. L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares,
1994.
12
Simeira, Carolina et al. O que é violência política de gênero?, 2023.
13
Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina,
Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 592.
14
Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina,
Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 592.
15
Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina,
Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591.
16
Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina,
Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591.
370 | Gênero, violência e estruturas de poder
maior gravidade sobre as poucas mulheres que sucedem em se eleger, mesmo com
tantos obstáculos e violências a elas impostos no decorrer de toda a corrida eleitoral. 17
Pesquisa realizada pelo Instituto Marielle Franco sobre a Violência Política
contra As Mulheres Negras nas Eleições de 2020, com 142 entrevistadas, verificou
que
78% declararam ter sofrido violência virtual durante a campanha, 62% declararam ter
sofrido violência moral e psicológica, 55% sofreram violência institucional, 44% foram
vítimas de violência racial, 42% sofreram violência física, alarmantes 32% das candidatas
negras entrevistadas sofreram violência sexual durante a campanha e 28% declararam
terem sido vítimas de violência de gênero e/ou LGBTQIA+. 18
Inclusive me questiono quantas outras mulheres candidatas já sofreram
violência política de gênero, sem se darem conta, ou seja, naturalizando-a. Como
pesquisadora da política em Duque de Caxias, objeto de minha tese de doutorado
(Carvalho, 2015), com base na fala das minhas entrevistadas, afirmo, todas foram
vítimas de violência política de gênero, mais de uma vez, em diferentes ocasiões.
Dentre outros exemplos da violência política de gênero, vivenciada pelas mulheres
eleitas pode-se elencar: serem
constantemente interrompidas em suas falas, impedidas de participar de comissões
parlamentares importantes, agredidas no exercício de suas funções (verbalmente,
sexualmente e fisicamente), julgadas por estigmas de gênero, inclusive pelos próprios
colegas agentes políticos, entre outras formas de violência. 19
Visando o combate à violência política contra a mulher em 2021, foi
promulgada a Lei 14.192, que “dispõem sobre a prevenção, repressão e combate à
violência política contra a mulher, nos espaços e atividades relacionados ao exercício
17
Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina,
Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591.
18
Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina,
Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591.
19
Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina,
Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591.
Liandra Lima Carvalho | 371
de seus direitos políticos e de suas funções públicas”20. Tal legislação também a
define: “Considera-se violência política contra a mulher toda ação, conduta ou
omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos
da mulher”21. E traz como penalidade de 1 a 4 anos de prisão e multa.
Embora considere um avanço a criação da referida legislação, me questiono o
quanto ela vem sendo divulgada nos espaços políticos, e consequentemente quais
as penalizações que vem produzindo. Também reflito acerca das duas faces da
mesma moeda, uma dela é todo o avanço dos movimentos feministas que desde a
década de 1990, vem avançando na busca da participação política das mesmas,
através de uma série de iniciativas, dentre elas diferentes legislações e de outro, o
quanto foi necessário todo esse posicionamento do referido movimento social frente
ao machismo e ao patriarcalismo tão presentes em nossa sociedade. Vivemos, hoje,
uma realidade, em que é feio, desagradável e antiquado ter falas e posicionamentos
machistas em público; mas na qual um mulher a qualquer momento pode ser vítima
de violência, somente pelo fato de ser mulher; ou seja, uma realidade bem paradoxal.
Ressalto que embora reconheçamos a incidência da violência política de
gênero, almejamos destacar o movimento de enfrentamento o qual as mulheres
brasileira vem fazendo ao longo da história, especialmente junto à política, ou seja,
“estratégias utilizadas pelas mulheres para resistir a esta autoridade e ao poder
socialmente legitimados do homem na família e na sociedade”22. Tal movimento que
move as pesquisas realizadas pela autora ao longo de sua trajetória acadêmica23.
3. Características históricas, políticas e econômicas da Baixada Fluminense
A região da Baixada Fluminense habitualmente é destacada por seus índices
de criminalidade, inclusive ligados à política. Mas, considero importante apontar,
20
BRASIL. Lei nº 14.192, de 04 de agosto de 2021.
Brasil. Lei nº 14.192, de 04 de agosto de 2021. Artigo 3º.
22
Rocha-Coutinho, M. L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares,
1994, p. 20.
23
Carvalho, L. L. A influência do “Lobby do Batom” na construção da Constituição Federativa de 1988,
2017, p. 136-150, Duque de Caxias, 2017. Carvalho, L. L. Trajetórias de mulheres na política da
baixada fluminense: relações entre o público e o privado e o processo de empoderamento. Município
de Duque de Caxias, RJ: a partir de 1980, 2015.
21
372 | Gênero, violência e estruturas de poder
também que, geograficamente, essa região é constituída, por uma “área de planícies
baixas e constantemente alagadas entre o litoral e a Serra do Mar, atualmente
estendendo-se por aproximadamente 80 km a partir da cidade do Rio de Janeiro”24.
Essa região começou a ser ocupada de forma lenta, a partir do século XVI,
como fornecedora de cana de açúcar, café e carne à capital. Para facilitar o
transporte de tais gêneros alimentícios, no século XIX, inicia-se a construção da
Estrada de Ferro D. Pedro II. A chegada de trens à Baixada Fluminense possibilitou
sua crescente ocupação e conectou, entre si, suas muitas partes25.
Na década de 1930, esta vivenciou um significativo aumento populacional
com a chegada de imigrantes, especialmente do Nordeste. Eles vinham trabalhar na
capital do
país, então, a cidade do Rio de Janeiro, mas também trazendo o sonho de um
“pedaço de terra”, realizado, muitas vezes, na oferta feita por vários loteamentos
espalhados pela região. Assim, a Baixada Fluminense cresceria quanto ao número
de moradores, perdendo, pouco a pouco, as características rurais26.
Seus primeiros municípios foram criados na década de 1950: Nova Iguaçu e
Duque de Caxias. A oferta de recursos como saúde, educação, saneamento e
segurança pública não cresceu na mesma proporção do número de habitantes, hoje
representando 25% do Estado do Rio de Janeiro. Um número crescente de moradores
da região estarão sempre conectados a uma vasta região onde se inscreve uma das
maiores cidades do país: o Rio de Janeiro27.
A historiografia sobre a região indica ainda que, desde o final do século XIX, a
Baixada Fluminense, apresenta, como sua marca, a violência, inicialmente difundida
por “grupos de justiceiros”. Na década de 1940, serão chamados de “matadores”,
grupos teriam por objetivo promover o desaparecimento de ladrões e desordeiros,
24
Geiger et al., 1956 apud Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada
Fluminense, 2006.
25
Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense, 2006. Simões,
M. R. A Cidade Estilhaçada: Reestruturação Econômica e Emancipações Municipais na Baixada
Fluminense, 2006.
26
Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense, 2006. Simões,
M. R. A Cidade Estilhaçada: Reestruturação Econômica e Emancipações Municipais na Baixada
Fluminense, 2006.
27
Simões, M. R. A Cidade Estilhaçada: Reestruturação Econômica e Emancipações Municipais na
Baixada Fluminense, 2006.
Liandra Lima Carvalho | 373
expondo, assim, a aplicação de uma “ordem local” (Almeida, 1998; Alves, 2003; Baía,
2006; Barreto, 2006; Paulo, 2006). Essa iniciativa ocorria sob o incentivo de
comerciantes locais e políticos, lembrando, entre estes, Tenório Cavalcanti, mais
conhecido como “o homem da capa preta‟. Sua atuação como vereador, deputado
estadual por três mandatos consecutivos e deputado federal, também por três
mandatos consecutivos, vai implementar o que Beloch 28 chama de coronelismo
urbano:
A trajetória de Tenório e a construção de sua persona pública nos permite pensar na
possibilidade de utilização da violência e da coerção como expedientes políticos
legítimos. Nesse sentido, o homem do “corpo fechado”, o “corajoso que tinha a gratidão
“do povo” de Caxias, encerrava um paradoxo ético, como ressaltou Beloch (1986) era
aquele que “mata mas faz” ou ainda “faz porque mata (aos maus). 29
Nas décadas de 1960 e 1970, desenvolveu-se na Baixada Fluminense, uma
estratégia de controle e subordinação da população através do “Esquadrão da Morte”
[...] cujas execuções eram operacionalizadas a partir do aparato policial, do
financiamento dos grupos dominantes locais, sobretudo, de comerciantes e do respaldo
encontrado nos setores públicos, que utilizavam desse serviço como uma forma de
demarcar seus territórios e resolver seus problemas políticos.30
Tal período seria avaliado, porém, por muitos, como extremamente profícuo
para a Baixada Fluminense em outros aspectos. Na década de 1970, o município de
Duque de Caxias é considerado pelo governo militar como Área de Segurança
Nacional: interventores indicados pelos militares substituem os prefeitos eleitos pelo
voto direto31.
A região atingiria visibilidade internacional quando um estudo realizado pela
UNESCO, em 95 países, entre eles, o Brasil, entre 1971 e 1976, vai indicar a Baixada
28
1986 apud Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense,
2006.
29
Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense, 2006, p. 33.
30
Alves, 1998 apud Alves, J. C. S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada
Fluminense, 2003.
31
Cantalejo, M. H. de S. O município de Duque de Caxias e a Ditadura Militar: 1964 – 1985, 2008.
374 | Gênero, violência e estruturas de poder
Fluminense como o lugar mais violento do mundo. Tratava-se mais especificamente
do então distrito de Belford Roxo32.
Já no final da década de 1970, assiste-se a uma significativa mobilização por
parte dos moradores da Baixada Fluminense, especialmente, das localidades mais
pobres, que passam a reivindicar uma maior atuação do poder público no
fornecimento de luz elétrica, de água e esgoto canalizados, de equipamentos de
saúde, de construção de passarelas em vias urbanas etc. Tal mobilização popular
tem grande incentivo da Igreja Católica. As iniciativas populares formalizam-se
através das associações de moradores, que, posteriormente, se aglutinam no
Movimento de Amigos do Bairro (MAB)33.
O processo de redemocratização, vivenciado, nacionalmente, na década de
1980, trouxe mudanças à realidade sociopolítica dessa região. A atuação do MAB,
em conjunto com a Igreja Católica, foi tão eficaz que resulta na criação do Partido
dos Trabalhadores, no município de Nova Iguaçu, no início da década de 1980 34. Os
“Esquadrões da Morte” que, décadas antes, eram compostos somente por policiais,
têm sua estrutura modificada. Passaram a ser chamados de “Grupos de Extermínio”,
compostos também por não-policiais. Cada bairro passou a ter o seu Grupo de
Extermínio, cuja função era a “limpeza social”35. A atuação de tais organizações foi
tão significativa que, no final dessa década, assiste-se ao surgimento de
candidaturas às eleições de alguns de seus membros para Câmaras de Vereadores36.
Ex-integrantes de Grupos de Extermínio, inclusive membros de suas famílias,
desenvolvem carreiras políticas. Dessa forma, na década de 1990, alguns deles
chegariam às prefeituras locais.
É interessante perceber que, embora a Baixada Fluminense, historicamente,
tenha contado com “políticos estrangeiros”, ou seja, de fora da região, no período que
antecedia às eleições: eles criavam iniciativas de atendimento à população,
32
Souza, P. de. A maior violência do mundo: Baixada Fluminense, 1980.
Pinheiro Júnior, J. da M. A formação do PT na Baixada Fluminense: Um estudo sobre Nova Iguaçu
e Duque de Caxias, 2007.
34
Pinheiro Júnior, J. da M. A formação do PT na Baixada Fluminense: Um estudo sobre Nova Iguaçu
e Duque de Caxias, 2007.
35
Almeida, M. F. de. Extermínio seletivo e limpeza social em Duque de Caxias: a sociedade brasileira
e os indesejáveis, 1998.
36
Alves, J. C. S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense, 2003.
33
Liandra Lima Carvalho | 375
chamadas muitas vezes de “serviços sociais” 37 .
Ao mesmo tempo, tornavam
perceptível, nesse momento histórico, sua emergência política como líderes
comunitários da localidade, vistos como “[...] pessoas necessariamente integradas à
comunidade em que vivem”. Para que se possa compreender as estratégias criadas
pela população da Baixada Fluminense para solução de seus desafios diários, há
quem considere “necessário perceber que os habitantes de tal localidade possuem
vidas marcadas” pela ausência “de qualquer presença do Estado”38.
Assim, entre os problemas práticos a serem resolvidos, também estava a
segurança da população. Considerando a ausência do Estado no tocante às políticas
públicas nesses lugares, cabia a líderes comunitários a busca de soluções que,
muitas vezes, era o assassinato de bandidos e de quaisquer pessoas que pudessem
oferecer riscos para a população. A partir do final da década de 1980 e início da
década de 1990, passa a eleger possíveis integrantes de grupos de extermínio como
vereadores e prefeitos.
Nos últimos 30 anos, a Baixada Fluminense cresceu, especialmente,
economicamente, passando a ter mega galpões, que funcionam como depósitos de
grandes empresas multinacionais, possui shoppings, condomínios residenciais e
empresariais, apart-hotéis, mas, esta ainda se manteve presente na lista dos mais
baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, bem como dentre os
locais com maiores índices de criminalidade e violência.
4. A misoginia da política de Duque de Caxias
O município de Duque de Caxias foi emancipado em 1951 e ao longo desse
tempo teve 33 prefeitos, todos do sexo masculino e somente uma única, viceprefeita, Estela Alves de Vasconcelos, uma das entrevistadas para a pesquisa de
minha tese de doutorado39.
37
Monteiro, L. A. Retratos em movimento: Vida política, dinamismo popular e cidadania na Baixada
Fluminense, 2007.
38
Monteiro, L. A. Retratos em movimento: Vida política, dinamismo popular e cidadania na Baixada
Fluminense, 2007.
39
Carvalho, L. L. A influência do “Lobby do Batom” na construção da Constituição Federativa de 1988,
2017. Carvalho, L. L. Trajetórias de mulheres na política da baixada fluminense: relações entre o
376 | Gênero, violência e estruturas de poder
A Câmara de Vereadores do município, embora tenha a sua 1ª legislatura
iniciada em 1947, mas somente em 1989, elegeu a primeira vereadora, na 11ª
legislatura, que se iniciou 1989 e se findou em 1992. Dalva Lazaroni de Moraes,
somente 41 anos após a criação e funcionamento deste órgão político democrático,
se tornou a primeira vereadora do município.
Optamos por analisar a presença das vereadoras na Câmara Municipal de
Duque de Caxias, nas últimas 5 legislaturas, ou seja, nos últimos 20 anos, inclusive
porque ao longo desse período histórico, tivemos a implementação de algumas
legislações voltadas para o aumento do número de mulheres na política. Dessa
forma, poderemos observar se essas legislações causaram impactos na quantidade
de vereadores nesse espaço legislativo.
Tabela 1 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 15ª
Legislatura (2005 - 2008)
Número de
Número de
Número de
Número de
Vereadores
Vereadoras
Eleitores
Eleitoras
19
02
252.158
275.050
Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara
Municipal de Duque de Caxias e pelo TSE.
Na primeira legislatura examinada que foi a 15a que se iniciou em 2005 e se
findou em 2008, foram eleitos 21 vereadores, sendo 19 do sexo masculino e 02 do
sexo feminino. As vereadoras eleitas foram Margarete Correia de Souza, mais
conhecida como Gaete; e Maria Landerleide de Assis Duarte, mais conhecida como
Leide, amiga de Caxias. Enquanto somente 10,53% dos representantes da referida
casa legislativa eram do sexo feminino, ao comparar com o número de eleitores do
município, percebemos que mais da metade dos mesmos, 52,32% eram dos sexo
feminino, contra 47,68% do sexo masculino.
público e o privado e o processo de empoderamento. Município de Duque de Caxias, RJ: a partir de
1980, 2015.
Liandra Lima Carvalho | 377
Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias.
Fonte: TSE.
378 | Gênero, violência e estruturas de poder
Tabela 2 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 16ª Legislatura
(2009 - 2012)
Número de
Número de
Vereadores
Vereadoras
19
04
Número de Eleitores
Número de
Eleitoras
252.643
278.220
Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara Municipal
de Duque de Caxias e pelo TSE.
Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias.
Fonte: TSE.
Liandra Lima Carvalho | 379
Na segunda legislatura examinada, a 16a que se iniciou em 2009 e se findou
em 2012, houve um aumento do número total de vereadores na Câmara de Duque de
Caxias, passando de 21 para 23, sendo que novamente 19 do sexo masculino e o
número de mulheres eleitas, duplicou em comparação com a legislatura anterior,
sendo 4 vereadoras. As vereadoras eleitas foram Juliana Fant Alves, mais conhecida
como Juliana do Táxi; Maria de Fátima Pereira de Oliveira, mais conhecida como
Fatinha; Margarete Correia de Souza, mais conhecida como Gaete; e Maria
Landerleide de Assis Duarte, mais conhecida como Leide, amiga de Caxias. Embora
o número de vereadoras pela duplicado, o número total de vereadores aumentou e
mesmo assim estão mantém somente 21,05% dos assentos desse espaço de poder
com a presença feminina. E mais uma vez o número de eleitoras do município,
ultrapassa o de eleitores, sendo essas, 52,46%.
Tabela 3 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 17ª Legislatura
(2013 - 2016)
Número de
Número de
Vereadores
Vereadoras
25
04
Número de Eleitores
Número de
Eleitoras
282.951
322.856
Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara Municipal
de Duque de Caxias e pelo TSE.
Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias.
380 | Gênero, violência e estruturas de poder
Fonte: TSE.
Na terceira legislatura examinada, a 17a, que se deu de 2013 a 2016,
observamos que houve o aumento do número total de vereadores da Câmara
Municipal de Duque de Caxias, estes eram 23 na legislatura anterior, e nesta são 29,
mas o número de vereadoras não aumentou, percebe-se de forma evidente que mais
vereadores foram eleitos em detrimento de vereadoras. As quatro vereadoras eleitas
foram Juliana Fant Alves, mais conhecida como Juliana do Táxi; Maria de Fátima
Pereira de Oliveira, mais conhecida como Fatinha; Margarete Correia de Souza, mais
conhecida como Gaete; e Maria Landerleide de Assis Duarte, mais conhecida como
Leide, amiga de Caxias, na verdade, as quatro foram reeleitas. Comparada com a
eleição anterior tivemos uma diminuição do percentual de vereadoras de 21,05% para
16%. Contraditoriamente temos no ano da eleição, um aumento do número de
eleitoras para 53,29% em comparação com o número de eleitores que passou a
responder por 46,71%.
Tabela 4 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 18ª Legislatura
(2017-2020)
Número de
Número de
Vereadores
Vereadoras
25
04
Número de Eleitores
Número de
Eleitoras
291.956
335.142
Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara
Municipal de Duque de Caxias e pelo TSE.
Liandra Lima Carvalho | 381
Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias.
Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias.
Já a quarta legislatura examinada, a 18a, que se iniciou em 2017 e se findou
em 2020, também manteve o mesmo número de vereadoras, não houve qualquer
aumento, dessa forma, as vereadoras continuaram representando 16% dos assentos.
Já o número de eleitoras como nas legislaturas anteriores manteve-se acima da
metade, inclusive tendo um leve aumento para 53,35%. As vereadoras eleitas foram:
Deisimar Quaresma Ribeiro, mais conhecida como Deisi do Seu Dino; Delza Oliveira
Sant’Anna de Oliveira, mais conhecida como Delza de Oliveira; Juliana Fant Alves,
mais conhecida como Juliana do Táxi; e Maria Landerleide de Assis Duarte, mais
conhecida como Leide, amiga de Caxias.
382 | Gênero, violência e estruturas de poder
Tabela 4 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 19ª Legislatura
(2021-2024)
Número de
Número de
Vereadores
Vereadoras
25
04
Número de Eleitores
Número de Eleitoras
292.277
337.491
Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara
Municipal de Duque de Caxias e pelo TSE.
Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias.
Fonte: TSE.
Liandra Lima Carvalho | 383
Tal como nas legislaturas 16a, 17a e 18a, o número de vereadoras se manteve
o mesmo, dessa forma, essas representam 16% dos assentos desse espaço
democrático; sendo elas: Deisimar Quaresma Ribeiro, mais conhecida como Deisi do
Seu Dino; Delza Oliveira Sant’Anna de Oliveira, mais conhecida como Delza de
Oliveira; Fernanda Izabel da Costa, mais conhecida como Fernanda Costa; e Maria
Landerleide de Assis Duarte, mais conhecida como Leide, amiga de Caxias.
E também, mais uma vez, tivemos um aumento do número de eleitoras, estas
representavam nos ano da eleição, 53,51% do eleitorado do município.
Os dados por nós levantados e apresentados apontam: 1) Que o hoje um
aumento do número de vereadoras da 15a para a 16a legislatura, mas que há 14 anos
não há qualquer aumento do número de vereadoras de Duque de Caxias,
diferentemente do número de eleitoras que eram 52,16% na 16a legislatura e na 19a
legislatura eram 53,51%, reconheço o quanto o aumento do número de eleitoras é
pequeno, mas é abissal a comparação do número de eleitoras e o número de eleitas;
2) Interessante salientar que temos uma renovação no quadro das vereadoras ao
longo do período examinado, mas, como apontado anteriormente não temos um
aumento no número das mesmas; 3) Mesmo a legislação apontando que as listas
dos candidatos, organizadas pelos partidos políticos, devem ter a presença mínima
de 30% de mulheres, não houve aumento do número de vereadoras eleitas; ou seja,
houve uma aumento do número de candidaturas mas não um aumento do número
de vencedoras.
Questionamentos surgem ao examinar tais dados: Por que um município com
um número alto de eleitoras possui um número tão baixo de vereadoras? Ressalto
que tal problemática não se restringe ao município de Duque de Caxias, mas ao
Brasil, num todo. O machismo estrutural é tão profundo que possibilita que mulheres
não escolham, de forma democrática, outras mulheres para serem suas
representantes. Até que ponto as eleitoras, também acreditam que política não é um
lugar para mulheres, mesmo estas, também sendo mulheres?
Embora esse não seja esse o foco do presente artigo, considero importante
sinalizara que das sete vereadoras as quais foram eleitas ao longo das cinco
legislaturas analisadas, três tiveram suas trajetórias políticas apoiadas por figuras
384 | Gênero, violência e estruturas de poder
masculinas, como pais, maridos e sogros, conhecidas no município, dentro da
política e fora dela. Dessa forma, percebe-se que
grande parte das mulheres que alcançam cargos de poder possuem um
capital político delegado por uma autoridade masculina: o pai, o marido, o
avô. Ou seja, é através das relações familiares que essas mulheres chegam
à política. Alguns são os motivos que fazem com que a plataforma política
dessas
mulheres
seja
a
família,
lembrando
que,
historicamente,
administração do espaço doméstico coube, sobretudo, às mulheres. Nesses
usos e costumes, Rocha-Coutinho aponta: “[...] sua posição na sociedade
levou as mulheres a fazer uso de estratégias mais sutis, indiretas,
manipulativas para influenciar e gerir a vida daqueles que estão a sua volta,
no domínio que sempre foi o seu, o da família”. (1994, p. 142) (Carvalho,
2015, p. 34)
Até quando as mulheres permanecerão nesse lugar de subalternidade na
política brasileira? Será que as legislações que foram criadas ao longo dos últimos
30 anos, visando um aumento do número de mulheres nos cargos da democracia
brasileira estão sendo capazes de vencer o machismo, ainda tão presente em nossa
sociedade? Enfim, muitos são os questionamentos.
Considerações Finais
Reconheço a complexidade da temática e que não temos como abordá-la de
forma mais complexa neste ensaio.
Através da exposição proposta pode ser
percebido, as dificuldades do município de Duque de Caxias, localizado na Baixada
Fluminense, no tocante a eleição de mulheres para o cargo de vereadora, tais
dificuldade também se refletem nos cargos de prefeita e vice-prefeita.
Observamos que ainda há um número escasso de produções acadêmicas
sobre mulheres na política brasileira, especialmente produções que analisem a
realidade local, como buscamos fazer neste ensaio.
Almejamos que as novas
gerações de eleitoras não reproduzam esse padrão patriarcal do voto, expresso pelos
Liandra Lima Carvalho | 385
resultados das eleições apresentados, bem como que esse estudo contribua para
tais discussões e estimulem novas produções sobre o tema.
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386 | Gênero, violência e estruturas de poder
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(Lei dos Partidos Políticos), e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das
Eleições), para dispor sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo
inverídico no período de campanha eleitoral, para criminalizar a violência política
contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais
proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais. Disponível
em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14192.htm>.
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20. O DISTANCIAMENTO SOCIAL COMO OBSTÁCULO NA REVELAÇÃO DA
VIOLÊNCIA DE GÊNERO ENTRE JOVENS DURANTE A PANDEMIA DE COVID19
https://doi.org/10.36592/9786554601566-20
Suélen Pinheiro Freire Acosta1
Resumo
O presente artigo discute a violência de gênero entre jovens durante a pandemia de
Covid-19, com foco no caso de uma jovem que viveu um relacionamento abusivo. O
artigo utiliza as categorias de gênero e juventude como eixos de análise, e destaca
como o distanciamento social imposto pela pandemia dificultou a identificação e a
denúncia da violência por parte das vítimas, que ficaram isoladas de suas redes de
apoio formal e informal. Também reflete sobre os impactos da pandemia na vida das
juventudes, especialmente as do gênero feminino, que enfrentaram sentimentos de
ansiedade, medo, insegurança e isolamento, além de terem que se adaptar às
atividades remotas de estudo e trabalho. O artigo se baseia em dados de pesquisas
sobre a vitimização de mulheres na pandemia e sobre as condições de vida das
juventudes, além de uma entrevista qualitativa do tipo compreensiva, onde a jovem
relatou suas experiências de violência e resistência.
Introdução
A violência contra as mulheres, nas diferentes formas em que se apresenta, foi
um dos problemas sociais que se intensificaram no contexto de Pandemia da Covid
19. A necessidade de medidas como distanciamento social para prevenção ao
contágio agravou o problema, seja por colocar abusador e vítima em convívio diário
e no mesmo espaço, seja pelos obstáculos ao acesso à rede formal de apoio ou ao
contato com a rede informal, formada por familiares e/ou amigas (os). Ainda que a
adesão às medidas como o distanciamento social não tenha sido possível ou mesmo
interessante para partes população, trouxe como consequência o sentimento de
isolamento, especialmente para jovens do gênero feminino.
A insegurança quanto a continuidade do emprego, dos estudos, das condições
de vida, foi também marcante desse período. Na vida dos e das jovens, os impactos
da pandemia também foram (e ainda estão sendo, em alguma medida) sentidos,
1
Doutoranda no PPGS (UFRGS). Licenciada e mestra em Ciências Sociais (Unisinos). Professora de
Sociologia no Ensino Médio. Contato: suelenpfacosta@gmail.com
390 | Gênero, violência e estruturas de poder
vivenciados de formas diversas e desiguais. A adaptação as atividades remotas, nos
estudos e trabalho, o distanciamento com relação as amizades e aos
relacionamentos amorosos, mudaram significativamente seus sonhos e planos de
futuro (Conjuve, 20202, 20213). Os sentimentos de isolamento, nervosismo e medo,
especialmente para jovens do gênero feminino, também foram significativos,
intensificados pela pandemia (Fiocruz, 20204). A carga de trabalho do cuidado para
meninas e mulheres aumentou, prejudicando a adaptação de suas rotinas pessoais,
de estudo ou de trabalho ao novo contexto, e reforçando lugares de gênero (Plan
International, 2021 5 ). Para muitas famílias, as tentativas de reestruturação das
rotinas foram marcadas por aumento nos conflitos familiares.
Como não poderia ser diferente, as e os jovens também sofreram com o
agravamento nas situações de violência de gênero. Conforme relatório do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (2021) sobre a vitimização de mulheres no Brasil,
quanto mais jovens, maiores os níveis de violência relatados. Na faixa de 16 a 24
anos, 35,2% afirmaram ter sofrido algum tipo de violência ou agressão.
Nesse sentido, no presente texto, buscamos refletir sobre a violência de gênero
no contexto pandêmico e sobre como o distanciamento social foi um dificultador
para a autoidentificação da vítima enquanto inserida em um relacionamento abusivo.
Metodologicamente, na conexão entre as categorias gênero, juventude e violência,
partimos da análise de dados sobre a vitimização de mulheres na pandemia e sobre
os impactos da pandemia na vida das juventudes. Utilizamos também trechos de
entrevista realizada com Bianca6 uma jovem branca, gaúcha, doutoranda na área de
Ciências Humanas, que enfrentou um relacionamento abusivo durante a pandemia.
Verificamos que, para a jovem, o isolamento em seu quarto na maior parte do tempo
2
CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE. Juventudes e a pandemia do coronavírus - Relatório de
resultados, Junho de 2020. Disponível em: https://atlasdasjuventudes.com.br/juventudes-e-apandemia-do-coronavirus/ Acesso em: Julho de 2020.
3
CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE. Juventudes e a pandemia do coronavírus - 2ª edição Relatório nacional, maio de 2021. Disponível em:
https://atlasdasjuventudes.com.br/wpcontent/uploads/2021/08/JuventudesEPandemia2_Relatorio
_Nacional_20210702.pdf Acesso em: junho de 2021.
4
CONVID Adolescentes - Pesquisa de comportamentos. Disponível em:
https://convid.fiocruz.br/index.php?pag=apresentacao_resultado_adolescentes Acesso em: Julho de
2021.
5
PLAN INTERNATIONAL, Por ser menina – resumo executivo. Novembro de 2021.
6
Na reprodução dos relatos de entrevista, utilizamos nomes fictícios e buscamos suprimir
informações que expusessem sua identidade.
Suélen Pinheiro Freire Acosta | 391
(como espaço de trabalho, lazer e descanso), a falta de contato para conversas
íntimas com suas amigas (rede informal) e as divergências quanto a percepção do
abuso entre ela e sua mãe (possível conflito geracional) agravaram sua identificação
como vítima e, consequentemente, ação contra as violências sofridas.
A pesquisa apresentada aqui compõe o projeto de tese em Sociologia,
intitulado “Jovens e pandemia:
estratégias desenvolvidas por jovens para
construção de sentidos de ‘normalidade’ em meio ao contexto social pandêmico”,
que tem como pergunta: Como os jovens porto-alegrenses, nos diferentes arranjos
de classe, raça e gênero, desenvolveram estratégias para construir sentidos de
normalidade no contexto social pandêmico? O objetivo é construir respostas com
jovens de 18 a 25 anos, com identidades diversas e diferentes percepções quanto ao
contexto pandêmico. Para tanto, realizaremos encontros de grupos focais e
entrevistas individuais.
Percursos metodológicos
A pesquisa apresentada neste texto compõe projeto de tese em Sociologia que
tem como objetivo compreender as estratégias construídas por jovens para dar
sentido de “normalidade” à suas trajetórias em meio a pandemia de Covid 19. Para
tanto, optamos com percorrer técnicas de pesquisa qualitativa (Flick, 2004 7). Para
identificar a diversidade de experiências e condições conforme o contexto de cada
jovem e os diferentes arranjos entre marcadores de gênero, raça e classe (dentre
outros), utilizamos de roteiro flexível, orientado pelos temas: Pandemia, educação,
trabalho, lazer, relacionamentos e emoções.
Bianca foi a primeira entrevistada, com exercício da abordagem compreensiva
(Ferreira, 20148), a qual visa o estímulo para a fala dos entrevistados e se orienta pelo
fluxo da conversa. Nosso primeiro contato ocorreu por proximidade entre nossos
cursos e interesses de pesquisa. Embora esse contato e a realização da entrevista
tenham ocorrido em tempos em que as atividades presenciais haviam retornado e a
7
FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2004.
FERREIRA, Vítor Sérgio. Artes e manhas da entrevista compreensiva. Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.3,
p.979-992, 2014
8
392 | Gênero, violência e estruturas de poder
pandemia já não era uma emergência sanitária, optamos por encontro virtual. O
período de fortes chuvas, em outubro de 2023, com consequentes enchentes em
algumas regiões, foi principal motivo, característica de uma conjuntura de crise
climática9.
Distanciamento social na vida das juventudes
Quando a pandemia de Covid 19 teve início no Brasil, teve como efeito a
exposição das desigualdades sociais e dos distanciamentos que o país já
enfrentava. Inicialmente apresentado como quarentena, teve a longa duração de
março de 2020 a maio de 202310, sendo período de agravamento nas condições de
vida da população. Uma primeira medida de prevenção ao contágio foi o isolamento
social, onde cada indivíduo ou família foi orientado a ficar em casa e sair somente
para atividades essenciais (como fazer compras de alimentos e medicamentos, fazer
exames médicos etc.). As escolas e universidades foram fechadas, assim como
diversos outros estabelecimentos, em muitos casos com tentativas de adaptação
destes ao modelo online. O período foi chamado, inicialmente, de quarentena, e
marcado por campanhas nos meios de comunicação (redes sociais, televisão, rádios
e outdoors), em defesa do “fica em casa”, uma forma de incentivar a população a
evitar sair de casa e ter contato com pessoas contaminadas, contribuindo assim para
a propagação do vírus.
De fato, conforme Bezerra et al. (2020)11, em pesquisa realizada no primeiro
mês da pandemia, a maioria dos entrevistados apoiava e afirmava que iriam aderir
ao isolamento social como medida de prevenção ao contágio da COVID-19, mesmo
entre aqueles que não puderam se isolar por falta de condições. Além disso,
9
Conforme relatório da Unicef, 40 milhões de meninas e meninos brasileiros já estão expostos a mais
de um risco climático ou ambiental, o que já tem demonstrado impactos na garantia de direitos das
futuras gerações. Disponível em: Crianças e adolescentes são os que mais sofrem com as mudanças
climáticas e precisam ser prioridade, alerta UNICEF Acesso em: Fev-2024.
10
Ver: OMS declara fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional referente à
COVID-19. Disponível em: OMS declara fim da Emergência de Saúde Pública de Importância
Internacional referente à COVID-19 - OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde (paho.org)
11
BEZERRA, Anselmo César Vasconcelos, SILVA, Carlos Eduardo Menezes da, SOARES, Fernando
Ramalho Gameleira, SILVA, José Alexandre Menezes da. Fatores associados ao comportamento da
população durante o isolamento social na pandemia de COVID-19. Ciência & Saúde Coletiva, 25, 2020
Suélen Pinheiro Freire Acosta | 393
conforme destacam os autores, a medida de isolamento foi avaliada por
especialistas como “uma das principais medidas não farmacológicas para o
enfrentamento da pandemia da COVID 19” (Bezerra et al., 2020, p. 2413). Contudo,
cumprir o isolamento não foi possível para boa parte da população, que precisou
continuar suas atividades presencialmente (Augustin e Soares, 2021; Goés, Martins,
Nascimento, 2021)12.
O “fiquem em casa” e outras medidas de distanciamento foram sendo
ressignificados com o decorrer da pandemia, e vivenciadas de modos desiguais
conforme os arranjos entre marcadores sociais de classe, gênero e raça. Se, por um
lado, ficar em casa pôde ser “reinventar a rotina, se descobrir como uma pessoa
estrangeira” (Schwartz, 2020, p. 3)13, vivenciar novas experiências e aprendizagens,
por outro, também se refletiu no acúmulo de tarefas, em dificuldades para continuar
estudando, além de uma série de sentimentos relacionados à preocupação com a
saúde, com o futuro, com a renda da família etc. A divisão das tarefas domésticas e
a constituição de uma “rotina precária” em meio à pandemia ampliaram o sentimento
de ansiedade, como observou Koury (2020)14. O autor destacou outros fatores para
os conflitos familiares, como a insegurança “sobre a manutenção do emprego, com
as exigências de continuidade do trabalho por meios virtuais, sem o aparato técnico
necessário” (Koury, 2020, p. 20). A pesquisa de Bezerra et al. (2020, p. 2414) também
demonstrou o “estresse no ambiente doméstico”.
Na vida das juventudes, os impactos foram sentidos também nos campos da
educação, trabalho, relacionamentos, com a persistência de sentimento de
insegurança, medo e isolamento, além da perda de pessoas queridas para o vírus.
(Conjuve, 2020, 2021; Fiocruz, 2020). Soma-se ainda as ações de um governo
dedicado a disseminação do vírus e a fragilização de laços de afetividade por conta
de divergências políticas.
12
AUGUSTIN, André Coutinho, SOARES, Paulo Roberto Rodrigues. Desigualdades intraurbanas e a
Covid-19: uma análise do isolamento social no município de Porto Alegre. Cadernos Metrópole, São
Paulo, v. 23, n. 52, set/dez 2021
13
SCHWARCTZ, Lilia M. Quando acaba o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
14
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. As emoções em tempo de isolamento social. In.: KOURY, Mauro
Guilherme Pinheiro (org.). Tempos de pandemia: Reflexões sobre o caso do Brasil. 1. ed. – João
Pessoa: Grem-Grei; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020.
394 | Gênero, violência e estruturas de poder
Na vida de Bianca, jovem de 24 anos, branca, gaúcha e doutoranda em curso
da área de Ciências Humanas, alguns destes efeitos foram sentidos. Ela se descreve
enquanto privilegiada, por não ter enfrentado consequências materiais no período
pandêmico. Na época, Bianca morava com seus pais, em uma cidade pequena,
próxima a Novo Hamburgo, e namorava Marcelo, morador da mesma cidade.
A rotina da família de Bianca sofreu mudanças, com a necessidade de que ela
e sua irmã mais nova (na época com 13 anos) realizassem suas atividades de estudo
em casa. Ela e sua irmã mais nova continuaram estudando, seu pai continuou na
empresa em que trabalhava, cumprindo as devidas medidas de prevenção, e sua mãe
continuou responsável pelo trabalho do cuidado da casa (como já fazia desde o
nascimento de Bianca). No mesmo terreno da família, morava o avô de Bianca, com
90 anos, e alvo de maior preocupação da família por compor o chamado “grupo de
risco15”.
Conforme a entrevistada, “Os dois anos da pandemia foram os anos de
mestrado, assim, né?”. Com a bolsa de mestrado, Bianca teve sua primeira renda
própria permitida pelos pais. Para dar sequência aos estudos, transformou o quarto
em uma espécie de escritório e se dedicou a variedade de eventos acadêmicos online
e as possibilidade de ampliar contatos e produtividade, o que logo lhe trouxe
cansaço.
Também no
quarto,
Bianca realizava atividades físicas
orientadas
virtualmente por sua personal trainner. Aos poucos, foi se isolando em seu quarto,
onde buscava se distanciar das notícias sobre a pandemia que sua mãe ouvia
diariamente no rádio e na televisão. Saia do quarto somente para as refeições.
Com o tempo em que passava dentro de seu quarto, Bianca acabou se
isolando. No seu dia a dia, passou a sair do quarto somente para as refeições, o que
também era uma alternativa para se distanciar das notícias sobre a pandemia, que a
15
O “grupo de risco” em relação à Covid 19 foi formado por pessoas que tivessem condições de saúde
que tornasse mais propício à contaminação de coronavírus em sua forma mais grave, tais como:
idosos, pessoas com doença cardíaca; pessoas com doença pulmonar; pessoas com doenças renais;
pessoas com doenças do fígado; pessoas com problemas de baixa imunidade; pessoas em gravidez
de risco; puérperas; crianças de até 5 anos; pessoas com obesidade. (Conforme Biblioteca Virtual em
Saúde. Disponível em: Quais são os grupos de risco para agravamento da COVID-19? – BVS Atenção
Primária em Saúde
Suélen Pinheiro Freire Acosta | 395
mãe passava o dia ouvindo pelo rádio ou pela TV. Também no quarto, Bianca treinava
com aparelhos de musculação que comprou pela internet e com a orientação de uma
personal trainner, a qual contatava via Google Meet.
A minha vida era no quarto de casa, eu só não comia no quarto, eu ia para sala, mas daí
eu tenho uma parte, tinha, né, na parte lá no quarto que era tipo escrivaninha, assim não
era a cama, era um pouquinho mais separada assim. Daí eu fazia ali, tipo minhas aulas e
tal, como se fosse um escritoriozinho e meu estudo ali, mas também fazia minha parte
de academia ali na casa, né? No quarto, quer dizer, dormia no quarto. Era basicamente
minha vida toda no quarto, menos comer. Tem dia que eu mal saía do quarto. (Bianca,
2023)
Embora tenha tido condições seguir seus estudos, se proteger do contágio do
vírus e cuidar da saúde do corpo, o isolamento do contato pessoal com outras
pessoas foram lhe fazendo mal. De diferentes formas, a permanência de Bianca no
quarto se relaciona ao medo e a um desejo de se proteger, seja do vírus ou das
notícias sobre a pandemia e do governo da época. A estratégia para cuidar de sua
saúde, porém, acabou tendo consequências negativas, próximas à depressão, e se
encaixa na metáfora da “geração do quarto 16 ” elaborada por Ferreira (2020 17 ) em
referência a jovens que estão mais conectados do que nunca com o mundo via redes
sociais, e mais desconectados e solitários dentro de casa.
Ao mesmo tempo, o medo sentido por Bianca era um sentimento
compartilhado com sua família, que continuava tentando seguir à risca as medidas
de prevenção. Nessa perspectiva, Pereira (202018), analisou “cenários do medo” que
se produziram em meio à pandemia, identificando a emergência de uma
“sociabilidade pandêmica” onde o medo “pode ser a matriz estruturante de todas as
ações e sentimentos vividos”.
16
Ferreira (2020) pesquisou com crianças e adolescentes, de 11 a 18 anos, antes da pandemia de
Covid 19, porém sua metáfora é interessante para o contexto em análise, especialmente por apontar
hipóteses para a opção de muitas crianças, adolescentes e jovens pelo isolamento em seus “quartos”.
“O quarto é o cômodo da casa escolhido para ficar, para não enfrentar as questões problemáticas.”
17
FERREIRA, Hugo Monteiro. A geração do Quarto: Quando Crianças e Adolescentes nos ensinam a
amar. Brasil: Record, 2022.
18
PEREIRA, Jesus Marmanillo. Cenários de medo e as sociabilidades pandêmicas no Maranhão. . In.:
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (org.). Tempos de pandemia: Reflexões sobre o caso do Brasil. 1.
ed. – João Pessoa: Grem-Grei; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020
396 | Gênero, violência e estruturas de poder
O isolamento orientado pelo medo afastou Bianca das amizades, com quem
manteve contato somente via redes sociais. Ela identificou que, aos poucos, esses
contatos foram se tornando superficiais, com pouca abertura para conversas
íntimas. Assim, seu namorado, na época, se tornou seu único contato com o mundo
fora de seu quarto e de sua casa.
Embora tenha conseguido encontrar formas de dar continuidade a atividades
como a pesquisa acadêmica e as atividades físicas, Bianca não conseguiu manter
contato com as amigas, ao menos não quanto a conversas intimas e pessoais. Seu
maior sofrimento, porém, foi ter vivenciado um relacionamento abusivo,
solitariamente, sem rede apoio.
As experiências de Bianca foram permeadas por marcadores sociais de
gênero e geração, agravada pelo contexto pandêmico, demonstrando a importância
em compreender a pluralidade em torno das identidades e vivências de jovens
(Groppo, 201519). Partimos então da compreensão da articulação entre as categorias
sociais de juventude (Groppo, 2015) e gênero (Scott, 2017 20), construções sociais
situadas no tempo e espaço e que se interseccionam na trajetória de Bianca em meio
a pandemia.
Isolamento social em um relacionamento abusivo
Ao mesmo tempo, o isolamento social necessário como medida de prevenção
a contaminação e propagação da Covid 19, enfraqueceu mecanismos de prevenção
e ação contrárias a violência (redes de apoio formal e informal) (Marques et al.,
202021). Discutindo a redução de registros de boletins de ocorrência por violência
contra mulher, em contraposição ao aumento de casos de feminicídio, na pandemia,
19
GROPPO, Luis Antonio. Teorias pós-críticas da juventude: juvenilização, tribalismo e socialização
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20
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Suélen Pinheiro Freire Acosta | 397
Lobo (202022) refere-se a “pandemia de violência doméstica, um surto longevo”. A
autora destaca os obstáculos para que mulheres vítimas de violência acessassem
serviços de acolhimento e denúncia em meio a pandemia, assim como a
problemática de estar isolada no mesmo espaço que o agressor. Em situações de
violência de gênero, o isolamento das vítimas já era praticado anteriormente ao
contexto pandêmico, como estratégia de enfraquecimento e silenciamento destas.
Assim, a residência se mostrou como espaço de maior risco para as mulheres (FBSP,
202123, 202324).
Como Bianca descreveu em seus relatos, e citamos anteriormente, ela e sua
família aderiram as medidas de isolamento e distanciamento social. Ela, sobretudo,
dedicou-se de forma central ao mestrado e as atividades físicas, em seu quarto,
reduzindo o contato com suas amigas e até mesmo com seus familiares. Embora
Bianca estivesse em contato com colegas de aula, professores e professoras,
participasse de diversos eventos acadêmicos online e conversasse com sua
personal trainer, o então namorado era a única pessoa de fora de sua casa que ela
encontrava. Conforme relatou:
Ele era meu namorado, e ele era a única pessoa que vinha de fora e me trazia um pouco
do mundo exterior. Ele também trabalhava fora, na empresa que ele trabalhava em (...)
uma cidadezinha vizinha. Daí ele era a única pessoa que a gente recebia em casa, assim
eu me lembro de ter um ou outro parente que a gente recebeu, mas daí a minha mãe ficou
super noiada de receber eles e a gente recebeu no quintal de casa e tal, no ar livre e tal.
Minha mãe super, mega ultra noiada, assim sabe de receber.
E daí era a única pessoa que vinha, era esse meu ex, daí tipo as minhas amigas nem
chamavam para a festa assim e tal, essas coisas, porque elas também eram muito
contra. (Bianca, 2023, grifos nossos)
22
LOBO, Janaina Campos. Uma outra pandemia no Brasil: as vítimas da violência doméstica no
isolamento social e a “incomunicabilidade da dor”. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia,
v. 8, n. 1, p. 20–26, 30 maio 2020.
23
BUENO, Samira. et al. Visível e invisível : a vitimização de mulheres no Brasil. Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, 2021. Disponível em:
https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/108 Acesso em: Dezembro, 2023.
24
BUENO, Samira. et al. Visível e invisível : a vitimização de mulheres no Brasil. Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, 2023. Disponível em:
https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/224 Acesso em: Dezembro, 2023.
398 | Gênero, violência e estruturas de poder
O namorado de Bianca também tinha o privilégio de ser uma das poucas
pessoas selecionadas para compartilhar o convívio da família, mesmo com as noias
e preocupações da mãe dela, que optava por receber parentes no quintal de casa. O
acolhimento que a família demonstra com seu namorado, dando-lhe tratamento
semelhante ao direcionado às pessoas da casa (a “família”), foi um fator que também
se apresentou como obstáculo para Bianca frente as situações de violência sofridas.
No caso de Bianca, ainda que não morasse com o namorado, seu isolamento
ficou evidente e se mostrou como agravante nas situações vividas com o namorado.
(...) durante assim, a pandemia, esse início da pandemia, o meu ex-namorado começou
a apresentar vários comportamentos assim bem complicados que eu não me dava conta
porque eu não falava com ninguém sobre, sabe? (Bianca, 2023, grifos nossos)
Bianca relatou que somente em 2021, após ter tomado primeira dose de vacina
contra Covid 19, começou a sair esporadicamente e com cuidado, para tomar café
com amigas e frequentar o serviço público que era seu objeto de estudo no mestrado.
Seu então namorado, porém, sem que ela soubesse, não deixou de sair durante a
pandemia, como ela foi descobrir tempos depois. Bianca descreve como uma quebra
de combinado, uma espécie de traição, pois o namorado reunia amigos para
resenhas em sua chácara, ao mesmo tempo que frequentava a casa de Bianca e
ficava próximo do avô dela, contrariando totalmente o que ela pedia.
O desrespeito de Marcelo aos combinados com Bianca sobre os cuidados
para prevenção ao Covid 19 compõe seus comportamentos abusivos. A mentira
colocava a saúde de Bianca e de sua família em risco, pois acabava por lhes expor
ao possível contato com o vírus. Ao longo da conversa, Bianca relata que embora
tenha sentido muita raiva não se sentiu tão surpresa com as saídas do então
namorado em meio a pandemia, dadas suas orientações políticas a favor do governo
da época. Porém, essa não era a única manifestação do abuso, como ela relatou:
Ele gritava muito comigo, assim, sempre que ele tinha chance, ele estava gritando
comigo. Ele já jogou coisa na minha cara assim já me pegou de me segurar assim de me
sacudir. Tipo, reclamava da roupa que eu estava usando. Me chamava desleixada disso,
daquilo... Se eu não queria transar ele ficava muito puto, sabe, essas coisas assim, que,
Suélen Pinheiro Freire Acosta | 399
tipo, eu não eu via como violência, assim, tipo nem as físicas que ele fazia que seria mais
perceptível assim, eu não percebi a violência, porque eu acho que eu nunca falava para
ninguém. Foi algo muito silencioso assim. Eu conversava muito com as minhas amigas,
mas aí a gente parou de se ver e esse também não é o tipo de conversa que vai surgir
assim no WhatsApp da vida. Daí eu me lembro que foi no final de 2021... deixa eu pensar,
é... foi no final de 2021 que eu encontrei um grupo de amigas que jogava vôlei comigo na
universidade, que eu não via há tempos que foi quando eu voltei a reencontrar as pessoas,
porque 2020 não vi quase ninguém, 2021 eu reencontrei elas. Eu falei aí da vez que ele
jogou coisa na minha cara, de quando ele gritava coisa que estava bravo comigo. Tudo
isso, daí elas pararam e me olharam: “Bianca, tu ta te ouvindo? Algum vez tu já tinha
falado sobre isso?” Daí eu, eu pensei, “nossa, eu não tinha externalizado isso para
ninguém”. Então comecei a pensar, “Deus, realmente né”. E daí elas “nossa, e tu super
feminista com todos esses discursos, e não sei o que lá... Vivendo todas essas violências,
que a gente tá super percebendo que são, e tal...” E eu, nossa realmente, quando eu
comecei a ouvir, sabe, e daí ele tinha muita atitude assim.
Ah, uma das piores vezes, assim... Eu não conseguia terminar com ele também, porque
ele era a única pessoa que vinha de fora, sabe? (...), mas eu fiquei com essa dependência
também de que era a única pessoa que vinha e trazia algo diferente, algo do mundo fora
e tal. (...) E também somando a não conversar com ninguém mais, tipo, ele tinha muitos
comportamentos assim, abusivos, e tudo mais. (Bianca, 2023, grifos nossos)
A categoria “comportamentos abusivos”, utilizada por Bianca se relaciona à
de “relacionamentos abusivos” e é relativamente nova, própria do léxico do
feminismo brasileiro contemporâneo (Sousa, 2017 25) frequente nas redes sociais.
Inserido no campo da violência de gênero, guarda algumas conexões com este tipo
de violência, como a possibilidade de ser praticado por pessoas de qualquer
identidade de gênero e orientação sexual. Nesses relacionamentos, a violência pode
ser tanto física quanto psicológica, e tem como característica a manipulação das
vítimas e a dissimulação da violência em ações naturalizadas dentro dos
relacionamentos afetivos, como os ciúmes e o controle sobre o outro (Barreto,
201826). Tanto a violência de gênero quanto os relacionamentos abusivos, enquanto
25
SOUSA, Fernanda Kalianny Martins. Narrativas sobre relacionamentos abusivos e mudança de
sensibilidades do que é violência. In: Seminário FESPSP Incertezas do Trabalho, 2017, São Paulo.
Seminário FESPSP Incertezas do Trabalho. São Paulo, 2017.
26
BARRETTO, Raquel Silva. Relacionamentos abusivos: uma discussão dos entraves ao ponto
final. Revista Gênero, v. 18, n. 2, 7 nov. 2018.
400 | Gênero, violência e estruturas de poder
categorias, deslocam a violência do âmbito doméstico e comumente associado as
relações conjugais e de família. Assim, possibilitam analisar relacionamentos como
namoros e outras configurações.
Uma característica marcante deste tipo de relacionamento são os ciclos de
violência e manipulação, por onde abusadores, após agressões físicas ou verbais
ficarem evidentes, se mostram arrependidos e utilizam estratégias “românticas” para
reconquistar a vítima. Esse padrão é perceptível no caso de Bianca, com o pedido de
desculpa e os presentes costumeiros.
O retorno dos encontros com as amigas foi essencial para a percepção de
Bianca quanto as violências sofridas. Em seu relato há também um tom de culpa,
como se, por sua formação acadêmica e por ser feminista, devesse ter identificado e
agido anteriormente. Ainda assim, ela vê nas amigas o suporte para encerrar o
relacionamento. Este suporte, porém, não demonstra incentivo para Bianca
denunciar as ações do namorado nas instâncias legais.
A entrevista realizada não nos trouxe elementos suficientes para aprofundar
a análise sobre Marcelo. Contudo, suas ações ao reproduzir os ciclos de abuso
remontam padrões de masculinidade estereotipados, que entendem as identidades
e performances feminina e masculina como dois polos naturalmente opostos, como
quer certa “ideologia de gênero” (Connel, 2016 27 ). Os elementos que temos
demonstram a naturalização da violência por palavras e ações que impõe que Bianca
atue servindo aos desejos dele
Refletindo sobre aumento da violência contra mulher em meio a pandemia,
tendo a noção de masculinidade como elemento central, Santos et al (202128, p. 11)
identificam este fenômeno como reflexo da redução do poder do homem, isolado na
esfera privada, e ao questionamento de seu poder na esfera privada. Assim,
(...) as práticas tóxicas e violentas aparecem na tentativa de estabilizar o modelo de
masculinidade definido pelo poder patriarcal, ou de tentar reconstituí-lo em novas
configurações.
27
CONNEL, Raewyn. Gênero em termos reais. São Paulo: InVersos, 2016.
SANTOS, Dherik Fraga. et al. Masculinidade em tempos de pandemia: onde o poder encolhe, a
violência se instala. Saúde e Sociedade, v. 30, 23 ago. 2021.
28
Suélen Pinheiro Freire Acosta | 401
Simbolicamente, Bianca termina a relação com Marcelo paralelamente ao
período de retomada das atividades presenciais. O fim do relacionamento é
acompanhado da mudança de Bianca para Porto Alegre, quando inicia o doutorado,
assim realizando um dos desejos anteriores ao início da pandemia (sair da casa dos
pais). Sua mudança logo após o término teve repercussões com a circulação de
boatos na pequena cidade. Sair de casa também foi importante para se distanciar
das reações de sua mãe ao término.
Daí minha mãe, quando eu terminei assim, minha mãe, nossa se jogava no chão, chorava,
esperneava, chorava, chorava... Dizendo “não, vocês não podem terminar, tu está me
fazendo perder um filho.”. E chorava, chorava, chorava... E daí, tá. Daí eu falei para ela né
o que ele tinha feito e ela “ai, mas o amor tudo supera, sabe?” Tá bom então, então tá.
Então foi muito importante eu ter conseguido vir para Porto Alegre, sabe? Porque senão,
minha mãe, ela ia me pressionar tanto que daqui a pouco ou eu ia enlouquecer ou eu ia
voltar com ele ou alguma coisa assim, sabe. Foi muito bom poder ter voltado e de
começar a viver aqui, me afastar daquelas pessoas de lá, daquela mentalidade de lá e tal.
(Bianca, 2023.)
Assim, ao se distanciar de sua família e de sua cidade, fazendo o caminho
inverso ao do início da pandemia, Bianca encontra meios de terminar o namoro e
iniciar novas experiências em sua vida. Este é um ponto abordado pelo relatório do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), em reflexão sobre maior número de
relatos de violência por mulheres jovens, afirmando que estas possuem uma maior
percepção do que é a violência, sobretudo quanto maior o nível de estudo.
A diferença de reação das amigas de Bianca e de sua mãe é interessante para
pensar sobre possíveis mudanças geracionais na leitura sobre violência de gênero e
sobre o amor. As transformações sociais e históricas com relação ao gênero são
demonstradas na reação das jovens, na percepção sobre a violência e no
acolhimento entre elas. Contudo, ainda fica notável a permanência da violência de
gênero como meio para manter o desequilíbrio de poder. A visão da mãe tende a
reproduzir a naturalização da violência e romantizar a permanência de mulheres em
relacionamentos abusivos. Seu cotidiano também é marcado por práticas
tradicionalmente postas as mulheres, como o trabalho doméstico e a preocupação
402 | Gênero, violência e estruturas de poder
com a família. As amigas compartilham de uma leitura contemporânea sobre
violência de gênero, parte de uma experiência compartilhada das formas como os
debates sobre essa temática tem se dado. A aprendizagem necessária para Bianca
sair daquela relação se deu por meio do diálogo com seus pares, em termos de
gênero e geração, e pelos laços afetivos partilhados.
Considerações finais
Ao longo do texto, tivemos o objetivo de refletir sobre o contexto pandêmico,
articulando categorias de gênero e juventude, e analisar como o distanciamento
social se apresentou como dificultador para a identificação de situações de violência
de gênero na pandemia.
Tendo conseguido dar continuidade a sua rotina de estudos e sem ter sofrido
impactos econômicos da pandemia, a jovem entrevistada reflete sobre seu contexto
e se identifica como privilegiada. Contudo, o isolamento social seguido por ela e sua
família em meio a pandemia agravaram a qualidade de sua saúde mental e as
condições para enfrentar um relacionamento abusivo. O papel das amigas no caso
em análise evidenciou a importância do contato e do diálogo para que vítimas
consigam verbalizar e perceber as violências sofridas.
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21. DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E MENINAS BRASILEIRAS: A UTILIZAÇÃO
DA CATEGORIA DA INTERSECCIONALIDADE PELA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS NO CASO “EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO
ANTÔNIO DE JESUS E OUTROS VERSUS BRASIL”
https://doi.org/10.36592/9786554601566-21
Adriana Biller Aparicio1
Letícia Albuquerque2
RESUMO
O presente trabalho aborda a utilização categoria interseccionalidade na decisão da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil, no caso
Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus e outros, considerando a
particular situação de mulheres e meninas, vítimas deste evento. O trabalho
apresenta, em primeiro lugar, o sistema interamericano de direitos humanos e a
historicidade da atuação da Corte Interamericana com relação ao Brasil. Em seguida,
trata do direito internacional do reconhecimento e as suas implicações na
construção e efetivação dos direitos das mulheres. Por meio do método dedutivo,
delineia o caso em análise e a categoria da interseccionalidade para ao final concluir
que a utilização desta ferramenta de análise é fundamental para avançar nos
intitulados direitos econômicos e sociais das mulheres e meninas.
1 INTRODUÇÃO
O Direito Internacional dos Direitos Humanos é um campo do Direito
Internacional que se desenvolveu em função das consequências devastadoras da
Segunda Guerra Mundial. A partir da década de 1970 têm-se observado a construção
1
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Mestre em Direitos
Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha (UPO).
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Bacharel em Direito pela
Universidade de São Paulo (USP). Fundadora do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica
(GPAJU/UFSC). Membro dos grupos de pesquisa Observatório de Justiça Ecológica (OJE/USFC) e
Política e Estado: o Poder e o Direito (UEM). Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Orientadora Jurídica do Núcleo Maria da Penha da Universidade da Universidade Estadual de Maringá
(NUMAPE/UEM) e do Observatório de violência de gênero da UEM: Direitos, Subjetividades, Políticas
e Intersecções E-mail: adrianainvestiga@gmail.com
2
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Bacharel em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Líder do grupo de pesquisa Observatório de
Justiça Ecológica (OJE/USFC), cadastrado no CNPq. Professora dos cursos de graduação e pósgraduação em Direito da UFSC. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail:
Laetitia.ufsc@gmail.com
406 | Gênero, violência e estruturas de poder
dos direitos humanos das mulheres, em especial a partir de tratados internacionais
e regionais, reconhecendo as especificidades do gênero na realização dos direitos
humanos no que tange à igualdade, no enfrentamento às violências e nos direitos
sexuais e reprodutivos. Neste percurso da construção dos direitos humanos o caso
Maria da Penha, examinado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
ganhou grande notoriedade com repercussões no plano nacional e regional. Apesar
de tratar-se de um campo próprio, a temática de gênero tem atravessado outras
análises de violações por direito por meio da categoria da interseccionalidade.
O presente trabalho aborda a utilização desta categoria na decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil, no caso Empregados
da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus e outros, considerando a particular
situação de mulheres e meninas, vítimas deste evento. Em síntese, o caso versou
sobre explosão ocorrida na Fábrica “Vardo dos Fogos” no município de Santo Antônio
de Jesus, em 1998, que tem baixíssimo IDH, no qual das 60 pessoas trabalhadoras
mortas em decorrência do evento, 40 eram mulheres e 19, meninas. No âmbito
regional, os diferentes sistemas de direitos humanos têm desenvolvido seus próprios
instrumentos no que diz respeito aos direitos das mulheres e a não discriminação de
gênero. Os tratados regionais de direitos humanos também contam com
mecanismos de supervisão para avaliar o cumprimento de suas disposições pelos
Estados que os ratificaram. Estes incluem a Comissão Africana de Direitos Humanos
e dos Povos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o Conselho da Europa e a Corte Europeia de
Direitos Humanos.
Assim, este trabalho apresenta, em primeiro lugar, o Sistema Interamericano
de Direitos Humanos (SIDH) e a historicidade da atuação da Corte Interamericana
com relação ao Brasil. Em seguida, trata do direito internacional do reconhecimento
e as suas implicações na construção e efetivação dos direitos das mulheres. Por
meio do método dedutivo, delineia o caso em análise e a categoria da
interseccionalidade para ao final concluir que a utilização desta ferramenta de
análise é fundamental para avançar nos intitulados direitos econômicos e sociais
das mulheres e meninas.
Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 407
2 O BRASIL NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é um dos sistemas
regionais de proteção aos Direitos Humanos, instaurados após a Segunda Guerra
Mundial, quando da instituição da Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU foi
a impulsionadora de um conjunto de instrumentos de proteção aos Direitos
Humanos, que ao longo da sua existência, passaram a constituir um complexo corpo
jurídico e institucional. A constatação da inação da comunidade internacional frente
às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial é uma das razões da
proeminência do debate acerca dos Direitos Humanos no cenário internacional. De
uma certa forma, os Direitos Humanos são colocados no centro das preocupações
da recém instituída ONU.
Esta generalização da proteção internacional dos Direitos Humanos e a sua
consequente regionalização, com a criação de sistemas regionais de proteção aos
direitos humanos, como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, inicia com
a Adoção da Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948, seguida pela
adoção do Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais e, do Pacto de Direitos
Civis e Políticos, em 1966, ambos pela Assembleia Geral da ONU. A Declaração
Universal aparece como um compromisso moral, mas que vai ganhando força com
o passar dos anos, em razão dos inúmeros instrumentos internacionais que irão
segui-la.
Em 1948, é adotada a Declaração Americana de Direitos Humanos3, no âmbito
da Organização dos Estados Americanos (OEA) e mais tarde, em 1969, a Convenção
Interamericana de Direitos Humanos ou Pacto de São José4, como é mais conhecida,
dando origem assim, ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH).
Os principais órgãos do SIDH são a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão é considerada
3
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem. Bogotá, 1948. Disponível em:
https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.declaracao_americana.htm . Acesso em: 7 set. 2021.
4
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San
José, Costa Rica, 1969. Disponível em:
https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm . Acesso em: 7 set. 2021.
408 | Gênero, violência e estruturas de poder
a porta de entrada do SIDH, tem sede em Washington, EUA e a Corte é o seu órgão
judicial, com sede em São José, na Costa Rica.
Para além da função jurisdicional, ou seja, competência para conhecer de
qualquer caso relativo à interpretação e aplicação do Pacto de São José, a Corte,
exerce também a função consultiva, conforme dispõe o art. 64 do referido Pacto:
ART. 64.1. Os Estados-Partes da Organização poderão consultar a Corte sobre a
interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos
direitos humanos nos Estados americanos. Também poderão consultá-la, no que lhes
compete, os órgãos enumerados no capítulo X da Carta da Organização dos Estados
Americanos, reformada pelo Protocolo da Buenos Aires 5.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), tratado base do SIDH,
entrou em vigor internacional em 18 de julho de 1978, após alcançar o número
mínimo de ratificações exigidos. O Brasil, no entanto, tardou 23 anos para aderir
completamente ao tratado, através do Decreto n. 678 de 6 de novembro de 1992 6,
que promulgou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica) no país.
Como parte do SIDH, o Brasil, participou ativamente da sua consolidação,
apesar da demora em ratificar a Convenção, bem como em reconhecer a jurisdição
da CIDH, o que aconteceu apenas em 10 de dezembro de 1998, quando do depósito
da declaração junto à Secretaria Geral da OEA7.
A demora da ratificação da Convenção Americana pelo Brasil pode ser
entendida em razão do contexto da ditadura militar iniciada com o golpe de 1964. O
período de abertura política e democratização, iniciado na década de 1980,
consolidado com a adoção da Constituição Federal de 1988, acarreta uma série de
transformações institucionais que levam finalmente o país a aderir não só a
5
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San
José, Costa Rica, 1969. Disponível em:
https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm . Acesso em: 7 set. 2021.
6
BRASIL. Decreto n. 678 de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm . Acesso em: 7 set. 2021.
7
BRASIL. Decreto n. 4463 de 8 de novembro de 2002. Promulga a Declaração de reconhecimento da
competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4463.htm . Acesso em: 7 set. 2021.
Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 409
Convenção Americana de Direitos Humanos e consequentemente a aceitar a
jurisdição da Corte Interamericana, como também a atuar de forma mais ativa nos
fóruns internacionais de direitos humanos. O contexto internacional pós-Guerra Fria
favoreceu a construção e ampliação destes espaços de diálogo e consequentemente
de uma ordem internacional homogênea, onde os conflitos em relação a legitimidade
política desaparecem, como salienta REIS8:
Na década de 1990, essa homogeneidade alimentou a expectativa de que as questões de
segurança passariam para o segundo plano da agenda política internacional e de que o
mundo enfim poderia dedicar- se, por meio de organizações multilaterais como a própria
ONU, à solução de graves problemas sociais que afetavam a humanidade. Essa
esperança manifestou-se na organização de grandes conferências internacionais a
respeito de temas sociais sob os auspícios das Nações Unidas.
A primeira condenação do Brasil junto à Corte Interamericana de Direitos
Humanos aconteceu em 2006 no caso Ximenes Lopes 9 . Originalmente o caso foi
encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1999 pela
organização Justiça Global em nome dos familiares de Damião Ximenes Lopes,
portador de deficiência mental que faleceu quando estava internado na casa de
repouso Guararapes, em Sobral, no estado do Ceará, em 1999. O caso foi enviado
pela Comissão à Corte em 2004, após o informe conclusivo da Comissão
Interamericana não ter sido atendido pelo estado brasileiro. Na sentença, a Corte
examinou as supostas condições desumanas e degradantes da hospitalização da
vítima; os alegados golpes e ataques contra a integridade pessoal de que se alega
ter sido vítima por parte dos funcionários da Casa de Repouso Guararapes; e a morte
de Damião Ximenes Lopes enquanto se encontrava ali submetido a tratamento
8
REIS, Rossana Rocha. Os direitos humanos e a política internacional. Revista de Sociologia e Política
[online]. 2006, n. 27 [Acessado 18 Setembro 2021] , pp. 33-42. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0104-44782006000200004>. Epub 17 Maio 2007. P.36.
9
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de 4
de julho de 2006. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf Acesso em: 12 mar. 2024.
410 | Gênero, violência e estruturas de poder
psiquiátrico; bem como pela suposta falta de investigação e garantias judiciais que
caracterizam seu caso e o mantém na impunidade. Destaca-se da sentença10:
A suposta vítima foi internada em 1o de outubro de 1999 para receber tratamento
psiquiátrico na Casa de Repouso Guararapes, um centro de atendimento psiquiátrico
privado, que operava no âmbito do sistema público de saúde do Brasil, chamado Sistema
Único de Saúde (doravante denominado “Sistema Único de Saúde” ou “SUS”), no
Município de Sobral, Estado do Ceará. O senhor Damião Ximenes Lopes faleceu em 4 de
outubro de 1999 na Casa de Repouso Guararapes, após três dias de internação.
A sentença do caso Damião Ximenes Lopes para além de ser a primeira
condenação do Brasil no SIDH, teve uma repercussão importante nas políticas
públicas de saúde mental. Em 2023, o Brasil concluiu o cumprimento da sentença e
a Corte determinou o arquivamento do caso. O último ponto que faltava para o
encerramento do caso era o estabelecimento de programas de capacitação
relacionados à saúde mental, o que aconteceu, em abril de 2023, com a lançamento
pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em conjunto com a
Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) do curso Direitos Humanos e
Saúde Mental – Curso permanente Damião Ximenes Lopes. Outro ponto de destaque
do caso diz respeito ao judiciário11:
O impacto do caso também pode ser observado no âmbito do Poder Judiciário. Após a
audiência pública de Supervisão de Cumprimento da sentença realizada em 2021, o
Conselho Nacional de Justiça criou um Grupo de Trabalho “Damião Ximenes Lopes”, que
estruturou uma minuta de resolução para instituir uma política judiciária com uma
perspectiva antimanicomial. Em 2023, a referida proposta foi aprovada pelo plenário,
dando origem à Resolução CNJ n. 487/2023, que é um marco paradigmático para a
incorporação dos parâmetros internacionais na política judiciária sobre saúde mental.
10
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de 4
de julho de 2006. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf Acesso em: 12 mar. 2024.
11
BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Brasil conclui cumprimento de sentença
da Corte IDH sobre o caso Damião Ximenes Lopes. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/ptbr/assuntos/noticias/2023/outubro/brasil-conclui-cumprimento-de-sentenca-da-corte-idh-sobreo-caso-damiao-ximenes-lopes . Acesso em: 12 mar. 2024.
Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 411
Outro caso de repercussão envolvendo o Brasil no SIDH foi o caso Maria da
Penha 12 . Este é um caso que não chegou até a Corte Interamericana, pois foi
encerrado no âmbito da Comissão Interamericana. O caso teve origem num ato de
violência sofrido por Maria da Penha Fernandes por parte do seu então marido na
época dos fatos. O caso foi encaminhado por entidades de defesa dos direitos das
mulheres à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1988 e em 2001 a
Comissão concluiu que o Brasil foi responsável pela violação aos direitos e
garantias judiciais e à proteção judicial, assegurados pelos artigos 8 e 25 da
Convenção Americana, devido ao processo judicial ineficaz e negligente no caso
Maria da Penha, de violência doméstica contra a mulher. Destacou-se a falta de
efetividade da ação policial e judicial no Brasil com respeito à violência contra a
mulher, o que gera a falha das medidas destinadas a redução desse tipo de
violência e da tolerância estatal com relação ao tema. A partir do parecer da
Comissão foi recomendado que o Brasil desenvolvesse uma legislação específica
sobre a violência doméstica e familiar, dando origem a Lei Maria da Penha 13.
Outros casos envolvendo o Brasil dizem respeito as violações de direitos
humanos cometidas no período da ditadura militar como: o Caso Vladimir Herzog 14
e o Caso Guerrilha do Araguaia15.
Em 2018, o Brasil foi condenado por violações de direitos humanos
envolvendo povos indígenas no Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros
versus Brasil16.
12
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso 12051 Maria da Penha Maia Fernandes.
Disponível em:
https://assets-compromissoeatitudeipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2012/08/OEA_CIDH_relatorio54_2001_casoMariadaPenha.pdf
.
Acesso em: 12 mar. 2024.
13
BRASIL. Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm . Acesso em: 12 mar.
2024.
14
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Herzog e outros Vs. Brasil. Sentença de
15 de março de 2018. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_por.pdf. Acesso em: 14 de mar. 2024.
15
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do
Araguaia”) vs. BRASIL. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em: 14 de mar. 2024.
16
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso do Povo Xucuru e seus membros versus
Brasil. Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf . Acesso em: 12 mar. 2024.
412 | Gênero, violência e estruturas de poder
Os casos citados são apenas ilustrativos da situação do Brasil junto ao SIDH
e não exaustivos, pois ainda temos casos envolvendo situações de violência policial,
trabalho análogo a escravidão, entre outros temas. Importante mencionar o Caso
Barbosa e outros vs. Brasil17, condenação recente envolvendo Direito das Mulheres.
Nesse caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a
responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelo assassinato de Márcia
Barbosa de Souza, em sentença condenatória prolatada em 7 de setembro de 2021.
A origem do caso foi a situação de impunidade frente ao assassinato de Márcia
Barbosa de Souza, ocorrido em junho de 1998, cometido, segundo a decisão do
Tribunal do Júri, pelo então deputado estadual da Paraíba, Aércio Pereira de Lima,
em João Pessoa. O ineditismo desta decisão reside no fato de ser a primeira
condenação por um crime de feminicídio junto ao SIDH, bem como por abordar a
questão da imunidade parlamentar frente aos crimes contra os direitos humanos.
3 O DIREITO AO RECONHECIMENTO E O DIREITO DAS MULHERES
Albuquerque e Gonçalves18 destacam que a construção dos Direitos Humanos
das mulheres é protagonizada pelos movimentos feministas na arena internacional
e constituiu um campo nas relações internacionais por meio das lutas e
reivindicações que resultaram em mudanças paulatinas na condição das mulheres.
Estas mudanças vão desde a construção de um corpo normativo até mudanças
estruturais na sociedade.
O Caso Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus e seus
Familiares Vs. Brasil, ilustra não apenas a fragilidade e situação de vulnerabilidade
de mulheres e meninas, mas também a evolução do SIDH e dos sistemas de justiça
com relação ao tema:
17
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza vs. Brasil. Sentença de
7 de setembro de 2021. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf Acesso em: 14 mar. 2024.
18
ALBUQUERQUE, L.; GONÇALVES, V. C., Os desafios do Sistema Interamericano de Direitos Humanos
e os estereótipos de gênero em casos de violência contra as mulheres: o caso Barbosa de
Souza.p.195-212. In: Direito internacional dos direitos humanos [Recurso eletrônico on-line]
organização CONPEDI Coordenadores: Ana Paula Martins Amaral; Samyra Haydêe Dal Farra
Naspolini; Vladmir Oliveira da Silveira – Florianópolis: CONPEDI, 2022.
Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 413
Em 15 de julho de 2020, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante
denominada “Corte” ou “Tribunal”) proferiu sentença mediante a qual declarou a
responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil pelas violações a
diversos direitos, em prejuízo a 60 pessoas falecidas e seis sobreviventes da explosão de
uma fábrica de fogos de artifícios, no município de Santo Antônio de Jesus, Estado da
Bahia, assim como a 100 familiares das pessoas falecidas e sobreviventes da explosão.
A Corte constatou que, como consequência da explosão, foram violados os direitos à
vida, à integridade pessoal, ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias, direitos
da criança, à igualdade e não discriminação, à proteção judicial e às garantias judiciais.
Por conseguinte, a Corte declarou que o Estado é responsável pela violação dos artigos
4.1, 5.1, 19, 24 y 26, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos.19
O caso teve origem em uma explosão ocorrida na Fábrica “Vardo dos Fogos”
no município de Santo Antônio de Jesus, em 1998, que tem baixíssimo IDH, no qual
das 60 pessoas trabalhadoras mortas em decorrência do evento, 40 eram mulheres
e 19, meninas. Foi constatado que grande parte das trabalhadoras eram mulheres
afrodescendentes com baixo nível de escolaridade e em condições de pobreza
extrema. O trabalho era executado sem equipamentos de proteção, com salários
baixos e na informalidade. Além disso, várias crianças trabalhavam na fábrica, a
despeito da proibição do trabalho infantil pela legislação brasileira.20
Na sentença, a Corte Interamericana, identificou padrões de discriminação
estrutural e interseccional com relação as vítimas do caso:
Em relação ao direito à igualdade e à proibição de discriminação, a Corte estabeleceu que
as vítimas deste caso estavam imersas em padrões de discriminação estrutural e
interseccional, pois se encontravam em uma situação de pobreza estrutural e eram, em
uma amplíssima maioria, mulheres e meninas afrodescendentes, algumas gestantes, que
não contavam com nenhuma outra alternativa econômica. A Corte concluiu que a
confluência desses fatores facilitou a instalação e funcionamento de uma fábrica
dedicada a uma atividade especialmente perigosa, sem fiscalização nem da atividade
19
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS
SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.1. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024.
20
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS
SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.1. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024.
414 | Gênero, violência e estruturas de poder
perigosa, nem das condições de higiene e segurança no trabalho por parte do Estado, e
levou as vítimas a aceitar um trabalho que colocava em risco sua vida e integridade e a
de seus filhos e filhas menores de idade. Ademais, a Corte concluiu que o Estado não
adotou medidas destinadas a garantir a igualdade material no direito ao trabalho a
respeito dessas pessoas. Em razão do exposto, a Corte constatou que o Estado violou os
artigos 24 e 26, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana, em prejuízo a 60
pessoas falecidas e seis sobreviventes da explosão da fábrica de fogos.21
No âmbito interno, o caso, deu origem a um processo administrativo, um
processo penal e inúmeros processos cíveis e trabalhistas. Destes, apenas o
processo administrativo havia sido concluído quando da emissão da sentença pela
Corte Interamericana. Os processos na esfera cível e trabalhista, embora alguns
tenham sido concluídos, a execução completa da reparação ainda não havia ocorrido
quando da emissão da sentença. Passados mais de 18 anos da explosão, a maioria
dos processos encontravam-se pendentes, em diferentes fases.
Os juízes da Corte Interamericana destacaram que a demora de quase 22 anos
sem uma decisão definitiva no âmbito do processo penal caracterizou falta de
razoabilidade, bem como apontaram a falta de diligência das autoridades judiciais
para que se chegasse a uma decisão.22
No âmbito cível e trabalhista, a Corte também, identificou falta de diligência
por parte das autoridades e falta de razoabilidade para conclusão dos processos. Em
suma, o Estado brasileiro falhou para assegurar o direito às garantias judiciais e à
proteção judicial das vítimas:
(...) a Corte concluiu que, neste caso, não se garantiu uma proteção judicial efetiva às
trabalhadoras da fábrica de fogos porque, ainda que se lhes tenha permitido fazer uso
dos recursos judiciais previstos legalmente, tais recursos ou não tiveram uma solução
definitiva depois de mais de 18 anos do início de sua tramitação, ou contaram com uma
21
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS
SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.3. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024.
22
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS
SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.3. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024.
Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 415
decisão favorável às vítimas, mas esta não pôde ser executada por atrasos injustificados
por parte do Estado.23
A Corte Interamericana afirmou que a própria sentença constitui uma forma
de reparação, mas determinou ainda as seguintes medidas de reparação integral:
A) Obrigação de investigar: 1) continuar com a devida diligência e em um prazo razoável
o processo penal, as ações cíveis de indenização por danos morais y materiais e os
processos trabalhistas; B) Reabilitação: 1) oferecer o tratamento médico, psicológico e
psiquiátrico que requeiram as vítimas; C) Satisfação: 1) publicar o resumo oficial da
Sentença no diário oficial e em um jornal de grande circulação nacional, e a sentença, na
íntegra, em uma página web oficial do Estado da Bahia e do Governo Federal, e produzir
um material para rádio e televisão no qual apresente o resumo da sentença; e 2) realizar
um ato de reconhecimento de responsabilidade internacional; D) Garantias de não
repetição: 1) Implementar uma política sistemática de inspeções periódicas nos locais
de produção de fogos de artificio; y 2) Desenhar e executar um programa de
desenvolvimento socioeconômico destinado à população de Santo Antônio de Jesus; E)
Indenizações Compensatórias: 1) pagar os valores fixados na Sentença em função dos
danos materiais e imateriais, e 2) o reembolso das custas e gastos. 24
O caso dos Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus é apenas
uma amostra da situação de vulnerabilidade a que estão sujeitas mulheres e
meninas no Brasil. Em 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
apontou um aumento do trabalho infantil no país:
Em 2022, o país tinha 756 mil crianças e adolescentes com 5 a 17 anos de idade nas
piores formas de trabalho, que envolviam risco de acidentes ou eram prejudiciais à
saúde. Isso equivale a 46,2% do 1,6 milhão de crianças e adolescentes que realizavam
atividades econômicas. Essa proporção caiu de 51,3% em 2016, para 45,8%, em 2019,
mas subiu para 46,2% em 2022.25
23
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS
SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.3. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024.
24
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS
SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.4. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024
25
NERY, Carmen; CABRAL, Umberlândia. De 2019 para 2002 trabalho infantil aumentou no Brasil.
AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. 20 de dez. de 2023. Disponível em:
416 | Gênero, violência e estruturas de poder
Sendo que as meninas recebem menos pelo trabalho do que os meninos e
quando se considera o fator racial, as crianças e adolescentes pretas ou pardas
recebem ainda menos pelo trabalho:
Entre as crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, os meninos tinham
rendimento de R$ 757, enquanto as meninas recebiam 84,4% desse valor (R$ 639).
Entre as crianças e adolescentes em trabalho infantil com remuneração, as pretas ou
pardas recebiam, em média, R$ 660 e as brancas, R$ 817.26
Tais dados são um reflexo da vulnerabilidade geral a que estão sujeitas as
pessoas pretas e pardas no Brasil. Os índices do IBGE demonstram que pessoas
pretas e pardas continuam com menor acesso à emprego, segurança, educação e
saneamento:
Uma análise das linhas de pobreza propostas pelo Banco Mundial atesta a maior
vulnerabilidade das populações preta e parda. Em 2021, considerando a linha de U$$5,50
diários (ou R$ 486 mensais per capita), a taxa de pobreza dos brancos era de 18,6%. Já
entre pretos o percentual foi de 34,5% e entre os pardos, 38,4%. Na linha da extrema
pobreza, (US$1,90 diários ou R$ 168 mensais per capita), as taxas foram 5,0% para
brancos, contra 9,0% dos pretos e 11,4% dos pardos. 27
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38700de-2019-para-2022-trabalho-infantil-aumentou-nopais#:~:text=Duas%20em%20cada%20cinco%20(40,por%2040%20horas%20ou%20mais. Disponível
em: 14 mar.2024.
26
NERY, Carmen; CABRAL, Umberlândia. De 2019 para 2002 trabalho infantil aumentou no Brasil.
AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. 20 de dez. de 2023. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38700de-2019-para-2022-trabalho-infantil-aumentou-nopais#:~:text=Duas%20em%20cada%20cinco%20(40,por%2040%20horas%20ou%20mais. Disponível
em: 14 mar.2024.
27
CABRAL, Umberlândia. Pessoas pretas e pardas continuam com menor acesso a emprego,
educação, segurança e saneamento. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. 11 de nov. de 2022. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35467pessoas-pretas-e-pardas-continuam-com-menor-acesso-a-emprego-educacao-seguranca-esaneamento Acesso em: 14 mar/ 2024.
Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 417
Com relação as mulheres, no estudo intitulado “Estatísticas de gênero:
indicadores sociais das mulheres no Brasil” 28 , o IBGE aponta que: embora as
mulheres apresentem grau de instrução maior, recebem menos do que os homens
quando ocupam cargos gerenciais; as mulheres estão subrepresentadas na política,
sendo que o Brasil apresenta a menor proporção de deputadas federais da América
Latina; as mulheres estão sujeitas violência em seu próprio domicílio muito mais do
que os homens; as mulheres dedicam o dobro do tempo que os homens nos
cuidados com pessoas ou afazeres domésticos, entre tantos outros exemplos de
vulnerabilidades e desigualdades. Quanto às mulheres pretas e pardas o estudo
afirma que:
As mulheres pretas ou pardas com crianças de até 3 anos de idade no domicílio
apresentaram os menores níveis de ocupação: 49,7% em 2019. Entre as mulheres
brancas, a proporção foi de 62,6%. Para aquelas sem a presença de crianças nesta faixa
etária, os percentuais foram 63,0%, entre mulheres pretas e pardas, e 72,8% entre
brancas.29
A interseccionalidade é um conceito elaborado pela ativista de direitos civis
Kimberlé Crenshaw, no contexto do movimento de mulheres negras nos Estados
Unidos,
sistematizado
em
um
texto,
publicado
em
1989,
intitulado
“Desmarginalizando a intersecção de raça e sexo: uma crítica feminista negra da
doutrina antidiscriminação, teoria feminista e políticas antirracistas”30.
Através da teoria crítica racial, que vê o racismo como algo naturalizado pelas
instituições e pelas leis e não apenas como um comportamento individual, Kimberlé
28
Estatísticas de Gênero: ocupação das mulheres é menos em lares com crianças de até três anos.
04 de março de 2021. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-denoticias/releases/30172-estatisticas-de-genero-ocupacao-das-mulheres-e-menor-em-lares-comcriancas-de-ate-tres-anos Acesso em: 14 mar. 2024.
29
Estatísticas de Gênero: ocupação das mulheres é menos em lares com crianças de até três anos.
04 de março de 2021. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-denoticias/releases/30172-estatisticas-de-genero-ocupacao-das-mulheres-e-menor-em-lares-comcriancas-de-ate-tres-anos Acesso em: 14 mar. 2024.
30
No original Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of
antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. Disponível em:
https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1052&context=uclf. Acesso em:
14 mar. 2024.
418 | Gênero, violência e estruturas de poder
Crenshaw chamou atenção para o fato de que, para as mulheres negras, as
opressões se articulam: elas enfrentam não só questões ligadas ao gênero, mas
também à raça. Isso vale também para outros casos, como mulheres com deficiência
ou então de diferentes classes sociais, ou até mulheres mais velhas.31
Os dados do IBGE descritos no texto sobre as condições sociais de meninas
e mulheres no Brasil e, em especial, sobre mulheres e meninas pretas e pardas,
demonstram a atualidade do conceito de interseccionalidade e a importância da luta
antirracista dos feminismos negros:
Os feminismos negros, enquanto movimentos sociais, começam por questionar
justamente a categoria mulher como uma unicidade. E fazem isso, principalmente,
destacando a categoria raça para demonstrar as diferenças em ser lida como mulher
negra em uma sociedade que, para além de ser sexista, é também racista.
Os feminismos negros, portanto, denunciam que assim como, de maneira estrutural, o
sexismo posiciona a mulher de forma subordinada na sociedade, o racismo também
ocupa esse lugar quando interseccionado com demais marcadores sociais. Esses
tensionamentos propostos pelas mulheres negras, a princípio, causaram grande
desconforto tanto nos movimentos de mulheres feministas brancas quanto nos
movimentos negros e nas instituições mistas nas quais essas mulheres integravam; isso
porque o atravessamento das categorias gênero e raça colocava essas mulheres em
sub-representação nos dois casos.32
Importante destacar que: a) interseccionalidade é uma das ferramentas
teórico-metodológicas possíveis para entender as múltiplas opressões; b) a
interseccionalidade não estabelece uma hierarquia ou somatória de opressões; c) o
lugar de fala de cada indivíduo é multirreferenciado a partir de suas experiências.33
31
NÓR, Bárbara. Você sabe o que é interseccionalidade? Entenda por que isso é importante. 17 de
julho de 2022. INSPER. Disponível em: https://www.insper.edu.br/noticias/voce-sabe-o-que-einterseccionalidade-entenda-por-que-isso-e-importante/ Acesso em: 14 mar. 2024.
32
ASSIS, Dayane N. Conceição de. Interseccionalidades. Salvador: UFBA, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências; Superintendência de Educação a Distância, 2019. Disponível em:
https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/554207/2/eBook%20-%20Interseccionalidades.pdf.
Acesso em: 14 mar. 2024.
33
ASSIS, Dayane N. Conceição de. Interseccionalidades. Salvador: UFBA, Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências; Superintendência de Educação a Distância, 2019. Disponível em:
https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/554207/2/eBook%20-%20Interseccionalidades.pdf.
Acesso em: 14 mar. 2024.
Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 419
Ao aplicar o conceito de interseccionalidade, no caso da Fábrica de Fogos, a
Corte Interamericana evidencia as múltiplas opressões a que estavam sujeitas as
vítimas: mulheres e crianças, negras e em situação de extrema pobreza.
O direito internacional do reconhecimento é um campo de estudos que tenta
considerar as novas reivindicações de sujeitos de direitos no pós-guerra fria. A partir
das reivindicações de Estados desfavorecidos, minorias estigmatizadas, como
grupos étnicos marginalizados, povos autóctones e mulheres, por exemplo, os atores
da sociedade internacional desenvolveram este campo de estudo.34
Como destaca Tourme-Jouannet:
O fim da Guerra Fria testemunhou o surgimento de um novo fenômeno que tem sido
muito estudado nas ciências sociais. O despertar das identidades e as muitas aspirações
contemporâneas ao reconhecimento chegaram a tal ponto depois de 1989 que se pode
falar do surgimento de um verdadeiro paradigma do reconhecimento, ou seja, um novo
sistema de representação que influencia e condiciona como os atores internos e
internacionais agem e reagem nessa temática.35
O direito internacional do reconhecimento tem sido mobilizado em alguns
casos específicos como resposta às questões identitárias e culturais e suas
aspirações por reconhecimento em pelo menos três frentes: a primeira, diz respeito
ao reconhecimento da diversidade cultural que visa combater os fenômenos de
denominação cultural associados à globalização; a segunda se relaciona à
concessão de direitos específicos pelos quais se busca preservar a identidade de
grupos e indivíduos; e, a terceira, diz respeito ao reconhecimento dos danos
cometidos no passado e a reparação dos crimes históricos.36
A construção dos direitos das mulheres faz parte do movimento do direito
internacional do reconhecimento. Tourme-Jouannet 37 afirma que podemos
34
TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito
Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.403-422, 2020.
35
TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito
Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.406, 2020.
36
TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito
Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.409, 2020.
37
TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito
Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.412, 2020.
420 | Gênero, violência e estruturas de poder
identificar os direitos concedidos aos indivíduos, independente de pertencerem ou
não a um grupo, mas segundo hipóteses muito distintas: são os direitos culturais, os
direitos humanos e os direitos das mulheres, segundo a autora:
Todas essas categorias de direitos fornecem uma imagem vívida da diversidade de
práticas relacionadas ao reconhecimento e de modo como os instrumentos jurídicos
respondem às suas aspirações, alternando constantemente entre a preocupação em
respeitar as diferenças entre indivíduos e grupos e a preocupação em respeitar a sua
igual dignidade.38
Nancy Fraser 39 reaproxima a questão da política do reconhecimento das
diferenças à discussão acerca das injustiças econômicas geradas em função da
estrutura econômica e política. Assim, as questões de exploração trabalho,
marginalização econômica e privação das mulheres e meninas demandam além do
reconhecimento, o acesso à justiça distributiva. Desta forma, Fraser defende uma
transformação política, cultural e econômica para que exista a igualdade de gênero,
que é justamente o que se visibiliza a partir do perfil das vítimas no Caso Fábrica de
Fogos Santo Antônio de Jesus e outros vs. Brasil.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) contribuiu para a construção
de um conjunto normativo regional em prol dos direitos das mulheres: a Carta da
Organização dos Estados Americanos40 inclui uma disposição de não discriminação
38
TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito
Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.412, 2020.
39
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In:
Cadernos de Campo, São Paulo, n.15, p.1-382, 2006.Disponível em
http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/viewFile/50109/54229. Acesso em julho 2022.
P.231—236.
40
A Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) foi aprovada pela Nona Conferência
Internacional Americana, realizada em Bogotá́ no início de 1948. Ela foi reformada em 1967 pela
Terceira Conferência Interamericana Extraordinária, realizada em Buenos Aires e em 1985, mediante
o "Protocolo de Cartagena das Índias", assinado no Décimo Quarto Período Extraordinário de Sessões
da Assembleia Geral. O Protocolo de Washington (1992) introduziu modificações adicionais, que
dispõem que um dos propósitos fundamentais da OEA é promover, mediante a ação cooperativa, o
desenvolvimento econômico, social e cultural dos Estados membros e ajudar a erradicar a pobreza
extrema no Hemisfério. Além disso, mediante o Protocolo de Manágua (1993), que entrou em vigor
em janeiro de 1996, com a ratificação de dois terços dos Estados membros, foi estabelecido o
Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS
(OEA).
CARTA
DA
ORGANIZAÇÃO
DOS
ESTADOS
AMERICANOS.
Disponível
em:
http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organização_dos_Estados_Americanos.htm .
Acesso em: 14 mar. 2024.
Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 421
em seu capítulo II, artigo 3 (l), e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos41
em seu artigo 1. Além disso, em 1994, a Organização adotou a Convenção
Interamericana sobre a Prevenção, Punição e Erradicação da Violência contra a
Mulher (Convenção de Belém do Pará)42, reforçando assim, os direitos das mulheres
junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
A sentença da Corte Interamericana, no caso da Fábrica de Fogos, ao usar a
categoria de interseccionalidade com relação às vítimas, para além de evidenciar as
diferentes opressões a que estavam sujeitas, é mais um instrumento que contribui
para o reconhecimento dos direitos das mulheres.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Caso Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus e seus
Familiares Vs. Brasil, levou a condenação do Brasil junto ao Sistema Interamericano
de Direitos Humanos, em sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos em 15 de julho de 2020.
O caso teve origem em uma explosão ocorrida na Fábrica “Vardo dos Fogos”
no município de Santo Antônio de Jesus, em 1998, que tem baixíssimo IDH, no qual
das 60 pessoas trabalhadoras mortas em decorrência do evento, 40 eram mulheres
e 19, meninas. Foi constatado que grande parte das trabalhadoras eram mulheres
afrodescendentes com baixo nível de escolaridade e em condições de pobreza
extrema. Na sentença, a Corte determinou medidas de reparação integral a serem
adotadas pelo Estado brasileiro, bem como identificou padrões de discriminação
estrutural e interseccional com relação as vítimas do caso.
Tais padrões de discriminação estrutural e interseccional com relação as
vítimas, na sua maioria mulheres e crianças pretas, são um reflexo do que acontece
na sociedade brasileira cotidianamente. Os dados do IBGE trazidos ao texto sobre
41
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) foi promulgada
no Brasil através do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm . Acesso em: 14 mar. 2024.
42
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher foi
promulgada no Brasil através do Decreto n. 1973 de 1 de agosto de 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm . Acesso em: 14 mar. 2024.
422 | Gênero, violência e estruturas de poder
questões de gênero e raça no acesso à educação, emprego, renda, saneamento entre
outros, mostram como a desigualdade ainda é algo presente no cotidiano de
mulheres e meninas. Quando considerados aspectos raciais, principalmente em
relação as mulheres e meninas pretas e pardas, as vulnerabilidades e desigualdades
são ainda maiores.
O direito internacional do reconhecimento contribui para a luta em prol dos
direitos das mulheres, mas o Sistema Interamericano de Direitos Humanos ainda
caminha a passos lentos nas questões de gênero. As decisões tanto da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos como da Corte Interamericana de Direitos
Humanos são relevantes para dar espaço ao debate, mas não são suficientes frente
aos desafios do continente. No que diz respeito ao Brasil, o SIDH proferiu decisões
com ampla repercussão nas políticas públicas e legislação brasileira com relação
aos direitos das mulheres, como destacado no trabalho: o Caso Maria da Penha, no
âmbito da Comissão, que contribuiu para adoção da Lei Maria da Penha; o Caso
Barbosa de Souza, no âmbito da Corte Interamericana, que examinou a questão do
feminicídio.
O Caso da Fábrica de Fogos, ao reconhecer a questões estruturais e
interseccionais a que estavam sujeitas as vítimas, vem reforçar esse importante
conjunto de decisões do SIDH e auxiliar no debate e efetivação dos direitos das
mulheres.
REFERÊNCIAS
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Direitos Humanos e os estereótipos de gênero em casos de violência contra as
mulheres: o caso Barbosa de Souza.p.195-212. In: Direito internacional dos direitos
humanos [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI Coordenadores: Ana
Paula Martins Amaral; Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini; Vladmir Oliveira da
Silveira – Florianópolis: CONPEDI, 2022.
ASSIS, Dayane N. Conceição de. Interseccionalidades. Salvador: UFBA, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências; Superintendência de Educação a Distância, 2019.
Disponível em:
https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/554207/2/eBook%20%20Interseccionalidades.pdf. Acesso em: 14 mar. 2024.
Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 423
CABRAL, Umberlândia. Pessoas pretas e pardas continuam com menor acesso a
emprego, educação, segurança e saneamento. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. 11 de
nov. de 2022. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencianoticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35467-pessoas-pretas-e-pardascontinuam-com-menor-acesso-a-emprego-educacao-seguranca-e-saneamento
Acesso em: 14 mar/ 2024.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA
FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL.
RESUMO OFICIAL. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em:
14 de mar.2024.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Herzog e outros Vs.
Brasil. Sentença de 15 de março de 2018. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_por.pdf. Acesso em:
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CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros
(“Guerrilha do Araguaia”) vs. BRASIL. Sentença de 24 de novembro de 2010.
Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em:
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CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso do Povo Xucuru e seus
membros vs. Brasil. Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Disponível em:
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CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza vs.
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FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era
pós-socialista. In: Cadernos de Campo, São Paulo, n.15, p.1-382, 2006.Disponível
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Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-deimprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/30172-estatisticas-de-generoocupacao-das-mulheres-e-menor-em-lares-com-criancas-de-ate-tres-anos
Acesso em: 14 mar. 2024.
424 | Gênero, violência e estruturas de poder
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TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In:
Revista de Direito Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.403-422, 2020.
22. ANÁLISE SOBRE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E O EXERCÍCIO DA PARENTALIDADE
ANALYSIS ABOUT GENDER-BASED VIOLENCE AND THE EXERCISE OF PARENTING
https://doi.org/10.36592/9786554601566-22
Thaysa Farias Ferreira1
Antônia Rozelir da Silva Araújo2
RESUMO
O artigo propõe considerações sobre como a violência de gênero e intrafamiliar
praticada entre homem/pai e mulher/mãe afeta a atuação parental e o
desenvolvimento da prole. Discute sobre as configurações das famílias
contemporâneas e como a parentalidade se apresenta; expõe brevemente sobre o
conceito de violência, com ênfase para a violência de gênero no espaço intrafamiliar;
utiliza da teoria crítica das Ciências Sociais e estudos no Serviço Social, enfatizando
as categorias de classe, gênero e raça. Conclui-se que a violência persiste como
notória expressão da questão social que afeta as relações familiares, e as políticas
de proteção social são insuficientes no seu enfrentamento, agravando o sofrimento
psicossocial de crianças e adolescentes.
Palavra-chave: parentalidade; violência de gênero e intrafamiliar; proteção social.
ABSTRACT
The article proposes considerations on how gender and intra-family violence practiced between
men/fathers and women/mothers affects parental actions and the development of offspring.
Discusses the configurations of contemporary families and how parenthood presents itself;
briefly explains the concept of violence, with emphasis on gender violence in the intra-family
space; use of critical theory from Social Sciences and studies in Social Work, emphasizing the
categories of class, gender and race. It is concluded that violence persists as a notorious
expression of the social issue that affects family relationships, and social protection policies
are insufficient, aggravating the psychosocial suffering of children and adolescents.
Keyword: parenthood; gender-based and intrafamily violence; social protection.
1. INTRODUÇÃO
Na atualidade, observamos a efervescência tanto dos modos de existir das
famílias contemporâneas quanto sobre o saber que estamos construindo a partir
1
Assistente Social. Analista Judiciária no Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas; e-mail:
thaysa.farias@tjam.jus.br; Lattes ID http://lattes.cnpq.br/7295516536848863
2
Bacharela em Serviço Social; e-mail: ardsa1999@gmail.com; Lattes ID:
http://lattes.cnpq.br/1626111333319222
426 | Gênero, violência e estruturas de poder
delas; circunscrito a isto, temos que hoje a parentalidade ainda constitui um aspecto
de perenidade dos laços familiares, visto que as relações conjugais são menos
estáveis. (GOIS; OLIVEIRA, 2019).
Segundo Adriana de Toni (2017, p. 149), a parentalidade abrange as
responsabilidades e tarefas que os pais assumem em relação aos seus filhos,
independentemente da origem de filiação; isso implica em proporcionar-lhes
cuidados diversos: materiais, afetivos e simbólicos, incluindo a transmissão de
valores, conhecimentos e habilidades necessárias para o desenvolvimento integral
deles. Por isso, mesmo com as profundas transformações vividas, nas formações
familiares atuais, o vínculo entre pais e filhos
persiste, por ser nele onde as
obrigações morais atuam de forma mais significativa. (SARTI, 2011, p. 72).
No Brasil, com as mudanças pós-constituinte, observamos intenso e
crescente movimento social, político e jurídico em torno das famílias. Antes
sobressaia a visão de família burguesa, onde em regra, a determinação da guarda
dos filhos era em favor da genitora, a fim de seguir demarcando os papéis de gênero,
ou seja, a mulher doméstica e maternal, e ao homem cabia o papel de provedor.
Nesse cenário, por um lado, predominava a sobrecarga da mulher no cuidado integral
dos filhos, enquanto por outra via, o genitor não detentor da guarda, frequentemente
tinha seu acesso limitado à prole, comprometendo a continuidade do elo
sociofamiliar.
Assim, a promulgação da Lei nº 11.698/2008 que instituiu e disciplinou a
guarda compartilhada, representou um divisor de águas, reconhecendo a
importância da participação parental equitativa na criação dos filhos, em oposição
ao privilégio antes deferido ao vínculo civil e/ou afetivo existente entre os guardiões.
Em seguida, a Lei nº 13.058/2014 reforçou tais avanços ao definir o conceito de
guarda compartilhada e suas aplicações práticas no Código Civil, reafirmando nele o
princípio da garantia do direito de convivência familiar e comunitária preconizado
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.
Neste compasso acelerado das questões que envolvem as famílias brasileiras,
perpassam também, a lei sobre alienação parental - 12.318/2010; a lei Maria da
Penha - 11.340/2006; e a recentemente sancionada, Lei nº 14.713/2023, com o
objetivo de abordar a especificidade relacionada à guarda compartilhada em casos
Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 427
de violência doméstica, em que a princípio, busca proteger suas vítimas,
especialmente as crianças e adolescentes, garantindo que estes não sejam expostos
a ambientes potencialmente prejudiciais.
A partir da nossa inserção profissional em vara de família3, que nos levou a
conduzir estudos sociais, discussões em grupo e pesquisa bibliográfica quanto ao
tema proposto, neste artigo, buscamos lançar luz sobre como a violência de gênero
e intrafamiliar interfere no exercício da parentalidade que pode resultar em evidentes
prejuízos ao pleno desenvolvimento dos filhos, negando-lhes a garantia do princípio
da proteção integral.
2. DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO E INTRAFAMILIAR E OS CAMINHOS DA PARENTALIDADE
Em nossa cultura, a violência é aceita e perpetuada como um recurso legítimo
para resolver conflitos e impor a vontade de uns sobre os outros. Em particular,
temos a violência de gênero sendo uma manifestação da desigualdade entre homens
e mulheres, a qual é alimentada por uma estrutura patriarcal que sustenta e legitima
a subordinação de um perfil feminino sob o masculino. (SAFFIOTI, 2015). Dentro
deste conceito amplo, encontra-se a violência intrafamiliar que manifesta-se nas
relações hierárquicas e intergeracionais, através de modos de ser e agir no cotidiano
com faces diversas da violência para fins de solução de conflito, estratégia de
educação, expressão de emoções, ou mesmo, a falta de cuidados básicos entre seus
pares, por exemplo. (Brasil, 2010, p. 29).
Sabemos que a distinção de classe social está intrinsecamente relacionada à
violência de gênero e intrafamiliar, pois existem dinâmicas de poder e desigualdade
que se manifestam de maneira específica em diferentes estratos sociais. Neste
mesmo entendimento, agregamos a categoria raça como uma construção social,
promovida ao longo da história para perpetuar hierarquias baseadas em
características identitárias e outros aspectos sociais, como o traço físico, de cor da
pele, textura do cabelo, elementos faciais, etc. (PERES; PENHA, 2018).
3
A escrita deste artigo é resultado do trabalho de supervisão de estágio em Serviço Social numa vara
de família do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, desenvolvido em 2023 entre a profissional
e estagiária de Serviço Social, a partir da elaboração de estudos sociais em que os temas da violência
doméstica e da parentalidade convergiam.
428 | Gênero, violência e estruturas de poder
Cisne e Santos (2018) pontuam que nas sociedades capitalistas todo
indivíduo pertence a uma classe, deve possuir um gênero e é racializado, onde essas
relações sociais são estruturantes das desigualdades. Por exemplo, em sociedades
marcadas por disparidades econômicas, observa-se que “famílias desfeitas são
mais pobres, e num círculo vicioso, as famílias mais pobres desfazem-se mais
facilmente” (SARTI, 2011, p. 66), sendo que em seus papéis sociais, essas famílias
pobres complementam-se para realizar a divisão do irrisório que elas têm, visto que
não contam com a efetiva participação do Estado para garantir-lhes direitos
mínimos.
É dessa imbricação dialética entre classe, raça e gênero que a sociedade
capitalista vai operar agudas divisões no mundo do trabalho e nas próprias classes
sociais, provocando uma simbiose entre exploração e opressão cada vez mais
complexificada. Por isso, a violência de gênero e intrafamiliar emerge na sociedade
como uma das expressões mais gritantes da questão social, pois propaga as
disparidades econômicas, políticas e culturais presentes entre as classes sociais, as
quais se manifestam por meio das discrepâncias nas relações de gênero,
características étnico-raciais e formações regionais, impactando diversos
segmentos da sociedade civil no acesso aos bens e conquistas da civilização.
(IAMAMOTO, 2001).
No Brasil, a história da violência remonta há séculos de opressão e
desigualdade de classe, raça e gênero; assim como, o modelo de família tradicional
é caracterizado pela família nuclear, composta por um pai, uma mãe e seus filhos,
seguindo padrões heterossexuais e monogâmicos (GUEIROS, 2002), influenciado
pela cultura europeia - capitalista, burguesa, cristã, onde idealiza-se e naturaliza-se
um único formato que nega a historicidade, mutabilidade e diversidade das famílias,
e até hoje perpetua desigualdades sociais, econômicas e de gênero. (ROCHA, 2001,
p. 119).
A naturalização desse perfil familiar burguês perpetua a violência de gênero
de várias maneiras, pois, reforça estereótipos tradicionais de gênero, nos quais se
espera que homens e mulheres desempenhem papéis rígidos e específicos na família
(ROCHA, (2001), por isso, justifica a violência como uma forma intrínseca do agir
masculino no seu indispensável papel de "controle" ou "domínio" sobre os demais,
Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 429
deslegitimando o reconhecimento de relações abusivas no âmbito sociofamiliar. Aos
filhos, a tendência é responder às situações vividas de acordo com ideias, conceitos,
tradições, mitos e segredos que sustentam e representam padrões de repetição
familiar, logo, se possuírem um modelo de interação violenta, irão aprender também
a serem violentos, seguindo ao movimento transgeracional do seu grupo; e uma vez
internalizados, estes aprendizados são incorporados na escala de valores do
indivíduo determinando sua forma de enfrentar as expectativas sociais, sendo isto
específico para cada sexo. (BARROS, 2015).
Somente a partir dos anos de 1960, com as lutas dos movimentos feministas
e LGBTQI+, que a violência de gênero passou a ser amplamente discutida e
combatida. Entretanto, no pós-1960 colocamo-nos diante de um descompasso,
onde a mudança de mentalidade cultural não acompanhou o ritmo das mudanças
legais, e vice-versa; observamos que parcela significativa da sociedade ainda
alicerça sua compreensão sobre o imaginário de família numa perspectiva
tradicional burguesa, refutando a pluralidade de modos de formação de famílias,
assim, mantendo a violência de gênero e intrafamiliar como um grave problema
social e de saúde pública.
Nossa Constituição Federal evoca em seu artigo 227 que:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O ECA dispõe sobre a proteção integral de crianças e adolescentes, bem como
sobre a adoção de políticas públicas para seu desenvolvimento pleno e saudável. A
Convenção de Belém do Pará proclama que seus Estados signatários devem criar
condições objetivas para o rompimento do ciclo da violência.
Dos art. 944 ao art. 954 no Código Civil brasileiro, trata-se de modo amplo
sobre o direito à indenização quando direitos diversos são violados, incluindo-se o
direito dos filhos à proteção devida por quem detém o poder familiar. Existe ainda, a
430 | Gênero, violência e estruturas de poder
Lei nº 13.010/2014 que estabelece o direito da criança e do adolescente de serem
educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou
degradante.
Há a Lei nº 13.104/2015 que versa sobre a gravidade do feminicídio. A Lei
13431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do
adolescente vítima ou testemunha de violência, traz a tipificação das violências:
física, psicológica, sexual e institucional. A Lei 13.715/2018, que trata da retirada do
poder familiar de genitor que é autor de violência contra o outro genitor/cuidador. E
a recente Lei 14.717/2023 que institui benefício social, no valor de um salário mínimo,
a ser pago aos filhos e dependentes menores de dezoito anos de idade de mulheres
vítimas de feminicídio.
Ao elencarmos essas normativas que no Brasil visam garantir proteção social
e reparação histórica, acentuamos que nelas perpassa o nosso vigente Estado
patriarcal, conservador e punitivista, onde a intervenção com famílias se faz
segmentada e focada apenas sobre o ato criminoso versus a penalidade, mas não
sobre a violência estrutural. (MOURA, 2021). Ou seja, é possível presumir que para
nós o acúmulo de debates sobre o tema da violência e suas leis de combate e/ou
promoção da paz, por vezes, mostra-se inócuo.
Para retratar de outro modo, no Sistema de Justiça, observamos as
interferências da cultura patriarcal quando analisamos as incongruências na
proteção ofertada à mulher vítima de violência de gênero e intrafamiliar, aos filhos e
ao exercício da parentalidade. Neste caso, verificamos que as leis da alienação
parental e da guarda compartilhada apresentam uma relação indissociável, pois, elas
de algum modo caracterizam quem seria o homem/pai ou a mulher/mãe apto a
exercer o poder familiar, assim como, revelam a disputa sociopolítica no Brasil sobre
os direitos de genitores e prole à convivência familiar e comunitária e à equidade
parental. Quando essas duas leis unem-se à lei Maria da Penha, temos evidente
dissonância entre elas, pois muitas vezes, as primeiras são destacadas por um
judiciário interessado em legitimar modelo conservador e opressor de família,
privilegiando o sistema patriarcal, por isso, entendemos que o cotidiano das leis e
atos jurídicos que versam sobre a proteção familiar pouco alcançam o objetivo
proclamado.
Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 431
3. SOBRE O CICLO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A PROTEÇÃO SOCIAL DOS FILHOS
Como dito anteriormente, a leitura das leis que dialogam com o exercício da
parentalidade exige compreensão teórica e crítica sobre as famílias, com as
interseccionalidades de classe, raça e gênero, a fim de identificarmos suas
contradições. Com este entendimento e a partir da nossa experiência no trabalho no
campo sociojurídico com famílias que vivenciaram a violência de gênero, propomos
uma breve análise do ciclo da violência 4 , associando como os filhos poderiam
vivenciar cada fase, para assim indicar, como eles são afetados pela violência de
gênero e intrafamiliar praticada pelo homem/pai contra a mulher/mãe.
Na primeira fase do ciclo da violência ocorre o aumento gradual da tensão no
relacionamento entre os genitores; observamos que os filhos absorvem o estresse e
a instabilidade vivida no lar reagindo com ansiedade, insegurança e medo do futuro,
p.ex.; os pais estão imersos no conflito da conjugalidade, muitas vezes,
negligenciando5 aspectos da rotina da prole como a participação escolar, cuidados
referentes à saúde, à sociabilidade, etc. comportamento que prejudicar o
desenvolvimento da prole se insistido ao longo do tempo.
Na segunda fase, concretiza-se a violência física e verbal, onde o autor da
violência descarrega sua raiva e frustração sobre a vítima, prática que por sua própria
característica doméstica,
frequentemente ocorre na presença dos filhos;
percebemos que essas crianças e/ou adolescentes em que os pais habitualmente
discutem na frente deles, usando-os como intermediários para transmitir
mensagens ou até mesmo culpabilizando-os pelo conflito, acreditam que de fato são
responsáveis pelo sofrimento dos mesmos; ademais, ao testemunharem essa
explosão de violência, frequentemente experimentam adoecimento psicossomático,
por exemplo, dores no corpo, sono irregular, alteração do apetite, alergias, etc.
4
Teoria desenvolvida por Lenore Walker (1979), descreve a dinâmica complexa dos relacionamentos
abusivos, com três fases interligadas: a fase da tensão, a fase da explosão e a fase da lua de mel.
5
O Ministério da Saúde caracteriza negligência como omissões dos adultos (pais ou outros
responsáveis pela criança ou adolescente, inclusive institucionais), ao deixarem de prover as
necessidades básicas para o desenvolvimento físico, emocional e social de crianças e adolescentes.
Inclui, por exemplo, a privação de medicamentos; a falta de atendimento à saúde e à educação; o
descuido com a higiene; a falta de estímulo, de proteção de condições climáticas (frio, calor), de
condições para a frequência à escola e a falta de atenção necessária para o desenvolvimento físico,
moral e espiritual (BRASIL, 2004).
432 | Gênero, violência e estruturas de poder
Na última fase, descrita como lua de mel, o autor da violência indica
arrepender-se das práticas e expressa intenção de mudança, a fim de manter o
relacionamento com a vítima e/ou grupo familiar. Durante essa fase, a prole pode
sentir alívio temporário, mas também, ficar confusa e ambivalente em relação ao
autor da violência; os filhos esperam que a situação melhore, no entanto, é comum o
reinício do ciclo da violência; assim, por vezes, os filhos, especialmente o mais velho,
incorporam funções protetivas dos adultos, além de suportarem pressões sociais
para alcançar a estabilidade do grupo familiar, a fim de mantê-lo unido.
Diversos e complexos motivos fazem com que o ciclo da violência não seja
rompido facilmente. No geral, mesmo após o término do relacionamento conjugal é
comum nos discursos das mulheres e filhos a tolerância à violência sofrida; eles
amenizam a gravidade ao justificarem a figura social e moral do autor da violência
como o “provedor da família”, um “bom pai” ou alguém “doente/fragilizado,” p.ex. É
comum o homem/pai buscar a manutenção do controle e o poder sobre sua excompanheira e seus filhos, utilizando-se do vínculo parental; e que a mulher/mãe,
por sua vez, é única responsabilizada caso o filho não se desenvolva como o
socialmente esperado. Também, alguns desses filhos encaram o casamento na
adolescência como estratégia para desvincular-se da família de origem, onde o
pretenso parceiro e a relação são idealizados, perpetuando muitas vezes, o ciclo da
violência.
Pontuamos que os filhos que mantêm vínculos com um genitor autor de
violência muitas vezes desejam preservar essa relação sem perceberem que estão
sendo vítimas de violência. (BARROS, 2015). Tanto os filhos quanto os próprios
genitores têm dificuldade em identificar as várias manifestações de violência por não
serem notórias como a violência física. Entretanto, é certo que “testemunhar a
violência doméstica deixa marcas na vida das crianças e dos adolescentes e,
lamentavelmente, seus impactos, muitas vezes, são subestimados e até mesmo
banalizados pelo Estado e pela sociedade” (Faermann; Silva, 2014, p.103), pois, para
além de um aspecto individual e/ou subjetivo, a violência dita invisível, manifesta-se
concretamente em dificuldades de aprendizado, participação escolar, problemas de
saúde, socialização, que perduram na vida adulta.
Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 433
Ainda, a jornalista e pesquisadora Renata Moura, em seu trabalho “A criança
suja de sangue” 6 (2021), traz que nas ocorrências de feminicídio, os filhos desta
violência não são observados
em nossa sociedade
na mesma lógica que a
gravidade da violência praticada contra as mulheres. Não existem pesquisas ou
estatísticas organizadas que mapeiem essa realidade, a fim de mensurar os
impactos dessa violência nos filhos nem da resiliência deles para sobrepô-la, mesmo
já constatado por outros estudos como esse aspecto segue adoecendo gerações e
alimentando um ciclo sem fim da violência; e por não haver estudos sistematizados,
não há políticas públicas com o olhar para esta demanda, então, esses filhos e seus
pares que também precisam ser vistos pela rede de atendimento, crescem sem o
efetivo suporte do Estado.
Então, considerando esse cenário complexo quanto à violência invisível ou/e
violência indireta sofrida por crianças e adolescentes, através da violência de gênero
e intrafamiliar praticada por homem/pai contra mulher/mãe, pontuamos a
imprescindível ação de examinar e mapear os pontos de trânsito dessa criança e
adolescente para considerar as possibilidades de identificação dessa violência. Por
isso, ressaltamos que para além da família, as instituições que atuam com as
políticas públicas são potenciais espaços de prevenção, detecção e proteção contra
violência, com destaque para os serviços de saúde por meio das unidade básica de
saúde – UBS; a assistência social em seus centro de referências CRAS e CREAS; e a
educação em toda sua rede de ensino básico e fundamental.
No entanto, a eficácia dessas instâncias é comprometida por uma série de
desafios. Um deles é que, por vezes, há falhas em reconhecer os sinais de violência
indireta contra crianças e adolescentes tanto por a equipe técnica não dispor de
qualificação adequada para isso quanto pela ausência de sistematização no
atendimento e de serviço especializado que resulta em análises superficiais ou
negligência desses casos.
O Ministério da Saúde, através da Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas, lista algumas atitudes
6
Reportagem especial da Tribuna do Norte, disponível no site www.acriancasujadesangue.com.br,
trabalho que é fruto da dissertação de mestrado da jornalista potiguar Renata Moura.
434 | Gênero, violência e estruturas de poder
preventivas que devem ser adotadas por profissionais de saúde diante de situações
de violência no contexto familiar, a saber:
Orientar as famílias sobre a ressignificação das relações familiares em prol da tolerância
e da formação de vínculos protetores;
Acompanhar e apoiar as famílias no processo de construção de novos modos de agir e
de educar as crianças e adolescentes;
Buscar apoio de outros profissionais, quando julgar pertinente, e articular as ações
desenvolvidas no serviço com a rede de cuidados e de proteção social no território.
(Ministério da Saúde, p.19, 2010)
A intervenção eficaz exige uma abordagem interdisciplinar, envolvendo a
colaboração
entre
profissionais
das
várias
políticas
públicas,
além
do
reconhecimento de outros setores relevantes na sociedade civil que atuam como
espaços de contenção pontual da violência, por exemplo, organizações esportivas,
religiosas e sociais. A criação de redes de apoio e o fortalecimento das instituições
que desempenham um papel protetivo na vida de crianças e adolescentes são
passos essenciais para romper o ciclo da violência dita invisível.
Ademais, a sociedade precisa ser informada sobre a existência dessa forma
de violência, compreender seus impactos e saber como agir diante de situações
suspeitas. Etayo (2011, p. 16 apud BARROS, 2015) traz que “homens que agridem as
suas parceiras sentimentais estão normatizados por um padrão de educação que,
inclusive hoje, é exigido socialmente”; ou seja, para além de um análise maniqueísta
sobre esses homens autores de violência que, conforme cada ponto de vista, os
determinam como anjos ou demônios, constatamos que simplesmente a maioria
deles reproduzem os modelos culturais instituídos sem ressignificá-los, por isso, o
diálogo e a conscientização sobre masculinidades desempenham hoje papel
fundamental para romper o ciclo da violência.
Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 435
4. SERVIÇO SOCIAL, TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS E VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Sobre o que discorremos, o Serviço Social como profissão imbricada na
mediação do capital versus trabalho, está inserido nos diversos espaços sócio
ocupacionais, sendo privilegiado pela sua atuação no trabalho social com famílias.
Como área de conhecimento e profissão, o Serviço Social analisa as transformações
societárias para intervir diretamente nas múltiplas expressões da questão social
manifestas no complexo processo de desigualdade social. Assim, oferece respostas
imediatas às demandas objetivas dos usuários, viabilizando-lhes o acesso a direitos
materializados em políticas públicas diversas, além de, orientação social,
encaminhamento aos serviços da rede de proteção, além de conectá-los aos
mecanismos democráticos de controle social e da sociedade civil organizada
(AMORIM, 2009).
Para a/o assistente social é fundamental uma análise das famílias que supere
a fragmentação do ser social, exigindo para isto, uma perspectiva abrangente que
considere o contexto da violência, os aspectos socioeconômicos, culturais e
subjetivos envolvidos. É essencial desvelar e mediar as expressões da questão
social, sob o risco de subestimar a complexidade e os impactos da violência nas
relações familiares entre pais/mães e filhos, colocando em risco o bem-estar da
prole e desprotegendo a vítima de violência. Além de uma avaliação criteriosa, a/o
assistente social deve mobilizar a articulação com outros profissionais e
instituições, como a rede de proteção à mulher e/ou à criança e ao adolescente, para
ampliar o acesso aos direitos.
Ademais, entendemos que diante das nuances que envolve o exercício da
parentalidade em ambientes onde há violência doméstica e intrafamiliar, ao avaliar
os elementos que dizem sobre os filhos manterem o não o convívio com o genitor
agressor, a/o assistente social depara-se com um enredo desafiador. Assim, Gois e
Oliveira (2019, p. 69) ponderam que:
Via de regra, as situações que chegam à Justiça exigem, do ponto de vista social, a
análise de um conjunto de fatores que não se restringe ao momento atual daquela
família. A investigação da realidade social de indivíduos e famílias indica, geralmente, um
436 | Gênero, violência e estruturas de poder
nível de complexidade não abrangido na legislação e transcendente à aparência dos
fatos ou das narrativas que são inicialmente dadas a conhecer. Nesse sentido, os
profissionais têm o desafio de contextualizar a situação apresentada, em busca do
desenvolvimento de como aquelas pessoas estão singularizando questões que são fruto
desse momento histórico e das determinações sociais dele decorrentes, além das
relações intergeracionais e de gênero estabelecidas nas famílias. Não raro, as situações
vividas pela família no momento presente resultam de questões que vêm se adensando
há duas ou três gerações.
Em vara de família é evidente a judicialização da questão social; ainda assim,
vale ressaltar que a vida das pessoas não está circunscrita apenas ao que as leis e
políticas ofertadas dizem; ademais, o tempo das famílias não é o tempo do processo
judicial. Por fim, é necessário um olhar sensível e individualizado para compreender
as particularidades de cada intervenção e caso estudado, buscando equilibrar a
proteção dos filhos com o respeito aos direitos familiares, podendo assim, a/o
assistente social expressar em sua prática a defesa intransigente dos direitos
humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo como um dos princípios
fundamentais determinados em seu Código de Ética profissional.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nosso estudo, consideramos a violência doméstica como fator de risco
para todos que estão inseridos nesse contexto, pois mesmo que não seja identificada
uma violência direta contra um de seus membros, há evidente violação de direitos. A
literatura revela que os filhos que vivenciam violência de gênero e intrafamiliar de
forma aguda e/ou crônica apresentam privação no desenvolvimento psicossocial,
por vezes, expressa em sofrimento psíquico (transtornos de depressão e/ou
ansiedade), uso de psicoativos, enurese, limitações cognitivas e dificuldade no
aprendizado, tentativa de suicídio, medo da referência masculina, escolarização
interrompida, casamento infantojuvenil, etc. Muitos desses filhos não conseguem
compreender que sofrem a violência devido aos vínculos de afetos e
intergeracionalidade que envolvem o grupo familiar; assim, a violência de gênero e
Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 437
intrafamiliar adoece gerações, retroalimenta um ciclo de violência sem fim, e
solidifica a medicalização da vida.
No Brasil não há uma estrutura efetiva de combate à violência estrutural
expressa na violência de gênero e intrafamiliar e os danos causados por ela. Quando
tramita no Sistema de Justiça, o Poder Público atua somente até o término do
processo com a condenação ou absorção penal ou cívil do autor da violência; assim,
constatamos uma rede de garantia de direitos fragmentada, que não abarca a devida
proteção à família nem atua de fato sobre a violência estrutural. Não existem
estatísticas e políticas públicas que atendam essa demanda, assim como, a violência
contra os filhos não é observada na mesma lógica que a violência contra a mulher.
Diante deste quadro, pontuamos que a/o assistente social deve realizar uma
avaliação criteriosa, considerando o contexto da violência, os aspectos
socioeconômicos, culturais e subjetivos envolvidos. Para isso, exige-se uma
intervenção interdisciplinar, articulando com outros profissionais e instituições,
como a rede de proteção à mulher e aos direitos da criança e do adolescente, que
atuem com perspectiva de gênero e alternativas não-violentas para resolução de
conflitos, buscando a superação das várias expressões de violência historicamente
instituídas.
Por último, entendemos que as importantes transformações nas famílias
ocorridas no último século, ainda não foram consolidadas em nossa cultura, visto
que não temos efetividade de políticas sociais de apoio às famílias em suas funções
de cuidado, proteção e convivência social. Por isso, a prevenção da violência de
gênero e intrafamiliar deve fazer-se presente em várias frentes de ações culturais,
sociais e econômicas, que fomente uma consciência coletiva comprometida com o
enfrentamento à discriminação e desigualdades de gênero, com destaque para
práticas educativas de ressignificação de masculinidade e superação do patriarcado.
REFERÊNCIAS
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judiciário em Manaus. 2009. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do
Amazonas. Manaus, 2009.
438 | Gênero, violência e estruturas de poder
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23. MÃES NO CÁRCERE: A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO SERVIÇO SOCIAL
https://doi.org/10.36592/9786554601566-23
Aline Santos Pereira1
Camila Maximiano Miranda Silva 2
RESUMO
O artigo tem o objetivo de analisar o que está sendo produzido no âmbito do Serviço
Social sobre o encarceramento feminino, enfatizando a maternidade no cárcere. Para
alcançar o objetivo foi analisado as revistas: Katálysis; Serviço Social e Sociedade; a
Revista Em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea; Textos & Contextos
(Porto Alegre); Ser Social. No atual panorama da produção científica no campo do
Serviço Social, com foco nessa temática específica, observou-se uma escassez de
produção.
Palavras chave: Sistema prisional; Mães no cárcere; Serviço Social.
ABSTRACT:
The aim of this article is to analyze what is being produced in the field of Social Work
about women's incarceration, with an emphasis on motherhood in prison. In order to
achieve this goal, the following journals were analyzed: Katálysis, Serviço Social e
Sociedade, Em Pauta; Teoria social e realidade contemporânea, Textos & Contextos
(Porto Alegre), Ser Social. In the current panorama of scientific production in the field
of Social Work, with a focus on this specific theme, a scarcity of production was
observed.
Keywords: Prison system; Mothers in prison; Social service.
Introdução
O referido artigo tem a finalidade apresentar o resultado parcial da pesquisa
de iniciação científica realizada por meio do Programa de Educação Tutorial (PET),
denominada “Mães no Cárcere: A produção do conhecimento no Serviço Social”. O
objetivo geral desta pesquisa é conhecer o que tem sido produzido de conhecimento
no âmbito do Serviço Social sobre o encarceramento feminino, enfatizando a
maternidade no cárcere. Para atingir o objetivo da pesquisa foi realizado uma
1
Discente de graduação em Serviço social na Faculdade de Administração, Ciências Contábeis,
Engenharia de Produção e Serviço Social da Universidade Federal de Uberlândia, e-mail:
aline.pereira2@ufu.br
2
Docente da Universidade Federal de Uberlândia, e-mail: camilamaximiano@ufu.br
442 | Gênero, violência e estruturas de poder
pesquisa bibliográfica utilizando as revistas: Katálysis, Serviço Social e Sociedade, a
Revista Em Pauta: Teoria social e Realidade Contemporânea, Textos & Contextos
(Porto Alegre), Ser Social.
Diante do exposto, a questão das mulheres presidiárias é um tema complexo
e multifacetado que suscita discussões sobre gênero, justiça criminal e direitos
humanos. Ao longo das últimas décadas, o número de mulheres encarceradas tem
crescido significativamente em todo o mundo, desafiando concepções tradicionais
sobre crime e punição. É importante ressaltar que a situação das mulheres
presidiárias não deve ser abordada apenas como uma questão de segurança pública,
inclui também a inviabilização, a proteção e garantia de seus direitos e de seus filhos.
De acordo com os dados da Secretaria Nacional de Informações Penitenciárias
(SENAPPEN)3, a maioria das mulheres presas apresenta as seguintes características:
62% são negras, 66% têm ensino fundamental incompleto, 59% têm até 29 anos e
74% são mães. Segundo dado levantado pelo Departamento penitenciário de Minas
Gerais (DEPEN, 2021) mais da metade (56%) das mulheres privadas de liberdade
cometeram crimes relacionados ao tráfico de drogas, sem violência ou grave
ameaças
Segundo uma pesquisa realizada pelo Grupo Globo juntamente com o IBGE,
atualmente no Brasil 48% das famílias são chefiadas por mulheres, ou seja, como as
principais responsáveis pelo o sustento da casa e dos filhos. Neste cenário, têm-se
verificado o lugar da mulher na sociedade, em que ela se encontra em um espaço
desigual, por muitas vezes com disparidades salariais e segregação ocupacional;
carga de trabalho não remunerada; acesso limitado à educação e oportunidades;
falta de acesso a recursos e serviços; violência de gênero; monoparentalidade
feminina; acesso limitado a direitos a propriedade. E diante dessa necessidade
econômica, assim como os homens, algumas mulheres podem se envolver em
atividades criminosas devido à pobreza e à falta de oportunidades econômicas. Para
3
SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS (SENAPPEN). Aprisionamento feminino e faixa etária
dos filhos que estão nos estabelecimentos. Resultados da amostra. 2022. Disponível em:
https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen. Acesso em 08 jul.2023
SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS (SENAPPEN). População por Cor/Raça no Sistema
Prisional. Resultados da amostra. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/ptbr/servicos/sisdepen. Acesso em 08 jul.2023
Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 443
muitas delas, o crime pode parecer a única maneira de sustentar a si mesmas ou às
suas famílias, outro fator é a pressão de um relacionamento em alguns casos,
mulheres podem ser influenciadas por seus parceiros envolvidos em atividades
criminosas. Elas podem se envolver no crime para ganhar aceitação, proteção ou por
pressão de pares. Conforme o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)4 de 2019,
a cada 7 de 10 mulheres encarceradas afirmaram que entraram no crime por
influência dos parceiros.
E diante desse número massivo de mulheres encarceradas, há necessidade
de despertar sobre as condições de encarceramento feminino, levando em
consideração que o sistema prisional foi constituído com base nas necessidades e
características masculinas. A diferença de tratamento e sistema prisional entre
homens e mulheres é um reflexo das desigualdades profundamente enraizadas em
nossas sociedades. Essas disparidades refletem os preconceitos entre gêneros,
como cita Angela Davis no livro “Estarão as prisões obsoletas?” (1944, p. 86)5:
“No caso das mulheres, a continuidade de tratamento que recebem no mundo livre para
o universo da prisão é ainda mais complicada, já que elas também enfrentam nas
prisões formam de violência que enfrentam em casa e nos relacionamentos íntimos.”
No sistema prisional, as disparidades de gênero são evidentes em vários
aspectos, desde as condições de detenção até as oportunidades de reabilitação. Em
muitos lugares, as instalações prisionais para mulheres tendem a ser menores e
menos equipadas do que aquelas para homens. Isso pode resultar em superlotação
e condições insalubres, essas situações agrava os desafios enfrentados pelas
mulheres encarceradas, exigindo um tratamento diferenciado para atender às suas
necessidades específicas, como a custódia dos filhos, a manutenção dos laços
familiares e os cuidados com a saúde reprodutiva. O ambiente prisional apresenta
uma série de desafios e déficits que impactam diretamente a saúde das mulheres no
4
MÃES SEM PRISÕES: ENFRENTANDO A (IN)VISILIBILIDADE DAS MULHERES SUBMETIDAS À
JUSTIÇA CRIMINA. [recurso eletrônico] / Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. – São Paulo: ITTC,
2019.
Disponível
em:
https://ittc.org.br/wp-content/uploads/2019/05/mulheresemprisaoenfrentando-invisibilidade-mulheres-submetidas-a-justica-criminal.pdf Acesso em: 8 jul. 2023
5
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018. 144 p.
444 | Gênero, violência e estruturas de poder
sistema prisional, o acesso aos cuidados de saúde adequados é muitas vezes
limitado, isso pode resultar em uma falta de serviços básicos de saúde reprodutiva,
como exames ginecológicos regulares, consultas pré-natais e acesso a
contraceptivos. Outra questão importante é a violência sexual e o abuso que muitas
mulheres enfrentam enquanto estão sob custódia do Estado. Isso pode resultar em
gravidezes
indesejadas,
infecções
sexualmente
transmissíveis
e
traumas
psicológicos duradouros. Oliveira, G. R. de, Nascimento, R. G. do, & Araújo, A. dos R.
(2023)6.
A falta de políticas eficazes para prevenir e responder a essas formas de
violência agrava ainda mais a situação, Angela Davis discursa sobre o abuso
enfrentado pelas mulheres quando essas se encontram no sistema prisional, (1944,
p. 84):
“O abuso sexual -que, como a violência doméstica, é a mais uma dimensão da punição
privativa das mulheres- tornou-se um componente institucionalizado da punição por
trás dos muros da prisão”
Em uma última análise, a igualdade de gênero no sistema prisional não é
apenas uma questão de justiça, mas também de eficácia, que requer uma abordagem
holística que leve em consideração as necessidades específicas das mulheres
encarceradas e trabalhe para garantir que tenham acesso a serviços de saúde de
qualidade, apoio emocional e recursos para tomar decisões informadas sobre sua
própria saúde e bem-estar.
Á frente do objetivo desta pesquisa, percebeu-se que no atual panorama de
produção científica no campo do Serviço Social, com o foco nesta temática em
específica, pouco se tem de produção.
6
OLIVEIRA, G. R. de; NASCIMENTO, R. G. do; ARAÚJO, A. dos R. Saúde no cárcere: Uma revisão
integrativa da literatura. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 22, n. 1, p. e42961, 2023. DOI:
10.15448/1677-9509.2023.1.42961. Disponível em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/42961. Acesso em: 9 ago. 2023.
Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 445
A Produção de conhecimento no âmbito do Serviço Social
O presente estudo trata-se de um rastreamento bibliográfico utilizando as
revistas: Katálysis, Serviço Social e Sociedade, a Revista Em Pauta: Teoria social e
realidade contemporânea, Textos & Contextos (Porto Alegre), Ser Social. Entendida
como uma abordagem metodológica para revisar a literatura, possibilitando a
construção de discussões sobre os métodos e resultados dos estudos científicos
disponíveis. Ao fazer o rastreamento do tema, foram analisados no total 2.414
artigos das revistas selecionadas para compor o estudo, mas somente foram
selecionados 21 artigos das revistas e desses 21 artigos, somente 3 abordavam a
temática da mulher encarcerada e nenhuma enfatizava a maternidade no cárcere.
Katálysis: A Revista Katálysis, criada em 1997, é editada pelo Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social e pelo Curso de Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal de Santa Catarina. A Revista Katálysis tem o objetivo de
publicar produções científicas atuais e relevantes relacionadas ao Serviço Social,
abrangendo temáticas das Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas, política
social, trabalho, questão social e saúde pública. Na revista foi analisado do ano de
2006 até 2023, contando com 27 volumes publicados, totalizando 708 artigos em
periódicos. Dos 708 artigos foi somente encontrado um artigo semelhante a
temática. O artigo intitulado como “O encarceramento de mulheres no capitalismo
dependente e periférico brasileiro.” 7 Publicado em 2023, realizado pelas autoras
Rosilene Marques Sobrinho de França e Beatriz Gershenson,
Textos & Contextos (Porto Alegre): é um periódico que tem na questão social,
enquanto expressões de desigualdades e resistências, seu eixo articulador, sendo
seu objetivo o de contribuir para a construção de conhecimentos em Serviço Social,
e em campos correlatos do saber, com ênfase nos eixos relativos às políticas sociais,
direitos humanos e processos sociais, bem como o trabalho e formação em Serviço
Social. Direciona-se, portanto, a pesquisadores, docentes, discentes e profissionais
da área do Serviço Social e áreas afins. Totaliza 37 volumes, de 2002 até 2023,
7
FRANÇA, Rosilene Marques Sobrinho de; GERSHENSON, Beatriz. O encarceramento de mulheres no
capitalismo dependente e periférico brasileiro. Revista Katálysis, [S.L.], v. 26, n. 2, p. 222-231, ago.
2023. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1982-0259.2023.e90729.
446 | Gênero, violência e estruturas de poder
contabiliza 618 artigos publicados. Dos 618 artigos foi somente encontrado 2 artigos
que fala sobre o encarceramento e a saúde das mulheres no sistema prisional.
Publicado em 2020 e realizado pelas autoras Águida Luana Veriato Schultz, Miriam
Thais Guterres Dias e Renata Maria Dotta, o artigo intitulado como “Mulheres
Privadas de liberdade no sistema prisional: Interface entre saúde mental, serviços
sociais e vulnerabilidade.” 8 e o artigo intitulado como “Saúde no cárcere: Uma
revisão integrativa da literatura”9, publicado em 2023 pelos autores Gilberto Reinaldo
de Oliveira, Rodolfo Gomes do Nascimento, Adrilayne dos Reis Araújo.
Serviço Social & Sociedade: sua criação, em setembro de 1979, a revista,
apresenta uma política editorial pautada pela diretriz de dar voz a essa valiosa
produção acadêmica e profissional dos assistentes sociais e de pesquisadores de
áreas afins, repercutindo também o desenvolvimento sociopolítico do Serviço Social
e o pensamento de suas entidades representativas, Foi esse o contexto que marcou
o processo de rearticulação das forças político profissionais na sociedade brasileira
e no Serviço Social, promovendo uma diversificação e democratização das formas
de expressão e das linhas de pesquisa dos assistentes sociais. Neste sentido, a
revista Serviço Social & Sociedade foi, em sua gênese, contemporânea do importante
movimento de renovação do Serviço Social e continua contribuindo com o
desenvolvimento acadêmico e profissional dessa área de conhecimento e
intervenção na realidade, bem como de áreas afins. Foi analisado as datas de
publicações de 2010 até 2023, totalizando 482 artigos publicados. Não foi
encontrado nada relacionada a mulheres no cárcere, mas foi encontrado um artigo
intitulado como “Entre paredes e redes- O lugar da mulher nas famílias pobres”10, que
usamos para entender o papel da mulher quando ela se torna chefe de família.
8
LUANA VERIATO SCHULTZ, Águida.; GUTERRES DIAS, M. T..; DOTTA, R. M. Mulheres privadas de
liberdade no sistema prisional: Interface entre saúde mental, serviços sociais e
vulnerabilidade. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 19, n. 2, p. e36887, 2020. DOI:
10.15448/1677-9509.2020.2.36887. Disponível em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/fass/article/view/36887. Acesso em: 6 mar. 2024.
9
OLIVEIRA, G. R. de; NASCIMENTO, R. G. do; ARAÚJO, A. dos R. Saúde no cárcere: Uma revisão
integrativa da literatura. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 22, n. 1, p. e42961, 2023. DOI:
10.15448/1677-9509.2023.1.42961. Disponível em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/42961. Acesso em: 9 ago. 2023.
10
AZEREDO, Verônica Gonçalves. Entre paredes e redes: o lugar da mulher nas famílias pobres.
Serviço Social & Sociedade, [S.L.], n. 103, p. 576-590, set. 2010. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/s0101-66282010000300009.
Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 447
Em Pauta; Teoria social e realidade contemporânea: Criada em 1993, é um
veículo de divulgação científica da Faculdade de Serviço Social da UERJ e do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Seu foco está voltado para a
compreensão de determinações e contradições sócio-históricas que envolvem a
esfera da política e o mundo do trabalho, com destaque para as lutas sociais no Brasil
e nos países hispano-americanos. A revista Em Pauta é um espaço de troca de ideias
e críticas produzidas em diversos contextos e continentes, além de ser canal de
debate e interlocução sobre os fundamentos e experiências da profissão. Totaliza 18
volume e 606 artigos publicados. Dos 606 periódicos publicados não foi encontrado
nenhum artigo sobre a temática ou semelhante.
Organizamos em tabelas e gráficos para facilitar a visualização das revistas e
dos artigos encontrados na produção científica no campo do Serviço Social.
Análise Quantitativa das Publicações nas
revistas.
25%
29%
20%
26%
Katálysis 2006 - 2023
Textos & Contextos (Porto Alegre) 2002-2023
Serviço Social & Sociedade 2010-2023
Em Pauta; Teoria social e realidade contemporânea 2007-2024
Conseguinte, trouxemos uma tabela e gráfico filtrados dos 21 artigos
selecionados, nesta visualizamos somente os artigos semelhantes a temática.
448 | Gênero, violência e estruturas de poder
Revista
Artigos
Autores
Ano
Serviço Social & Entre paredes e
Sociedade
redes- O lugar da
mulher nas famílias
pobres.
Verônica
Gonçalves
Azeredo
2010
Textos
& Mulheres Privadas
Contextos (Porto de liberdade no
Alegre)
sistema prisional:
Interface entre
saúde mental,
serviços sociais e
vulnerabilidade.
Águida Luana
2020
Veriato Schultz
Miriam Thais
Guterres Dias
Renata
Maria
Texto e contexto Saúde no cárcere
(Porto Alegre)
Uma revisão
integrativa da
literatura
2023
Dotta
Gilberto Reinaldo
de Oliveira
Rodolfo Gomes
do Nascimento
Adrilayne dos
Reis Araújo
Katálysis
O encarceramento
Rosilene
de mulheres no
Marques
capitalismo
Sobrinho de
dependente e
França
periférico brasileiro. Beatriz
Gershenson
Tabela: Artigos selecionados acerca da temática.
2023
Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 449
Publicações sobre Maternidade no Cárcere: Total e
Específicas
800
700
600
500
400
300
200
100
0
Katálysis 2006 2023
Textos &
Contextos (Porto
Alegre) 20022023
Períodicos Publicados
Serviço Social & Em Pauta; Teoria
Sociedade 2010- social e realidade
2023
contemporânea
2007-2024
Períodicos acerca da temática
Essa tabela e gráficos nos faz refletir os seguintes pontos: A escassez na
produção no âmbito do serviço social; E o período em que a produção científica sobre
mulheres encarceradas teve início. Em relação à escassez, encontrou-se poucos
artigos sobre o tema, e ainda menos com foco na maternidade no cárcere. Quanto à
aparente demora na abordagem da questão surge então um questionamento sobre
a demora do Serviço Social em pautar a questão do encarceramento feminino com
ênfase na maternidade. Com relação aos anos que começaram a surgir os
periódicos, foi muito tardio, o encarceramento feminino vem crescendo
exponencialmente faz duas décadas, dos anos 2000 até o primeiro semestre de 2022
esse crescimento chegou a 512% no Brasil. Podemos observar na tabela que
somente em 2020 surgi na revista Textos & Contextos (Porto Alegre) a questão da
mulher encarcerada, lembrando que os assistentes sociais tem um compromisso
com a sociedade com a promoção da justiça social e a defesa dos direitos humanos.
A situação de mulheres encarceradas muitas vezes está associada a questões
450 | Gênero, violência e estruturas de poder
estruturais e sistêmicas que envolvem desigualdades econômicas, raciais e de
gênero.
Análise de Artigos em Periódicos Científicos
O artigo intitulado como “O encarceramento de mulheres no capitalismo
dependente e periférico brasileiro.”11, tem como objetivo o artigo analisar o papel do
cárcere e do encarceramento de mulheres dentro do sistema hetero-patriarcalracista-capitalista do Brasil. A metodologia usada consistiu em estudo bibliográfico
e documental, sendo que os resultados mostraram que os estabelecimentos
prisionais se constituíram em tecnologias repressivas utilizadas para a formação e
a consolidação do projeto de nação branca, classista, racista e sexista, como forma
de atendimento às demandas de estruturação e desenvolvimento do capitalismo. As
principais conclusões e descobertas apresentadas neste estudo sobre o
encarceramento de mulheres incluem: O encarceramento de mulheres está
intrinsecamente ligado às estruturas de poder do sistema hetero-patriarcal-racistacapitalista presente no Brasil A acumulação capitalista, aliada aos processos de
seletividade penal, tem gerado um cenário de profundos riscos para as mulheres,
influenciado pelo racismo estrutural, patriarcado, sexismo e misoginia .O Estado
Penal, como resultado de acúmulos históricos e sociais, exerce um papel de controle
social, especialmente sobre mulheres pobres, negras e moradoras das periferias
urbanas, como forma de reprodução do capital .O perfil das mulheres encarceradas
no Brasil é majoritariamente composto por jovens, pobres e negras residentes nas
periferias urbanas, refletindo a interseccionalidade de gênero, raça e classe social .O
cárcere tem assumido um papel proeminente na gestão da pobreza, por meio da
violência, repressão e segregação, aprofundando as expressões da questão social
decorrentes
do
desemprego,
pobreza
e
insegurança
alimentar,
afetando
especialmente famílias monoparentais chefiadas por mulheres, principalmente
mulheres negras.
11
FRANÇA, Rosilene Marques Sobrinho de; GERSHENSON, Beatriz. O encarceramento de mulheres no
capitalismo dependente e periférico brasileiro. Revista Katálysis, [S.L.], v. 26, n. 2, p. 222-231, ago.
2023. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1982-0259.2023.e90729.
Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 451
O artigo intitulado como “Mulheres Privadas de liberdade no sistema prisional:
Interface entre saúde mental, serviços sociais e vulnerabilidade.” 12 , tem como
objetivo a partir da perspectiva de uma Equipe de Atenção Básica prisional (EABp),
como o ambiente prisional afeta a saúde da população feminina privada de liberdade
e quais as principais necessidades em saúde identificadas a partir do cotidiano de
trabalho desta equipe. Através de uma pesquisa qualitativa, realizaram-se reuniões
de grupo focal com a participação de 10 profissionais de uma EABp implantada em
um presido feminino no Sul do Brasil. O artigo concluiu que o ambiente prisional pode
tanto produzir quanto desencadear ou agravar os problemas de saúde dessa
população. A escassa oferta de serviços sociais voltados à educação, ao desporto,
ao lazer e à área ocupacional afetam as condições de vida nesse local. São
atividades primordiais para a redução dos danos decorrentes do confinamento, pois
funcionam como protetoras e promotoras da saúde no cárcere. Tal condição
denuncia a fragilidade organizacional e o pouco envolvimento dos órgãos gestores
na defesa e garantia dos direitos de cidadania das mulheres presas.
O artigo intitulado como “Saúde no cárcere: Uma revisão integrativa da
literatura” 13 ,
teve como objetivo do presente estudo foi realizar uma revisão
integrativa de literatura, a fim m de conhecer o que tem sido pesquisado sobre o
direito e a assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade. A metodologia
usada foi realizar buscas na Biblioteca Virtual em Saúde, por meio dos descritores:
“prisão”, “assistência à saúde” e “direitos à saúde”. Obteve-se uma amostra
composta por 14 artigos, cuja análise foi expressa em três categorias: contexto da
atenção à saúde das pessoas privadas de liberdade, saúde da população prisional
feminina e acesso aos serviços de saúde no cárcere. O texto aborda a questão
crucial: a saúde no sistema prisional brasileiro. Ele destaca a importância histórica
da garantia dos direitos à saúde para a população carcerária, desde a Constituição
12
LUANA VERIATO SCHULTZ, Águida.; GUTERRES DIAS, M. T..; DOTTA, R. M. Mulheres privadas de
liberdade no sistema prisional: Interface entre saúde mental, serviços sociais e
vulnerabilidade. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 19, n. 2, p. e36887, 2020. DOI:
10.15448/1677-9509.2020.2.36887.
Disponível
em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/fass/article/view/36887. Acesso em: 6 mar. 2024.
13
OLIVEIRA, G. R. de; NASCIMENTO, R. G. do; ARAÚJO, A. dos R. Saúde no cárcere: Uma revisão
integrativa da literatura. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 22, n. 1, p. e42961, 2023. DOI:
10.15448/1677-9509.2023.1.42961. Disponível em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/42961. Acesso em: 9 ago. 2023.
452 | Gênero, violência e estruturas de poder
Federal de 1988 até as legislações mais recentes, como a Lei de Execução Penal e a
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no
Sistema Prisional (PNAISP). O texto também aborda desafios enfrentados, como a
superlotação, a insalubridade e a violência dentro das prisões, que impactam
negativamente na saúde física e psicológica dos detentos. Além disso, destaca-se a
importância da atenção à saúde como determinante para o bem-estar da população
carcerária, ressaltando a necessidade de políticas mais efetivas e intervenções que
garantam o acesso universal aos cuidados de saúde. Em seus resultados, concluiu
que via de regra o sistema prisional se caracteriza como um local de violação dos
direitos humanos, em face dos diversos obstáculos enfrentados pelas pessoas
privadas de liberdade para acesso aos serviços de saúde.
Artigo intitulado como “Entre paredes e redes- O lugar da mulher nas famílias
pobres”14, tem como objetivo resumir e examinar o papel da mulher na estrutura
familiar e nas dinâmicas de proteção social em contextos de pobreza. Como figura
central na esfera doméstica, as mulheres são frequentemente identificadas como os
principais beneficiários de programas sociais devido à sua habilidade em administrar
os recursos familiares de forma eficaz. No entanto, apesar do reconhecimento de seu
papel crucial na manutenção da família e da comunidade, as políticas sociais muitas
vezes negligenciam a perspectiva de gênero, resultando na persistência de
desigualdades e discriminações que afetam injustamente as oportunidades das
mulheres. A metodologia utilizada no estudo não foi explicitamente mencionada no
resumo fornecido. No entanto, é possível inferir que o texto se baseia em uma
abordagem qualitativa, considerando a análise das experiências e vivências das
mulheres em famílias pobres, bem como a discussão teórica sobre gênero, pobreza
e políticas sociais. A pesquisa destaca a importância de reconhecer o papel central
das mulheres nas famílias pobres, tanto na provisão quanto no cuidado familiar, e
como elas enfrentam as desigualdades de gênero e sociais por meio da criação de
redes de apoio. Além disso, a discussão sobre a necessidade de políticas públicas
que considerem a perspectiva de gênero e promovam a igualdade de oportunidades
14
AZEREDO, Verônica Gonçalves. Entre paredes e redes: o lugar da mulher nas famílias pobres.
Serviço Social & Sociedade, [S.L.], n. 103, p. 576-590, set. 2010. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/s0101-66282010000300009.
Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 453
para as mulheres em situação de vulnerabilidade econômica parece ser um ponto
relevante abordado no estudo. Trazer esse contexto da mulher como fonte de renda
no contexto capitalista, entendemos uma das fontes do crescimento de mulheres no
sistema prisional aumentou.
Considerações Finais
Diante disto, do atual panorama de produção científica no campo do Serviço
Social, com o foco nesta temática específica, houve uma percepção que pouco se é
falado do assunto. Embora existam discussões acerca do encarceramento feminino,
mas pouco se enfatiza a maternidade no cárcere. Ao analisar os artigos selecionados
para compor esse estudo concluiu-se que os artigos selecionados não se
aprofundam na questão da situação vivenciada e além de não traçar os perfis dessas
mulheres encarceradas, é importante oferecer uma visão aprofundada das
experiências das mulheres que enfrentam a maternidade enquanto estão
encarceradas incluindo entender os desafios específicos que elas enfrentam.
Também é importante considerar o impacto do encarceramento materno nos filhos
das mulheres encarceradas. Nas etapas para realização desta pesquisa, emergiram
diversas questões cruciais que merecem uma atenção contínua e uma abordagem
sensível por parte dos profissionais do Serviço Social, das políticas públicas, da
sociedade e das instituições jurídicas.
24. ENCARCERAMENTO FEMININO: ANÁLISE DA CAUTELAR DA PRISÃO
PREVENTIVA EM CRIMES PRATICADOS SEM VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA
WOMEN’S INCARCERATION: ANALYSIS OF PREVENTIVE PRISON IN CRIMES
PERMITTED WITHOUT VIOLENCE OR SERIOUS THREAT
https://doi.org/10.36592/9786554601566-24
Joanna Smiderle1
Fábio Agne Fayet2
RESUMO
A presente pesquisa tem como tema a cautelar da prisão preventiva, delimitando-se
na sua aplicação às mulheres acusadas de crimes sem emprego de violência ou
grave ameaça. Assim propõe-se responder o seguinte questionamento de pesquisa:
em quais aspectos é importante que se comuniquem os fundamentos, requisitos e
as consequências da prisão preventiva, em regime fechado, de mulheres acusadas
de crimes sem violência ou grave ameaça? Criou-se duas hipóteses referentes à
garantia da ordem pública e ao perigo gerado pelo estado de liberdade das
imputadas. Objetiva-se o estudo acerca do impacto da cautelar às mulheres e seus
núcleos sociais e familiares, bem como a sua análise jurídica. A metodologia
empregada é a exploratória bibliográfica. As conclusões vão de encontro com a
viabilidade de flexibilização, bem como a necessidade de comunicação entre os
requisitos, fundamentos e consequências da aplicação da prisão preventiva.
Palavras-chave: Aprisionamento feminino. Prisão preventiva. Sistema penitenciário.
ABSTRACT
This research has as its theme the precautionary measure of preventive detention,
limiting its application to women accused of crimes without the use of violence or
serious threat. Therefore, we propose to answer the following research question: in
what aspects is it important to communicate the foundations, requirements and
consequences of preventive detention, in a closed regime, of women accused of
crimes without violence or serious threat? Two hypotheses were created regarding
the guarantee of public order and the danger generated by the state of freedom of the
accused. The objective is to study the impact of the precautionary measure on
women and their social and family nuclei, as well as its legal analysis. The
methodology used is bibliographic exploratory. The conclusions are in line with the
1
Estudante do 4º semestre do Curso de Direito do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG.
Contato: joannasmiderle@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8016764913477041.
2
Orientador. Doutor em Ciências Criminais. Professor de Direito Penal e Processo Penal do Centro
Universitário da Serra Gaúcha – FSG. Advogado Criminalista. Contato: fabio.fayet@fsg.edu.br.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1361242497259188.
456 | Gênero, violência e estruturas de poder
feasibility of flexibility, as well as the need for communication between the
requirements, grounds and consequences of applying preventive detention.
Keywords: Female imprisonment. Pre-trial detention. Penitentiary system.
INTRODUÇÃO/CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O tema da presente pesquisa é o instituto da prisão preventiva, seus
requisitos, fundamentações e aplicações de acordo com o ordenamento jurídico
brasileiro, delimitando-se aos crimes cometidos por mulheres, sem emprego de
violência ou grave ameaça. Busca-se encontrar a relação entre as condições para o
decreto e manutenção da prisão preventiva e os seus reais impactos sobre o círculo
social das presas.
Diante da temática exposta, formulou-se o seguinte problema de pesquisa a
ser respondido no decorrer deste trabalho: em quais aspectos é importante que se
comuniquem os fundamentos, requisitos e as consequências da prisão preventiva,
em regime fechado, de mulheres acusadas de crimes sem violência ou grave
ameaça? A fim de responder a pergunta, foram estipuladas duas hipóteses, a partir
da redação do artigo 312 do Código de Processo Penal. A primeira se refere ao
requisito da garantia da ordem pública. Esta pesquisa propõe o pensamento e a
análise desta condição em esfera sazonal, dentro da pessoalidade e particularidades
das mulheres presas preventivamente por crimes sem violência ou grave ameaça. A
segunda diz respeito ao perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, tido
como um vago fundamento legal para o decreto da prisão preventiva, a ser estudado
com o mesmo olhar adotado na primeira hipótese.
A pesquisa objetiva observar os impactos da cautelar em questão às mulheres
encarceradas, bem como aos seus núcleos familiares e sociais, em casos em que os
crimes pelos quais estão sendo acusadas foram, em tese, cometidos sem o uso de
violência ou grave ameaça. A busca pela resposta ao questionamento proposto
volta-se para a análise da comunicação e relação entre o ônus à sociedade
sustentado na fundamentação legal da prisão preventiva e as suas efetivas
consequências e impactos sobre o que se deseja proteger com tal privação de
liberdade, no contexto feminino. Ademais, a temática escolhida se justifica pela baixa
Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 457
visibilidade feminina diante do sistema penitenciário brasileiro, majoritariamente
ocupado por homens. Expressiva quantidade e porcentagem de mulheres privadas
de liberdade no Brasil, são acusadas da prática de crimes não violentos, como o
tráfico de drogas e associação para o tráfico. Expor-se-á questões relativas às
condições nas quais o público feminino se encontra, bem como os padrões de
seletividade penal, a fim demonstrar a amplitude da temática escolhida e a
necessidade de evitar decisões de caráter generalista e potencialmente danosas às
pessoas que por elas são impactadas.
O método empregado para o desenvolvimento desta pesquisa é o exploratório
bibliográfico, com referência em fontes primárias, tais quais, livros e artigos
científicos relacionados ao tema. A técnica de pesquisa utilizada é hipotéticodedutiva, com análise de doutrina e legislação.
Quanto à estruturação do artigo, este divide-se em 2 capítulos, denominados,
“O artigo 321 do Código de Processo Penal no contexto das mulheres encarceradas”
e “Seletividade penal e condições do cárcere feminino”, respectivamente. O segundo
capítulo dá origem a um subcapítulo denominado “A prisão domiciliar como
alternativa”, objetivando uma abordagem dinâmica, coesa e didática.
1 O ARTIGO 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NO CONTEXTO DAS MULHERES
ENCARCERADAS
Preliminarmente, esclarece-se que o contexto citado no título deste capítulo
diz respeito aos delitos cometidos sem emprego de violência ou grave ameaça. O
objeto deste tópico é o artigo legal que regulamenta a prisão preventiva no Brasil,
com foco na análise de específicos requisitos e fundamentos.
O artigo 312 do Código de Processo Penal estabelece o instituto da prisão
preventiva3, trazendo em sua redação, os moldes nos quais fundamentar-se-ão as
decisões referentes ao decreto da cautelar, conforme o que segue:
3
A prisão preventiva, de natureza cautelar, se trata de prisão processual e pode ser decretada pelo
juiz, por requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da
autoridade policial, em qualquer fase da investigação policial ou do processo criminal, antes do
trânsito em julgado da sentença, desde que presentes os requisitos legais e ocorridos os motivos
autorizadores (LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019).
458 | Gênero, violência e estruturas de poder
“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da
ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação
da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e
de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” (BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de
03 de outubro de 1941, Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro,
03 out. 1941).
A garantia da ordem pública, além de ser um fundamento de conceito vago, é
de fácil manipulação para prover legalidade à prisão em larga escala, aplicando-se a
cautelar como um instrumento de controle4. Nota-se que esse fundamento afronta o
princípio da lei estrita, viabilizando a banalização da prisão preventiva, diante de uma
justiça criminal autoritária e seletiva5. Tamanha maleabilidade do conceito permite
que, por vezes, relacione-se com o clamor público provocado pela gravidade e
brutalidade do delito, além do apelo à credibilidade das instituições, mostrando à
população que o aparelho estatal é efetivo na repressão à criminalidade e garantia
da segurança6.
O periculum libertatis7, um dos requisitos para a prisão preventiva, citado na
segunda hipótese desta pesquisa, é definido como o perigo gerado pelo estado de
liberdade do imputado e trata-se do risco da frustração da função punitiva, como a
possibilidade de fuga ou ausência do acusado, gerando graves prejuízos ao
processo, ou em relação à coleta de provas em decorrência da sua conduta8. Em
caso de prisão preventiva sem verdadeira necessidade juridicamente comprovada,
tal cautelar passa a ser uma antecipação da execução da pena, sem julgamento,
afrontando o devido processo legal e a presunção de inocência9.
A desvirtuação da prisão preventiva, oriunda da prática de decisões com
fundamentações genéricas com aplicação de medidas desnecessariamente
4
SILVEIRA, Felipe Lazzari. A Banalização da Prisão Preventiva para a Garantia da Ordem Pública.
Revista da Faculdade de Direito - UFMG. Belo Horizonte, n. 67, pp. 213 - 244. 2015. P. 225.
5
SILVEIRA, Felipe Lazzari. A Banalização da Prisão Preventiva para a Garantia da Ordem Pública.
Revista da Faculdade de Direito - UFMG. Belo Horizonte, n. 67, pp. 213 - 244. 2015. P. 2019.
6
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019. Pp. 763-764.
7
O periculum libertatis se configura quando a liberdade do suspeito gera um risco para o processo,
podendo ser traduzido como um perigo que decorre do estado de liberdade do imputado (LOPES JR.
Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019).
8
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019. P. 830.
9
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2016. P. 369.
Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 459
gravosas, prejudica a segurança e efetividade da cautelar10. A constante demanda
social de respostas do Poder Judiciário para a criminalidade no país, proporciona a
imposição de prisões preventivas de maneira usual no processo penal11.
Empregar a prisão preventiva apenas em casos de extrema e real necessidade
é um indicativo de respeito aos direitos fundamentais, sem abusos estatais e com
intervenção mínima, quando presente o risco ocasionado pela liberdade da acusada,
garantindo-se a efetividade do Poder Público12. Neste sentido, muito se questiona os
riscos da liberdade das mulheres acusadas de crimes sem violência ou grave
ameaça.
Apesar da obviedade dos prejuízos causados pelo encarceramento em massa,
um levantamento realizado pelo INFOPEN13 no ano de 2014 apontou que 30,1% das
mulheres privadas de liberdade, em regime fechado, não possuíam condenação. A
mesma pesquisa foi repetida em 2016 e a quantidade aumentou para alarmantes
45%14.
Tal porcentagem nos intriga a saber quem são as mulheres encarceradas no
Brasil, o que será abordado no próximo capítulo.
2 SELETIVIDADE PENAL E CONDIÇÕES DO CÁRCERE FEMININO
Quando volta-se o olhar às mulheres no sistema penitenciário, pode-se
observar padrões de seletividade penal, evidenciados pela preponderância do
enquadramento criminal das apenadas em crimes praticados sem o emprego de
violência ou grave ameaça a pessoa, em destaque o tráfico de drogas e crimes
10
REBELO, Melissa. A falta de fundamentação idônea da prisão preventiva acerca do periculum
libertatis e o consequente distanciamento do seu caráter instrumental. Rio de Janeiro. 2017. P. 13.
11
REBELO, Melissa. A falta de fundamentação idônea da prisão preventiva acerca do periculum
libertatis e o consequente distanciamento do seu caráter instrumental. Rio de Janeiro. 2017. P. 15.
12
SILVEIRA, Felipe Lazzari. A Banalização da Prisão Preventiva para a Garantia da Ordem Pública.
Revista da Faculdade de Direito - UFMG. Belo Horizonte, n. 67, pp. 213 - 244. 2015. P. 218.
13
Sistema de Informações Penitenciárias.
14
INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres.
Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018.
460 | Gênero, violência e estruturas de poder
patrimoniais15. Ainda, grande parcela das presas brasileiras são preventivas, detidas
sem que haja uma sentença condenatória transitada em julgado16.
O problema desta pesquisa se refere à necessidade de comunicação entre tais
fundamentos e as reais consequências da aplicação da cautelar à realidade na qual
cada mulher está inserida e, para isso, deve-se considerar que o Departamento
Penitenciário Nacional possibilitou a criação de um perfil das mulheres detidas no
sistema prisional, e demonstrou que a maioria delas são jovens, que possuem filhos
e frequentemente são mantenedoras de suas famílias 17 . As mães encarceradas
geralmente são as principais responsáveis pelos seus filhos, de forma que, com a
sua reclusão, essas crianças tenham que transitar entre casas de amigos, familiares
ou abrigos, gerando uma desestruturação dos núcleos familiares, danosa para o
desenvolvimento dos infantes18. Quando detidas as mães, são poucas as vezes que
os pais dos infantes assumem a guarda das crianças19. O ingresso dessas mulheres
no sistema carcerário gera rupturas nos meios sociais e familiares nas quais
estavam inseridas, afetando, além das própria apenadas, o desenvolvimento das
crianças dependentes das quais são responsáveis, deixando-as, por vezes, sem sua
única referência familiar20. Diversas mulheres optam por não receber visitas de seus
filhos, familiares e amigos próximos, na tentativa de afastar tais pessoas do
ambiente hostil e prejudicial do cárcere, favorecendo a quebra do vínculo entre as
mulheres que estão encarceradas e seus relacionados 21 . Constantemente, a
distância entre a Casa Prisional e as residências das famílias dificultam o
deslocamento dos familiares para prestação de assistência às mulheres, ao passo
15
INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres.
Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018.
16
CAMARGO, Mariana Martins. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen
Mulheres, 2ª edição. Brasília. 2018. P. 19.
17
INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres.
Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018.
18
SUSEPE. POLLACCHINNI, Rafaela. Maioria das mulheres privadas de liberdade no Rio Grande do Sul
é mãe e não possui ensino médio completo. 2023. Disponível em:
http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_conteudo=7506&cod_menu=4. Acesso em
12/out/2023.
19
STELLA, Claudia. Filhos de mulheres presas: o papel materno na socialização dos indivíduos.
Estudos e Pesquisa em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, set. 2009. P. 294.
20
FLORES, Nelia Maria Portugal. SMEH, Luciane Najar. Mães presas, filhos desamparados:
maternidade e relações interpessoais na prisão. Rio de Janeiro: Physis. 2018. P. 02.
21
STELLA, Claudia. Filhos de mulheres presas: o papel materno na socialização dos indivíduos.
Estudos e Pesquisa em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, set. 2009. P. 302.
Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 461
que muitas penitenciárias não recebem pessoas do sexo feminino, inacessibilizando
o apoio às encarceradas22. Além disso, importa falar acerca do abandono familiar ao
qual as presas são submetidas, por vezes não havendo pessoas disponíveis para
levar as crianças para visitar a mãe, entre outras circunstâncias diversas23
Historicamente estigmatizadas, as mulheres que são presas são vistas como
pessoas que carregam muita maldade24, más esposas, más mães, más mulheres e,
ao ingressarem no caminho da criminalidade e da prisão, tendem a ser excluídas e
vista de maneira pior que os homens que cometem os mesmos delitos, uma vez que
suas condutas não condizem com a ideia de natureza feminina25
No decorrer dos anos, foram estabelecidas diversas casas prisionais mistas,
que abrigavam homens e mulheres, no entanto, foi somente no ano de 1984 que o
Código Penal Brasileiro, por meio do seu artigo 37, dispôs acerca do local de
cumprimento de pena para mulheres, conforme a seguinte redação:
“Art. 37 - As mulheres cumprem pena em estabelecimento próprio, observando-se os
deveres e direitos inerentes à sua condição pessoal, bem como, no que couber, o disposto
neste Capítulo” (Brasil. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal.
Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940).
Passou-se a exigir que as pessoas do sexo feminino tivesse um local
exclusivo para o cumprimento de sua pena, aduado às suas específicas
22
FLORES, Nelia Maria Portugal. SMEH, Luciane Najar. Mães presas, filhos desamparados:
maternidade e relações interpessoais na prisão. Rio de Janeiro: Physis. 2018. P. 06.
23
FLORES, Nelia Maria Portugal. SMEH, Luciane Najar. Mães presas, filhos desamparados:
maternidade e relações interpessoais na prisão. Rio de Janeiro: Physis. 2018. P. 07.
24
As mães no contexto prisional, além das dificuldades de reinserção social associadas à prática de
conduta criminosa, enfrentam julgamentos decorrentes da drástica ruptura dos papéis sociais
atribuídos à mulher. Assim, a sociedade se coloca diante de um dualismo, ao passo que, por um lado
a conduta da agente era totalmente inesperada e, por conta disso, repudia-se e, por outro invés, o fato
de ser mãe repõe as expectativas sociais sobre a sua pessoa, sendo considerada merecedora de uma
segunda chance (BRAGA, Ana Gabriela; FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Quando a casa é a prisão:
uma análise de decisões de prisão domiciliar de grávidas e mães após a Lei 12.403/2011. Quaestio
Iuris. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1. P. 349 - 375. 2016. P. 351).
25
SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. PEREIRA, Ana Carolina Antunes. Gênero e Prisão: O
Encarceramento de Mulheres no Sistema Penitenciário Brasileiro pelo Crime de Tráfico de Drogas.
Meritum, Revista Brasileira de Direito da Universidade FUMEC. Belo Horizonte. V. 13, n. 1, p. 87-112.
Jan./Jun. 2018. P. 92.
462 | Gênero, violência e estruturas de poder
necessidades 26 . Apesar de tal exigência legal, diversas questões ainda são
problemáticas, como a falta de itens básicos de higiene e assistência médica27. O
Departamento Penitenciário, no ano de 2020, efetuou um levantamento de dados que
revelam que apenas 10 prisões em todo o território nacional contam com
atendimento ginecológico especializado, mesmo havendo milhares de detentas
infectadas com doenças sexualmente transmissíveis, necessitando de cuidados
regularmente 28 . A saúde menstrual das mulheres resta prejudicada no ambiente
carcerário pois, apesar da determinação de que todos os detentos devem receber
kits de higiene, muitos estabelecimentos prisionais não oferecem absorventes
apropriados para as presas e, quando fornecem, frequentemente as quantidades são
inferiores às necessidades do ciclo menstrual, levando as apenadas a utilizarem
objetos danosos à saúde como substitutos do item de higiene29.
É evidente a inadequação das prisionais às necessidades femininas. O
subcapítulo a seguir explana uma alternativa à situação exibida.
1.1 A prisão domiciliar como alternativa
A prisão domiciliar é uma alternativa que pode substituir a prisão em regime
fechado, na qual a pessoa apenada passa a cumprir sua pena privativa de liberdade
em sua residência, fiscalizada por tornozeleira eletrônica ou demais artifícios
disponíveis30.
O Código de Processo Penal prevê a possibilidade de substituição da prisão
preventiva por domiciliar em seu artigo 318:
26
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio
de Janeiro, 31 dez. 1940.
27
INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres.
Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018.
28
INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres.
Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018.
29
QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015. P. 74.
30
REIS JR, Almir Santos; COHN, Ana Clara da Silva Cohn; BARETTA, Gilciane Allen. Maternidade no
cárcere: a prisão domiciliar como substitutiva à prisão preventiva. Revista das Faculdades Integradas
Vianna Junior. V. 12. N. 1. Juíz de Fora. 2021. P. 203.
Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 463
“Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente
for:
I - maior de 80 (oitenta) anos;
I - extremamente debilitado por motivo de doença grave;
III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou
com deficiência;
IV - gestante;
V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;
VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos
de idade incompletos.
Parágrafo único.
Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos
estabelecidos neste artigo” (BRASIL, Decreto-Lei Nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 03 out. 1941).
Trazendo a informação contida na legislação para o contexto desta pesquisa,
importa observar os incisos IV e V que tratam da possibilidade de prisão preventiva
para gestantes e mães. Todavia, exige-se alguns requisitos, tais quais o artigo 318A se encarrega de expor:
“Art. 318-A.
A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou
responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão
domiciliar, desde que:
I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa
II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente” (BRASIL, Decreto-Lei Nº
3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de
Janeiro, 03 out. 1941).
O objeto desta pesquisa, mulheres presas acusadas de crimes sem violência
ou grave ameaça, se enquadra, também, na exigência imposta pelo inciso I do artigo
318-A, sendo uma opção humanizada para o cumprimento da pena.
Tal previsão legal é benéfica para as mulheres gestantes, ao passo que as
afasta do ambiente prisional e dos riscos aos quais estariam submetidas, bem como,
em relação às mães privadas de liberdade, reduz impactos afetivos e materiais no
464 | Gênero, violência e estruturas de poder
âmbito familiar, principalmente no que diz respeito aos seus filhos, devendo ser uma
alternativa juridicamente priorizada.31
Diante das evidentes condições degradantes das casas prisionais que
abrigam mulheres, no ano de 2018, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal,
em decisão histórica, concedeu às gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12
anos ou de pessoas com deficiência, por meio de habeas corpus 32 coletivo, a
substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar em todo o território brasileiro,
sendo julgado em 20/02/2018, nos termos do voto do relator, Ministro Ricardo
Lewandowski33
Apesar do precedente e da previsão legal para a prisão domiciliar, muitos
pedidos são indeferidos, diante da alegação da gravidade dos crimes relacionados
ao tráfico de drogas, pelos quais a maioria das mulheres responde, além de fatores
como a reincidência ou existência de outras acusações em desfavor da presa;
desemprego; falta de endereço fixo; ausência de comprovação da essencialidade da
mãe para os seus filhos34
Diante da existência e viabilidade de aplicação de alternativas penais
legalmente cabíveis, diversas da privação de liberdade em regime fechado no
contexto abordado, torna-se ainda mais necessária a busca pela resposta ao
questionamento desta pesquisa.
31
REIS JR, Almir Santos; COHN, Ana Clara da Silva Cohn; BARETTA, Gilciane Allen. Maternidade no
cárcere: a prisão domiciliar como substitutiva à prisão preventiva. Revista das Faculdades Integradas
Vianna Junior. V. 12. N. 1. Juíz de Fora. 2021. P. 205.
32
O habeas corpus se trata de uma garantia constitucional prevista no art. 5º, inciso LXVIII, da
Constituição Federal de 1988, sendo uma ação autônoma de impugnação a fim de proteger os
cidadãos das coações ilegais restritivas ou ameaçadoras de sua liberdade locomotiva (GUIMARÃES,
Rodrigo Machado. Papel do habeas corpus coletivo no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília. 2018).
33
FERREIRA, Carolina Costa. Encarceramento provisório de mulheres em tempos de pandemia:
Análise de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre prisões preventivas e concessão de prisão
domiciliar a mulheres de abril de 2020 a abril de 2021. Brasília: Instituto Brasileiro Ensino,
Desenvolvimento e Pesquisa. 2023. P. 11.
34
COSTA, Alexandre Bernardino; CARVALHO, Claudiane Silva. SANTOS, Lorena Silva. Sistema prisional
brasileiro e a seletividade no tratamento das detentas gestantes, parturientes e lactantes. Revista
Direito.UnB. V. 05. N. 03. 2021. P. 145.
Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 465
CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com esta pesquisa, fez-se possível compreender as razões e justificativas
legais do emprego da prisão preventiva, bem como os requisitos para tal aplicação.
Entretanto, é necessário um olhar atento e prudente quanto às consequências de tal
cautelar, visando efetivos benefícios à sociedade nos casos concretos e a longo
prazo. Deve-se observar as especificidades e particularidades, visando o respeito ao
princípio da individualização da pena e evitando danos reais à sociedade,
questionando-se acerca dos prejuízos à ordem social ocasionados pela prisão e não
apenas pelo estado de liberdade das acusadas.
Para o decreto da prisão preventiva para mulheres acusadas do cometimento
de crimes sem violência ou grave ameaça, devem se comunicar os fundamentos e
consequências, conforme as hipóteses cogitadas. Tal diálogo almeja uma aplicação
correta e restrita da cautelar, evitando a banalização da prisão preventiva. A realidade
individual na qual cada mulher está inserta precisa ser considerada, ao passo que
muitas delas possuem filhos, pelos quais são as principais responsáveis. As crianças
afastadas do convívio com suas mães também são, da sua maneira, punidas, e
sofrem as consequências do cárcere, mesmo em liberdade.
Assim, nota-se que o perigo gerado pelo estado de liberdade destas mães,
e/ou o risco à ordem pública, devem ser analisados no núcleo social de cada mulher,
uma vez que a sua prisão preventiva em regime fechado pode ser mais prejudicial a
todos envolvidos, do que o seu estado de liberdade.
É evidente a estigmatização construída em torno das mulheres privadas de
liberdade, o que dificulta seu retorno ou ingresso no mercado de trabalho, e
consequentemente, corrobora para a sua permanência nas camadas mais
vulneráveis da sociedade. As oportunidades retiradas das apenadas que, sem
condenação transitada em julgado, são inseridas em Casas Prisionais pelo suposto
cometimento de crimes, em tese, praticados sem o emprego de violência ou grave
ameaça podem ser determinantes em diversos setores de suas vidas. Deve-se
considerar, ainda, que, mesmo com a liberdade restabelecida, o abandono familiar
pode ser uma consequência perpétua, com efeitos que não cessam com uma
sentença absolutória.
466 | Gênero, violência e estruturas de poder
Apesar da tendência a se pensar como um todo, a níveis mundial, nacional ou
estatal, é necessário que se busque a maior individualização possível ao se aplicar
uma cautelar privativa de liberdade, investigando-se as condições particulares da
acusada e as efetivas repercussões causadas pela sua ausência e presença na
sociedade na qual está inserida.
REFERÊNCIAS
BRAGA, Ana Gabriela; FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Quando a casa é a prisão:
uma análise de decisões de prisão domiciliar de grávidas e mães após a Lei
12.403/2011. Quaestio Iuris. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1. P. 349 - 375. 2016.
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial
da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941, Código de Processo Penal.
Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 03 out. 1941.
CAMARGO, Mariana Martins. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
– Infopen Mulheres, 2ª edição. Brasília. 2018.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2016.
COSTA, Alexandre Bernardino; CARVALHO, Claudiane Silva. SANTOS, Lorena Silva.
Sistema prisional brasileiro e a seletividade no tratamento das detentas gestantes,
parturientes e lactantes. Revista Direito.UnB. V. 05. N. 03. 2021.
FERREIRA, Carolina Costa. Encarceramento provisório de mulheres em tempos de
pandemia: Análise de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre prisões
preventivas e concessão de prisão domiciliar a mulheres de abril de 2020 a abril de
2021. Brasília: Instituto Brasileiro Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. 2023.
FLORES, Nelia Maria Portugal. SMEH, Luciane Najar. Mães presas, filhos
desamparados: maternidade e relações interpessoais na prisão. Rio de Janeiro:
Physis. 2018.
GUIMARÃES, Rodrigo Machado. Papel do habeas corpus coletivo no ordenamento
jurídico brasileiro. Brasília. 2018.
INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen
Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018.
Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 467
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação.
2019.
PERTILE, Cristiane Goulart. A Maternidade no Cárcere: Problemáticas e
Possibilidades na Prisão Preventiva. Curitiba. 2020.
QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015.
REBELO, Melissa. A falta de fundamentação idônea da prisão preventiva acerca do
periculum libertatis e o consequente distanciamento do seu caráter instrumental.
Rio de Janeiro. 2017.
REIS JR, Almir Santos; COHN, Ana Clara da Silva Cohn; BARETTA, Gilciane Allen.
Maternidade no cárcere: a prisão domiciliar como substitutiva à prisão preventiva.
Revista das Faculdades Integradas Vianna Junior. V. 12. N. 1. Juíz de Fora. 2021.
SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. PEREIRA, Ana Carolina Antunes. Gênero e
Prisão: O Encarceramento de Mulheres no Sistema Penitenciário Brasileiro pelo
Crime de Tráfico de Drogas. Meritum, Revista Brasileira de Direito da Universidade
FUMEC. Belo Horizonte. V. 13, n. 1, p. 87-112. Jan./Jun. 2018.
SILVEIRA, Felipe Lazzari. A Banalização da Prisão Preventiva para a Garantia da
Ordem Pública. Revista da Faculdade de Direito - UFMG. Belo Horizonte, n. 67, pp.
213 - 244. 2015.
STELLA, Claudia. Filhos de mulheres presas: o papel materno na socialização dos
indivíduos. Estudos e Pesquisa em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, set. 2009.
SUSEPE. POLLACCHINNI, Rafaela. Maioria das mulheres privadas de liberdade no
Rio Grande do Sul é mãe e não possui ensino médio completo. 2023. Disponível em:
http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_conteudo=7506&cod_menu=4.
Acesso em 12/out/2023.
25. ENTRE TRADIÇÕES E TRANSFORMAÇÕES: GÊNERO, CONSTRUÇÕES
FAMILIARES E ABORTO COMO DESAFIOS À AUTONOMIA FEMININA
https://doi.org/10.36592/9786554601566-25
Carolina Cagetti1
Iara Amora dos Santos2
RESUMO: Este artigo é parte da dissertação de mestrado “Uma luta contínua
feminista: o processo de legalização do aborto e de garantia de acesso no Brasil e na
Itália” 3 , sendo revisitada e completamente editada para a presente publicação.
Explora-se a construção social e histórica da família, focando na influência da
reprodução, dos papéis de gênero e das expectativas maternas na estrutura familiar.
Examina a ausência paterna e o estigma associado às mães solo, enfatizando como
a moralidade social continua a impactar as escolhas reprodutivas, para então
conectar essas dinâmicas ao debate sobre sexualidade e aborto. A pesquisa
justifica-se pela necessidade de compreender as influências culturais e históricas
nas concepções familiares, explorando escolhas individuais e projetos de superação
diante das pressões familiares e sociais sobre as mulheres em relação à maternidade
e as mudanças nas dinâmicas de gênero. Utilizando uma abordagem interdisciplinar
e interseccional, destaca a complexidade da lógica familista centrada na reprodução
e no sacrifício materno, abordando a evolução das representações da infância, da
centralidade da criança e a ascensão de mulheres no mercado de trabalho
assalariado como desafios ao modelo tradicional. O texto argumenta a favor do
reconhecimento do direito ao aborto seguro, destacando a importância da
autodeterminação feminina e criticando a persistência de normas que limitam a
liberdade de escolha.
Palavras-chaves: familismo; paternidades; mãe solo; autodeterminação; aborto.
1
Graduação em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio) e mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Sapienza de Roma. Pesquisa feminismos e
direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e na Itália, com ênfase na questão do aborto. E-mail:
carolcagetti@gmail.com.
2
Graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestrado em Políticas
Públicas em Direitos Humanos na UFRJ. Trabalhou como coordenadora de projetos na CAMTRA e
atualmente trabalha como assessora parlamentar da Vereadora Monica Benicio. Pesquisa
feminismos, desigualdade de gênero, divisão sexual do trabalho e políticas dos cuidados. E-mail:
iaraamoradossantos@gmail.com.
3
CAGETTI, Carolina. Uma luta contínua feminista: o processo de legalização do aborto e de garantia
de acesso no Brasil e na Itália. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Università degli Studi di Roma La Sapienza. Rio
de Janeiro, 2023.
470 | Gênero, violência e estruturas de poder
Introdução
O conceito predominante de uma família ideal não se limita apenas à sua
estrutura física, mas abarca também os padrões comportamentais e as expectativas
associadas aos seus membros. As instituições influentes, como a Igreja Católica, o
Estado e o sistema capitalista, em conjunto com a mídia, reforçam continuamente
um modelo de família que pressupõe a definição de papéis e comportamentos de
acordo com o gênero de cada indivíduo. Esse contexto também promove ideais
específicos de maternidade e paternidade que, por sua vez, contribuem para a
manutenção da divisão tradicional do trabalho com base no sexo.
Nesse sentido, Silvia Federici, aponta que na divisão sexual do trabalho
estabelecida durante a transição do feudalismo para o capitalismo na Europa, a
família se tornou central enquanto instituição que assegura a transmissão da
propriedade e da força de trabalho, sendo essencial para isto a apropriação e o
ocultamento do trabalho das mulheres; e, simultaneamente, observa-se o início do
registro demográfico e da intervenção do Estado na sexualidade, na procriação e na
vida familiar4.
Neste ponto é preciso registrar que a formação da sociedade brasileira não se
constitui através do mesmo percurso - escravismo-feudalismo-capitalismo
vivenciado na Europa. No entanto, este processo tem impactos diretos na formação
da sociedade brasileira através da expansão capitalista e da implementação da
colonização portuguesa baseada em uma estrutura de dominação patrimonialistapatriarcal-escravista.5
Com as evoluções na estrutura da família, observa-se que, em linhas gerais, o
papel masculino permaneceu praticamente inalterado, ao passo que o feminino
passou por mudanças significativas para abranger tanto o trabalho doméstico
quanto o trabalho remunerado fora de casa. Esse conjunto de expectativas e
pressões impostas pela família tende a restringir as escolhas individuais,
especialmente para as mulheres, que ao longo da história têm enfrentado
4
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. Tradução: Coletivo
Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. 464 p.
5
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São Paulo: Editora
Expressão Popular, 2013. 528 p
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 471
desigualdades significativas em termos de direitos e recursos em comparação com
os homens.
As famílias desempenham papéis duplos como unidades consumidoras e
como responsáveis pela reprodução, tanto humana quanto da força de trabalho,
muitas vezes assumindo a forma de grupos domiciliares e residenciais. A estrutura
familiar é moldada por modelos culturais adaptados a contextos específicos de uma
dada sociedade. Tais modelos abrangem normas e diretrizes que orientam não
apenas a formação da família, mas também os comportamentos individuais dentro
dela.
Os
padrões
culturais
desempenham
o
papel
crucial
de
moldar
comportamentos, servindo como representações que refletem construções
ideológicas sobre a organização da vida social. Dessa forma, é a sociedade que
define quais modelos são aceitáveis ou não, incluindo aqueles relacionados à
instituição familiar6.
Ao examinarmos a estrutura familiar e sua repetição ao longo da história,
validada pela sociedade, torna-se evidente que esta instituição é, assim como os
modelos que a cercam, flexível, sintética e capaz de se adaptar aos desafios e às
mudanças temporais. Como resultado, os padrões relacionados à família, à vida
sexual e à procriação são maleáveis, resultando em uma diversidade significativa de
arranjos familiares que, de certa forma, se distanciam do modelo tradicional burguês.
No entanto, é importante ressaltar que, apesar de muitas formas familiares se
desviarem do ideal clássico, a aspiração por ele permanece forte, sendo considerado
um objetivo a ser almejado e alcançado, ou ao menos se aproximando o máximo
possível dele.
Além do arranjo tradicional da família nuclear, há uma diversidade cada vez
maior de configurações familiares, como as famílias compostas por avós e avôs com
netas e netos, tias e tios com sobrinhas e sobrinhos, famílias substitutas e outras
formas. Destaca-se também o surgimento crescente das famílias mosaico, que
incluem membros com filha(s) e/ou filho(s) de relacionamentos anteriores e atuais,
bem como famílias homossexuais, heterossexuais sem filha(s) e/ou filho(s), e
também famílias monoparentais matrifocais. Estas últimas são mais prevalentes
6
GEERTZ, Clifford. Os usos da diversidade. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 10, p.13-34,
1999.
472 | Gênero, violência e estruturas de poder
nas camadas populares da sociedade brasileira, caracterizadas pela presença de
mães com filha(s) e/ou filho(s), em que a figura paterna pode estar ausente ou ter
uma presença temporária e instável.
Entretanto, é evidente uma forte corrente conservadora que tende a reprimir o
reconhecimento da diversidade de formas e significados da família, resultando na
desvalorização e estigmatização de formatos familiares alternativos. Esse discurso
conservador, frequentemente centrado na suposta "destruição da família", surge
como uma resposta à crescente variedade e amplitude das novas configurações
familiares que estão emergindo7.
Ressalta-se, no entanto, que essas formas familiares não representam
necessariamente um declínio ou falência da instituição familiar. Pelo contrário, elas
podem ser vistas como adaptações ou extensões do modelo clássico, e até mesmo
como uma contestação da ordem social estabelecida e dos padrões de
comportamento coletivo dentro da dinâmica familiar, desafiando os modelos
tradicionais estabelecidos. O verdadeiro esgotamento e obsolescência reside na
imposição inflexível da versão tradicional da família e sua constante idealização,
alimentadas principalmente pelo conservadorismo presente nas instituições
religiosas, estatais e familiares, bem como pela influência da indústria do
entretenimento.
É importante reconhecer que os meios de comunicação em massa não apenas
transmitem informações, mas também moldam hábitos, reforçando e disseminando
padrões, ideais e comportamentos8.
As transformações familiares observadas nas últimas décadas têm suas
raízes, em grande parte, nas mudanças dos papéis atribuídos aos seus membros. A
entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho remunerado, juntamente
com avanços no acesso à contracepção, desafiou a divisão sexual do trabalho e
ordem social anteriormente estabelecida. Como resultado, a reorganização dos
papéis tradicionais dentro da família teve um impacto significativo na estrutura
7
DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e Casamento. Anais do III Encontro Nacional de Estudos
Populacionais (ABEP), p. 31-48, 1982.
8
VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 473
institucional, permitindo uma maior flexibilidade na composição dos arranjos
familiares.
É importante elucidar que ao falarmos do avanço da participação massiva das
mulheres no mercado de trabalho, estamos nos referindo ao fenômeno ocorrido nas
últimas décadas, que significou a normalização da presença feminina nesse campo
– no entanto, muitas mulheres, em especial as mulheres negras, já ocupavam o
mesmo.9
Apesar das mudanças na estrutura e organização familiar ao longo do tempo,
é notável que as responsabilidades domésticas e o cuidado com filha(s) e/ou filho(s)
continuam sendo majoritariamente atribuídas às mulheres. Esta responsabilização
tem profundos impactos na estrutura do mercado de trabalho, influenciando salários,
qualificação, formas de inserção profissional, na alocação em tempos de crise e, por
conseguinte, na vivência da maternidade.
A desigualdade de gênero ainda está arraigada na sociedade de forma ampla:
o aumento significativo da participação feminina no mercado de trabalho não
significou uma radical transformação da divisão sexual do trabalho, que apenas se
adaptou. Desta forma, a despeito da consolidação da trajetória feminina no campo
do trabalho produtivo, as mesmas seguem responsabilizadas e sobrecarregadas
pelos trabalhos reprodutivos, diante da não correspondência da trajetória masculina
na realização dos trabalhos reprodutivos10, e da insuficiência de políticas públicas
na esfera da reprodução.
Quando se trata do contexto brasileiro, mais uma vez, deve-se considerar o
longo legado de colonização e escravidão, que deixou marcas profundas na cultura
e nas estruturas sociais. Nesta aspecto, Lélia Gonzalez afirma que o racismo
desempenha um papel central na formação da sociedade brasileira, sendo “um dos
critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para
9
MARCONDES, Mariana Mazzini. O dia deveria ter 48 horas: práticas sociais do cuidado e demandas
das mulheres brasileiras por políticas públicas para a sua democratização. In: ÁVILA, Maria Betânia.
FERREIRA, Verônica. (Orgs.). Trabalho Remunerado e trabalho doméstico no cotidiano das mulheres.
Recife: SOS Corpo, 2014. p.79-104.
10
SORJ, Bila. FONTES, Adriana. MACHADO. CARUSI, Danielle. Políticas e práticas de Conciliação entre
família e trabalho no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p.573-594, set/dez. 2007.
Disponível em: http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/viewFile/342/347. Acesso em:
15 mar. 2019.
474 | Gênero, violência e estruturas de poder
posições na estrutura de classes e regime de estratificação social” 11 . Desde os
primórdios da formação do Estado brasileiro, as classes dominantes detiveram o
controle do aparelho estatal, mantendo uma hegemonia política, econômica e
cultural, e marginalizando grande parte da população em termos de cidadania e
direitos.
Até a instauração da República, a Igreja desempenhou o papel de aparelho
ideológico do Estado, mediando as condutas sociais das diversas camadas da
sociedade e exercendo influência na legislação relacionada à organização da vida
social. Nesse contexto, a Igreja obteve sucesso considerável ao suprimir e
deslegitimar práticas alternativas de costumes familiares no país12.
A destruição das formas familiares próprias das culturas africanas e indígenas foi uma
preocupação constante da Igreja, do Estado e das classes dominantes, impedindo a
emergência de modelos de família alternativos. (...) Preservou-se uma forma que
privilegia o grupo conjugal como núcleo estrutural da família e manteve-se todo o
sistema de parentesco bi-lateral. (...) Esse modelo, entretanto, só conseguiu se realizar
plenamente nas camadas dominantes e assim mesmo, num sentido muito específico:
como forma de regulamentar a procriação (e, por isso, a sexualidade) das mulheres nessa
camada social, legitimando seus filhos e assegurando uma forma específica de herança
e sucessão. Esse modelo não foi utilizado no sentido de regular a sexualidade masculina
e implicou que generalizassem as formas de concubinato, simples utilização sexual das
mulheres sem a contrapartida de vínculos legalmente reconhecidos, eximindo os homens
da responsabilidade para com a prole13.
A divisão sexual do trabalho dentro da família estabelece papéis e
responsabilidades para seus membros, comumente retratando o homem como
figura de autoridade e provedor, tendo o controle dos bens e das riquezas. Por outro
lado, a imagem da mulher muitas vezes oscila entre a submissão e a iniciativa, sendo
que apenas esta última é vista como capaz de assumir o papel de provedora na
ausência temporária ou permanente do homem. Ao mesmo tempo, mulheres foram
11
GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs,
p.223-244, 1984
12
DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e Casamento. Anais do III Encontro Nacional de Estudos
Populacionais (ABEP), p. 31-48, 1982.
13
Ibid, p. 36.
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 475
encarregadas das tarefas domésticas e do cuidado das crianças, uma
responsabilidade quase exclusivamente delas.
É comum que a rede de apoio familiar seja composta principalmente pela
família da mulher, especialmente considerando que muitas famílias brasileiras têm
uma estrutura matrifocal. No Brasil, nas famílias mais ricas, é mais comum encontrar
uniões formalizadas legalmente, enquanto nas camadas mais pobres, as uniões
tendem a ser mais informais.
De um lado, esse tipo de união resulta do processo de dominação. A presença de
contingentes indígenas escravizados e a importação de escravos africanos favoreceu o
concubinato ou o puro abuso sexual das mulheres desses segmentos da população por
parte dos brancos dominantes. O estabelecimento de vínculos conjugais implica num
mínimo de igualdade social que não existia, nessa situação. [...] Ela caracteriza antes a
existência de formas de reprodução que se dão fora da família, constituindo mães sem
maridos e filhos sem pais que, além de moralmente discriminados, estão
indubitavelmente numa posição de efetiva desvantagem econômica e social14.
No Brasil, é bastante comum encontrar famílias que não se enquadram no
padrão tradicional de conduta familiar, em grande parte devido à ausência paterna.
Esse tipo de arranjo é especialmente prevalente em lares das camadas populares em
áreas urbanas. Por outro lado, nas regiões rurais, a união legal e a divisão sexual do
trabalho dentro da família são vistas como tradições que visam preservar a honra da
mulher e desempenham um papel fundamental na reprodução do trabalho. Essa
dinâmica é influenciada pela estrutura da produção agrícola familiar, na qual a
família é considerada uma unidade de produção essencial e cada membro
desempenha funções claramente definidas. No entanto, apesar das diferenças entre
esses dois contextos, é importante destacar que as instabilidades nos
relacionamentos e os casos de violência contra as mulheres estão presentes em
ambas as realidades.
É importante ressaltar que o custo associado à oficialização da união, seja
através do casamento civil ou religioso, é um obstáculo significativo para muitas
14
DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e Casamento. Anais do III Encontro Nacional de Estudos
Populacionais (ABEP), p. (31-48), p. 39, 1982.
476 | Gênero, violência e estruturas de poder
pessoas. Antes mesmo do casamento civil, existiam barreiras impostas pela
instituição religiosa que dificultavam a formalização da união. Posteriormente, novos
obstáculos surgiram. Além da questão financeira, muitas pessoas não possuem a
documentação necessária exigida pelo Estado para realizar o procedimento. Para
quem reside em áreas rurais, a situação é ainda mais complexa devido à distância
até o cartório mais próximo.
Em um país onde tanto a Igreja quanto o Estado reconhecem o vínculo
conjugal como a única forma legítima de reconhecer uma família, é evidente que
essas instituições historicamente agiram para dificultar o reconhecimento da união
entre indivíduos com menos recursos financeiros. Mais uma vez, observa-se uma
colaboração entre ambas as instituições para preservar os privilégios da classe
dominante, uma vez que a forma como uma família é constituída desempenha um
papel relevante na ascensão social e na organização dos papéis na vida cotidiana.
Com as mudanças ocorridas no cenário econômico durante os anos 1960 e
1970, havia a expectativa de que os laços familiares se fortalecessem, uma vez que
a estabilidade financeira poderia ser mais facilmente alcançada nas relações. No
entanto, à medida que as mulheres ganharam mais autonomia e deixaram de se
submeter aos maridos como anteriormente, observou-se um aumento no número de
uniões desfeitas e, consequentemente, o surgimento de novas relações familiares.
Durante os debates em torno do divórcio, a Igreja posicionou-se contrária,
argumentando que tal medida levaria à desintegração da família. De outro lado,
grupos progressistas e da advocacia rebateram, defendendo que o divórcio poderia
abrir espaço para a formação de novas famílias baseadas no afeto.
Apesar das transformações na estrutura e organização familiar a relação de
dominação masculina sobre as mulheres continua profundamente enraizada na
sociedade em geral.
Nas famílias das zonas rurais, as mulheres assumem responsabilidades tanto
nas tarefas agrícolas, ao lado do marido e de filha(s) e/ou filho(s), quanto nas
atividades domésticas. Já nas famílias das zonas urbanas, as mulheres muitas
vezes enfrentam uma dupla jornada de trabalho, com empregos mal remunerados
fora de casa e a responsabilidade pelas tarefas domésticas. Em ambos os contextos,
as formas de organização familiar apresentam semelhanças, mesmo em segmentos
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 477
distintos da sociedade. Nas duas situações, as mulheres encontram-se, de alguma
maneira, em uma posição de subordinação em relação aos homens devido ao
sistema econômico de produção que molda a estrutura familiar e define as funções
de cada membro nesse processo.
Padrões de divisão sexual do trabalho nas classes trabalhadoras não sofreram radical
transformação apesar do aumento do ingresso feminino no mercado de trabalho. Ao
contrário, preserva-se a atribuição das tarefas domésticas à mulher com a consequente
imposição da dupla jornada de trabalho; simultaneamente, mantém-se a dominação
masculina do pai no grupo doméstico, inclusive pelo uso da violência física. Desse modo,
a transformação no mercado de trabalho com a industrialização não impactou
significativamente os padrões tradicionais de divisão sexual do trabalho nas famílias,
embora provavelmente venha a fazê-lo no longo prazo. O que deve influir decisivamente
numa transformação desse tipo é o acesso a técnicas de controle de natalidade e a
consequente possibilidade de divorciar a sexualidade da reprodução como ocorre
nitidamente nas classes médias urbanas15.
Na camada média e alta da sociedade, além de ter mais acesso a métodos
contraceptivos, a terceirização do trabalho doméstico e dos cuidados é largamente
utilizada, o que contribui para maiores possibilidades de construções de autonomia
financeira destas mulheres. O que por sua vez impacta em maiores possibilidades
de escolha destas em relação à forma de constituição familiar - seja ela temporária
ou permanente, heterossexual ou homossexual, monogâmica ou poligâmica, com ou
sem descendentes, e compartilhando ou não a mesma residência.
A perspectiva familista que prioriza a reprodução e valoriza o sacrifício materno
O conceito de família ideal é percebido como algo intrinsecamente natural e
sagrado. Considera-se natural porque se acredita que seu modelo representa a
forma mais pura e primitiva de organização familiar, embora reconheça-se que,
como qualquer outra instituição, pode ser sujeito a distorções ao longo do tempo. É
15
DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e Casamento. Anais do III Encontro Nacional de Estudos
Populacionais (ABEP), p. (31-48), p. 45-46, 1982.
478 | Gênero, violência e estruturas de poder
considerado sagrado porque se imagina que reflita a essência mais profunda da
humanidade, assegurando assim a contínua reprodução e preservação da espécie.
Além disso, a ideologia do amor conjugal contribui para a percepção de que o
casamento não é meramente uma construção social, mas sim uma expressão
genuína de afeto e compromisso entre os cônjuges. No entanto, é importante
destacar que esses ideais são construídos de acordo com as crenças e os propósitos
de cada sociedade, variando conforme as tradições culturais e os valores
predominantes em cada contexto histórico e cultural16.
A concepção moderna de família foi introduzida no contexto da reforma
cultural, visando possibilitar a construção de uma nova visão da infância e servir
como justificativa e instrumento de implantação para diversas iniciativas médicas,
sejam elas filantrópicas, assistencialistas ou higienistas. Essas iniciativas
contribuíram para o surgimento de um novo conjunto de instituições, dedicadas à
promoção do indivíduo como uma entidade autônoma e individualizada17. Assim, foi
somente na era da Modernidade que a figura da criança começou a ser valorizada e
assumiu o papel central na estrutura familiar, refletindo uma mudança significativa
nos padrões culturais e sociais da época.
Na Idade Média, as famílias tinham que garantir a alimentação e a higiene das
crianças, embora nem sempre esses cuidados fossem adequados à idade
correspondente, sendo mais voltados para a garantia da sua sobrevivência. Nesse
período, a taxa de mortalidade infantil era extremamente alta, ao passo que a
natalidade também era elevada. Com a rápida passagem das crianças pela família e
os constantes nascimentos, não se desenvolvia um sentimento de afeição especial
à infância, que as diferenciasse claramente das pessoas adultas.
Essa observação pode ser constatada pela maneira como as crianças eram
representadas, muitas vezes como versões em miniatura de pessoas na fase adulta,
vestindo roupas semelhantes, alterando apenas o tamanho. Assim, somente na
16
DUARTE, Luiz Fernando Dias. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In:
RIBEIRO, I. E RIBEIRO, A.C.T. (Org.). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na
sociedade Brasileira. SP: Loyola, 1995.
17
Ibid.
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 479
adolescência ou juventude, após sobreviverem aos perigos da infância, é que as
pessoas passavam a receber valorização e reconhecimento na sociedade18.
Com o advento do Renascimento no século XVII, a representação da infância
passou por uma transformação significativa. As crianças começaram a ser
retratadas com traços rechonchudos, e os anjos, frequentemente representados
como crianças roliças. Nesse período, as concepções sobre a infância começaram a
se solidificar, embora inicialmente favorecessem mais os meninos, uma vez que as
meninas ainda eram relegadas aos papéis tradicionalmente atribuídos às mulheres
adultas. Foi também nesse contexto que os retratos familiares começaram a
destacar as crianças como foco central.
Nas pesquisas realizadas por Lins de Barros sobre memória e representação
de famílias no universo de camadas médias, fez-se a seguinte colocação acerca das
fotos familiares das pessoas entrevistadas19:
No próprio ato de fotografar já existe, implícito, um ritual, exacerbando os símbolos
distintivos da família. Coloca-se em evidência, no instante fotografado, elementos
considerados essenciais para a caracterização seja da família em seu conjunto, ou dos
diversos papéis que nela representam a mulher, o homem ou a criança. A criança, mais
que qualquer outro personagem, sintetiza na sua imagem a imagem da família. Das
poses demoradas das fotos antigas (...), a criança aparece sempre como um marco de
referência familiar. É ela o centro e a razão de ser da família. Através dela, fala-se de
tradição e de renovação (...). A cena fotográfica expõe a criança, conferindo-lhe um lugar
de absoluta centralidade. O olhar de quem segura o pequeno bebê não se dirige para o
fotógrafo. Seu rosto volta-se para a criança, retirando de si toda a importância, e
obrigando o olhar de quem vê a foto a focalizar sua atenção no pequeno ser suspenso
em seus braços. Sentada sozinha, nos sofás e cadeiras de espaldar alto, com ares
principescos, a criança tem reafirmada, mais uma vez, sua supremacia20.
O modelo moderno idealizado foi concebido com base na reprodução dos
sujeitos sociais, sendo essencial para assegurar a transmissão da propriedade e
reprodução da força de trabalho. Assim, esperava-se que a família desempenhasse
18
ARIÈS, Philippe. A história da criança e da família. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981.
LINS DE BARROS, Myriam Moraes. Memória e Família. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n.
03, p. 29-42, 1989.
20
Ibid, p. 40.
19
480 | Gênero, violência e estruturas de poder
o papel de prover educação e transmitir os costumes e valores tradicionais para as
gerações futuras, preservando e reforçando as normas e padrões culturais na
memória coletiva.
A memória é um fenômeno social que desempenha o papel de ponto de
referência temporal, espacial e até mesmo lógico. A família, como responsável pela
socialização primária de um indivíduo, desempenha um papel fundamental ao
proporcionar lembranças e rituais que introduzem o indivíduo à vida social e adulta.
Além disso, a família também transmite a importância e a permanência dos valores
associados à instituição familiar e à ordem moral21.
A qualidade do trabalho de “criação” empreendido sobre a criança na família é muito
especial e radical, por envolver o físico e a moral, as emoções e a cognição, na versão
mais integrada desse processo a que se referem P. Bourdieu sob o nome de
“incorporação” e N. Elias sob o de “interiorização”. O desenvolvimento de técnicas de
ajuste fino dessa “criação” (...) só serviu para realçar a complexa gravidade dos
mecanismos de produção de identidade no interior da família, irreprodutíveis por
qualquer das instituições “artificiais” conhecidas 22.
Em uma sociedade onde a educação e os cuidados das crianças são
atribuídos ao núcleo familiar, não é surpreendente que a extrema-direita adote o
discurso da preservação da família tradicional como forma de garantir a
continuidade dos valores conservadores para as crianças23. No entanto, quando essa
concepção é desafiada pelas transformações sociais, torna-se evidente que a
representação da família não é estática em nenhum momento ou contexto
específico. De fato, existem diversas variações do modelo familiar que são
influenciadas pela trajetória de vida e pelo espaço de atuação de cada indivíduo,
sendo esses fatores determinantes na configuração dos papéis sociais familiares24.
21
Ibid.
DUARTE, Luiz Fernando Dias. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In:
RIBEIRO, I. E RIBEIRO, A.C.T. (Org.). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na
sociedade Brasileira. SP: Loyola, p. 39, 1995.
23
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou sobre a educação. Editora Vozes, 2023.
24
LINS DE BARROS, Myriam Moraes. Memória e Família. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n.
03, p. 29-42, 1989.
22
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 481
Na obra de Badinter, o ideal do amor materno é analisado e criticado como
sendo inato e incondicional. Argumenta-se que o conceito de amor materno não é
algo intrínseco, mas sim uma construção ao longo dos séculos, moldada por
expectativas sociais e culturais que podem ser opressivas para as mulheres. A
autora questiona a noção de que o amor materno é um instinto natural e defende a
ideia de que as mulheres devem ter liberdade para tomar decisões sobre a
maternidade sem serem julgadas25.
A autora também aborda o tema do sacrifício materno em suas obras,
criticando a ideia de que as mulheres devem sacrificar suas próprias necessidades
e aspirações em prol de filha(s) e/ou filho(s). Ela argumenta que esse ideal de
sacrifício pode ser limitante para as mulheres, privando-as da oportunidade de
desenvolver suas próprias identidades e buscar realizações além do papel de mãe.
Badinter levanta a questão de como a pressão para adotar um modelo tradicional de
maternidade pode afetar negativamente a liberdade e a realização pessoal das
mulheres.
Na visão da autora, é fundamental permitir que as mulheres tenham liberdade
de escolha e possam conciliar a maternidade com outras áreas de suas vidas, como
o trabalho e seus interesses pessoais26.
Aspirações individuais e a sombra da ilegitimidade: presença da paternidade que se
manifesta através da ausência
O ponto de vista e o modo de vida dos indivíduos são profundamente
moldados pelo contato com redes de relações sociais mais amplas e pela exposição
a uma variedade de experiências e ideias diversas. Essas interações desempenham
um papel significativo na forma como as pessoas se compreendem, ou seja, na sua
autopercepção27.
25
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, 1985.
Ibid.
27
VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
26
482 | Gênero, violência e estruturas de poder
A partir dessa perspectiva, é possível que ocorra uma ruptura com o modelo
familiar corporativista28 e uma superação do modelo familiar hegemônico, através
da busca por uma carreira e participação em determinadas instituições. Ao valorizar
essas experiências subjetivas, influenciadas por uma combinação única de fatores
históricos, psicológicos e sociais, abre-se espaço para escolhas diversas. A ideia de
que os indivíduos têm ou podem ter escolhas é o primeiro passo para se pensar em
projetos de superação. No entanto, é importante ressaltar que a diversidade e a
fragmentação de papéis podem obscurecer a visão de totalidade, tornando mais
desafiador o desenvolvimento de projetos que busquem superar uma realidade
opressora.
Nas últimas décadas, observa-se um processo de conscientização mais
pronunciado entre as mulheres. De acordo com Duarte, as mudanças no mercado de
trabalho, a gradual adaptação das instituições à igualdade de gênero estipulada na
legislação e o fortalecimento das organizações feministas contribuíram para abalar
o principal pilar do modelo tradicional de complementaridade entre homens e
mulheres: a hierarquização. Com as transformações na divisão sexual do trabalho, o
sistema hierárquico fundamentado na ideia de complementaridade entre os gêneros
foi desmascarado, abrindo espaço para um projeto de individualização que foi
amplamente adotado por parte das mulheres. Como resultado, ocorreu um
deslocamento desigual entre os gêneros29.
Como já mencionado acima, principalmente nas camadas de classes mais alta
e majoritariamente brancas, o homem era tradicionalmente encarregado de prover o
sustento da família, enquanto a mulher cuidava do lar e dos membros familiares.
Com as transformações sociais, a mulher passou a assumir tanto as
responsabilidades domésticas quanto o papel de provedora, enquanto as atribuições
masculinas permaneceram praticamente inalteradas. Os cuidados com a casa e com
as crianças continuam sendo majoritariamente delegados às mulheres, enquanto os
homens já não detêm mais o monopólio do controle financeiro do lar.
28
Modelo familiar onde os membros familiar atuam em um mesmo ramo produtivo e econômico,
cadeia de produção, empresa, entre outros;
29
DUARTE, Luiz Fernando Dias. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In:
RIBEIRO, I. E RIBEIRO, A.C.T. (Org.). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na
sociedade Brasileira. SP: Loyola, 1995.
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 483
Consequentemente, os "papéis masculinos" foram assumidos pelas mulheres,
enquanto os homens não mostraram interesse em assumir os "papéis femininos".
Isso levou a uma perda de protagonismo e de definição clara de função para os
homens, que agora precisam buscar novas funções, utilidade e sentidos. Diante
dessa reflexão, é essencial criar novas alternativas institucionais que se adequem a
essas mudanças e às diversas formas de organização familiar que surgem.
Além disso, apesar dos avanços tecnológicos, a procriação humana continua
intrinsecamente ligada à gestação uterina, uma tarefa que recai exclusivamente
feminina e/ou pessoas com possibilidade gestacional. Isso não apenas representa
uma reprodução biológica, mas também uma reprodução ideológica.
Dentro do contexto do patriarcado familiar, o valor da esposa muitas vezes
está intrinsecamente ligado à sua capacidade de se tornar mãe, sendo essa sua
função social atribuída. Desde a infância, as meninas são socializadas com o projeto
da maternidade, o que pode condicionar e restringir suas escolhas individuais no
futuro. Uma mulher que não tem filhos é estigmatizada e vista como incompleta aos
olhos da sociedade, pois o ideal de família baseado no casamento entre homem e
mulher, com descendência, é considerado como o padrão a ser alcançado.
Nesse contexto, casais que não reproduzem podem não realizar esse ideal, já
que, socialmente, a principal função da família e da mulher é vista como sendo a
procriação. Dessa forma, o processo de reprodução é frequentemente associado
quase exclusivamente às mulheres, enquanto a figura masculina é frequentemente
desassociada do processo reprodutivo e da responsabilidade pelos cuidados
relacionados à criança.
Assim como a maternidade, os significados atribuídos à paternidade são
históricos e, portanto, sujeitos a mudanças ao longo do tempo. Na sociedade, a
paternidade é vista como um mecanismo de transmissão tanto patrimonial quanto
genética e moral. Além de fornecer sustento e compartilhar o nome e a história da
família, filha(s) e/ou filho(s) também anseiam pelo afeto, cuidado e presença de seus
pais.
No entanto, no Brasil, de acordo com dados da Arpen (Associação Nacional
dos Registradores de Pessoas Naturais), o percentual de crianças registradas como
tendo "pai ausente" aumentou de 5,5% em 2018 para 6,9% em 2023 (considerando o
484 | Gênero, violência e estruturas de poder
período até 6 de junho). Curiosamente, esse número tem aumentado a cada ano,
apesar de uma diminuição no número absoluto de nascimentos entre 2018 e 202230.
Dentro de uma sociedade em que ainda preconiza o padrão familiar
tradicional, a ausência do pai pode gerar uma série de impactos, que vai desde
sentimentos de incômodo, vergonha e dor pela falta de afeto até a esperança de um
dia ter o reconhecimento. A falta de um pai é frequentemente associada à
discriminação e à desigualdade social, uma vez que toda a responsabilidade
financeira e emocional recai sobre a mãe e, quando possível, sobre sua rede de apoio
familiar.
De acordo com uma pesquisa sobre os significados da paternidade conduzida
por Finamori, entre as pessoas entrevistadas (jovens sem reconhecimento paterno),
há uma forte idealização da família nuclear tradicional, vista como a família "normal",
e uma percepção de que ter um pai presente é um privilégio. No entanto, como as
ações paternas muitas vezes não correspondem às expectativas dessas(es) jovens,
surge um sentimento de violação que se torna parte integrante do processo de
construção de suas subjetividades, pois crescem atormentados pelo fantasma
discriminatório da bastardia31.
O estigma associado à ilegitimidade é antigo e foi reforçado por legislações
que
buscavam
proteger
concebimentos
dentro
do
casamento,
enquanto
marginalizavam nascimentos fruto de outras relações. Até certo ponto da história,
não havia um reconhecimento oficial da paternidade em relações fora do casamento.
Atualmente, apesar das mudanças nas leis, o comportamento dos homens no
Brasil em relação ao reconhecimento de filha(s) e/ou filho(s) ainda não passou por
uma transformação radical, o que explica os altos números de crianças registradas
com paternidade desconhecida. Muitas vezes, a ruptura nos relacionamentos ocorre
quando a gravidez é anunciada ao parceiro, mesmo após um período marcado por
intensa paixão. De acordo com relatos, muitas mães consideram um erro ter mantido
30
ARPEN. Cresce o número de crianças sem pai. 2023. Disponível em:
arpenpr.org.br/site/conteudonoticia/8949#:~:text=Os%20dados%20da%20Arpen%20(Associa%C3%
A7%C3%A3o,rela%C3%A7%C3%A3o%20aos%2012%20meses%20anteriores. Acesso em: 25 de jun.
2023.
31
FINAMORI, Sabrina Deise. Os sentidos da paternidade: dos “pais desconhecidos” ao exame de DNA.
Campinas, 2012.
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 485
a gravidez até o fim, devido à frustração das expectativas de amor e família
idealizadas, que não se concretizaram, e às falsas promessas de afeto. A dor
resultante desse cenário é dupla: por um lado, o sofrimento pessoal causado pela
negação e rejeição do pai; por outro, o sentimento de não ser desejado e bem-vindo,
de ser visto como um fardo pela mãe32.
O reconhecimento da paternidade é hoje considerado um direito humano e
uma questão de cidadania, visto como um direito da criança de conhecer sua origem.
No entanto, surge a questão se essa norma que exige o reconhecimento paterno não
acaba por reforçar o ideal tradicional de família nuclear, que postula que a identidade
completa do indivíduo só é alcançada na presença de uma mãe e um pai. Além disso,
é importante ressaltar que o reconhecimento legal não garante necessariamente o
cuidado e o afeto desejados.
Do estigma enfrentado pelas mães que criam seus filhos sozinhas até a luta pelos
direitos das mulheres: abordagens sobre sexualidade e aborto
No passado, quando mulheres solteiras ou em concubinato, principalmente
das classes mais elevadas, recorriam ao aborto, os médicos frequentemente
justificavam o procedimento como uma questão de honra. Por outro lado, quando a
mulher era de classes mais populares, a vontade de realizar um aborto muitas vezes
era rotulada como loucura puerperal, como se ela não estivesse consciente dos fatos,
embora fosse exatamente essa consciência que a levasse a buscar o
procedimento33.
Até hoje, mulheres nessa situação muitas vezes optam pelo aborto, diante das
condições de vida, seja pela dificuldade econômica, seja para dar continuidade a
outros projetos de vida e seja pelo julgamento da sociedade. Se uma mulher decide
pelo aborto em determinado contexto, é porque, dadas as circunstâncias, ela acredita
que é a melhor opção disponível para ela.
32
Ibid.
FINAMORI, Sabrina Deise. Os sentidos da paternidade: dos “pais desconhecidos” ao exame de DNA.
Campinas, 2012.
33
486 | Gênero, violência e estruturas de poder
Há um razoável consenso em torno do fato de que em toda sociedade os indivíduos
procuram controlar o sofrimento físico e psicológico, ou reduzindo-o a um mínimo
suportável (que obviamente variará) ou enquadrando-o dentro de modelos e paradigmas
que o justifiquem ou mesmo expliquem 34.
A pesquisa de Cynthia Sarti sobre a moral dos pobres da periferia de São Paulo
também revela uma percepção do aborto como uma questão de vaidade em
oposição à responsabilidade. Para esse grupo, o aborto é visto como uma escolha
egoísta e individualista, contrária aos princípios de responsabilidade moral diante
das próprias ações. No entanto, quando o aborto é percebido como uma
necessidade, algumas pessoas da comunidade podem começar a aceitá-lo
moralmente35.
Ainda há uma visão arraigada na comunidade de que as mulheres que se
relacionam sexualmente também devem estar preparadas para lidar com as
consequências reprodutivas, ou seja, a gestação que pode resultar dessas relações.
Essa mentalidade reflete a crença em uma ligação intrínseca entre sexualidade e
reprodução, ressaltando a importância da educação sexual não sexista e da
conscientização sobre métodos contraceptivos na comunidade36.
A análise destaca como o trabalho remunerado das mulheres, especialmente
quando são mães solo, é visto como uma forma de redenção ou "reparação" por
supostos "erros" relacionados à sua vida sexual. Esse trabalho é percebido como
uma prova de sua dignidade e capacidade de assumir responsabilidades. No entanto,
devido à divisão sexual do trabalho, as oportunidades de trabalho para as mulheres
tendem a ser mais precárias, mesmo quando elas estão empregadas. Isso pode
resultar em uma dependência contínua do apoio financeiro e da assistência cotidiana
da rede de parentesco, que muitas vezes se estende para além do ambiente
doméstico.
Essa coletivização das responsabilidades pela criança dentro da rede de
parentesco e sociabilidade da mãe é especialmente evidente nos casos em que a
34
VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, p.31, 1997.
35
SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas:
FAPESP, 1996.
36
Ibid.
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 487
paternidade não é assumida. Nesses casos, a mãe muitas vezes depende não
apenas de seu próprio trabalho, mas também do apoio financeiro e emocional de sua
família ampliada para cuidar da criança. Essa dinâmica destaca não apenas as
desigualdades de gênero no mercado de trabalho, mas também a importância da
solidariedade familiar e comunitária para lidar com os desafios enfrentados pelas
mães solo.
A importância da família para os pobres está relacionada às características de nossas
instituições públicas, incapazes de substituir as funções privadas da família. Num país
onde os recursos de sobrevivência são privados, dada a precariedade de serviços
públicos de educação, saúde, previdência, amparo à velhice e à infância, somados à
fragilidade dos sindicatos e partidos políticos como instrumentos de mediação entre o
indivíduo e a sociedade, enfim, diante da ausência de instituições públicas eficazes, o
processo de adaptação ao meio urbano e a vida cotidiana dos pobres, inclusive dos
nascidos na cidade, é estruturalmente mediado pela família. Suas relações fundam-se,
portanto, num código de lealdade e de obrigações mútuas e recíprocas próprio das
relações familiares, que viabilizam e moldam seu modo de vida também na cidade,
fazendo da família e do código de reciprocidade nela implícito um valor para os pobres 37.
A condenação moral do aborto contribui para uma pressão adicional sobre as
mulheres que enfrentam gravidezes indesejadas ou não planejadas. Devido a essa
condenação, muitas mulheres se veem obrigadas a levar adiante a gravidez, mesmo
quando isso implica sacrificar seus próprios sonhos, projetos e aspirações
individuais. A ideia de que uma gravidez indesejada deve vir antes dos projetos
individuais coloca um fardo significativo sobre as mulheres, especialmente nas mães
solo ou nas que enfrentam momentos desafiadores.
Essa expectativa social de priorizar uma gravidez não desejada sobre os
objetivos individuais pode reforçar as desigualdades de gênero, limitando as
oportunidades das mulheres de buscar realização pessoal e profissional. Além disso,
essa pressão pode contribuir para um ciclo de reprodução da pobreza e da exclusão
social, especialmente porque a responsabilização social sobre o trabalho dos
37
SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas:
FAPESP, p.32, 1996.
488 | Gênero, violência e estruturas de poder
cuidados segue recaindo sobre as mulheres – que sem um apoio eficaz das políticas
públicas, têm impactadas as suas possibilidades de acesso a trabalhos
remunerados e não precarizados.38
Como alerta Crenshaw, as mulheres são as principais afetadas pela
diminuição dos serviços estatais, especialmente aqueles relacionados ao cuidado de
crianças, doentes e pessoas idosas. No entanto, as disparidades de classe
determinam quais mulheres serão encarregadas de realizar esses serviços de forma
direta e quais serão capazes de pagar por eles, deixando para as mulheres pobres o
ônus de cuidar não só de suas próprias famílias, mas muitas vezes das famílias de
outros.39
Essa dinâmica ilustra como as expectativas familiares e sociais podem
influenciar as escolhas pessoais, especialmente em contextos onde o trabalho é
fundamental para o sustento e o progresso da família 40 . Embora haja uma
valorização da liberdade de escolha, essa liberdade muitas vezes é limitada pelas
normas e padrões estabelecidos pela família e pela comunidade.
O conflito entre os projetos individuais e as obrigações familiares pode gerar
tensões significativas para as mulheres, em particular. E “quando vai de encontro às
fronteiras simbólicas de determinado universo cultural, ou as ultrapassa, terá então,
provavelmente, uma situação de desvio com acusações e, em certos casos,
estigmatização”41.
A estigmatização e as expectativas sociais podem restringir as oportunidades
das mulheres de buscar suas próprias aspirações e de se realizarem em papéis que
vão além do tradicional de esposa e mãe, caso desejado.
É evidente que se as mulheres fossem menos pressionadas pelos ideais e
expectativas morais impostos pela família, teriam mais espaço para traçar seus
38
DOS SANTOS, Iara Amora. O filho não é só da mãe: Luta das Mulheres pelo Direito à Creche no
Brasil. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2022.
39
CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação
racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, jan-jun. 2002. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104- 026X2002000100011. Acesso em: 10
jul. 2019.
40
SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas:
FAPESP, 1996.
41
VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, p.26, 1997.
Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 489
próprios caminhos de realização pessoal. O acesso à educação sexual também
desempenharia um papel importantíssimo nesse cenário, permitindo-lhes tomar
decisões informadas sobre sua vida reprodutiva e ampliando suas opções para além
dos papéis tradicionalmente atribuídos. Assim, poderiam de fato escolher se e
quando procriar, aumentando, inclusive, as chances de sair do ciclo de pobreza
feminina.
A desmistificação do aborto como um tema tabu seria fundamental para
assegurar que, ao descobrir uma gravidez indesejada, a mulher pudesse escolher
livremente o curso de ação mais adequado às suas circunstâncias, de forma segura,
sem estar sujeita a pressões externas. Esta liberdade de escolha não só respeitaria
sua autonomia individual, mas também a protegeria de interferências estatais,
familiares ou religiosas indesejadas. Em uma sociedade marcada por profundas
desigualdades sociais, raciais e de gênero, a negação do direito ao aborto seguro
representa não apenas uma violação dos direitos das mulheres, mas também um
obstáculo à sua plena realização como indivíduos autônomos. Portanto, deve-se ter
em vista que “a vida não se reduz aos papéis sociais que são desempenhados no dia
a dia”42.
Considerações Finais
É importante abordar a questão do aborto como parte integrante da luta pela
igualdade de gênero e pela autonomia das mulheres. Ao entrelaçar as narrativas de
paternidade ausente, estigma social em relação às mães solo e o contexto da
sexualidade feminina, torna-se evidente que o acesso ao aborto seguro e legal é
essencial para garantir a liberdade e o bem-estar das mulheres.
O estigma associado ao aborto perpetua uma cultura de vergonha e
julgamento em relação às escolhas reprodutivas das mulheres. Essa estigmatização
é frequentemente exacerbada por normas culturais e religiosas que reforçam uma
visão moralista e punitiva da sexualidade feminina. No entanto, negar às mulheres o
42
LINS DE BARROS, Myriam Moraes. Memória e Família. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n.
03, p. 29-42, p. 41, 1989.
490 | Gênero, violência e estruturas de poder
direito ao aborto seguro não apenas as priva de um direito fundamental à autonomia
corporal, mas também as expõe a riscos graves à saúde e à segurança.
É fundamental reconhecer que o aborto é uma questão de saúde pública, e não
apenas uma questão moral ou religiosa. A criminalização do aborto não impede sua
ocorrência, mas sim empurra as mulheres para a clandestinidade, onde enfrentam
condições degradantes, riscos à saúde e até mesmo a morte. Nesse sentido,
defender o acesso ao aborto seguro e legal é defender a vida, a dignidade das
mulheres e o poder sobre se autodeterminar.
Portanto, ao considerarmos os desafios enfrentados pelas mulheres em
relação à sua sexualidade e reprodução, devemos colocar o acesso ao aborto seguro
e legal no centro de nossos esforços pela igualdade de gênero. Isso requer não
apenas a remoção de barreiras legais e políticas, mas também uma mudança cultural
profunda que desafie o estigma e a lógica familista centrada na reprodução, e que
promova o respeito pelos direitos reprodutivos das mulheres. Somente através
desses esforços coordenados podemos verdadeiramente garantir que todas as
mulheres tenham o poder de tomar decisões autônomas sobre seus corpos, suas
vidas e seu futuro.
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Daniela Cunha Pereira
Resumo
O presente artigo tem como objetivo avaliar a capacitação de magistrados e
magistradas que atuam nas varas de família de Belo Horizonte sobre questões de
gênero, do ponto de vista da gestão processual, nas dimensões de eficácia e
eficiência da prestação jurisdicional e acesso à justiça. Trabalha-se a partir do
seguinte problema de pesquisa: como a falta de capacitação de magistrados e
magistradas para a temática de gênero e a deficiência de comunicação entre os
juízos das varas de família e dos juizados de violência doméstica pode impactar na
efetivação dos direitos das mulheres em situação de violência doméstica e familiar?
A hipótese a partir da qual o trabalho foi realizado e ao final confirmada indicou que
a carência de instrumentos capazes de identificar e dar tratamento adequado a
demandas que envolvem mulheres em situação de violência doméstica e familiar e
de capacitação específica de magistrados e magistradas em questões de gênero
viola as disposições das convenções internacionais de que o Brasil é signatário, e
pode, ainda, contribuir para a prática de lawfare de gênero. O estudo tem como
referencial teórico as concepções de acesso à justiça, eficiência e efetividade
adotadas por Picorelli
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