Editora Fundação Fênix Gênero, violência e estruturas de poder Série Filosofia Conselho Editorial _______________________________________________________________ Editor Agemir Bavaresco Conselho Científico Agemir Bavaresco – Evandro Pontel Jair Inácio Tauchen – Nuno Pereira Castanheira Conselho Editorial Augusto Jobim do Amaral Lucio Alvaro Marques Cleide Calgaro Nelson Costa Fossatti Draiton Gonzaga de Souza Norman Roland Madarasz Evandro Pontel Nuno Pereira Castanheira Everton Miguel Maciel Nythamar de Oliveira Fabián Ludueña Romandini Orci Paulino Bretanha Teixeira Fabio Caprio Leite de Castro Oneide Perius Fabio Caires Correia Raimundo Rajobac Gabriela Lafetá Renata Guadagnin Ingo Wolfgang Sarlet Ricardo Timm de Souza Isis Hochmann de Freitas Rosana Pizzatto Jardel de Carvalho Costa Rosalvo Schütz Jair Inácio Tauchen Rosemary Sadami Arai Shinkai Jozivan Guedes Sandro Chignola Lenno Francisco Danner Thadeu Weber Nícolas de Oliveira Braga Anna Ortiz Borges Coelho Lívia do Amaral e Silva Linck Jéssica Veleda Quevedo Organizadores Gênero, violência e estruturas de poder Editora Fundação Fênix Porto Alegre, 2024 Direção editorial: Agemir Bavaresco Diagramação: Editora Fundação Fênix Capa: Editora Fundação Fênix O padrão ortográfico, o sistema de citações, as referências bibliográficas, o conteúdo e a revisão de cada capítulo são de inteira responsabilidade de seu respectivo autor. Todas as obras publicadas pela Editora Fundação Fênix estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 – Http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR Obra editada com apoio: CAPES/PROEX - Auxílio Nº 1325/2023, Processo Nº 88881.845000/2023-01 Série Filosofia – 146 DOI – https://doi.org/10.36592/9786554601566 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 15 Os Organizadores 1. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DOMÉSTICO E FAMILIAR 19 Fabiéle do Amaral Viegas 2. PODE A PESSOA LGBTI+ OCUPAR ESPAÇOS POLÍTICOS NO BRASIL? LGBTFOBIA, COLONIALIDADE E A MOVIMENTAÇÃO ELEITORAL DE CORPOS DISSIDENTES 33 Cristian Anderson Puhl 3. A INVISIBILIDADE DAS MULHERES ENCARCERADAS: VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL 59 Karoline Schoroeder Soares Luíse Pereira Herzog 4. A ‘DELINQUÊNCIA FEMININA’ COMO CATEGORIA DE ANÁLISE HISTÓRICA: (RE)PENSANDO A HISTORICIDADE DAS TRANSGRESSÕES GENERIFICADAS 79 Bruna Cristina Oliveira Pupe 5. A MOBILIZAÇÃO CONSERVADORA SOBRE OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: UMA ANÁLISE DAS RESISTÊNCIAS NOS PROJETOS DE MARIELLE FRANCO 99 Iara Amora dos Santos Carolina Cagetti 6. A SEGREGAÇÃO URBANA E AS REDES SOCIABILIDADE DAS MULHERES NEGRAS PERIFÉRICAS Ana Letícia Chaves Santos Newton Ataíde Meira 121 7. AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O MOVIMENTO FEMINISTA: O FEMINISMO ALCANÇA A MULHER PERIFÉRICA BRASILEIRA? 139 Vitória Márcia de Freitas Oliveira 8. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO FUNDADO TEMOR DE PERSEGUIÇÃO DENTRO DO ESCOPO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS 165 Lúcia Pfeifer Cruz 9. VIOLÊNCIAS DE GÊNERO E CONTROLE TERRITORIAL: O CONFLITO ARMADO COLOMBIANO 185 Alice de Carvalho Nogueira 10. CORPO DESVIANTE FEMININO COMO CORPO POLÍTICO 201 Aline Tusset De Rocco 11. A MULHER E O TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO NA TEORIA DAS CAPACIDADES E NA INTERSECCIONALIDADE 217 Carem Barbosa de Castro Maria Laura Maciel Fernandez 12. INTERSECCIONALIDADE E O DEVIR DO GÊNERO? “O PESSOAL É POLÍTICO”: ATIVIDADES REALIZADAS NO SISTEMA PRISIONAL PELO COLETIVO TERRITÓRIO EM JUSTIÇA SOCIAL 233 Renata Guadagnin 13. HISTÓRIAS DE VIDA DAS MULHERES DA FLORESTA NACIONAL DE TEFÉ ENTRE RESISTÊNCIAS E AFETO Marcela da Silva Barbosa Rita de Cássia Fraga Machado 247 14. ANÁLISE DAS FUNDAMENTAÇÕES DAS SENTENÇAS EM PEDIDOS DE HABEAS CORPUS EM BENEFÍCIO DAS MÃES ENCARCERADAS PREVENTIVAMENTE POR CRIMES DA LEI DE DROGAS 273 Jessica Katharine Gomes Marques Tainá Ferreira e Ferreira 15. FEMINISMOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES: DA ABERTURA DEMOCRÁTICA (ANOS 80) AO BOLSONARISMO (2018-2022) 295 Francisca Elizabeth Cristina Araújo Bezerra Carmem Emmanuely Leitão Araújo 16. A VALORAÇÃO DA PROVA NO JULGAMENTO DE CRIMES DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO: O TENSIONAMENTO ENTRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA E O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REU 315 Romana Leite Vieira 17. REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO A PARTIR DAS OBRAS DE MICHEL FOUCAULT 331 Alan Silva Carvalho Alene Silva da Rosa 18. MAPEAMENTO DAS DENÚNCIAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ASSOCIADAS AO CIÚME EM 2016 (DEAM-VITÓRIA) 345 Dionatan Miranda de Almeida 19. POLÍTICA É LUGAR DE MULHER? UMA ANÁLISE SOBRE A SUBREPRESENTAÇÃO DE VEREADORAS NUM MUNICÍPIO DA BAIXADA FLUMINENSE, REGIÃO PERIFÉRICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Liandra Lima Carvalho 365 20. O DISTANCIAMENTO SOCIAL COMO OBSTÁCULO NA REVELAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO ENTRE JOVENS DURANTE A PANDEMIA DE COVID19 389 Suélen Pinheiro Freire Acosta 21. DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E MENINAS BRASILEIRAS: A UTILIZAÇÃO DA CATEGORIA DA INTERSECCIONALIDADE PELA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO “EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E OUTROS VERSUS BRASIL” 405 Adriana Biller Aparicio Letícia Albuquerque 22. ANÁLISE SOBRE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E O EXERCÍCIO DA PARENTALIDADE 425 Thaysa Farias Ferreira Antônia Rozelir da Silva Araújo 23. MÃES NO CÁRCERE: A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO SERVIÇO SOCIAL 441 Aline Santos Pereira Camila Maximiano Miranda Silva 24. ENCARCERAMENTO FEMININO: ANÁLISE DA CAUTELAR DA PRISÃO PREVENTIVA EM CRIMES PRATICADOS SEM VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA 455 Joanna Smiderle Fábio Agne Fayet 25. ENTRE TRADIÇÕES E TRANSFORMAÇÕES: GÊNERO, CONSTRUÇÕES FAMILIARES E ABORTO COMO DESAFIOS À AUTONOMIA FEMININA Carolina Cagetti Iara Amora dos Santos 469 26. GESTÃO DOS PROCESSOS ENVOLVENDO MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR: O CASO DAS VARAS DE FAMÍLIA DA COMARCA DE BELO HORIZONTE 493 Daniela Cunha Pereira 27. MULHERES, ESTRUTURAS DE PODER E O VIÉS DE GÊNERO NA JUSTIÇA FEDERAL BRASILEIRA – RESULTADOS PARCIAIS 517 Mariana Camargo Contessa 28. CONTRADIÇÃO DE UM MAL NECESSÁRIO? ANÁLISES SOBRE O CONTEXTO DE CRIAÇÃO DO CRIME DE VIOLÊNCIA POLÍTICA CONTRA A MULHER Naiara Coelho 541 APRESENTAÇÃO Os Organizadores É com grande satisfação que apresentamos a coletânea de quatro volumes resultante dos trabalhos apresentados no Congresso de Estudos de Gênero e Interseccionalidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, em 2023. A organização em quatro volumes buscou não só separar os trabalhos em eixos temáticos específicos, mas também representa o sucesso do evento que contou com a participação de trezentos inscritos e palestrantes de grande prestígio dentro de uma temática tão sensível. A publicação destes volumes com trabalhos de excelência reafirma o compromisso da PUCRS com a produção e promoção do conhecimento, somados ao fomento da pesquisa científica de alto padrão. Para melhor enquadrar os trabalhos dentro de suas áreas temáticas, os livros foram separados em quatro grandes eixos: Gênero, violência e estruturas de poder; Gênero, vulnerabilidades e raça; Gênero, história e literatura e Gênero e interseccionalidades. O primeiro volume, intitulado Gênero, violência e estruturas de poder, contempla os trabalhos que estão imersos, sobretudo, nas óticas do Direito, Ciências Sociais e da Política. Neste volume é possível visualizar uma preocupação dos autores e autoras com as questões práticas e teóricas dos direitos das minorias no Brasil. Além de dialogarem entre si, os artigos deste volume flutuam nas temáticas da violência, visibilidade, segurança política e mercado de trabalho. Por embarcarem em uma perspectiva jurídica, os trabalhos são recorrentemente teorizados e referenciados por leis e processos do Direito, o que embasa o processo argumentativo e narrativo dos trabalhos, nos permitindo maior compreensão da prática política e de defesa dos grupos minoritários. O segundo volume, intulado Gênero, vulnerabilidades e raça, reúne trabalhos que se debruçam nas lentes filosóficas e sociológicas para dissertar sobre o racismo e fragilidade dos grupos minoritários no Brasil. Por óbvio, o resgate histórico também está presente neste volume, uma vez que é impossível sua dissociação ao tratar dos problemas seculares a respeito da temática. Ainda sim, sobressai nestas publicações o teor reflexivo e analítico, característicos da filosofia e sociologia. Na 16 | Gênero, violência e estruturas de poder composição deste volume, é possível encontrar trabalhos que dialogam sobre a construção social do corpo e dignidade humana, sobretudo da objetificação do sexo feminino. Além disso, demais autores e autoras dialogam sobre os povos originários e a desigualdade racial nas diferentes esferas políticas e sociais. O terceiro volume, intitulado Gênero, história e literatura, trata, portanto, de uma perspectiva historicista dos fatos acerca das desigualdades com os grupos minoritários. Este volume desenvolve uma abordagem que não só retrata o historicismo dos fatos, mas também contempla temas contemporâneos. Além disso, autores e autoras aqui retratam a representação de raça e gênero nas diferentes projeções midiáticas ao longo das décadas. Neste volume, os trabalhos dialogam entre história, relações internacionais, cinema e literatura, enriquecendo a diversificação e problematização dos temas abordados no Congresso. Por fim, o último volume, Gênero e interseccionalidades, aborda temas que, em maior ou menor grau, condensam os temas abordados nos demais volumes. Dialogando com as teorias de gênero, este volume contempla trabalhos que flutuam sobre as questões de gênero e raça nos esportes, redes sociais e perfis políticos, o que dá aos livros uma maior amplitude temática, enriquecendo o caráter científico e atraindo um maior número de leitores que se interessam pelas temáticas. A publicação destes volumes nos livros de Estudos de Gênero e Interseccionalidades fortalece não só o diálogo acadêmico entre as pesquisas de gênero, raça e minorias, mas também ressalta a importância de uma abordagem multidisciplinar para maior entendimento dos fenômenos históricos e modernos que desafiam o Direito, Filosofia, História, Sociologia e demais áreas que buscam compreender e explicar o comportamento humano. A publicação destes livros é um avanço para o campo de estudo e promove a consolidação de uma sólida base para futuras pesquisas e desenvolvimento de políticas públicas diante da temática. Os Organizadores. Os Organizadores | 17 Equipe editorial Anna Ortiz Borges Coelho - Jéssica Veleda Quevedo Lívia do Amaral e Silva Linck - Nícolas de Oliveira Braga Porto Alegre, 21 de junho de 2024. Congresso de Estudos de Gênero e Interseccionalidades da PUCRS Comissão Organizadora do evento Anna Ortiz Borges Coelho - Clarice Beatriz da Costa Söhngen - Enzo da Silva Efthymiatos - Iverson Custódio Kachenski - Isadora Dutra de Freitas - Jéssica Veleda Quevedo - Lívia do Amaral e Silva Linck - Luís Rosenfield - Mabi de Oliveira Moura - Nícolas de Oliveira Braga - Nythamar de Oliveira - Tamires de Oliveira Garcia Comissão Científica Aline Santos Barbosa - Anna Ortiz Borges Coelho - Daniela de Lima Soares Enzo da Silva Efthymiatos - Gabriel Engelmann Maltez - Giselle dos Santos Steinstrasser - Iverson Custódio Kachenski - Isadora Dutra de Freitas - Jéssica Veleda Quevedo - João Vítor Sand Theise - Letícia Sabina Wermeier Krilow - Lívia do Amaral e Silva Linck - Mabi Oliveira de Moura - Maria Lucia Rodrigues da Cruz Nícolas de Oliveira Braga - Pedro Antônio Gregório de Araújo - Pedro Gabriel Rosauro - Ramon Nere de Lima - Rayanne Matias Villarinho - Rogel Maio Nogueira Tavares Filho - Taís Cristine Fernandes Batista Barella - Tamires de Oliveira Garcia - Yasmim Carina Bastos Ribas 1. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DOMÉSTICO E FAMILIAR PSYCHOLOGICAL VIOLENCE AGAINST WOMEN IN THE DOMESTIC AND FAMILY ENVIRONMENT https://doi.org/10.36592/9786554601566-01 Fabiéle do Amaral Viegas¹ RESUMO O presente artigo, em um primeiro momento, fala sobre tipificação do crime de Violência Psicológica, acrescentado ao Código Penal, pela lei 14.188/2021, tendo em vista que antes, já havia previsão legal na Lei Maria da Penha quanto à Violência Psicológica, mas não era tipificada. Em um segundo momento, através de pesquisa documental, serão analisados 40 boletins de ocorrência registrados na Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher, do município de Canoas/RS, no período de 28 de julho de 2021, quando a lei entrou em vigor, até 31 de março de 2022. Foram analisados dados como faixa etária, cor e escolaridade tanto das vítimas, quanto dos acusados, a fim de traçar um perfil para esses casos que ocorreram no município dentro deste recorte. Palavras-chave: Violência Doméstica; Violência Psicológica; Lei Maria da Penha; Lei 14.188/2021. ABSTRACT This article, at first, talks about the classification of the crime of Psychological Violence, added to the Penal Code, by law 14.188/2021, considering that before, there was already a legal provision in the Maria da Penha Law regarding Psychological Violence, but was not typified. In a second moment, through documentary research, 40 police reports registered at the Police Station Specialized in Assistance to Women, in the municipality of Canoas/RS, will be analyzed from July 28, 2021, when the law came into force, to July 31 March 2022. Data such as age group, color and education of both the victims and the accused were analyzed in order to draw a profile for these cases that occurred in the municipality within this cutout. Keywords: Domestic Violence; Psychological violence; Maria da Penha Law; Law 14.188/2021. 1 INTRODUÇÃO O artigo em questão pretende analisar a implementação da Lei 14.188/2021, principalmente no Município de Canoas. A Lei em questão trata-se, dentre outras 20 | Gênero, violência e estruturas de poder coisas, da tipificação do crime de Violência Psicológica Contra a Mulher, o qual passa a ser punido pelo Código Penal Brasileiro, com previsão de reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. No primeiro item deste artigo, falarei sobre o conceito de violência psicológica, para contextualizar aonde queremos chegar, que é a tipificação do crime. Falo sobre os tipos de violência e suas peculiaridades, em especial quanto à violência psicológica de gênero. No item 1.2, trarei informações sobre a legislação referente a violência psicológica contra a mulher no ambiente brasileiro. É importante informar que já existia previsão legal contra a violência psicológica de gênero desde a criação da Lei Maria da Penha, em 2006. Ocorre que a previsão era meramente ilustrativa, já que dependia de um dispositivo legal no Código Penal para ter efeito. Com o advento da lei 14.188/2021, esse dispositivo foi acrescentado ao Código Penal Brasileirio e passou a penalizar os agressores, assim como dito no primeiro parágrafo, e é sobre isso que o segundo item trata: a lei 14.188/2022 e sua importância para o ordenamento jurídico e para a segurança das mulheres. Já o item 3, fora destinado para análise de boletins de ocorrência do período de 28 de julho de 2021, quando a lei entrou em vigor, até 31 de março de 2022, na Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher do Município de Canoas, no Rio Grande do Sul. Nesses boletins analisados, os principais pontos trabalhados foram idade das vítimas e dos acusados, além de cor, escolaridade e bairro onde a ocorrência aconteceu. 2 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DOMÉSTICO 2.1 O CONCEITO DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA: O conceito de violência doméstica contra a mulher é descrito na Lei 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha, que diz que violência doméstica é aquela que ocorre dentro do ambiente da própria casa da vítima, por meio das pessoas do mesmo ciclo íntimo de afeto. Em suma, violência é definida Fabiéle do Amaral Viegas | 21 como qualquer meio de ação ou conduta baseada no gênero, capaz de gerar dor, sofrimento, morte, entre outros, como preceitua o artigo 5º da Lei: Art. 5º da Lei nº 11.340/2006: Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (BRASIL, Lei Maria da Penha, art. 5º, 2022). Esta definição prevista na Lei Maria da Penha é advinda da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, mais conhecida como Convenção de Belém do Pará, que diz em seu primeiro artigo: Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. São diversas as formas de violência doméstica e familiar, sendo que todas elas são impulsionadas pela dominação do gênero masculino. Teles e Melo (2002), em seu livro “O que é violência contra a mulher”, conceitua: A Violência, em seu significado mais frequente quer dizer uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade; é incomodar; é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade , sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu 22 | Gênero, violência e estruturas de poder domínio, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano. (TELES; MELO, 2002, p.15). O sociólogo francês, Pierre Bourdieu (1995), em “A dominação masculina”, fala sobre a dominação masculina como um modo de violência simbólica, suave, insensível e invisível, que usa da comunicação, do conhecimento ou desconhecimento, ou até mesmo do sentimento da vítima, para violentá-la. A violência psicológica, por sua vez, surge dessa dominação que o homem pratica contra a mulher, colocando-a no lugar de inferioridade, o que vem da cultura patriarcal, que se perpetua de geração em geração. Diferentemente dos demais tipos de violência, tais como a violência física, a violência psicológica traz danos silenciosos e duradouros às mulheres vítimas. A violência psicológica é conceituada pela Lei Maria da Penha, no seu 7º artigo, inciso II, que diz que as violências psicológicas são entendidas como todo tipo de conduta que provoque, em termos genéricos, prejuízo à saúde psicológica ou à autodeterminação, e, em termos específicos, dano emocional, diminuição da autoestima, prejuízo ao pleno desenvolvimento, degradação ou controle. Os meios que podem conduzir a esse dano são arrolados em caráter exemplificativo e compreendem as seguintes condutas: ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir (MACHADO, 2017). Sobre o rol de práticas estabelecidas como violência psicológica pelo artigo 7º da Lei Maria da Penha, Luís Paulo Sirvinskas (2017) ressalta: Merece, no entanto, especial destaque a violência psicológica. Pode-se notar que o rol é extenso e qualquer atitude, por menor que seja, poderá caracterizar essa modalidade de violência, especialmente quando o marido ridicularizar a mulher por brincadeira, por exemplo. A psiquiatra e psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen ressalta que há canais de provocação desse assédio, que são: a) A recusa de comunicação direta, sem respostas às perguntas, comunicação por bilhetes, etc; b) Deformação da linguagem, quando as mensagens são subliminares; c) Mentiras, usadas para anular Fabiéle do Amaral Viegas | 23 a responsabilidade de quem pratica a violência; d) Sarcasmo, ironia ou desprezo; e) Desestabilização da vítima por mensagens contraditórias; e f) Desqualificação da vítima. Ainda, Marie-France elabora um roteiro de estratégias utilizadas para essas violências, que cita, por exemplo, a utilização do controle, da ameaça, das humilhações, do aviltamento e do assédio, para atingir a saúde mental da mulher vítima. Considerando o acima exposto, passo a expor no próximo tópico a legislação pertinente sobre violência psicológica no âmbito doméstico, quando veremos a legislação referente a violência psicológica no Brasil. 3 LEGISLAÇÃO REFERENTE A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NO BRASIL: A violência psicológica é, historicamente, conhecida, mas por muito tempo foi inviabilizada por ser uma violência sutil e silenciosa, ou seja, não deixando marcas físicas, mas sim, marcas invisíveis. Conforme citado no tópico anterior, já no artigo 5º da Lei, quando das disposições gerais, se classifica o que configura violência doméstica e familiar, a violência psicológica aparece. Em seguida, no artigo 7º, são descritas as formas de violência, e em seu inciso II, a violência psicológica é descrita da seguinte forma: II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018) Entretanto, apesar de a violência psicológica estar prevista na Lei Maria da Penha, até julho de 2021, quando a Lei 14.188/21 foi sancionada, este dispositivo era 24 | Gênero, violência e estruturas de poder apenas interpretativo, necessitando de outras normas para o fazer valer, como Machado (2017) relata: O sentido declarado de violências psicológicas, por sua vez, não permite a criminalização direta de condutas que a ele se amoldem, servindo ―apenas‖ como parâmetro interpretativo, carecedor de outras figuras normativas, como os crimes de ameaça (art. 147, Código Penal brasileiro), injúria (art. 140,Código Penal brasileiro), ou constrangimento ilegal (art. 146, Código Penal brasileiro), por exemplo. A partir de junho de 2021, com a Lei 14.188/21, a previsão de violência psicológica ganha um tipo penal, conforme o artigo 4º da lei, que incorpora ao Código Penal Brasileiro o artigo 147-B, conforme a seguir: Art. 4º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações: “Violência psicológica contra a mulher Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.” Sendo assim, passa a ser crime, sob pena de reclusão de seis meses a dois anos e multa a violência psicológica por si só, sem estar, necessariamente, atrelada a qualquer outro tipo penal, não mais sendo apenas um artigo interpretativo da Lei Maria da Penha, como passaremos a ver a seguir. Fabiéle do Amaral Viegas | 25 4 A LEI 14.188/21 E A INCLUSÃO DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NO CÓDIGO PENAL: Conforme visto no tópico anterior, a Lei 14.188/21, em seu artigo 147-B, enfim criminaliza a violência psicológica, agora com texto claro e penalidades para aquele que o infringir. Antes, como já exposto, havia previsão na Lei Maria da Penha, no seu artigo 7º, mas sem previsão concreta de punição, o que dificultava o enfrentamento à violência psicológica contra a mulher. Ademais, houve alteração no texto do artigo 12-C da Lei Maria da Penha, onde não citava violência psicológica como risco iminente à vida da vítima, o que não permitia o afastamento do agressor do lar, em caso de violência psicológica. O texto ficou da seguinte forma: Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: Sendo assim, com o advento da lei 14.188/2021, a proteção da mulher vítima de violência foi ampliada, especialmente no âmbito psicológico. No próximo tópico, veremos como está sendo aplicado na prática, na Delegacia Especializada da Mulher de Canoas - RS. 5 ANÁLISE DE OCORRÊNCIA ENCONTRADAS NA DELEGACIA ESPECIALIZADA DA DE ATENDIMENTO ÀS MULHERES DO MUNICÍPIO DE CANOAS/RS A pesquisa foi realizada na DEAM - Delegacia especializada em atendimento a mulheres de Canoas - RS, dentro do período de 28 de julho de 2021, quando a lei entrou em vigor, até 31 de março de 2022. Dentro deste período, foram encontrados 40 boletins de ocorrência referentes a violência psicológica, mas é importante salientar, que parte deles está ligado a outras tipificações também, como injúria, ameaça, sequestro e cárcere privado. 26 | Gênero, violência e estruturas de poder A pesquisa foi feita com auxílio da delegada responsável pela delegacia especializada ao atendimento à mulher, Clarissa Demartini, a qual disponibilizou acesso ao sistema da delegacia para que eu fizesse a pesquisa de todos os boletins de ocorrência do período e de seus status. Durante o levantamento, fiz um compilado com informações importantes para entender o perfil da mulher que está denunciando a violência psicológica sofrida. Os dados tratam do local onde a vítima sofreu a violência, sendo que em todos os casos a violência ocorreu na sua residência. Um dos pontos importantes, é de que bairros mais pobres, como Mathias Velho e Guajuviras, têm um número mais expressivo de denúncias, ao contrário de bairros nobres como Moinhos de Vento e Jardim do Lago, que não registraram nenhum boletim de ocorrência, conforme exemplificado no gráfico a seguir: Ainda sobre o perfil das mulheres que denunciam a agressão sofrida, é importante analisarmos a faixa etária destas vítimas, conforme feito no gráfico a seguir: Fabiéle do Amaral Viegas | 27 Chamou atenção que mulheres entre 36 e 40 anos são as que mais sofrem violências e as denunciam, seguidas por mulheres de 41 a 56. Todas relatam que estavam em relacionamentos duradouros, como casamento e união estável. Houve apenas um caso de um adolescente de 16 anos que denunciou a violência sofrida, seguida por uma de 18 e outra de 20 anos. Quanto à cor das mulheres vítimas de violência psicológica, chama atenção que a grande maioria, 36 das 40 mulheres, se declaram brancas, sendo que uma se declara parda, uma preta e duas não informaram. Dados que seriam importantes para compor o perfil da vítima de violência psicológica, são de emprego e de escolaridade, entretanto, são dados que nem sempre são preenchidos no momento do registro do boletim de ocorrência. Nos 40 casos, em nenhum houve a informação de emprego ou trabalho. Quanto aos dados referentes a escolaridade, veremos no gráfico a seguir: Como é possível observar no gráfico anterior, 47,5% das mulheres vítimas de violência, que registraram boletim de ocorrência no período indicado, possuem Ensino Médio, seguidas por 25% que completaram apenas o Ensino Fundamental. Já 12,5% concluíram o Ensino Superior e 15% não informaram sua escolaridade. 28 | Gênero, violência e estruturas de poder Ainda, é relevante analisarmos os dados dos homens acusados de agressão psicológica, o que farei a seguir, começando pela faixa etária. Em dois boletins de ocorrência não constava nenhuma informação além do nome do possível agressor, então não foi possível constatar a idade do sujeito. Nos demais boletins, identifiquei que homens entre 36 e 45 anos são os que mais estão envolvidos em violências psicológicas dentro do recorte aqui apresentado. Mas homens de 20 a 25 anos também estão bem representados, sendo que dentre os 40, 5 são jovens desta faixa etária. Também chama atenção que idosos também estão representados, sendo que dos 40 casos, 4 são de idosos entre 60 e 71 anos. Outro dado importante para avaliarmos o perfil dos possíveis agressores, é a sua escolaridade, por isso, demonstrarei a seguir os dados encontrados no recorte realizado. Fabiéle do Amaral Viegas | 29 No gráfico, nota-se que um número expressivo de boletins de ocorrência analisados não apresentavam os dados de escolaridade dos acusados. Quantos aos boletins que continham essas informações, percebemos que a maioria é composta por homens com grau de escolaridade baixo, sendo o ensino fundamental seu grau máximo. Apenas 3 acusados possuem ensino superior. Enquanto 8, possuem ensino médio completo. Por fim, acho importante falarmos sobre a cor dos acusados de violência psicológica, assim como fizemos com as vítimas. Nos boletins de ocorrência há o campo para declaração de cor tanto das vítimas, quanto dos acusados. Ocorre que, como podemos ver no gráfico, nem sempre, o campo da cor dos acusados não é preenchido. Não sabemos informar se é uma falha do agente da delegacia quando faz o questionamento, ou se realmente a vítima não tem essa informação na hora do registro. Como podemos ver, 12,5% dos boletins analisados não tinham essa informação. 30 | Gênero, violência e estruturas de poder Quanto aos demais boletins, em 72,5% dos casos os acusados foram declarados como da cor branca,, enquanto 7,5% como da cor preta e iguais 7,5% da cor parda. CONCLUSÃO A presente pesquisa buscou como principal finalidade demonstrar a importância da tipificação do crime de violência psicológica contra a mulher, que ocorreu através da Lei 14.188 de 2021. A pesquisa, primeiramente, contou com a análise do conceito do que é violência psicológica contra a mulher. Partindo, então, para a análise da necessidade de tipificação do crime, já que até então só havia previsão legal na Lei Maria da Penha, mas não no Código Penal, portanto, sem eficácia prática, sem penalidade para o agressor. Após a análise da tipificação e também da nova Lei, passamos a analisar boletins de ocorrência retirados da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher de Canoas/RS, no período de 28 de junho, quando a lei entrou em vigor, até 31/03/2022. Este recorte foi feito de forma aleatória, a fim de analisar a eficácia da Lei e o perfil das vítimas e acusados. Fabiéle do Amaral Viegas | 31 No recorte, conseguimos identificar que os fatos criminosos ocorrem na maioria das vezes em bairros de menor poder aquisitivo, ou seja, bairros mais carentes. Cabe ao município pensar em formas de política pública que façam a informação chegar a todos os bairros, inclusive bairros nobres, onde certamente mulheres também sofrem violência, mas por algum motivo, o qual não entraremos aqui, não denunciam. Ainda neste trabalho, falamos sobre o perfil da vítima do acusado. Sobre as vítimas, cumpre destacar que a maioria delas têm entre 36 e 40 anos, são casadas com seus agressores, se autodeclaram brancas e possuem o Ensino Médio completo como grau de instrução. É curioso que mulheres entre 36 e 40 anos, com grau de escolaridade médio, sejam a maioria das mulheres que denunciam e isso deveria ser motivo de criação de políticas públicas que alcancem mulheres de todas idades e graus de instrução, além da cor, para que a violência seja denunciada e contida, trazendo maior segurança para essas mulheres. O questionamento que fica é de que mulheres mais jovens não sofrem violência psicológica ou não denunciam? Mulheres com ensino superior não denunciam por algum motivo relacionado a sua classe social? São pontos importantes a serem analisados em um próximo trabalho. Quanto aos acusados, a maioria deles têm entre 36 e 45 anos de idade. Na maioria dos casos, de cor branca e apenas com ensino fundamental. Acredito que para diminuição dos números de casos de violência psicológica, a prevenção é de suma importância, então entendo que os homens, assim como toda a sociedade, deve ter o ensinamento sobre violência contra a mulher e, mais precisamente neste caso, sobre a violência psicológica, nas escolas, desde o ensino básico, o que é uma ideia de política pública para o município. Este trabalho mostrou que há a necessidade de maior investimento em políticas públicas pelo Estado, a fim de que mulheres possam conhecer seus direitos e acessá-los de forma efetiva. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005 32 | Gênero, violência e estruturas de poder BRASIL. Lei nº 11.340, de 07 agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 11 mai. 2022. BRASIL. Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica [...] e para criar o tipo penal de violência psicológica contra a mulher. Brasília, DF: Presidência da República, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20192022/2021/Lei/L14188. Acesso em: 20 abr. 2022 HIRIGOYEN, Marie-France. A violência no casal: da coação psicológica à agressão física. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 98-99. MACHADO, Isadora Vier. Da dor no corpo à dor na Alma: Uma Leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha. 2013. TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher? São Paulo: Brasiliense, 2002. SIRVINSKAS, Luis Paulo. Aspectos polêmicos sobre a Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Revista Jurídica, ano 55, n.º 351, Porto Alegre: Nota Dez/Fonte do Direito, p. 107/129, jan. 2007, p. 112. 2. PODE A PESSOA LGBTI+ OCUPAR ESPAÇOS POLÍTICOS NO BRASIL? LGBTFOBIA, COLONIALIDADE E A MOVIMENTAÇÃO ELEITORAL DE CORPOS DISSIDENTES1 https://doi.org/10.36592/9786554601566-02 Cristian Anderson Puhl2 Resumo Este artigo propõe uma abordagem interpretativa da participação eleitoral de corpos e identidades autodeclaradas LGBTI+ no Brasil, em 2022, enquadrando-a na intersecção entre a constituição sócio-histórica do país e a LGBTfobia como um dispositivo operacional de poder da Colonialidade. O objetivo deste estudo é identificar, portanto, a relação entre a reprodução de um modelo cisheteronormativo, binário e dicotômico, implementado a partir dos processos de colonização, e a movimentação destas pessoas sexo-dissidentes nos espaços institucionais de representação político-partidária. Para isso, como métodos de pesquisa, se utilizam a revisão investigativo-bibliográfica e a análise de dados oriundos de organizações não-governamentais e do Tribunal Superior Eleitoral; tendo como marco referencial teórico as Epistemologias do Sul. Destacando elementos que apontam para um padrão hegemônico de sujeitos a ocuparem estes assentos legislativos, ocasionando uma sub-representação de outras populações, a investigação indica a posição na qual a diversidade sexual e de gênero tensiona uma mobilização mais significativa. Por fim, se estabelece como a dimensão LGBTfóbica perpassa o tecido social e desloca para as margens parcelas significativas de brasileiros, categorizados como dissidentes daquilo que se constituiu como norma. Palavras-chave: Colonialidade do poder. LGBTfobia. eleições LGBTI+. identidades sexo-dissidentes. epistemologias do sul. 1 Considerações iniciais Domingo, 02 de outubro de 2022. Fim do primeiro turno das Eleições Gerais no Brasil. Em meio a um cenário de intensos acirramentos ideológicos, de movimentos acentuados em direção à ruptura democrática e do uso indiscriminado do aparato estatal para assegurar a manutenção no poder de um grupo político alinhado ao 1 Este artigo é um fragmento da pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) — campus Erechim. O estudo iniciou em agosto de 2023 e tem previsão de conclusão em agosto de 2025, com a defesa da Dissertação sobre a temática. 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) — campus Erechim. Jornalista, especialista em Ciências Sociais e em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. E-mail: crispuhll@gmail.com 34 | Gênero, violência e estruturas de poder avanço de uma gramática moral e do conservadorismo reacionário no país, o Congresso Federal, as assembleias legislativas dos 26 Estados brasileiros e a Câmara Legislativa do Distrito Federal davam reconhecimento público aos 513 deputados federais e aos 1059 estaduais eleitos naquele processo. Enquanto a concorrência para o comando da Presidência da República e para o Executivo de alguns Estados se direcionava para um segundo turno, os brasileiros passaram a acompanhar a composição dos parlamentos, assim como identificar as principais figuras políticas produzidas nos últimos anos de vertigem democrática 3 experimentada no país. A tensão estabelecida entre os dois principais projetos de governo em disputa — representado, de um lado, pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) e, de outro, pelo ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — também se mostrou presente nos enfrentamentos pelo voto popular travados pelos candidatos às assembleias estaduais e ao Congresso. Nas urnas, o comportamento do eleitorado confirmou aquilo que as pesquisas de opinião vinham indicando como os cenários prováveis de se concretizar — ainda que estas ferramentas para medir a intenção de voto dos eleitores tenham sido amplamente contestadas pelo candidato à reeleição e que terminou derrotado ao final daquele mesmo mês de outubro, se tornando o primeiro presidente em campanha a não ser reeleito no Brasil. A extrema polarização entre as duas candidaturas centrais ao Palácio do Planalto iriam reverberar nas definições sobre quem seriam os detentores do poder nos legislativos de todo o país. Além da mobilização de pautas morais, abordadas sob um viés conservador, e da criminalização de temas inseridos em um impreciso e amplo espectro definido como progressista, a beligerante e inflamada campanha de 2022 reforçou estereótipos, reacendeu falsas polêmicas e dicotomias e consolidou uma estrutura que, majoritária e hegemonicamente, fortalece um padrão gendrado e binário na ocupação de espaços representativos institucionais e decisórios em nosso país. Novamente, ao fim daquele domingo, 02 de outubro, foram os homens, brancos, que se afirmam heterossexuais e cisgêneros, representantes de famílias e grupos 3 A expressão vertigem democrática refere-se a leitura de cenário proposta em NOBRE, Marcos. Limites da democracia. De junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2022. Cristian Anderson Puhl | 35 tradicionais na política brasileira, que re-ocuparam os assentos neste sistema político-partidário-eleitoral. Mesmo que a implementação de dispositivos como a Emenda Constitucional 1114, que estimula a ampliação de candidaturas de pessoas negras e/ou pardas e de mulheres tenha surtido algum efeito — na Câmara dos Deputados, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou, em 2022, um aumento de 8,9% de pessoas negras e pardas eleitas em relação ao processo de 2018 —, a estratificação e as clivagens percebidas quando se olha para estas esferas de gestão e controle do Estado apontam, historicamente, para uma inexpressiva participação de grupos sociais que não se inserem em um modelo de sujeito que se constitui na esteira do que autores latinoamericanos como Lugones 5 e Quijano 6 vão considerar como o universal: homem, branco, cisgênero e heterossexual. Tomando como marco referencial de análise as Epistemologias do Sul, este artigo se propõe a discutir a participação política e eleitoral de corpos e identidades que não se inserem nestas categorias alegóricas que, para Mombaça7, consolidam a existência de um nós, centrado em características que permeiam toda a produção discursiva e simbólica, mas também material, do que se compreende na tripla dimensão humano/cidadão/cidadania. Em especial, o trabalho em questão se debruça a analisar como os corpos e identidades autodeclaradas LGBTI+ tensionam e se movimentam nas estruturas eleitorais no país, partindo de uma perspectiva sócio-histórica que posiciona no interior da colonização e em seus desdobramentos posteriores, a imposição de uma formatação societária na qual a sexualidade é também colonizada. Desde este ponto de vista, importam os debates produzidos não somente por Lugones 8, mas também por outros e outras pesquisadoras que se dedicam a examinar como a colonialidade, 4 O texto da Emenda Constitucional pode ser conferido na íntegra em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2021/emendaconstitucional-111-28-setembro2021-791789-norma-pl.html. Acesso em 26 de fevereiro de 2024. 5 LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 935–952, 2014. 6 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Clacso, Consejo Latino Americano de Ciencias Sociales. Buenos Aires: 2005. 7 MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. 8 Idem à nota 5. 36 | Gênero, violência e estruturas de poder assim como nos diz Mignolo 9 , é central no entendimento da Modernidade e nos imperativos que a sustentam. Para empreender tal objetivo, além do método de revisão investigativabibliográfica, se utiliza, neste trabalho, a análise de dados oriundos de levantamentos produzidos por Organizações Não-Governamentais (ONGs) e informações publicadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), relacionadas especificamente às Eleições Gerais de 2022. O cruzamento destes indicadores e as suas interpretações partem do uso da interseccionalidade como ferramenta analítica, nos termos do que defende Akotirene 10 . A delimitação temporal do estudo considera, principalmente, dois fatores. O primeiro deles diz respeito à inexistência de registros oficiais da Justiça Eleitoral que possibilitem quantificar o número de candidaturas LGBTI+ no país. Embora o TSE tenha incluído, por meio de resolução datada de 2018, a possibilidade do uso do nome social para pessoas trans* 11 , até esta presente data, os/as candidatos/as não precisam informar sua orientação sexual e/ou identidade de gênero para estarem aptas a disputar os processos eleitorais. Esse aspecto precariza a obtenção de referências precisas e desloca para a sociedade civil e as entidades e instituições que atuam na defesa e promoção de políticas para as populações LGBTI+, a tarefa de proceder tal investigação — como a realizada pela ONG VoteLGBT e da qual falaremos no decorrer deste artigo. Há também o fato de 2022 estar diretamente vinculado ao ambiente hostil para o exercício da política-partidária vivido no Brasil na última década, agravado, sobremaneira, para lideranças e pessoas públicas do campo dito progressista, no qual se incluem, em grande medida, pessoas LGBTI+. Sem adentrar no mérito das discussões que perpassam o assunto e dadas as limitações deste texto, o que se busca, averiguando este processo eleitoral, é uma amostra para situar como os corpos e as identidades periféricas deste constructo cis-heteronormativo se 9 MIGNOLO, W. D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. CLACSO, 2005. 10 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2023. 11 Para contemplar todas as identidades transexuais e as travestilidades, além da não-binaridade de gênero, optou-se pelo uso do asterisco como elemento gráfico ao lado da palavra trans para nos referirmos a estas construções de identidades de gênero. Cristian Anderson Puhl | 37 encontram sub-representadas, atualizando o ideário do colonialismo e da colonialidade que, já em 15000, com a ocupação do território pelos portugueses, as subalternizavam. Se faz necessário, portanto, destacar que o propósito desta reflexão não consiste em realizar uma análise do trabalho dos indivíduos autodeclarados LGBTI+ eleitos em 2022. Em vez disso, busca-se promover o debate sobre o papel desempenhado por esses sujeitos em um sistema político historicamente fundamentado em um modelo de cidadania moldado à imagem e semelhança do colonizador. Revisitando a colonização a partir de outras fontes de análise que não as centradas em uma leitura unilateral e universal da história — o que Adichie 12 considera como o “perigo de uma história única” — investigam-se as consequências para outras construções possíveis referentes a institucionalização da LGBTfobia no Estado e no tecido social, implicando no aumento das violências sistêmicas e no apagamento sócio-histórico das pessoas dissidentes de um sistema que autores como Butler 13 , Connel e Pearse 14 e Preciado 15 , por exemplo, denunciam como estruturado a partir da “regulação binária do sexo-gênero”16. Assim, na primeira parte do artigo, busca-se a intersecção entre a Modernidade/Colonialidade, compreendida aqui como este novo espaço-tempo de poder global em que há a hierarquização dos sujeitos a partir de distinções que, no limite, vão separar os humanos dos não humanos, segundo defende Quijano17, e a colonização das sexualidades, por meio de um debate travado por Fernandes 18 , Mott 19 e Trevisan 20 . Na sequência, apresentam-se os indicadores relativos às pessoas LGBTI+ eleitas em 2022, mobilizando a cidadanização LGBTI+ e a ampliação da gramática de reivindicações dos movimentos coletivos e sociais organizados. Por 12 ADICHIE, Ngozi Chimamanda. O perigo de uma história única. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, p. 11, 2019. 13 BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. 19ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. 14 CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: nVersos, 2015. 15 PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano. Crônicas da travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. 16 Id. nota 13, 2020, p. 47). 17 Idem à nota 6. 18 FERNANDES, Estevão R. Existe índio gay? A colonização das sexualidades indígenas no Brasil. 1ª edição. Curitiba: Editora Prismas, 2017. 19 MOTT, L. A revolução homossexual: o poder de um mito. Revista USP, [S. l.], n. 49, p. 40–59, 2001. 20 TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. A homossexualidade no Brasil, da Colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018. 38 | Gênero, violência e estruturas de poder fim, são resgatados os argumentos centrais postos à discussão para apontar a necessária e urgente transformação social, levando-se em consideração como a política e os resultados eleitorais obtidos pelas pessoas LGBT+’s e dissidentes do sistema sexo-gênero em 2022, cumprem um papel fundamental. Não obstante, cabe salientar que tais ponderações são resultados de uma pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) — campus Erechim. Este artigo, em vista disso, contém trechos extraídos do projeto aprovado na instituição em agosto de 2023, e de uma produção anterior do autor21, publicada como capítulo de livro22, cuja ampliação é a base deste estudo, que tem previsão de estar concluído em agosto de 2025. 2 Um Brasil alheio (e desde sempre combativo) contra a diversidade Há um fato relativamente pouco explorado na historicidade brasileira sobre como a diversidade sexual e de gênero, em suas dimensões das práticas e comportamentos exibidos pelos povos originários, foi percebida pelos colonizadores europeus desde as primeiras expedições e incursões ao território que daria contorno ao que hoje nos referimos como Brasil. A bordo de suas naus, os marinheiros do outro lado do Atlântico guiavam-se por um ordenamento social erigido a partir de relações binárias e dicotômicas, resultado de uma classificação entre os povos autoidentificados como civilizados (como os europeus) e aqueles a quem deveria ser implantada a civilização nestes mesmos moldes (como os nativos). Ainda que autores como Trevisan23 tenham retratado o estranhamento destes viajantes europeus com os costumes e as distintas formas de os nativos manifestarem sua sexualidade, é Mott24 quem vai se dedicar a reconstruir uma triste 21 PUHL, Cristian Anderson. Pode a pessoa LGBT+ falar? Do apagamento sócio-histórico à ocupação de mandatos legislativos em 2022. In: Direitos humanos e interdisciplinaridade: diálogos e reflexões contemporâneas. WENCZENOVICZ, Thaís Janaina. Joaçaba: Editora Unoesc, 2023. 22 O livro eletrônico está disponível para download gratuito acessando: https://www.unoesc.edu.br/wp-content/uploads/2023/05/Direitos-Humanos-eInterdisciplinaridade-1.pdf . Último acesso em 05 de março de 2024. 23 Idem à nota 20. 24 Mott, L. A inquisição no Maranhão. Edufma, 1995. Cristian Anderson Puhl | 39 narrativa que ilustra a perversidade com a qual as pessoas sexo-dissidentes foram e, em muitos contextos continuam, reiteradamente, sendo alvos da violência em solo pátrio. Mott25 revela que, transcorrido quase um século da ocupação colonial, por volta do ano de 1614, a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica amarraram um indígena da tribo dos Tupinambás à boca de um canhão e o explodiram. O ato, ocorrido na região que mais tarde se tornaria o município de São Luís, capital do Estado do Maranhão, serviu como sanção ao indígena nomeado de Tibira 26 do Maranhão, acusado e condenado pela prática do pecado nefando associado ao crime de sodomia — definições utilizadas pela Igreja para designar os atos e as relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo27. Mais do que uma penalidade imposta à Tibira do Maranhão, a destruição do seu corpo serviu como advertência aos indígenas que, alheios a categorização de sua sexualidade a partir de hierarquias formatadas pelos colonizadores, estabeleciam e mantinham hábitos sociais e culturais desvinculados da normatização que passava a ser operacionalizada como dispositivo de controle e gestão destes povos. Segundo Fernandes28, a colonização opera impondo aos colonizados, por meio de práticas institucionais que se baseiam em pressupostos morais, religiosos, científicos, acadêmicos, filosóficos, políticos, sociais, etc., um conjunto de regras que busca reproduzir, nos corações e almas dos colonizados, as lógicas que movem a sociedade colonizadora. [...] tal imposição não opera em um plano discursivo, etéreo e descolado da realidade dessas populações; muito pelo contrário: ele faz parte do cotidiano, tem lugar, cara, rosto, voz... é a imposição de um casamento hétero, com um casal formado por um par de genitálias diferentes que possa ter filhos devidamente batizados. [...] Ao se impor às sociedades colonizadas esse arcabouço de práticas, cabe às justificativas morais e filosóficas fundamentar o esvaziamento desses povos de si mesmos. Trata-se de lhes ensinar como sua cultura é equivocada, seus afetos são errados, sua sociedade é atrasada e iletrada, sua religião 25 Idem à nota 24. Mott (1995) explica que tibira foi a identificação utilizada nos documentos oficiais dos religiosos para se referir ao indígena e que esta seria a palavra tupinambá para se referir aos homens que, na tribo, praticavam atos sexuais com outros homens — uma vez que, como aponta Grosfoguel (2008), as populações nativas da América Latina, em sua grande maioria, não considerava tais práticas como desviantes e/ou crimes passíveis de punição. 27 Idem à nota 20. 28 Idem à nota 18, 2017, p.p 15–16. 26 40 | Gênero, violência e estruturas de poder não tem fé, sua cor é escura demais, seu amor é uma espécie de perversão e, enquanto se mantiverem sendo e parecendo com o que são e parecem, representarão um atraso no progresso humano, ou um lar apropriado para o capeta, ou uma subversão da ordem das coisas. Para Fernandes 29 e Mott 30 , os conceitos éticos, morais e religiosos que moldaram o mito fundador da cultura eurocêntrica foram impostos também às regiões colonizadas, provocando não apenas uma ruptura com as características e os comportamentos originários destes povos, mas também a transposição de estigmas e doutrinas que tinham o objetivo de civilizá-los no interior de um padrão universal de existência. E, neste campo, a sexualidade assume uma dimensão estratégica para a regulação dos corpos e do desejo, como destaca Fernandes 31 , sinalizando este um eixo “parte de um complexo discursivo inerente às dinâmicas de colonização”. Apesar de o assassinato de Tibira do Maranhão não ser o objeto central da análise deste estudo, interpretá-lo a partir das contribuições de Lugones 32 , Grosfoguel33 e Quijano34, nos possibilita reconhecer como a colonização e os seus imperativos institucionalizam dispositivos cujos reflexos se afirmam para além da exploração econômica, fortalecendo a captura da subjetividade também como uma ferramenta da colonialidade, pois, como situa Grosfoguel 35 , o que chegou “às Américas foi uma enredada estrutura de poder mais ampla e mais vasta, que uma redutora perspectiva econômica do sistema-mundo não é capaz de explicar”. O que Grosfoguel 36 propõe é a compreensão quanto a maneira como a sociedade colonizada irá se organizar a partir da imposição de um modelo de hierarquias e classificações entre os sujeitos, sendo o homem, branco, europeu, heterossexual e cisgênero o padrão a ser considerado o ideal. Desta maneira, ele 29 Idem à nota 18. Idem à nota 19. 31 Idem à nota 18, 2017, p. 21. 32 Idem à nota 5. 33 GROSFOGUEL, R. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 80, p. 115–147, mar. 2008. 34 Idem à nota 6. 35 Idem à nota 33, 2008, p. 122. 36 Idem à nota 33, 2008, p. 124. 30 Cristian Anderson Puhl | 41 reflete que “a matriz de poder colonial é um princípio organizador que envolve o exercício da exploração e da dominação em múltiplas dimensões da vida social”. Na esteira dessa leitura, a instrumentalização destes conceitos contrapõem discursos antes hegemônicos sobre aspectos inseridos tanto na base da formação social e histórica do Brasil, quanto em uma constante atualização deste ideário no qual os corpos e as identidades que não se incluem na hegemonia do colonizador, como as pessoas sexo-dissidentes, são postos às margens da estrutura social. Como aponta Quijano37, na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. As implicações disso podem ser observadas na categorização e na hierarquização dos sujeitos baseando-se em um universalismo composto pela e a partir da América Latina, como pontua Quijano38 ao afirmar ser este o processo que redefine a condição de existência dos povos originários em um constructo alegórico das identidades fabricadas pelo empreendimento da Modernidade/Colonialidade. Mignolo39 reforça esta interpretação observando que a colonialidade se torna um elemento constitutivo da modernidade, sendo esta a relação que irá embasar os meios pelos quais estas populações ocuparão posições de subalternidade e submissão. Conforme Teixeira40, é a violência colonial na atribuição de uma imagem moralmente inferior dos colonizados em relação aos colonizadores que produz como efeito uma estratégia de dominação e opressão dos povos não-europeus, nãobrancos, não-cisgêneros, não-heterossexuais. [...] Nesse sentido, ele, aquele que expropria radicalmente a vida do outro sujeito, amplia os holofotes sobre os/as “degradados/as” e faz com que nós não questionemos os seus privilégios, a sua moralidade violenta, o seu caráter genocida e sua aptidão para o 37 Idem à nota 6, 2005, p. 117. Idem à nota 6. 39 Idem à nota 9. 40 TEIXEIRA, Thiago. Descolonizar valores: ética e diferença. Salvador: Devires, p. 28, 2021. 38 42 | Gênero, violência e estruturas de poder desprezo. As pessoas negras, as mulheres, as pessoas LGBTQIAP+ e demais existências precarizadas — em nome de um capital político, econômico, moral e normativo, devedor de uma memória colonial — são identificadas por suas marcações e, em nome de estigmas produzidos, são desabonadas nas cenas políticas. O estranhamento entre as concepções da modernidade e do sistema-mundo41 e as práticas culturais, sociais e econômicas dos povos originários incidem, por consequência, na adoção de um regime de regulação binária do sexo-gênero, engendrada na heteronormatividade compulsória em detrimento da diversidade sexual e de gênero que se manifestava entre os nativos, à época da colonização. Atuando de forma permanente e sistemática como engrenagem na produção de apagamentos e invisibilidades sócio-históricas, a colonialidade, como explicita Missiatto 42 , promove a clivagem e a estratificação entre aqueles a quem são concedidos — e permitidos — acessos à sociedade e aos que permanecem nos “escombros colonialistas” — inclusive ao se observarem as possibilidades de tensionamento e agência destes indivíduos em espaços de poder políticospartidários e eleitorais. Circunscritos a estas categorias homogêneas e hierárquicas, os colonizados são constituídos em uma representação forjada por um ideário conservador, gendrado, binário, heteronormativo e arraigado em crenças dicotômicas quanto a superioridade/inferioridade, civilizado/bárbaro, cristão/pagão, entre outros. Isso, para Quijano 43 , extingue formas outras de existir que não àquelas orientadas ao modelo assumido como o universal: [...] Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos 41 WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 42 MISSIATTO, Leandro Fonseca. Colonialidade normativa. Curitiba: Appris, p. 19, 2021. 43 Idem à nota 6, 2005, p. 118. Cristian Anderson Puhl | 43 numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Para Quijano44, é a raça o elemento central que a colonialidade aciona como mecanismo para classificar e categorizar os povos. Outros aspectos, como o sexo e o gênero, por exemplo, se dissolveriam no interior desta forma de organização societal, onde o poder se dimensiona por e pela raça como critério de separação. Neste debate, Lugones 45 é fundamental para promover a sexualidade como uma dimensão que também estrutura estas relações de dominação, preenchendo uma lacuna epistêmica da teoria fundamentada por Quijano46. O significado desse processo, como denuncia Lugones47, será a subjugação dos dominados perante os dominadores, com consequências perversas para o reconhecimento dos colonizados como humanos e, portanto, indivíduos dotados de “conhecimentos, relações e valores, práticas ecológicas, econômicas e espirituais”, consagrando, em sua perspectiva, “a hierarquia dicotômica entre o humano e o não humano como a dicotomia central da modernidade colonial”. Complementa Lugones48 que [...] os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas — como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/agente, apto a decidir, para a vida pública e o governo, um ser de civilização, heterossexual, cristão, um ser de mente e razão. [...] os colonizados/as tornaram-se sujeitos em situações coloniais na primeira modernidade, nas tensões criadas pela imposição brutal do sistema moderno colonial de gênero. Sob o quadro conceitual de gênero imposto, os europeus brancos burgueses eram civilizados; eles eram plenamente humanos. 44 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. 45 Idem à nota 5. 46 Idem à nota 6. 47 Idem à nota 5, 2014, p. 936. 48 Idem à nota 47. 44 | Gênero, violência e estruturas de poder O resgate da colonização como imposição à Modernidade e a distinção entre humanos e não humanos, trabalhada por Lugones49, contribuem para a constituição de elementos interpretativos importantes que sustentam este estudo, uma vez que permitem a intersecção entre o apagamento sócio-histórico vivido pelos corpos e identidade sexo-dissidentes, a LGBTfobia como um dispositivo de poder e controle exercido pela colonialidade e, em última instância, os reflexos desse ordenamento na movimentação e no tensionamento dos espaços representativos político-eleitorais ocupados por estes sujeitos. Estas aproximações interseccionais se tornaram possíveis, diz Feitosa 50 , à medida que os estudos nos campos de gênero e sexualidade avançaram para outras áreas científicas tradicionais, mostrando uma transversalidade e transdisciplinaridade que permitem “compreender como inúmeras violações de direitos humanos atravessam distintos campos sociais”. Não à toa, a produção da LGBTfobia enquanto discurso político, institucionalizando práticas discriminatórias, perpassa como estas populações são percebidas no tecido social. Atrelada à estrutura social, as fobias acionadas contra os corpos e identidades LGBTI+ dificultam a promoção de políticas públicas, afetam a mobilidade social destes sujeitos e resultam, como indicam estudos de organizações nãogovernamentais como o Grupo Gay da Bahia (GGB), na expansão da violência, tornando o Brasil o país que mais matou pessoas LGBTI+ em 202251; e, em 2023, pelo 15º ano consecutivo, o que mais assassinou pessoas trans*, conforme a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)52. No Brasil, não obstante, desde o processo de ocupação e povoamento se constata, por meio deste ideário do colonialismo e da colonialidade, o apagamento sócio-histórico, político e cultural de parcelas expressivas de sua população, 49 Idem à nota 5. FEITOSA, Cleyton. As diversas faces da homofobia: diagnóstico dos desafios da promoção de Direitos Humanos LGBT. Revista Periódicus, p. 301, 2016. 51 O levantamento completo está disponível em: https://cedoc.grupodignidade.org.br/2023/01/19/mortes-violentas-de-lgbt-brasil-observatorio-dogrupo-gay-da-bahia-2022/. Último acesso em 09 de fev. 2024. 52 O Dossiê contendo os registros dos assassinatos cometidos contra pessoas trans e travestis no Brasil, em 2023, pode ser acessado em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2024/01/dossieantra2024-web.pdf. Último acesso em 10 de fev. 2024. 50 Cristian Anderson Puhl | 45 ocasionando um cenário de múltiplas invisibilidades e silenciamentos coletivos — com efeitos que se alastram há séculos na negação de direitos e acessos precários a participação coletiva das pessoas sexo-dissidentes. Direito humano fundamental garantido constitucionalmente, o engajamento político é um dos eixos que organiza e consolida a cidadania dos sujeitos. Mas, em nosso país, esta é também uma dimensão que não contempla a pluridiversidade nacional. Falaremos sobre isso na próxima seção. 2 Sem lenço nem documento: candidaturas autodeclaradas LGBTI+ em 2022 e espaços de poder Quando Fernandes 53 afirma haver, a partir dos processos de ocupação do território pelos europeus, a reprodução de um ideário que irá colonizar também a sexualidade dos povos originários e inseri-los em um mecanismo que normatiza as formas de existência, o autor concebe a possibilidade de que estas relações de poder e dominação se estendam, posteriormente, para outros grupos sociais, garantindo um modelo de captura das subjetividades que unifica os sujeitos desde o padrão do colonizador. Deste modo, a forma de construção da sociedade colonizada responderá, argumenta Lugones 54 , aos indicativos heteronormativos e patriarcais. Com a expansão dos processos coloniais e da gestão reguladora dos corpos, tais características classificatórias serão compulsoriamente determinadas a todas as populações. Reflete Lugones55 que [...] “colonialidade” não se refere apenas à classificação racial. Ela é um fenômeno mais amplo, um dos eixos do sistema de poder e, como tal, atravessa o controle do acesso ao sexo, a autoridade coletiva, o trabalho e a subjetividade/intersubjetividade, e atravessa também a produção de conhecimento a partir do próprio interior dessas relações intersubjetivas. Ou seja, toda forma de controle do sexo, da subjetividade, da autoridade e do trabalho existe em conexão com a colonialidade. 53 Idem à nota 18. LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento feminista hoje. Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. 55 Idem à nota 54, 2020, s.p. 54 46 | Gênero, violência e estruturas de poder A partir do exercício do controle das diferentes dimensões do sujeito, a colonialidade sustentará as hierarquias e classificações que irão indicar quais espaços e posições os colonizados poderão ocupar — em um processo contínuo de atualização e re-identificação. Neste cenário, a violência e a negação de direitos às populações LGBTI+ podem dificultar o acesso destes corpos e identidades aos espaços políticos eleitorais representativos. Prado, Maracci e Monteiro 56 , por exemplo, citam a reprodução de discursos médicos e higienistas como plataformas educacionais no Brasil, principalmente nas décadas de 1930 e 1970, consolidando determinadas narrativas binárias e padronizadoras de comportamentos e valores. Assentada em um passado colonial, a formação do Brasil dá-se também pelo apagamento da história e da existência dos povos originários e, em seguida, das pessoas negras escravizadas e racialmente subordinadas às classes econômica e politicamente dominantes, em um processo intenso de colonização que, como referido acima, perpassa o poder, o saber, o ter, o ser e o gênero dos/as colonizados/as. Os efeitos disso podem ser observados na sociedade brasileira contemporânea, que ainda mantém fragmentos desta lógica de silenciamento das diferenças e da reprodução hegemônica de um sistema binário de sexo-gênero. Para além das violações de direitos quanto a dignidade da pessoa LGBTI+ em espaços educacionais, por exemplo; ou a inexistência de legislações específicas para a proteção da vida e do usufruto de garantias constitucionais plenas para estes indivíduos, como o acesso à saúde, a ausência de dados demográficos oficiais pertinentes a estas populações é uma negligência do Estado com reflexos diretos na efetivação de uma política transformadora e emancipatória. Ainda que a reabertura democrática que resultou na Constituição Federal de 1988 tenha sido acompanhada, como apontam Prado, Maracci e Monteiro 57 , de “estratégias de governança girando em torno da construção de sistemas de garantias fundamentais, da prevalência dos direitos humanos e de compromissos com a formação em determinados tópicos de cidadania”, a conformação e a 56 PRADO, Marco Aurélio Máximo; MARACCI, João Gabriel; MONTEIRO, Igor Ramon Lopes. Governamentalidades e depurações hierárquicas dos direitos humanos no Brasil: a educação pública e a população LGBT+. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 2021. 57 Idem à nota 56, 2021, p. 6. Cristian Anderson Puhl | 47 valoração do gênero e da sexualidade em um padrão centrado no binarismo mencionado anteriormente não podem ser menosprezadas. Nesta trajetória pós-redemocratização se tem algumas tentativas produzidas por sujeitos LGBTI+ para suplantar o apagamento e a invisibilidade conservados pela colonialidade, colocando em movimento as disputas dos corpos pela ocupação de territórios representativos aos quais nunca foram concedidos acessos. Dados sistematizados por organizações que atuam na construção de agendas de inserção política, indicam impulsos de relocalização destes sujeitos neste campo, revelando, ao mesmo tempo, que o Estado brasileiro continua interditando a abertura de processos emancipatórios em face da manutenção de uma estrutura que privilegia a estratificação do poder entre aqueles indivíduos que sempre o detiveram. Isso se torna perceptível, por exemplo, quando analisamos um levantamento da organização não-governamental VoteLGBT, divulgado em 202258, mostrando que a política institucional brasileira sempre foi ocupada, majoritariamente, por homens, brancos, cis, héteros, não jovens, ricos e conservadores, explicando, em partes, as violações de direitos quanto a dignidade da pessoa LGBTI+ e a perpetuação de um silenciamento histórico sobre estes corpos. Com a ausência de dados oficiais sistematizados, uma vez que, no Brasil, as candidaturas a cargos eletivos não necessitam informar aspectos como a orientação sexual e a identidade de gênero, a quantificação de candidatos e candidatas LGBTI+ no país assume diferentes graus de dificuldade, como aponta a responsável técnica pela pesquisa da VoteLGBT, Evorah Cardoso59, ao destacar que há falhas do Estado na obtenção de informações demográficas sobre estas populações: no Brasil, há uma lacuna na coleta de dados sobre a população LGBT+: o Censo Demográfico, maior pesquisa realizada em território nacional, não incorpora perguntas 58 Dadas as dificuldades na obtenção de informações sobre pessoas autodeclaradas LGBTI+ participando de processos eleitorais, a pesquisa da VoteLGBT contemplou, em um primeiro momento, dados coletados nas eleições municipais, em 2020; a partir deste diagnóstico e mapeamento, a organização estruturou a análise dos dados e, durante o processo eleitoral de 2022, apresentou o relatório contendo o perfil sócio-demográfico dos sujeitos, comparando-os às candidaturas autodeclaradas para a disputa aos cargos nos legislativos e executivos estaduais e ao Congresso Federal — cujo recorte é a base que estrutura este elemento da pesquisa em curso no PPGICH/UFFS. 59 CARDOSO, Evorah. A política LGBT+ brasileira. Entre potências e apagamentos. [livro eletrônico]. São Paulo: 2022, p. 16. 48 | Gênero, violência e estruturas de poder sobre orientação sexual e identidade de gênero. O que existe é um mínimo esforço do IBGE na captação desses dados que, de forma limitada, só contabiliza casais do mesmo sexo que moram na mesma residência, quando uma delas é responsável pelo domicílio. [...] É urgente trazer para o debate público a necessidade destas medições, uma vez que a inexistência desses números deixam a população LGBT+ de fora de planejamentos consistentes, pois os dados são fundamentais para a construção de políticas públicas direcionadas. Quatro anos antes deste amplo estudo ser divulgado, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2018, regularizou a utilização do Nome Social como dispositivo para que as pessoas trans* pudessem se apresentar no processo eleitoral a partir deste reconhecimento legal. Apesar de avaliar como positiva a Resolução-TSE 23.562/201860, que permite a adoção do mecanismo para alteração do nome no título de eleitor e o seu uso como informação para registro de candidatura, Cardoso 61 reitera haver limitações significativas que, no limite, acentuam um regime de exclusão e precarização dessas populações no cenário eleitoral. Conforme Cardoso62, desde que a Resolução entrou em vigor, o Brasil passou a contar — mesmo que insuficientemente — com um dos primeiros bancos de dados formais sobre pessoas autodeclaradas trans*: [...] 9,9 mil eleitoras, eleitores e candidaturas puderam ter seus nomes e gêneros respeitados na hora de votar e serem votadas/os. No entanto, essa autodeclaração só vale dentro do prazo de regularização do título de eleitor e não para o prazo de registro de candidatura, mais próximo das eleições, como é permitido às candidaturas quanto à autodeclaração de raça e cor. Com isso, inúmeras candidaturas trans, travestis e não binárias tiveram suas identidades violadas durante as eleições. É preciso, portanto, que haja maior divulgação da informação sobre esse direito. Embora o TSE tenha avançado no respeito à identidade de gênero, hoje não é possível dizer quantas são as candidaturas de pessoas trans, travestis ou não binárias. [...] Com relação à orientação sexual, não há qualquer coleta de informações por parte da Justiça Eleitoral. Acreditamos que tanto a identidade de gênero quanto à orientação sexual devem poder ser autodeclaradas 60 O texto da Resolução do Tribunal Superior Eleitoral 23.562/2018 está disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2018/resolucao-no-23-562-de-22-de-marco-de2018. Último acesso em 10 de fev. 2024. 61 Idem à nota 59. 62 Idem à nota 59. Cristian Anderson Puhl | 49 publicamente na Justiça Eleitoral por aquelas candidaturas que assim desejarem — seja para disputarem a política a partir de suas identidades, seja para termos dados oficiais sobre quem somos, seja para disputarmos políticas por representatividade LGBT+ nas eleições brasileiras. Se olharmos para o quantitativo de pessoas autodeclaradas LGBTI+ que disputaram assentos em câmaras de vereadores no processo eleitoral de 2020, perceberemos uma intensificação maior em relação ao número de candidaturas que autoafirmaram sua identidade de gênero e orientação sexual em 2022, quando a escolha do eleitor recaiu sobre a definição de quem ocuparia os espaços nos parlamentos estaduais e federais. Em 2020, o estudo da VoteLGBT reportou um total de 556 candidaturas LGBTI+ em todo o país; 97 delas foram eleitas, totalizando 17%. Já para a composição das assembleias legislativas e para a Câmara dos Deputados, no ano de 2022, o levantamento da organização mostrou que dos mais de 26 mil candidatos registrados no país, apenas 330 autodeclaram essas dimensões de sua sexualidade. A diferença entre estes campos da política-partidária e eleitoral brasileira, segundo Cardoso63, pode ser interpretada pelo tamanho das campanhas em cada processo de eleições, além de acenar para que os cargos eletivos em câmaras municipais tendem a demandar menos recursos financeiros e um envolvimento menor das próprias legendas. Motivo semelhante ao da pesquisadora da VoteLGBT foi proposto por Santos64, para quem essa procura maior de candidaturas LGBTI+ aos cargos de vereança se dá pelo caráter periférico da função no interior da estrutura eleitoral brasileira. De acordo com ele, há uma descentralização destes candidatos/as no país que revela a condição possível de ser vislumbrada por estes sujeitos. Observa Costa Santos 65 que não se pode ignorar que “o cargo de vereador é o mais “baixo” na hierarquia das carreiras políticas, visto que demanda do(a) candidato(a) o menor 63 Idem à nota 59. SANTOS, Gustavo Gomes da Costa. Diversidade Sexual e Política Eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Revista Latino Americana Sexualidad, Salud Y Sociedad, 2016. 65 Idem à nota 64, 2016, p. 74. 64 50 | Gênero, violência e estruturas de poder quantitativo de votos para o sucesso eleitoral e, consequentemente, tem menos influência política”. Posto isso, retomando o balanço da VoteLGBT elaborado a partir dos dados de 2022, constatamos que, juntas, as 330 candidaturas autodeclaradas LGBTI+ obtiveram 3,5 milhões de votos em todo o país; 18 delas foram eleitas, sendo quatro para o Legislativo Federal — duas destas cadeiras ocupadas por mulheres transgêneros — e 14 para Assembleias Legislativas nos Estados do Rio de Janeiro (3), São Paulo (6), Minas Gerais (1), Pernambuco (1), Acre (1), Sergipe (1) e Distrito Federal (1). Como apontado pela entidade responsável pelo mapeamento destas informações e pela construção do relatório apresentado em 2022, há possibilidade destes números serem sub notificados, uma vez que a metodologia utilizada se baseia em autodeclarações da sexualidade dos sujeitos candidatos/as. Como dito anteriormente, o TSE, apesar de permitir o uso do Nome Social para o registro de candidaturas de pessoas trans*, não coleta nenhum dado relacionado a identidade de gênero e a orientação sexual. Ainda assim, a mobilização e o tensionamento LGBTI+ nas estruturas políticas do país se inserem em um movimento que, se de um lado expõe a omissão e a incapacidade do Estado em ampliar a cidadania desta população, marginalizada pelas hierarquias e dispositivos da Modernidade/Colonialidade66; de outro, expõe o re-posicionamento desses sujeitos no tecido social, promovendo tentativas de superação do apagamento sócio-histórico perpetuado pela colonialidade. Isso, para Maldonado-Torres67, coloca em disputa a ocupação de territórios aos quais nunca foram concedidos acessos a estas populações, desafiando, inclusive, a “respeitabilidade de qualquer conceito normativo e qualquer prática mediante as quais os cidadãos e as instituições modernas justificam a ordem moderno/colonial, incluindo o sentido normativo de raça, gênero, classe e sexualidade”. 66 Idem à nota 6. MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. São Paulo: Autêntica, p. 33, 2020. 67 Cristian Anderson Puhl | 51 Mais do que um re-posicionamento estratégico dos corpos colonizados, racializados e sexo-dissidentes no espaço público e político, Maldonado-Torres68 defende que a confrontação possibilitada pela existência destes indivíduos, historicamente dominados, “perturba a tranquilidade e a segurança do sujeitocidadão moderno e das instituições modernas”, ao desvelar que a colonialidade e suas estruturas estão amparadas por conceitos impostos pelos europeus ao custo de invasões violentas e o apagamento das diversas e plurais formas viver dos povos originários. Prossegue Maldonado-Torres69 comentando que [...] por trás da questão do significado do colonialismo e da descolonização, está o colonizado como um questionador e potencial agente. Isso é notavelmente diferente da posição esperada deles como entidades sub-humanas dóceis. A ordem das coisas no mundo moderno/colonial é tal que as questões sobre colonização e descolonização não podem aparecer, a não ser como mera curiosidade histórica. Espera-se que o colonizado ou ex-colonizado seja tão dócil quanto grato. [...] A ansiedade trazida [...] está, portanto, ligada à fobia em relação às pessoas escravizadas e colonizadas e ao terror que os sujeitos-cidadãos sentem quando eles concebem o colonizado como um agente As distintas formas de violações e violências deflagradas contra as populações dominadas se reverberaram ao longo da história do Brasil, acentuando as classificações e categorias hierárquicas que organizam e estruturam, na atualidade, as desigualdades sociais e econômicas experimentadas pela população brasileira, em especial aquelas reidentificadas pelo ideário da colonialidade. Por óbvio que estas condições socioeconômicas não atravessam os grupos sociais da mesma forma; há opressões que se interseccionam sob ângulos e intensidades variadas, afetando, estruturalmente, os segmentos em maior ou menor grau. Este é outro elemento percebido pela VoteLGBT ao analisar as candidaturas autodeclaradas LGBTI+ em 2022. Das 18 eleitas/os, 16 são mulheres, 14 são pessoas negras e cinco são pessoas trans*. Se é verdade que o padrão colonial imposto elencou a raça como critério central de classificação, conforme pontua 68 69 Idem à nota 67. Idem à nota 67, 2020, p.p 33–34. 52 | Gênero, violência e estruturas de poder Quijano70, e transformou o gênero em outro instrumento de exercício do poder, como nos reforça Lugones 71 , então também é correto apontar, tomando estes números trazidos pelo levantamento eleitoral, que há tentativas de subversão à norma sendo construídas pelos dominados. Para Cardoso 72 , embora o percentual destas candidaturas autodeclaradas LGBTI+ eleitas seja de apenas 0,16% em comparação às demais, o resultado sugere um esgotamento do modelo político-partidário de representação legislativa da população brasileira. Enquanto a colonialidade perpassa mais de cinco séculos mantendo-se como um processo ativo de legitimação do poder, também é perceptível identificar fissuras nesta teia, tecidas por sujeitos que não conformam e compactuam com estas estruturas — entre eles, os corpos e indivíduos dissidentes deste sistema sexo-gênero. 3 Considerações finais Entre as 18 pessoas autodeclaradas LGBTI+ eleitas para os parlamentos estaduais e a Câmara dos Deputados em 2022, está uma mulher, trans, negra e periférica que, aos 15 anos, foi expulsa de casa, sofreu violências e abusos, atuou como trabalhadora sexual até conseguir os meios econômicos e de reinserção social para retomar os estudos e construir uma nova forma de existir na sociedade colonizada brasileira. Eleita pela primeira vez vereadora em São Paulo, a maior cidade da América Latina, em 2020, Erika Hilton (PSOL/SP) se elegeu deputada federal em 2022, consagrando-se como uma das mulheres mais influentes do cenário político brasileiro, conforme o Congresso em Foco. A história de Erika, tornada conhecida pela própria parlamentar, materializa os principais elementos mobilizados ao longo deste artigo, sobretudo quando interpretados à luz da interseccionalidade, proposta como ferramenta analítica visando estabelecer a relação entre a constituição sócio-histórica do Brasil, a participação política e eleitoral de corpos sexo-dissidentes e a LGBTfobia como um 70 Idem à nota 6. Idem à nota 54. 72 Idem à nota 59. 71 Cristian Anderson Puhl | 53 dispositivo de poder operacionalizado pela colonialidade. Além de se constituir referência em visibilidade e enfrentamento a um sistema cis-heteronormativo, gendrado, binário e dicotômico, a deputada federal tem sobre si as categorias alegóricas da Modernidade/Colonialidade, reidentificadas como marcadores sociais da contemporaneidade: pessoa trans*, mulher, negra e periférica. Como discutido ao longo deste estudo, os processos de colonização e ocupação do território pelos europeus foram acompanhados de uma intensa produção das diferenças entre os dominadores e os dominados. Isso permitiu, por exemplo, constituir, por meio da violência colonial, como refere Grosfoguel 73 , a distinção entre sujeitos humanos, civilizados, aptos ao exercício de seus direitos, daqueles a quem sequer a atribuição de humanidade foi garantida. O critério racial, que para Quijano 74 está na base da colonialidade como o primeiro e o principal alicerce desta organização imposta pela Modernidade Colonial, solidifica as hierarquias sociais e, ao ser atravessado por outras dimensões, como a do gênero, estabelece um ordenamento moral no qual o controle dos corpos, da subjetividade e da sexualidade perpassa a maneira como os sujeitos colonizados serão identificados e estratificados. Não à toa, neste contexto, os espaços de representação política-partidária e eleitoral são, histórica e majoritariamente, ocupados por homens, brancos, cisgêneros, não jovens e representantes de grupos dominantes da sociedade brasileira — como mostram os estudos da VoteLGBT em relação aos resultados e aos números de candidaturas autodeclaradas LGBTI+ nas Eleições de 2020 e de 2022. Diante desta estrutura, no qual o padrão erigido como universal é uma representação forjada tendo como modelo o europeu colonizador, a diversidade é deslocada para as margens, relegadas as esferas de sub-representação, negação de direitos, violências e apagamentos de suas identidades. Sendo parte de uma pesquisa mais ampla que está em fase de desenvolvimento junto ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) — campus Erechim, este texto se propôs a investigar uma perspectiva dentre tantas possíveis 73 74 Idem à nota 33. Idem à nota 6. 54 | Gênero, violência e estruturas de poder vinculadas ao tensionamento promovido pelos corpos LGBTI+ quando estes se movimentam no interior dos partidos políticos e se colocam à disposição para as disputas eleitorais. Ocupar um mandato parlamentar sendo uma pessoa LGBTI+, seja na esfera municipal, estadual ou federal, significa mais do que estar à frente de uma posição de autoridade e poder — o que, dada a realidade violenta e cruel registrada no país contra estas populações, seguindo as estatísticas apresentadas anteriormente a partir dos documentos do Grupo Gay da Bahia e da ANTRA, já representaria algo a ser reconhecido. Assumir assentos em casas legislativas ou nos executivos é também subverter a própria lógica da colonialidade e da submissão a uma hierarquia classificatória que invisibiliza e interdita a movimentação destes sujeitos. É sob esta perspectiva de ação transformadora que Erika afirma ancorar, em centenas de entrevistas concedidas, a condução de seus mandatos e sua atuação política. Denunciando este sistema de opressões e subalternidades, a deputada federal instrumentaliza o enfrentamento das estruturas que, transcorridos cinco séculos desde a colonização, seguem reproduzindo um modelo de dominação no qual a colonialidade, reiteradamente, se atualiza. As provocações apresentadas no decorrer deste artigo não buscam esgotar o debate sobre o tema proposto. Contudo, é também por meio e a partir desta perspectiva na qual a colonialidade se mantém ativa como mecanismo de segregação social que identificamos uma chave interpretativa capaz de fomentar um caminho para se pensar como, ainda em 2022, transcorridos cinco séculos da ocupação, os discursos hegemônicos invadem subjetividades, sequestram existências diversas e alijam as pessoas sexo-dissidentes do tecido social brasileiro. Que o desconforto provocado pelos corpos e identidades não-normativas adentrando espaços de poder representativo institucional seja uma das frentes de mudança para que as casas legislativas e os executivos, em todo o país, sejam, de fato, representativos da pluridiversidade nacional. Cristian Anderson Puhl | 55 Referências bibliográficas ADICHIE, Ngozi Chimamanda. O perigo de uma história única. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2023. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. 19ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: nVersos, 2015. CARDOSO, Evorah. A política LGBT+ brasileira. Entre potências e apagamentos. [livro eletrônico]. São Paulo: 2022. 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A INVISIBILIDADE DAS MULHERES ENCARCERADAS: VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL https://doi.org/10.36592/9786554601566-03 Karoline Schoroeder Soares1 Luíse Pereira Herzog2 Resumo O presente trabalho discorre sobre a vida das mulheres em penitenciárias brasileiras. Dessa forma, as mulheres após ingressarem no sistema prisional enfrentam diversos desafios, especialmente aqueles referentes ao gênero. Portanto, o artigo se divide em objetivos, ao qual no primeiro momento, investiga as violências de gênero enfrentadas pelas mulheres nas penitenciárias, assim como explora fatores históricos de abuso, superlotação, falta de recursos e discriminações de gênero no Sistema de Justiça Penal Brasileiro e, por fim, analisar as políticas existentes relacionadas à prevenção e resposta à violência de gênero para com as encarceradas. Trata-se de um estudo com método bibliográfico e documental, com análise de artigos científicos, tratados internacionais e discussões doutrinárias que versam sobre a temática. As mulheres têm diversos de seus direitos violados, principalmente àquele referente a saúde, pois há superlotação, falta de higiene e assistência básica, ou seja, as penitenciarias brasileiras foram construídas para o gênero masculina e foram adaptadas para receber as mulheres, não tendo estrutura para estas mulheres. Nesse sentido o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, busca a igualdade de gênero dentro no âmbito do Poder Judiciário, com olhar para vulnerabilidades das mulheres invisíveis no interior de um sistema de difícil sobrevivência. É inegável a importância do movimento do Estado brasileiro para solucionar a precariedade nas instituições penitenciárias, sendo necessário a construção de presídios para o público femininos e a implementação de mecanismos que possam garantir os direitos humanos das detentas. Palavras-chaves: Mulheres; Direito à saúde; Penitenciária feminina; Sistema Penal Brasileiro; Violência de gênero. INTRODUÇÃO A população penitenciária feminina cresce exponencialmente, pois as mulheres estão sendo introduzidas cada vez mais do mundo da criminalidade, 1 Mestranda em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande. E-mail: "karolineschoroedersoaress@gmail.com". ORCID: https://orcid.org/0009-0006-4321-6364 2 Mestranda em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande. Pós-graduada em Processo Civil pela Faculdade Dom Alberto. Graduada pela Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: luisepherzog@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7680-4046 60 | Gênero, violência e estruturas de poder principalmente no tráfico de drogas. Esse aumento está relacionado a submissão das mulheres aos homens, levando em consideração que estão desempenhando atividades similares às de seus companheiros ou familiares. Após ingressarem no sistema prisional, as prisioneiras enfrentam desafios interligados ao gênero, como abuso físico, sexual e psicológico dos presos, funcionários e visitantes. O objetivo da pesquisa é investigar as violências de gênero enfrentadas pelas mulheres nas penitenciárias, assim como explorar fatores históricos de abuso, superlotação, falta de recursos e discriminações de gênero no Sistema de Justiça Penal Brasileiro e analisar as políticas existentes relacionadas à prevenção e resposta à violência de gênero para com as encarceradas. Portanto, o estudo tem como método bibliográfico e documental, com análise de artigos científicos, tratados internacionais e discussões doutrinárias que versam sobre a temática. As mulheres em situação carcerária têm demandas e necessidades específicas, possuem históricos de violência familiar, nacionalidade estrangeira, condição financeira, problemas de saúde, maternidade e o uso de entorpecentes. As presidiárias têm diversos de seus Direitos Humanos violados constantemente nos presídios e no próprio Processo Penal, pois o sistema foi feito por homens e para homens, e este sistema carcerário não considera peculiaridades que toda e qualquer mulher pode vir a enfrentar, principalmente os cuidados com a saúde física, mental e reprodutiva, aumentando severamente a violência de gênero nas prisões. Com a falta de recurso e abandono do Estado em debater o tema, contribui com alastre as condições precárias das prisões femininas e mistas. Discorrendo sobre o encarceramento no Brasil identifica-se a ADPF n.º 347, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal declarou a existência de “Estado de Coisas Inconstitucionais” no sistema penitenciário brasileiro, considerando a violação massiva e generalizada de direitos fundamentais que afeta muitas pessoas, incluindo as mulheres. Assim, destaca-se o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, o qual busca a igualdade de gênero dentro no âmbito do Poder Judiciário, com olhar para vulnerabilidades das mulheres invisíveis no interior de um sistema de difícil sobrevivência. Entretanto, não há como negar a necessidade de movimentação pelo Estado brasileiro a fim de solucionar condições precárias enfrentadas pelas Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 61 apenadas, assim como a criação de mais presídios femininos e a implementação de mecanismos que possam garantir os direitos humanos das detentas. Embora exista avanços com um viés de gênero para minimizar as dores das mulheres causadas pela ausência de uma perspectiva para as suas vulnerabilidades, o país ainda está longe de conseguir pôr fim à violência de gênero enfrentada pelo apenadas, já que as instituições não estão preparadas para lidar com tais necessidades, especialmente quando se trata de uma população que é colocada à margem da sociedade. HISTÓRIA ATRÁS DAS GRADES: UM OLHAR FRENTE ÀS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELAS MULHERES ENCARCERADAS. A sociedade é dominada pela repressão, isto é, impõe às mulheres a terem papéis de esposa, cuidadora da família e do lar, destinadas apenas aos espaços domésticos e privados. Na Idade Média, a mulher, especialmente, aquelas que tinha um pouco de autonomia, através de serviços religiosos e medicinais, era vista como perigo para sociedade, sendo perseguidas pela Igreja e Estado. Assim, neste período, surge o movimento caça às bruxas, período que as mulheres foram submissas ao controle patriarcal, neste mesmo século, XV, inicia o capitalismo agrário, ao qual ocorreu o cercamento das terrar inglesas e houve o aumento das diversas dificuldades sociais e econômica, principalmente para as mulheres mais velhas ao qual o seu sustento vinha das suas terras e não tinha aquém dar suporto a elas, sendo obrigadas a doarem suas terras para aquele que garantir seus sustentos3. As trajetórias históricas dos movimentos feministas e de mulheres demonstram uma diversidade de pautas discutidas e de lutas empreendidas por elas, sobretudo, a partir do século XVIII. No século XX, a partir da década de 60, essas mobilizações enfocaram, principalmente, as denúncias das violências cometidas contra mulheres no âmbito doméstico. Mobilizadas em torno do apelo de que o “pessoal é político’, buscaram romper com dicotomias entre o público e o privado cobrando responsabilidades do Estado e da 3 Federici, Silvia, 1942-Mulheres e caça às bruxas [recurso eletrônico]: da Idade Média aos dias atuais/Silvia Federici ; tradução Heci Regina Candiani. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo,2019. 62 | Gênero, violência e estruturas de poder sociedade em assegurar a todas/os o respeito à dignidade humana e a uma vida sem violência4. Nesse ínterim, com as lutas feministas o público feminino foi adquirindo seu espaço dentro da sociedade e do Estado. As mulheres foram avançando e evoluindo os seus direitos através destas lutas e ganhando independência, conquistando seu espaço no trabalho e sociedade, ocorrendo a inclusão das mulheres na criminalidade. No século XX houve a implementação de diferentes tipos de categorias criminais, como para menores, contravenções, menores, loucos e processados5, as mulheres que eram presas nesta época, entretanto, não tinham nenhuma regulamentação legal, ocasionando diversos debates sobre suas prisões6. A mulher criminosa é duplamente discriminada, por ser mulher e por ter rompido com o modelo inferiorizado que a sociedade impôs a ela historicamente. Quando comete um crime a mulher assume um lugar, aparentemente, reservado ao homem: o lugar de violadora da ordem estabelecida, uma agressora 7 As mulheres privadas da liberdade são tratadas de forma distinta dos homens apenados. Elas sofrem diversos preconceitos além das grades das prisões, a violência assim como o preconceito, estão presentes no seu cotidiano, a 4 GUIMARAES, M. C.; PEDROZA, R. L. S. Violência contra a mulher: problematizando definições teóricas, filosóficas e jurídicas. Psicologia e Sociedade, Recife, v. 27, n. 2, p. 256-266, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/psoc/a/Dr7bvbkMvcYSTwdHDpdYhfn/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 25 mar. 2024. 5 MACHADO, Ana Elise Bernal; SOUZA, Ana Paula dos Reis; SOUZA, Mariani Cristina de. SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO – ORIGEM, ATUALIDADE E EXEMPLOS FUNCIONAIS. Curso de Direito da Faculdade de Humanidade e Direito, São Paulo, v. 10, n. 10, p.201-212, jan. 2003. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/RFD/article/viewFile/4789/4073. Acesso em: 21 jun. 2017. 6 PEREIRA. Gomes Luana. A violação dos Direitos Humanos nas penitenciárias femininas brasileiras. 2020. Jusbrasil. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-violacao-dos-direitoshumanos-nas-penitenciarias-femininas-brasileiras/845303617. Acesso em: 25 mar. 2024. 7 FRANÇA, Marlene Helena de Oliveira. Prisão, tráfico e maternidade: um estudo sobre mulheres encarceradas. 2013. 238 p. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Sociologia) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/tede/7302/1/arquivototal.pdf. Acesso em: 22 mar. 2024. Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 63 desigualdade além de predominar a vida das mulheres fora das grades, está dominando as penitenciárias mista e feminina. Através da pesquisa, pode-se observar que as mulheres sofrem ainda mais em razão dos preconceitos, e por conta das instituições serem feitas para o público masculino, grande parte das penitenciárias femininas não tem estrutura para acolher estas mulheres, portanto elas têm diversos de seus direitos violados. A primeira prisão feminina foi em 1937, em Porto Alegre no Rio Grande do Sul, chamado como Reformatório de Mulheres Criminosas, depois foi chamado de Instituto Feminino de Readaptação Social. Entretanto, grande parte dos presídios são organizados de forma mista8, ou seja, as celas são adaptadas para as mulheres presas, portanto, há dificuldades em realizar adequações cabíveis às mulheres, como a construção de creches e locais apropriados para seus filhos. Assim, além das lutas de gênero, as mulheres necessitam lutar constantemente pelos seus Direitos Humanos, principalmente, após a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Pois, a violência contra as mulheres é a mais conhecida por violar diretamente os Direitos Humanos das mulheres, independente da classe, região, idade e raça, especialmente em locais como as penitenciárias. Dessa forma, as mulheres apenadas acabam cumprindo suas penas duplamente, em razão do abandono de suas famílias - por conta de muitas das penitenciárias femininas serem em outras cidades e em locais distantes, impedindo o contato com a família -, a violação do direito à dignidade e os Direitos Humanos de saneamento básico e falta de estrutura, assim como no Processo Penal, principalmente, levando em consideração que o sistema foi feito por homens e para homens, não levando em conta as necessidades de toda e qualquer mulher que pode ocorrer, especialmente com cuidados com a saúde física, mental e reprodutiva, aumentando severamente a violência de gênero nas prisões. Todas as penitenciárias, independente se para homens, mulheres e se mistas, foram esquecidas pelo Estado, contudo o sistema prisional feminino é o que é mais 8 BRASIL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias INFOPEN MULHERES – junho 2014. Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN. 2014. Disponível em: https://justica.gov.br/news/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-nobrasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf. Acesso em: 22 mar. 2024. 64 | Gênero, violência e estruturas de poder prejudicado. O sistema prisional é ineficaz para a proteção feminina e proteção dos Direitos Humanos dessas mulheres, especialmente, ao se tratar sobre a violência sexual, em razão das mulheres estarem num sistema predominantemente de controle social machista e conservador, ao qual reproduzem a violência estrutural referente ao gênero, nesse sentido, as mulheres e aprisionadas estão indo contra a evolução de muito de seus direitos, em razão de que é um elo de repressão, castigo e punição9. Ainda, pode-se observar que a população feminina dentro das instituições penitenciárias são predominantemente mulheres negras e pobres. O racismo institucional está presente no sistema de justiça criminal. Ademais, por meio da ferramenta da interseccionalidade pode-se observar que as mulheres negras sofrem mais discriminações que as mulheres brancas, e nesse sentindo pode-se observar que as mulheres negras estão predominando as prisões. O tratamento para mulheres presas é pior que o dispensado ao homem, que também sofre com as precárias condições na prisão, mas a desigualdade de tratamento é decorrente de questões culturais e com direitos ao tratamento condizente com as suas particularidades e necessidades. Em nossa Constituição Federal possui um princípio na qual regula tais necessidades, é o princípio da individualização da penal, conforme o artigo 5º, inciso XLVIII, segundo o qual “...a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado10. Entretanto, as dificuldades enfrentadas dentro das prisões não são apenas a superlotação, pois principalmente as mulheres convivem com a falta de produtos básicos, de higiene 11, sendo necessário de utilizar a criatividade para que consigam ter, pelo menos, o mínimo de higiene. Portanto, as mulheres buscam o acesso à saúde, principalmente à saúde ginecológica, além de condições dignas de estadia, como seus dormitórios para que aquelas que tem seus filhos na prisão, ou apenas para visitá-las12. 9 Andrade, V. R. P. (1997). Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos,18(35), 42-49. 10 BORGES, Paulo César Corrêa. Direito penal democrático. 1. ed. São Paulo: Lemos e Cruz, 2005 11 QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. 12 CÚNICO, S. D., BRASIL, M. V., & BARCINSKI, M. (2015). A maternidade no contexto do cárcere: uma revisão sistemática. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 15(2), 509-528. Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 65 Drauzio Varella, após realizar um trabalho voluntário de médico numa das penitenciárias femininas de São Paulo, relata que os problemas de saúdes nas penitenciárias femininas são diferentes das masculinas, pois as mulheres costumam terem dores de cabeça, obesidade, hipertensão arterial, diabetes e problemas ginecológicos13. Ainda, muitas mulheres são vítimas de violências vindas de agentes penitenciários, nesse sentido, o Estado tem participação na influência da domesticação dos corpos e da violência, principalmente pelo fato de serem pessoas que estão sendo vigiadas o tempo todo dentro do sistema prisional, principalmente, porque aquele que tem poder acredita ser superior e que tenha atitudes corretas 14. Dessa forma, através desta hierarquia os corpos das mulheres presas, podem serem controlados por meio das operações estatais, pois há uma centralização de autoridade masculina, ocasionando na submissão e vulnerabilidade da mulher15 Através de uma pesquisa realizada entre os anos de 2019 e 2020, do livro “Tratamento Penitenciário, um estudo sobre tortura, maus-tratos e assistências às pessoas privadas de liberdade”16, foi diagnosticado que as mulheres sofrem mais agressão física que os homens, pois 20,5% das mulheres presas foram vítimas de alguma agressão física, como tapas ou socos, 17,8% foram agredidas com chutes e 9,5% foram sufocadas. O tratamento recebido pelas mulheres nas penitenciárias não tem qualidade e o número de vítimas de violências cresce. Consequência deste tratamento precário, são os banheiros precários, alimentos estragados, vencidos e pouca quantia para cada presa, além da superlotação em cada cela, diminuindo a higiene pessoal, acesso à saúde e violando o princípio da dignidade da pessoa humana. Isso ocorre, principalmente porque as pessoas que estão presas não conseguem reclamar ou até mesmo dar feedbacks http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180842812015000200005&lng=pt&tln g=pt. Acesso em: 20 mar. 2024. 13 VARELLA, D. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 14 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 4. ed., São Paulo: Perspectiva, 2001. 15 PIOSIADLO, L. C.; FONSECA, R. M. G. S.; GESSNER R. Subalternidade de gênero: refletindo sobre a vulnerabilidade para violência doméstica contra a mulher. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ean/a/LZGcmCkx8YzyqmdChrLFGMc/. Acesso em 24 mar. 2024. 16 REZENDE, Luiz Carlos; SAPORI, Luís Flávio. Tratamento penitenciário - estudo sobre tortura, maustratos e assistências às pessoas privadas de liberdade. Editora D’Plácido. ISBN 9786555896046. 2022. 66 | Gênero, violência e estruturas de poder pois sofrem mais chances em terem consequências como agressões por estar achando que estão tendo tratamento que viole algum de seus direitos17, portanto, a invisibilidade das mulheres presas estão cada vez mais presente na sociedade. Sendo assim, com a precariedade do atendimento dos agentes estatais nas prisões, viola e ignora ordens previstas pelo ordenamento jurídico afastando, nesse sentido, as disposições normativas das mulheres encarceradas da realidade do sistema prisional feminino. Nesse cenário, é de suma importância e necessidade em realizar meios para que reverta a violação dos direitos das mulheres apenadas, visto que quem viola seus direitos são agentes estatais. Portanto, faz-se necessário a realização do tratamento humanitário dessas mulheres e na melhoria da estrutura destas instituições a fim de comodidade dessas mulheres. Com o aumento significativo da população carcerária brasileira, observa-se que a desigualdade de gênero está presente em qualquer espaço, ademais para Ana Elisa Bechara, vice-diretora da Faculdade de Direito da USP, fala que o aumento da população feminina presa se dá pelo aumento de participação das mulheres no tráfico de drogas 18 . O Poder Judiciário, faz com que as penas criminais sejam cumpridas em instituições penitenciárias, sendo necessário que haja um espaço adequado para que estas pessoas fiquem bem e sem violar seus Direitos. Embora, o número de pessoas aprisionadas seja predominantemente masculino, as mulheres necessitam de um cuidado especial, pois o Estado tem o dever de dar assistência à essas mulheres, como itens essenciais para assegurar e garantir a dignidade humana, como produtos básicos de higiene, papel higiênico, absorvente, tratamento médico19. 17 REZENDE, Luiz Carlos; SAPORI, Luís Flávio. Tratamento penitenciário - estudo sobre tortura, maustratos e assistências às pessoas privadas de liberdade. Editora D’Plácido. ISBN 9786555896046. 2022. 18 BECHARA, Ana Elisa. Pesquisa mostra que o Brasil tem terceira maior população carcerária feminina do mundo. 07 ago. 2023. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/pesquisa-mostra-que-obrasil-tem-terceira-maior-populacao-carceraria-feminina-do-mundo/. Acesso em: 25 de março de 2024. 19 SILVEIRA, M. R. R. Enfrentamento ao encarceramento feminino de mães e gestantes à luz do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641/SP. Monografia (bacharel em Direito) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2022. Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 67 A Constituição Federal prevê que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, são fundamentais para que as mulheres presas possam, através do trabalho ter dignidade assim como possa ter possibilidade de ressocializar e fazer parte da sociedade novamente, sendo necessário corrigir, reeducar e curar, não apenas punir20. As mulheres sofrem violência institucional dentro das prisões quando os agentes do Estado, realizam torturas individuais, enfrentamento contra estes agentes, pois a tratam de forma violenta, com o uso de força física para demonstrar quem manda dentro das instituições, assim como dar castigos e humilhá-las é frequente. Nesse sentido, a violência, tanto física quanto psicológica são recorrentes dentro das instituições. A Lei de Execução Penal21, demostra que a ressocialização é um instrumento que deve ser feito dentro do presídio, durante o período que a mulher presa está cumprindo pena privativa de liberdade, o qual a assistência, educação, trabalho e a disciplina são fundamentais para a ressocialização dessas mulheres presas, pois mantêm a dignidade e desenvolvem o comportamento aceito para viver numa sociedade. Se alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da “pessoa” transcendam, a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, 13 classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de “gênero” das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida 22. Portanto, as mulheres estão buscando seus direitos constantemente, independente do seu lugar, mas em certos locais as mulheres são abandonadas e 20 FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir. 29. Petrópolis: Vozes, 2004. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 25 mar. 2024. 22 BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 21 68 | Gênero, violência e estruturas de poder não tem suporte do Estado para que garanta seus direitos. Ocasionando maior vulnerabilidade de reincidência e falta de reiteração social destas mulheres. A PREVENÇÃO E A RESPOSTA ESTATAL PARA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO COM AS ENCARCERADAS Quando se trata do funcionamento de sistemas prisionais e dos apenados, tem-se que as Regras de Mandela 23 são referência no tema, considerando que revolucionou ao trazer regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos, o qual vislumbra o desenvolvimento progressivo do direito internacional no tratamento de presos, desde 1955, inclusive em legislações internacionais como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 24 , o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais25, e a Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes 26 e o seu Protocolo Facultativo27. Desse modo, tais regras buscam reafirmar os direitos humanos fundamentais, a dignidade da pessoa humana, sem nenhuma distinção, além de garantir direitos iguais aos homens e às mulheres. Entretanto, em razão por se tratar de apenados de forma geral, não vislumbra especificidades para o gênero feminino, em que pese afirme que homens e mulheres devessem estar em unidades separadas, a proibição de confinamento solitário em casos envolvendo mulheres e crianças, além da 23 Conselho Nacional de Justiça Regras de Mandela: regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi Brasília: CNJ, 2016. 88 p. – (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834012-0 24 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Brasília. 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 27 de março de 2024. 25 BRASIL. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Brasília. 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em: 27 de março de 2024. 26 BRASIL. Decreto n.º 40, de 15 de fevereiro de 1991. Brasília, 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm. Acesso em: 27 de março de 2024. 27 BRASIL. Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007. Brasília, 2007. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6085.htm. Acesso em: 27 de março de 2024. Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 69 vedação à utilização de instrumentos de restrições em mulheres em trabalho de parto, durante e após o parto28. Para além, o documento refere que as mulheres apenadas terão os mesmos direitos dos homens, no que se refere a visitas íntimas, bem como que a supervisão da unidade feminina deve caber a um oficial feminino e que as apenadas devem ser atendidas somente por agentes femininas, embora possa existir membros homens na equipe29. A prisão, portanto, é um lugar em que há misturas de cores, classes, personalidades e diferenças, desse modo, há tão somente um fator de separação: o sexo. Há vista disso, surge a necessidade de analisar o cárcere feminino sob a perspectiva de gênero, motivo pela qual sobrevieram as Regras de Bangkok, uma série de tratados internacionais de direitos humanos das nações unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras.30 Pensando nesse olhar específico para as mulheres apenadas, as regras visualizam as demandas e necessidades femininas, assim como a existência da violência familiar contra a mulher e das dificuldades enfrentadas na maternidade, especialmente quando exercida de maneira solo, a nacionalidade e, ainda, as condições financeiras e o uso de entorpecente. Desse modo, as condições de encarceramento e a forma como tais mulheres são submetidas exige urgentemente a redução do encarceramento feminino provisório, buscando uma solução judicial facilitadora alternativa ao aprisionamento, principalmente nos casos em que ainda não há decisão condenatória transitada em julgado31. Desse modo, as Regras de Bangkok referem-se desde a forma como deve ocorrer o ingresso das mulheres na penitenciária e onde serão alocadas, o cuidado a 28 Conselho Nacional de Justiça Regras de Mandela: regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi Brasília: CNJ, 2016. 88 p. – (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834012-0. 29 Ibidem 30 Conselho Nacional de Justiça Regras de Bangkok: regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para as mulheres infratoras/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. 84 p. – (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834-011-3. 31 Ibidem. 70 | Gênero, violência e estruturas de poder higiene, à saúde física e mental, à atendimentos específicos para mulheres, revistas, disciplinas e sanções, incluindo tratamentos diferenciados a gestantes, com filhos e lactantes na prisão ou gestantes e com filhos dependentes, assim como disposições para estrangeiras e indígenas.32 O documento evidencia – com vigor, que os tratamentos diferenciados para os homens e mulheres não são considerados como discriminatórios, lembrando que as Regras de Mandela sustentam o princípio de não discriminação, contudo, é necessário considerar as necessidades específicas do gênero feminino. Entretanto, ainda que se tenha verificado a importância da criação de regras para tratamentos de mulheres e para cuidar de medidas cautelares diversas das prisões para tal gênero, o documento não pretende substituir as regras mínimas para o tratamento de reclusos e as regras de Tóquio – as quais tratam sobre a elaboração de medidas não privativas de liberdade, mas tão somente regulamentar questões femininas que, se negligenciadas, tornam infinitas as práticas reiteradas da violência de gênero no interior de penitenciárias, haja vista que trata-se de um lugar em que as mulheres não possuem sequer o mínimo de voz.33 O Protocolo Para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça surge em 2021 e, embora trate sobre diversas questões processuais que envolvem mulheres e tenha destinado parte de suas disposições para tornar obrigatório a garantia de mínimos direitos de igualdade, demonstrando que, em razão da permanência de violações de gênero, o país está buscando cumprir para com os tratados internacionais de direitos humanos das mulheres dos quais é signatário, busca evidenciar medidas que devem ser tomadas, a partir de olhar de gênero, às mulheres apenadas ou acusadas em processos criminais.34 De maneira sintetizada, o documento diz que os magistrados e magistradas precisam se atentar de maneira singular a cada mulher analisando sua estrutura 32 Ibidem. Conselho Nacional de Justiça Regras de Tóquio: regras mínimas padrão das Nações Unidas para a elaboração de medidas não privativas de liberdade/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. 24 p – (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834-014-4. 34 Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero/ Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021. Dados eletrônicos (1 arquivo: PDF 132 páginas). Disponível em: http:// www.cnj.jus.br e www.enfam.jus.br e ISBN 978-65-88022-06-1 33 Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 71 física, saúde, higiene, e a realidade social em que se encontram, se estão em condições gravídicas, puérperas ou se são mães de crianças com até 12 (doze) anos ou responsáveis por pessoas idosas, além de buscar inseri-las novamente na sociedade e de aprofundar o contato com a família, já que acabam sendo esquecidas e julgadas por realizem atos tipificado como crime na legislação brasileira. Ainda, o Protocolo refere a importância de atentar-se a pessoas da população LGBTQIA+, assim como dos povos indígenas, os quais ainda são extremamente vulneráveis na sociedade atual – predominantemente preconceituosa.35 A diferença sexual será juridicamente relevante em casos suspeitos de opressão e subordinação social das mulheres, oportunidade em que a justiça deverá atuar integrando a perspetiva de género no exercício argumentativo, como equilibradora de situações assimétricas de género, atuando como promotora de mudanças sociais na transformação de padrões comportamentais que favorecem a subordinação das mulheres, razão pela qual não se pode questionar a aplicação da perspectiva de gênero em procedimentos criminais, já que as mulheres precisam de um olhar e um atendimento de acordo com a sua realidade – considerando que cada uma possui as suas peculiaridades.36 Frisa-se que no Habeas Corpus n.º 143.611, o Supremo Tribunal Federal concedeu, em 2018, habeas corpus coletivo às mulheres encaceradas que fossem gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes ou adolescentes com medidas socieducativas, considerando o baixo cumprimento de políticas públicas para a primeira infância, o que pode-se concluir que quando reclusa, os deveres de cuidado ficam suspensos, já que a força não remunerada das mulheres que cuidam de outras vidas fica suspensa.37 Ainda no mesmo ano, por meio da Lei n.º 13.769, foi criada disposição que substitui a prisão preventiva pela prisão cautelar ou domiciar para mulheres que não 35 Ibidem. POYATOS MATAS, Gloria. Juzgar con perspectiva de género: una metodología vinculante de justicia equitativa. iQual. Revista de Género e Igualdad, [S. l.], n. 2, p. 1–21, 2019. DOI: 10.6018/iQual.341501. Disponível em: https://revistas.um.es/iqual/article/view/341501. Acesso em: 8 nov. 2023. 37 Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero/ Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021. Dados eletrônicos (1 arquivo: PDF 132 páginas). Disponível em: http:// www.cnj.jus.br e www.enfam.jus.br e ISBN 978-65-88022-06-1 36 72 | Gênero, violência e estruturas de poder tenham cometido o crime com violência ou grave ameaça ou não tenha sido praticado o delito contra seu filho ou dependente. Ademais, para as mulheres gestantes ou mãe de crianças de até 12 (doze) anos o regime de cumprimento de pena deve ser mais favorável, ainda que tenham cometido crimes hediondos. Outrossim, foi excluída a expressão “poderá ser substituída” e adora a expressão “será substituída”, considerando a obrigatoriedade da substituição, não sendo uma faculdade dos magistrados38. A fim de analisar a aplicação de mecanismos que busquem evitar a violência de gênero de mulheres encarceradas no Brasil, foi realizada uma breve busca ao Banco de Sentenças de Decisões com aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, criado pelo próprio Conselho Nacional de Justiça 39 . Após selecionar o filtro “Direito Penal”, com o objetivo de analisar tão somente as decisões de processos criminais, obteve-se o resultado de 86 decisões contabilizadas desde a criação do banco de dados até o momento. No decorrer da busca, foram encontradas decisões majoritariamente envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, totalizando 78 decisões. Além disso, havia duas decisões de crimes de importunação sexual, duas de estupro, uma envolvendo questões de raça e outra sobre stalking. Foram localizadas tão somente duas decisões relevantes para a pesquisa em tela. O Banco de Sentenças e Decisões possui uma sentença do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (n.º 0000991-89.2018.8.26.0601), referente a um processo de homicídio, sendo qualificados no polo passivo um homem e uma mulher. Ao proferir a sentença frisa-se que o conceito de mulher é analisado pelo conceito de gênero e não pelo viés ideológico, razão pela qual a ré – e a vítima – seriam tratadas no decorrer da peça processual pelos seus devidos nomes.40 38 Ibidem. Conselho Nacional de Justiça. Banco de Sentenças de Decisões com aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=f3bb4296-6c88-4c1f-b3bb8a51e4268a58&sheet=03bb002c-6256-4b1d-9c93-a421f1bf8833&theme=horizon&lang=ptBR&opt=ctxmenu,currsel. Acesso em 27 de março de 2024. 40 São Paulo. Foro de Socorro – 1ª Vara. Ação penal n.º 0000991-89.2018.8.26.0601. 2018. Processo de competência do Tribunal do Júri. Sivonildo dos Santos e Jenifer de Souza versus Ministério Público do Estado. Socorro, 30 de janeiro de 2024. Banco de Sentenças de Decisões com aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Disponível em: https://formularios.cnj.jus.br/index.php?gf-download=2024%2F02%2FSentenca_FERNANDA-YUMI39 Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 73 Não obstante, o processo n.º 1504229-85.2023.8.26.0530, de origem do mesmo Tribunal, trata-se de um caso de tráfico de drogas nas dependências de estabelecimento prisional, onde a acusada estaria trazendo consigo 01 (um) invólucro plástico contendo o entorpecente cocaína, quando estaria prestes a visitar o seu companheiro na prisão. Diante das circunstâncias, a acusada confessou a prática do delito afirmando que aceitou levar a droga ao presídio em troca de uma remuneração de mil reais, o que, aliado as outras provas do processo, levou a condenação no crime de tráfico privilegiado, disposto no artigo 33, §4º, da Lei 11.343/06, tendo a pena diminuída ao máximo legal, totalizando em 01 (um) ano e 11 (onze) meses de reclusão e o pagamento de 193 (cento e noventa e três) diasmulta.41 Quanto ao regime de cumprimento de pena, ao prezar pelo princípio da individualização da pena e a partir da perspectiva de gênero, existente em virtude do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, a decisão considerou que a sentença estava sendo proferida a uma mulher e que, ainda, possui trabalho fixo, é mãe de três filhos e cuidadora da própria genitora, frisando que o Brasil é um país em que o dever de cuidado está sobrecarregado nas mulheres, vislumbrando a necessidade de aplicação de medidas restritivas de direitos que atendam as necessidades e a dinâmica da vida pessoal da sentenciada e daqueles que dependem dela.42 Por fim, a sentença substituiu a pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos de prestação pecuniária de um salário-mínimo, ainda que parcelável e a limitação de fim de semana, salvo de precisar deixar o lar para atender as necessidades de seus filhos ou de sua genitora, assim como, pelas mesmas FURUKA.pdf&form-id=467&fieldid=9&hash=cffc23cbb1e7ed838cd4b5ba4b3cbe13dd1fffcc965c6d791f7c7ac9f1871c41. Acesso em 27 de março de 2024. 41 São Paulo. Foro de Ribeirão Preto – 5ª Vara Criminal. Ação penal n.º 1504229-85.2023.8.26.0530. Procedimento Especial da Lei de Antitóxicos – Tráfico de Drogas e Condutas Afins. Jessyca Carolina Azevedo dos Santos versus Ministério Público do Estado. Juíza de Direito: Carolina Moreira Gama. Ribeirão Preto, 28 de fevereiro de 2024. Banco de Sentenças de Decisões com aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Disponível em: https://formularios.cnj.jus.br/index.php?gf-download=2024%2F02%2F1504229-85.2023sentenca_JOSE-ALBERTO-RICIOLI.pdf&form-id=467&fieldid=9&hash=16d09adf674559fab6c2618f858f02284545ace4978f211148a8fa711fc5b077. Acesso em 27 de março de 2024. 42 Ibidem. 74 | Gênero, violência e estruturas de poder razões já mencionadas, decretou a isenção do pagamento da significativa pena acumulada de multa.43 CONCLUSÃO Constata-se, portanto, que as mulheres – como sujeitos primários do trabalho reprodutivo, historicamente, assim como atualmente - dependem de mais acessos à recursos do que os homens e são as mais comprometidas quando se trata de suas defesas44, considerando todas as especificidades que as diferenciam de um homem. Assim, a perspectiva de gênero é imprescindível na busca – ao menos – da diminuição da violência de gênero, especialmente quanto se trata de mulheres apenadas, que estão com suas vozes anuladas pelo Estado. Todavia, nota-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo parece estar compreendendo de que forma o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero deve ser aplicado, já que a decisão do respectivo processo de Tráfico de Drogas poderia ser utilizada como um modelo aos outros Estados, tendo sido, além disso, o único Estado a ter alguma decisão dos tópicos em questão. Entretanto, necessário evidenciar a ausência de decisões sobre o tema em um banco de decisões e sentenças nacional, embora se tenha conhecimento do seu pouco tempo de existência, razão pela qual pode-se afirmar que o caminho para o reconhecimento dos direitos das mulheres, embora exista há muitos anos, está avançando em passos pequenos. REFERÊNCIA ANDRADE, V. R. P. (1997). Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos,18(35), 42-49. BECHARA, Ana Elisa. Pesquisa mostra que o Brasil tem terceira maior população carcerária feminina do mundo. 07 ago. 2023. Disponível em: 43 Ibidem. FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019. 388p. ISBN 978-85-93115-26-4. 44 Karoline Schoroeder Soares; Luíse Pereira Herzog | 75 https://jornal.usp.br/radio-usp/pesquisa-mostra-que-o-brasil-tem-terceira-maiorpopulacao-carceraria-feminina-do-mundo/. Acesso em? 25 mar. 2024. BORGES, Paulo César Corrêa. Direito penal democrático. 1. ed. São Paulo: Lemos e Cruz, 2005. BRASIL. Decreto n.º 40, de 15 de fevereiro de 1991. Brasília, 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm. Acesso em: 27 de março de 2024. BRASIL. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Brasília. 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 27 de março de 2024. BRASIL. 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Conselho Nacional de Justiça Regras de Bangkok: regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para as mulheres infratoras/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. 84 p. – (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834-011-3. 76 | Gênero, violência e estruturas de poder Conselho Nacional de Justiça Regras de Mandela: regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. 88 p. – (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834-012-0. Conselho Nacional de Justiça Regras de Tóquio: regras mínimas padrão das Nações Unidas para a elaboração de medidas não privativas de liberdade/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi Brasília: CNJ, 2016. 24 p – (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos) ISBN 978-85-5834-014-4. Conselho Nacional de Justiça. Banco de Sentenças de Decisões com aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=f3bb4296-6c88-4c1f-b3bb8a51e4268a58&sheet=03bb002c-6256-4b1d-9c93a421f1bf8833&theme=horizon&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel. Acesso em 27 de março de 2024. CÚNICO, S. D., BRASIL, M. V., & BARCINSKI, M. (2015). A maternidade no contexto do cárcere: uma revisão sistemática. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 15(2), 509-528. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S18084281201500020 0005&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 20 mar. 2024. 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Entretanto, tais estudos delimitaram-se a analisar a experiência feminina sob a ótica da esfera privada e das relações entre os gêneros que nela se articulam — dispensando assim, quaisquer outras possibilidades de vivências femininas historicamente, condicionando-as em lugares e narrativas exauridas pelo senso comum do saber histórico e pelas pesquisas acadêmicas. Apoiado por um conjunto de fontes primárias e estudos sobre a temática, este trabalho visa (re)pensar a historicidade da delinquência feminina e articular possibilidades de seu uso como categoria de análise para a ciência histórica, assim como, identificar outras alternativas de ser “mulher” ao longo da história. INTRODUÇÃO Pouco antes de findar o mês de novembro de 1957, conta a fonte judicial que uma mulher preta de nome Maria dos Santos2 atacou furiosamente com um copo o homem de nome João com quem bebia — a confusão teria ocorrido dentro do Bar Aimoré na Rua Voluntários da Pátria, estes, rua e estabelecimento já mal-afamados nas fontes e historicamente parte de espaços urbanos estigmatizados na cidade de Porto Alegre. A mulher teria agredido João no interior do estabelecimento munida de um copo que, ao acertá-lo, quebrou-se. João ferido no ombro esquerdo e apresentando sangramento evidente permaneceu no bar até a chegada de policiais. Com a chegada dos agentes da lei, instaurou-se a tentativa de captura da suposta autora dos ferimentos. Maria foi achada escondida nos banheiros aos fundos do bar 1 Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professora e desenvolve pesquisas em História Social do Crime e Estudos de Gênero. 2 APERS. Comarca de Porto Alegre. Vara de Execuções Criminais. Acondicionador 004.3609. Processo nº 416. 1957. 80 | Gênero, violência e estruturas de poder e de lá, carregada por três guardas (quem sabe sob puxões e apertos) foi levada com obstinada resistência para a caminhonete da rádio patrulha. Nos depoimentos dos guardas que atenderam o chamado do dono do bar, que em certa medida tentou conter as agressões com pouco sucesso, relatou-se que a acusada resistiu à prisão com pontapés, socos e “desacatando ainda com os piores nomes obscenos que lhe vinha a boca” (sic). Presa, por fim, Maria dos Santos, não passava de mais uma das mulheres que aos padrões de sua época lhes eram animalescas, patologicamente perturbadas por forças antinaturais que não condiziam nem um pouco com a sua natureza feminina. Nos depoimentos das testemunhas, de Maria e da vítima da agressão costurou-se no processo incriminatório que condenou-a à clausura no Instituto de Readaptação Feminina, atualmente o Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier, um percurso de relatos condenatórios. Não é certa a motivação que levou Maria a deferir golpes com um copo quebrado em João; precisamente a única menção de uma motivação circunstancial para tal atitude violenta por parte dela foi que havia sido por ciúmes. Motivação curiosa visto que a própria fonte menciona a vida de meretrício que ela levava e que ele era casado. Ciúmes do que ou de quem? Pensar que as agressões foram fruto apenas de circunstâncias casuais? Os atos de Maria foram algum tipo de revide a alguma investida desrespeitosa de João? Evidentemente, tais perguntas não foram levadas em conta pela polícia nem pela justiça. Após ficar presa por algum tempo, Maria foi solta sob algumas condições: arranjaria um trabalho convencional, “que não mais vai fazer a vida na zona da Voluntários e vai trabalhar numa casa de família, que se compromete a comparecer quinzenalmente a esta Vara e informar onde está trabalhando”. Para o juiz que permitiu sua liberdade, Maria era mulher e, a partir disso, precisava ser regenerada de seus comportamentos e práticas desviantes. Entende-se que para o aparelho social e jurídico-policial a constitucionalidade de uma mulher, no caso dela, era parcialmente infectada com comportamentos e formas de viver que não condiziam com seu gênero — a parcialidade é referida, pois, para seus julgadores, a biologia do corpo resgatava uma gama de valores atribuídos ao seu sexo-gênero, entretanto, eram atravessados pela cor de sua pele, o que resultava num emaranhado de interpretações possíveis. Bruna Cristina Oliveira Pupe | 81 Por parte da produção historiográfica, a delinquência feminina enquanto objeto de pesquisas é visualizada a partir da materialidade do fato criminoso praticado por uma mulher. O objetivo deste presente estudo é alçar a categoria de análise como uma ferramenta interpretativa de historicidades mais amplas da vida comum e do cotidiano, e não apenas como definidor explicativo de violências ou buscas sistemáticas que não visualizem possibilidades mais amplas de vivência de pessoas (nesse caso, especificamente, mulheres) para além do fato criminoso. Para nortear esse trabalho ou situar incômodos possíveis, alçamos alguns questionamentos que consideramos pertinentes: Maria subitamente iniciou os atos de agressão contra sua vítima? A possibilidade de ter usado a violência como uma reação pode ter sido uma faceta interpretativa do acontecimento? A agressão contra um homem foi o agravante dos julgamentos de sua prisão? O que nos denuncia quando para João, homem participante e vítima do delito, nada lhe foi questionado? NOTAS HISTORIOGRÁFICAS SOBRE O GÊNERO E VIOLÊNCIA A narrativa da história das mulheres sob o prisma das relações de violência já não é novidade nas ciências humanas, até mesmo quando concentradas nas pesquisas históricas. Inclusive, é através dessas pesquisas que põem-se em prática tentativas de situar as sujeitas em lugares visíveis nas relações sociais ao longo da história. Os trabalhos que são exemplo disso: A sexualização do crime no Brasil: um estudo sobre a criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (18901940) de Alessandra Rinaldi (2001) — que apesar de ser um trabalho antropológico, utiliza-se de preciosos elementos para a pesquisa histórica —, Criminalidade feminina: mulheres negras e os homicídios em Pelotas (1880-1890) de Geza Lisiane Carús Guedes (2014). Da pesquisa internacional evidenciam-se relevantes trabalhos para essa discussão, como, por exemplo, Mujeres delincuentes y imaginarios: criminología, cine y nota roja en Mexico (1940-1950) de Martha Santillán Esqueda (2017), Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais (2019) de Saidiya Hartman. Não pretende-se construir nesse trabalho uma genealogia da historiografia que 82 | Gênero, violência e estruturas de poder trabalhou sobre o tema ou congêneres, mas objetiva-se evidenciar os trabalhos que preocuparam-se com essa problemática. Partindo da premissa de estudar a criminalidade/delinquência feminina permite-nos acessar outras oportunidades de ser “mulher” ao longo da história, pretende-se que esse estudo seja provocador de questionamentos pertinentes para o campo de estudo da História Social do Crime e dos Estudos de Gênero. Para a construção teórica do tema escolhido, mapeou-se os estudos preexistentes sobre violência feminina e de gênero e relativos à marginalidade urbana. Percebeu-se que, a violência feminina e as mulheres delinquentes são raramente postas enquanto objetos de estudos pela produção historiográfica. Inaugurando a possibilidade enxergar as mulheres como sujeitas de violência o trabalho da antropóloga Maria Filomena Gregori (1992), Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista, nos ajuda a deslocar a mulher como apenas um “não-sujeito”3 nas relações de violência, quando elas são apenas visualizadas como vítimas dos casos de violência doméstica. Por mais que o trabalho fuja da temática proposta aqui, a autora auxilia-nos a compreender que, “entender que padrões distintos de comportamentos instituídos para homens e mulheres são atualizados nas relações interpessoais que são vividas como únicas”.4 Ou seja, não nos é palpável entender as atribuições sociais ao gênero enquanto rígidas, a variabilidade das práticas do feminino e masculino fogem das normas socialmente impostas. Na literatura pesquisada sobre as temáticas acima descritas, deparamo-nos com o trabalho de outra antropóloga Fabíola Rohden, Uma Ciência da Diferença: sexo e gênero na medicina da mulher (2001), que buscou analisar a contrução da diferenciação entre os sexos e gêneros que se produziu ao longo das transformações do século XIX, para tanto, partiu da premissa do discurso e prática médica para tal análise; o trabalho nos é de grande valia na medida em que analisa essa construção de diferenciação. Quando o relaciona com os fenômenos socioculturais do século XIX como um fator importante para as transformações 3 GREGORI, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 130. 4 Idem, p. 130. Bruna Cristina Oliveira Pupe | 83 relacionadas às relações de gênero vigentes (2001, p. 14) e, tendo em vista a temporalidade cultural das mentalidades, influenciaram o século seguinte. A similaridade de processos sofridos pelo período temporal pesquisado por Rohden (2001) vai de encontro com a possibilidade de se pensar como esses fenômenos macros influenciam na concepção de novas formas de atribuir “papéis” ao gênero. Adentrando no arcabouço dos estudos da literatura histórica que buscou centralizar a mulher criminosa no foco da análise deparamo-nos com os trabalhos de Alessandra Rinaldi (2004), Gesa Lisiane Carús Guedes (2014), Martha Santillán Esqueda (2017), Walter de Carvalho Braga Júnior (2018) e Paloma Almada Czapla (2021). Nessa etapa nos atemos a realizar uma filtragem de elencar os trabalhos que analisam as mulheres delinquentes/criminosas no contexto urbano. Na tese de Alessandra Rinaldi, intitulada A sexualização do crime no Brasil: um estudo sobre a criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (18901940) (2001), a autora analisa as maneiras com que se pensava os crimes femininos a partir do caso concreto das relações amorosas. Para tanto, ela busca analisar processos-crimes e produções literárias de profissionais do Direito e da Medicina, assim, conseguiu delinear uma pesquisa sobre o ato criminoso praticado por mulheres em si.. Rinaldi (2004) relata que os juristas e médicos da primeira metade do século XX influenciados pelo Positivismo do Direito e da Medicina, descreviam o crime como produto das inscrições biológicas dos indivíduos, mas acentuavam o papel do “meio” (sociedade) em sua produção, considerando-o, assim, resultado de uma espécie de combinação de “fatores internos e externos”. 5 Porquanto que, o trabalho da antropóloga Alessandra Rinaldi (2004) não seja um trabalho historiográfico, como dito anteriormente, a autora utiliza-se de elementos da pesquisa histórica para analisar seu objeto; e, para tanto, pela 5 RINALDI, Alessandra de Andrade. A sexualização do crime no Brasil: um estudo sobre criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (1890-1940). 2004. 206f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas e Saúde; Epidemiologia; Política, Planejamento e Administração em Saúde; Administração) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, p. 184. 84 | Gênero, violência e estruturas de poder importância dos seus resultados, contemplamos sua obra como de suma importância para a construção de conhecimentos relacionados à temática da criminalidade feminina. A historiadora Geza Lisiane Carús Guedes (2014) em sua dissertação Criminalidade feminina: mulheres negras e os homicídios em Pelotas (1880-1890) visou o estudo da criminalidade na cidade de Pelotas através de processos-crime em que mulheres negras, escravizadas ou libertas, situavam-se como rés de crimes de homicídio. Para tanto, ambientalizou o foco de sua análise tendo como pano de fundo contextual a transição do período imperial para o republicano. O trabalho funda-se na importância de elencar mulheres demarcadas pelo significante da raça e como isso influenciava na repercussão dos seus atos. Outro trabalho que visualiza a raça como recorte importante para o entendimento do “desvio feminino” é trabalho Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais (2019) de Saidiya Hartman que buscou relatar outras possibilidades de situar mulheres “desviantes” sob inéditas perspectivas análiticas que identificavam vivências que configuraram novas viabilidades de se existir em diferentes corpos e espaços. Através da “fabulação crítica”, a autora pretendeu narrar as vivências dessas mulheres do começo do século XX em Nova Iorque sem perpetuar essas experiências de vida como desvio, criminalidade e patologia que o poder imputou-lhes. A historiadora mexicana Martha Santillán Esqueda em seu artigo Mujeres delincuentes y imaginarios: criminología, cine y nota roja en Mexico (1940-1950) (2017) analisou as novas articulações da experiência feminina fora do espaço doméstico e como isso desencadeou o temor da sociedade em torno da desmoralização e degradação da condição das mulheres. Para tanto, a autora empreende um estudo sobre a representação das mulheres delinquentes no cinema e pela imprensa mexicana. Já o historiador Walter Carvalho B. Júnior na sua tese Mulheres criminosas: transgressão, violência e repressão na Fortaleza do século XIX (2018), sob a perspectiva de mulheres que não atendiam os critérios sociais de gênero da época, analisa o discurso construído em torno dessas sujeitas criminosas, tendo em vista os dispositivos reguladores de suas existências na urbe de Fortaleza. Bruna Cristina Oliveira Pupe | 85 A historiadora Paloma Almada Czapla na sua dissertação O corpo como campo de batalha: tramas de mulheres acusadas de homicídio (1930-1950) (2021) através de casos de assasinato praticados por mulheres no interior do Rio Grande do Sul analisou as condições histórico-culturais que possibilitaram esses crimes e como o sistema judicial baseava suas operações sob vieses dos imaginários herdados pela colonialidade e pela fundação sexista da sociedade brasileira. A invisibilidade da construção de sentidos e significados por parte de sujeitas femininas foi o fator principal para que essas pesquisas fossem vistas com maior atenção e cuidado. A insistência em situar as mulheres em “lugares” entre a narrativa histórica construída a partir das novas tendências historiográficas atribuem e demandam obrigações aos/as historiadores/as, a partir de novas percepções sobre objeto pretendido e das dinâmicas socialmente vividas e experienciadas por ele nos recortes temporais específicos, pois “se as diferenças entre homens e mulheres forem culturais, e não naturais, se ‘homem’ e ‘mulher’ forem papéis sociais, definidos e organizados de forma diversa em diferentes períodos, então os historiadores precisam explicitar o que quase sempre era deixado implícito na época, as regras ou convenções para ser mulher ou homem de determinada faixa etária ou grupo social em determinada região e período” 6 A convencionalidade da narrativa histórica, mesmo que recentemente construída, molda-se a partir de velhas centralidades simbólica que determinam lugares preestabelecidos para as mulheres, pois concentram-se nas relações domésticas como singularidades da experiência feminina ao longo da história; extinguindo inconscientemente quaisquer possibilidades de outras “vivências” 7 que descentralizassem suas produções e reproduções de significados e da materialidade social das trocas e atritos entre os gêneros que pudessem emergir nesses outros contextos. Sustenta-se o compartilhamento de incômodos parecidos com os que foram apresentados pela historiadora estadunidense Toby Ditz no artigo “The New Men's 6 BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2012, p. 86. OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG;. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004. 7 86 | Gênero, violência e estruturas de poder History and the Peculiar Absence of Gendered Power: Some Remedies from Early American Gender History” (2004) quando discutiu a presença de uma “supressão” do gênero dos homens ao longo das produções da historiografia tradicional; compartilha-se dos incômodos que sustentaram a crítica da historiadora sobre a ausência da análise do sujeito masculino enquanto objeto, quando a masculinidade não fora vista como produto histórico, tomou-se como a-histórico nem inato, dispensando quaisquer variabilidade temporal que a categoria pudesse ter — e, particularmente, referia-se a nova literatura sobre as masculinidades. Portanto, In the end, the new literature on the history of masculinity and menleaves us with the queasy feeling that, cumulatively, it risks replicating theoppressive omissions of conventional history. It is in danger of restoringmen – however particularised, differentiated and socially constructed – tothe centre of our historical narrative.8 É a partir dessas tentativas “bem intencionadas” que as mesmas narrativas ou a visitação dos mesmos lugares vão se materializando simbolicamente em discursos idênticos, porém, apresentados sob uma roupagem crítica. A roupagem crítica algumas vezes não é suficiente para qualificar e compreender quais são os pontos de referência que os novos, ou melhor, reciclados saberes da história corroboram com antigos simbolismos estruturais e prismas exauridos. Haja vista que, não defende-se aqui que seja preciso desvencilhar-se de qualquer análise histórica que objetiva estudar os lugares e sujeitos circunscritos nessas afirmações, mas sim, defende-se que seja preciso construir outros questionamentos e lapidar outros olhares sobre os mesmos objetos e contextos. É preciso que se empreenda uma “contranarrativa” 9 e que recrie-se as associações 8 Tradução própria: “No fim de contas, a nova literatura sobre a história da masculinidade e dos homens deixa-nos com a sensação inquietante de que, cumulativamente, corre o risco de reproduzir as omissões opressivas da história convencional. Corre o risco de devolver os homens - ainda que particularizados, diferenciados e socialmente construídos - ao centro da nossa narrativa histórica.” In: DITZ, Toby L. The new men´s history and the peculiar absence of gendered power: some remedies from early american gender history. Gender & History, vol. 16, no.1, abr. 2004. 9 HARTMAN, Saidiya. Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. Tradução de Floresta. São Paulo: Fósforo, 2022, p. 12. Bruna Cristina Oliveira Pupe | 87 que identificavam formas e práticas da vida marginal como patologia, desvio ou teratologia corpóreo-social. Vários são os produtos desses fetiches análiticos e cacoetes históricos, precoces mas já exauridos, como, por exemplo, a construção de uma hierarquia simbólica entre mulheres. Por mais que as experiências sócio-corporais dessas sujeitas materialmente vivenciam realidades distintas, possuindo oportunidades distantes de si de acordo com os demarcadores sociais que lhe atribuem estigmas, estereótipos, méritos e valor. Apesar das evidências que diferenciam essas experiências, algumas produções historiográficas reforçam tal ideia hierarquizante. Alguns trabalhos postulam, inconscientemente, a sobressaliência do espaço privado como predominante na experiência histórica das mulheres; visto que isso não é verdade nem regra, a historiadora Rachel Soihet já na década de 1980, no seu trabalho intitulado Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana (1890–1920), evidenciou as diferenças que apresentavam as vivências das mulheres das camadas populares da cidade do Rio de Janeiro, mulheres que em sua maioria eram pobres, negras e muitas vezes que transgrediram a normatividade historicamente situada. A partir desta pesquisa, é evidente que as narrativas que se construíram sobre a “história das mulheres”, apenas agiram sob a ótica das experiências históricas das mulheres integrantes das classes dominantes. Nessas ocorrências recorre-se à análise da violência como fator importante e significante apenas quando o corpo da mulher é a vítima. Preponderando-se que a experienciação desses corpos nesses lugares da esfera privada sofrem com violências específicas originadas da hierarquização dos gêneros. Entretanto, ampliando-se as possibilidades e novos mecanismos da vida social na esfera pública, se transforma as viabilidades das mulheres protagonizarem outras práticas e formas de ser. Rachel Soihet (2017) explica ao analisar as relações generificadas das camadas populares do início do século XX que, os homens pobres não conseguiam assumir o posto esperado de provedores da família, fazendo com que não exercessem o poder culturalmente delegado aos homens de dominação irrestrita sobre a mulher e daqueles que integravam as relações familiares. Nesse sentido, pode-se dizer que a estabilidade econômica influenciava na legitimidade das 88 | Gênero, violência e estruturas de poder posições de dominância masculina nos espaços privados. A violência surgia a partir de “uma demonstração de fraqueza e insegurança do que de força e poder”10 As práticas de liberdade protagonizadas pelas mulheres historicamente foram condenadas moralmente e criminalizadas pelo que está na lei. Expressamente, a transgressão das expectativas socioculturalmente estipuladas para as mulheres foram condenadas mesmo que não houvesse presente a violência. A violência subjetiva ou material não foi, nesse caso na legislação brasileira, o fator primordial para a condenação de práticas femininas. Qualquer conduta que partisse da experiência social feminina e transgredisse o regramento moral da ordem estabelecida era ação passivamente punível pela acusação-condenação da sociedade e pelos órgãos repressivos e de controle do Estado. FEMINILIDADE DELINQUENTE COMO SUBSTRATO HISTÓRICO Assim como a feminilidade é historicamente construída, a delinquência é um elemento taxativo e definidor de corpos e vivências socialmente construído. São esses os dois fatores que se mesclam quando gênero e delinquência cruzam-se após a apreensão de suas existências pelo poder11 ou quando relacionam-se nas trocas da vida social, criando-se, assim, imaginários e representações que lhes são atribuídos sistematicamente. Criminologicamente, a partir do fim do século XIX, construiu-se estudos que buscavam na antropologia e noutras justificativas características anatômicas, culturais e sociais que delineassem elementos constitutivos que puramente identificavam delinquentes natos. As teorias que foram construída com esse propósito eram evidenciadas nas obras clássicas da Criminologia Positivista de Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero, intituladas L’uomo delinquente (1876) e La donna delinquente la prostituta e la donna normale (1893). Há construções teóricas bastante duras sob a concepção positivista, pois, para os autores, a delinquência era um elemento patologizante para o corpo social e para a própria humanidade 10 SOIHET, Rachel.. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017 [1997], p. 370. 11 FOUCAULT, Michel de. A vida dos homens infames. In: Ditos e escritos IV: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 203-222. [1977]. Bruna Cristina Oliveira Pupe | 89 daqueles que cometiam quaisquer tipos de infração. A patologização e a criminalização de algumas práticas foram visualizadas como ferramentas dos aparatos repressivos do Estado para empreender projetos de vigilância e controle sobre os corpos femininos; porém, tais mecanismos falham porque eram direcionados para a mulheres das camadas populares, que não atendiam às expectativas da ordem burguesa estabelecida. A mulher delinquente não é unicamente àquela que reincidiu no sistema prisional. Neste trabalho compreende-se que o corpo feminino, dotado de potencialidades de vivências, e sua geração de significados cotidianos são receptores de elementos integradores da delinquência, que abrem-se brechas para a condenação/acusação social. Por mais que a detenção penitenciária (como foi o caso de Maria) por vezes seja utilizada como método de exclusão e conspurcação moral e social e, historicamente, assim a foi usada. Hoje, para as mulheres não é tão somente o enclausuramento que resulta nesses efeitos sociais. A delinquência imputada a essas sujeitas como estigma 12 reproduz e comprime suas vidas à vergonha social: rechaçando-as e as excluindo das possibilidades de acessar aspectos mais amplos da experienciação material da vivência. Ao tentar delinear a delinquência enquanto conceito, Foucault (2014 [1975]) atribui características contrastivas da pessoa infratora e da pessoa delinquente. Segundo Foucault, “o delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza”, ainda, “a introdução do biográfico é importante na história da penalidade. Porque ele faz existir o “criminoso” antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste”13. Parece-nos que os trechos supracitados evidenciam o que se quer defender neste trabalho, de que a delinquência é um elemento da vida social mais amplo do que um ato infracional, por vezes, de ocorrência isolada. Para o conceito de delinquência aqui defendido, a infração é apenas um método de vivenciar o cotidiano sob as estruturas nas quais o sujeito está subjugado; isto é, nesse sentido, a delinquência poderá também se valer de outros mecanismos de exclusão como, por 12 GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980. 13 FOUCAULT, M. . Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 2014 [1975], p. 180. 90 | Gênero, violência e estruturas de poder exemplo, a estigmatização e a marginalização. Atenta-se para a diferença do atoefeito que delinquência exerce em contraste com essas outras dinâmicas sociais de exclusão. Por fim, pode-se dizer que a delinquência elenca tais processos como formadores do que o próprio conceito é. O biográfico, o qual identificou Foucault, durante o processo penal é apenas instrumentalizado na construção da culpa por parte do acusado, diferentemente da vítima que não é questionada com afinco sobre possíveis ação-reação de uma possível conduta de si mesmo, como foi o caso do inquérito que apresentamos no início deste trabalho. Sobre a sujeita acusada das agressões, ao longo do processo criminalizante, buscou-se justificar seu ato e, por consequência, sua culpa, através do seu histórico de desvio. As práticas cotidianas de Maria, sua prática laboral que era relacionada à sua sexualidade, sua pobreza e sua cor foram os elementos preconcebidos que justificaram e deram fundamento para as acusações de delinquente que acusaram-na. Portanto, compreende-se que, a delinquência é um atributo socialmente metafísico, irrestrito ao discurso e às representações, já que exerce influência na dinâmica material da vida social de determinados indivíduos e grupos. Discursivamente, constrói-se uma cultura delinquente, formada por elementos e atributos próprios, como — a violência como nexo das relações sociais dadas nos espaços de marginalidade e a transgressão da lei como prática do cotidiano. Obviamente que, nesse sentido, a lei não é o único fator passível de transgressão, mas, também, as convenções socioculturais são objetos passíveis de serem corrompidos. Para adequação da apreensão do conceito em vista as relações de gênero e étnico-raciais, visualiza-se que existam elementos constitutivos de identidade preconcebidos que fundamentam a imputação da delinquência como representação do espaço e função social que determinada pessoa ou grupo representa socialmente. Isto é, a delinquência vai de encontro ao que Goffman identifica como “identidade social virtual”14. 14 GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980. Bruna Cristina Oliveira Pupe | 91 Visto isso, a feminilidade e a mulheridade por serem historicamente construídas carregam consigo atributos identitários imputados a si e por si. Historicamente, nas sociedades ocidentais criou-se uma normatividade imposto do que seria correto ser mulher. A amabilidade, o recato desejado, a vocação para o cuidado e a manutenção das relações privadas, a autocensura e a fragilidade são alguns dos atributos socialmente aceitos para definir o que é ser mulher nas sociedades modernas. A historiadora Paloma Czapla demonstra que, as características desejadas em relação ao ser mulher criaram [...] um modelo que dizia respeito a como o corpo feminino deveria ser, ou a como esses homens gostariam que fosse. De acordo com essa imagem, uma mulher “normal” era alguém que obedecia ao homem; que era branca, submissa, materna e recatada. Era uma quimera. É uma quimera construída por teorias médicas e científicas europeias elaboradas na segunda metade do século XIX, que se pautaram pela biologia e fizeram com que aquelas que não correspondiam ao ideal de feminilidade moderno fossem relegadas ao terreno da degeneração, da animalidade e da loucura. 15 Para tanto, o desvio desse modelo de mulheridade era visto como afronta a marcadores biológicos inatos ao corpo feminino. O fato era que o controle e a vigilância não eram somente produtos de uma preocupação societária para com o corpo feminino; ser mulher era visto como algo mais amplo, estava intrinsecamente relacionado às formas que está sujeita se relaciona interpessoalmente no seu meio social. O que a mulher faria com o seu corpo, como respostas aos estímulos cotidianos, e como ela o utilizaria como meio das relações sociais nas quais ela estava imbricada eram os fatores justificáveis para a vigilância e controle por parte da dominação simbólica do masculino. Nesse sentido, Boris Fausto escreve que, a criminalidade feminina, quando vigiada pelo sistema prisional e policial, não identificava-se no início do século XX como “produtora de vítimas”, pelo contrário, as infrações dadas ao cabo por 15 CZAPLA, Paloma Almada. O corpo como campo de batalha: tramas de mulheres acusadas de homicídio (1930-1950). 2021. 172f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em História, 2021, p. 112. 92 | Gênero, violência e estruturas de poder mulheres eram transgressões da lei sem vítimas 16 , ou seja, as prisões eram efetivadas a partir da punição a comportamento desviantes e indesejáveis para a ordem social estabelecida estruturalmente. Isso não significa que as mulheres, em menor número, foram acusadas de infrações relativas ao dano da integridade de outrem (homicídios, lesões, etc) ou até mesmo ao dano de propriedade alheia (furtos, roubos, etc). O interesse deste trabalho não é a visualização dos motivos ou da existência dos crimes praticados por mulheres ao longo da história, mas é empreender uma tentativa de articular questionamentos que possibilitem o acesso às narrativas de vida cotidiana de mulheres delinquentes. Visto isso, compreende-se, portanto, que a delinquência assim como a feminilidade são relativas aos corpos que os carregam enquanto estigma e identidade social real ou virtual. Pois, as consequências da delinquenciação apresentarão dinâmicas e produtos imagéticos e de vivência material distintos quando relativos aos demarcadores sociais e culturais dos indivíduos que estão sofrendo com esse processo de exclusão ou sendo taxados com a repulsa e vergonha social. Alguns corpos nasceram destinados à delinquência visto as bases taxativas da sociedade; dificilmente conseguirão se desvencilhar de imputações estruturais que o nascimento, fatores biológicos ou comportamentais lhe atribuem. Postas as definições elementares do conceito de delinquência, visualizamos a sua extensionalidade a ponto de torná-lo categoria de análise para a história social; a partir dos atravessamentos importantes com o gênero. As mulheres pobres inseridas nas engrenagens cotidianas que rompiam com as expectativas que lhe foram impostas pelas classes dominantes, articulam-se noutras perspectivas de trabalho, consumo dos espaços públicos e nas relações sociais que fogem das limitações doméstico-privadas. Nos limites entre as práticas populares e os comportamentos delinquentes, entendidos aqui, existe uma fronteira bastante frágil e, que, a depender dos discursos e representações imputadas a esses grupos, podem facilmente serem confundidas e fundidas em concepções similares. 16 FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2ª ed. - São Paulo, Edusp, 2001, p. 88. Bruna Cristina Oliveira Pupe | 93 O olhar historiográfico sobre o fazer delinquente de sujeitas femininas deve se despir de uma monomania que enrijece o conteúdo discursivo que caracteriza tais vivências apenas tendo como eixo significante a violência. Sem dúvida que nas relações cotidianas de mulheres transgressoras, a violência esteja presente direta ou indiretamente. Porém, a violência é somente mais um dos elementos que direcionam o caráter de cada experiência vivida por essas sujeitas — existem outros elementos abstratos e psicológicos que definem as experiências corpóreo-sociais que as sujeitas terão contato, contextualizadas em seu tempo histórico e circunscrição cultural. A realidade social delinquente não apresenta flexibilidade em atender expectativas das quais atenderiam o eixo circunstancial da violência, mas coexistem num emaranhado de significados e consumo das relações interpessoais e espaciais que são carregadas de sentidos mais comuns: afetos, solidariedades, amizades e anseios de justiça à sua própria maneira. A dimensão social das mulheres delinquentes em seu contexto histórico e cultural não deve ser medida a partir das limitações de suas vidas. A delinquência feminina exige uma ampla visualização de suas facetas, sua performance interfere tal qual um caleidoscópio social, por exemplo, habitam essas mulheres no cotidiano normativo das “mulheres de família”, visto que, os estigmas que as designam constroem todo um arcabouço representativo que cria a concepção da “outra”, aquilo que essas outras mulheres não devem ser. Portanto, a existência de mulheres que assumem comportamentos dissidentes e performam outras maneiras de feminilidade corresponde a elementos subjetivos e simbólicos que rompem com os limites da normatividade e com cotidianos corrompidos pelo que eram vistos, e ainda hoje considerados, como patologias sociais. A embriaguez, a linguagem hostil e ácida, o distanciamento para com expectativas de delicadeza convencionada, o uso do corpo como meio de trabalho, a vida desregrada que eventualmente adotava métodos delituosos de resistência à pobreza e às violências lhes eram imputadas, são alguns dos elementos constitutivos da delinquência feminina. 94 | Gênero, violência e estruturas de poder CONSIDERAÇÕES FINAIS Escrever a história de vozes silenciadas é por muitas vezes um trabalho árduo e minucioso de análise de sussurros. As poucas e, às vezes, raras fontes que registram no tempo a existência desses grupos e pessoas comuns são pequenos registros que não permitem com que tais pessoas caìam no esquecimento; mas o efeito pode ser catastroficamente o inverso se essas fontes sejam inacessíveis ou desprezadas por olhares descuidados. Historicizar as vidas comuns, proporcionar espaços de relevância à luz do conhecimento histórico, dar utilidade a registros de vidas para o entendimento da história requer prudências redobradas. No caso de tantas Marias, mulheres sem paradeiro, vadias desocupadas, mulheres “carne de pescoço”, calejadas pela sua história: circundam no trabalho de utilizar-se dessas narrativas, imputadas a elas, um limite muito tênue e quase invísivel de como se desvencilhar das violências e representações que lhes foram imputadas pelas fontes. O objetivo central deste trabalho foi suscitar questionamentos e elucidar alguns porquês, situar as vivências das mulheres delinquentes como pertencentes a algum lugar da história, da própria história e da história dos espaços em que viveu. Para longe da experiência constrangedora e aspetos difamantes em que suas vidas, ou melhor, parte delas, foram capturadas pelo poder institucional da polícia e da justiça criminal, a utilização da categoria de análise delinquência feminina deve, invariavelmente, servir como um método humanizador; servirá como suporte para os profissionais interessados em não deixar que mulheres marginalizadas em sua época não caiam no esquecimento. É costurar novas narrativas que se preocupem com a crítica dos fatos e problematizem as identidades sociais virtuais que lhes foram atribuídas por sujeitos privilegiados pelas estruturas sociais de poder. FONTE PRIMÁRIA APERS. Comarca de Porto Alegre. Vara de Execuções Criminais. Acondicionador 004.3609. Processo nº 416. 1957. Bruna Cristina Oliveira Pupe | 95 BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Rosemary de Oliveira. Mulheres que matam: universo imaginário do crime no feminino. Relume Dumará: UFRJ. Núcleo de Antropologia Política, 2001. BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2012. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: vol. 1 - Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012. CZAPLA, Paloma Almada. O corpo como campo de batalha: tramas de mulheres acusadas de homicídio (1930-1950). 2021. 172f. Dissertação (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em História, 2021. DITZ, Toby L. The new men´s history and the peculiar absence of gendered power: some remedies from early american gender history. Gender & History, vol. 16, no.1, abr. 2004. ESQUEDA, Martha Santillán. Mujeres delincuentes e imaginarios. Criminología, cine y nota roja en México, 1940-1950. Varia historia, v. 33, p. 389-418, 2017. 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Campinas: Editora da Unicamp, 2012. 5. A MOBILIZAÇÃO CONSERVADORA SOBRE OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: UMA ANÁLISE DAS RESISTÊNCIAS NOS PROJETOS DE MARIELLE FRANCO https://doi.org/10.36592/9786554601566-05 Iara Amora dos Santos1 Carolina Cagetti2 RESUMO Este artigo tem como objetivo relatar as reações conservadoras relativas aos direitos sexuais e reprodutivos na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no contexto de projetos de leis apresentados por Marielle Franco, em especial o que dispõe sobre a “Fixação de Cartaz Informativo Sobre o Atendimento de Saúde em Casos de Violência Sexual” (PL 442/17 3 ). Sua derrota, em março de 2023, foi resultado de uma mobilização conservadora que direcionou o embate político exclusivamente para a questão do aborto. A construção e votação do Projeto de Lei 442/17 que trata de reprodução e da distribuição de cartaz informativo sobre o atendimento de saúde em casos de violência sexual nos serviços públicos municipais do Rio de Janeiro proposta originalmente apresentada por Marielle Franco e posteriormente reapresentada pela Vereadora Monica Benicio - foi aqui utilizada como estudo de caso. A pesquisa adota uma abordagem qualitativa, envolvendo a análise de documentos, vídeos, atas e registros das sessões de votação, além de materiais de comunicação e publicações produzidas pelos mandatos das Vereadoras Marielle Franco e Monica Benicio. Através do mesmo, visa-se contribuir para o entendimento do embate entre os movimentos conservadores e a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, ressaltando a importância de políticas públicas que garantam o acesso às informações e serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva, especialmente em casos de violência sexual. Palavras-chaves: câmara municipal do rio de janeiro; projetos de lei; violência sexual; aborto; marielle franco. 1 Graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos na UFRJ. Trabalhou como coordenadora de projetos na CAMTRA e atualmente trabalha como assessora parlamentar da Vereadora Monica Benicio. E-mail: iaraamoradossantos@gmail.com. 2 Graduação em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio) e mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Sapienza de Roma. Pesquisa feminismos e direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e na Itália, com ênfase na questao do aborto. E-mail: carolcagetti@gmail.com. 3 CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 442/17. Disponível em: https://aplicnt.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro2124.nsf/0325864700576d2603257735005e b2bc/0325864700576d26832581a700770238?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024. 100 | Gênero, violência e estruturas de poder Introdução Sexualidade e gênero são centrais nas disputas políticas e na construção da democracia, sendo articuladores de regimes morais, políticos e jurídicos, e expressões de conflitos sociais relacionados à raça, classe, geração e territorialidade. A ofensiva conservadora direcionada aos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil se expandiu para diversos âmbitos, contando com respaldo presidencial entre os anos de 2019 a 20224. Ao longo da última década, o movimento feminista tem denunciado esta crescente ofensiva conservadora direcionada aos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, bem como tem resistido às iniciativas que visam retroceder tais direitos 5 . Biroli destaca que a atuação de grupos religiosos no Congresso Nacional - que tem como prioridade em sua agenda os comportamentos sexuais e a configuração de família - é um dos elementos centrais nas batalhas morais em curso. Além disso, os mesmos têm como batalha principal a promoção de retrocessos na legislação existente e nas condições de acesso ao aborto, assim como nos direitos sexuais incluindo o embarreiramento ao acesso à educação sexual nas escolas6. No entanto, essa ofensiva não se limita ao âmbito nacional, estendendo-se a ações coordenadas dos setores conservadores nas casas legislativas federal, estaduais e municipais. Uma das ações de maior expressividade foi a articulação conservadora para retirada das questões de gênero do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2014, que também se estendeu para os Planos Estaduais e Municipais, resultando na eliminação da palavra gênero nos planos de educação de diversos municípios brasileiros7. Este se tornou um marco da atuação desses grupos para impedir as discussões de gênero e sexualidade nas escolas. Desde 2014, período da discussão e aprovação do atual Plano Nacional de Educação, o Escola sem Partido 4 CAGETTI, Carolina. Uma luta contínua feminista: o processo de legalização do aborto e de garantia de acesso no Brasil e na Itália. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Università degli Studi di Roma La Sapienza. Rio de Janeiro, 2023. 5 Ibdem 6 BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades limites da democracia no Brasil. Boitempo, São Paulo, 2018. 7 Ibidem Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 101 e as bancadas religiosas propuseram projetos de lei que estão sendo apresentados, nos estados e municípios, com nomes variados, mas com os mesmos objetivos8. Essa dinâmica destaca como a sexualidade e o gênero atravessam a esfera política, alvos de disputas e mobilizações. Neste cenário, nos dedicamos ao estudo de caso da mobilização conservadora contra informações acerca do aborto legal que culminou na derrota do Projeto de Lei 442/17 que dispõe sobre a “Fixação de Cartaz Informativo Sobre o Atendimento de Saúde em Casos de Violência Sexual”, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Para o movimento religioso conservador, hoje os temas centrais são a defesa do modelo de família "natural" e do papel tradicional da mulher, e a consequente oposição aos direitos sexuais e reprodutivos (Vaggione, 2005). Nesse contexto, o aborto, como última instância da capacidade das mulheres para tomar decisões sobre sua vida reprodutiva, representa na América Latina "a fronteira do direito de decidir” (Lamas, 2001).9 Entre os 397 projetos de lei sobre os direitos das mulheres em tramitação no Congresso Nacional, em 2022, e analisados pelo Radar Feminista, 40 foram classificados como contrários aos direitos das mulheres. Dentre estes, dezessete visam restringir ou extinguir o direito à interrupção voluntária da gravidez; onze têm por objetivo restringir direitos da população LGBTQIAP+ ou abordam questões ligadas à sexualidade de forma conservadora e preconceituosa10. Esta atuação para retroceder ou obstaculizar direitos também acontece nas casas legislativas locais, como na mobilização conservadora ao PL 442/17, estudo de caso do presente artigo. No contexto das transições à democracia na América Latina, a Igreja tem tentado influir nos processos constituintes, a fim de lograr a incorporação desta cláusula nas constituições nacionais (Pitanguy, 2011, p. 39). Emblemático nesse sentido foi o lobby 8 SEPULVEDA, José Antonio. SEPULVEDA, Denize. Conservadorismo e seus Impactos no currículo Escolar. In: Currículo sem Fronteiras, v. 19, n. 3, p. 868-892, set./dez. 2019. 9 RUIBAL, Alba M. Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização em torno dos direitos reprodutivos na América Latina. Rev. Bras. Ciênc. Polít. (14) • May-Aug 2014, p.111-112. 10 CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. Mulheres e resistência no Congresso Nacional: radar feminista ao término da legislatura 2019-2022. 1. ed. - Brasília, DF. 2023. 102 | Gênero, violência e estruturas de poder realizado pela Igreja durante a Convenção Constituinte no Brasil, em 1988, assim como na Colômbia (1991) e na Argentina (1994), com o objetivo de introduzir uma cláusula constitucional de proteção da vida desde a concepção. Nesses casos, a mobilização feminista logrou impedir o avanço religioso sobre os textos constitucionais. Mais recentemente, o ativismo conservador tem orientado sua atenção à política em nível subnacional, por exemplo, para impedir a implementação de serviços de aborto dentro dos limites permitidos pela lei, ou para judicializar casos de aborto não puníveis. 11 (Grifos nossos) A aprovação de leis municipais ou estaduais com iniciativas para obstaculizar ou levar mulheres a abrir mão do direito ao aborto legal têm chamado a atenção de instituições que monitoram esse atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Um dos exemplos mais recentes, foi a aprovação de uma lei que obrigava mulheres em situações de aborto legal a verem a imagem do feto, agora já revogada pela Justiça de Alagoas.12 Direitos Sexuais e Reprodutivos no Mandato de Marielle Franco Marielle Franco, foi eleita em 2016, com 46.502 votos, sendo a quinta parlamentar e a segunda mulher mais votada da cidade do Rio de Janeiro. Sua eleição ocorreu no bojo do crescimento dos movimentos feministas no Brasil e debates sobre repesentatividade, impulsionados pela Primavera Feminista de 2015. Assim, nas eleições de 2016, observou-se um aumento de eleições de mulheres pelo Brasil, assim como votações de mulheres negras posicionadas no campo feminista e de esquerda, com grande expressão, como Aurea Carolina, em Belo Horizonte, Talíria Petrone, em Niterói, e a própria Marielle Franco, no Rio de Janeiro. 11 RUIBAL, Alba M. Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização em torno dos direitos reprodutivos na América Latina. Rev. Bras. Ciênc. Polít. (14) • May-Aug 2014, p.116. 12 SININBÚ, Fabíola. Leis municipais e estaduais dificultam acesso ao aborto legal. Repórter da Agência Brasil - Brasília, 23 de Janeiro de 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2024-01/leis-municipais-e-estaduais-dificultamacesso-ao-aborto-legal Acesso em: 10 mar. 2024. Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 103 Neste contexto, Marielle Franco se elegeu com uma pauta feminista, socialista, antiracista e em defesa dos direitos humanos, sendo os direitos sexuais e reprodutivos um dos eixos de atuação de seu mandato. Em um ano e três meses de atuação, Marielle apresentou dezesseis projetos de lei, sendo que, cinco desses versavam a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos: PL16/2017 - Institui o Programa de Atenção Humanizada ao Aborto Legal e Judicialmente Autorizado no Ambito do Município do Rio de Janeiro 13; PL 72/2017 - Inclui o Dia de Luta contra a Homofobia, Lesbofobia, Bifobia e Transfobia no Calendário Oficial da Cidade do Rio de Janeiro14; PL 82/2017 - Inclui o Dia da Visibilidade Lésbica no Calendário Oficial da Cidade do Rio de Janeiro15; PL 265/2017 - Estabelece Diretrizes para a criação do Programa de Centro de Parto Normal e Casas de Parto, para atendimento a mulher no período gravídico-puerperal16; e o PL 442/2017 - Dispõe sobre Fixação de Cartaz Informativo nos Serviços Públicos do Município do Rio de Janeiro. O projeto das Casas de Parto foi aprovado ainda em seu primeiro ano de mandato e o projeto de lei que instituia o Dia Municipal da Visibilidade Lésbica foi derrotado ainda durante o seu mandato. Após o seu brutal assassinato, todos os seus projetos de lei foram colocados em votação em uma sessão de homenagem a mesma. No entanto, por falta de acordo entre os vereadores, foram deixados de fora todos os seus projetos que versavam sobre direitos sexuais e reprodutivos, dentre estes o PL 442/17. 13 CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 16/17. Disponível em: https://aplicnt.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1720.nsf/0cfaa89fb497093603257735005e b2bc/2a88c90e900fa52d832580c800544af5?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024. 14 CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 72/17. Disponível em: https://aplicnt.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1720.nsf/249cb321f1796526032577590052 3a42/d91611b0a62b7fc6832580de005bb1f2?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024. 15 CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 82/17. Disponível em: https://mail.camara.rj.gov.br/Apl/Legislativos/scpro1720.nsf/f6d54a9bf09ac233032579de006bfef6 /a29ca84abd38c4ad832580de00664201?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024. 16 CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 265/17. Disponível em: https://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1720.nsf/0cfaa89fb497093603257735005eb2 bc/5d01d5c73ff44f008325813000750f61?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024. 104 | Gênero, violência e estruturas de poder PL 442/12 - Dispõe sobre Fixação de Cartaz Informativo nos Serviços Públicos do Município do Rio de Janeiro O PL 442/17 foi fruto do Grupo de Trabalho sobre Mortalidade Materna, instituído pela Comissão de Defesa da Mulher da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, a qual Marielle Franco presidiu desde o seu primeiro ano de mandato. Instituído no debate público: “Mortalidade Materna: Uma análise da situação no Município do Rio de Janeiro”, contava com a participação da Sociedade Civil e Poder Executivo, sendo composto pela Superintendência de Hospitais Pediátricos e Maternidades do Município do Rio de Janeiro; profissionais da Secretaria Municipal de Saúde; Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro; profissionais da área de Saúde da Mulher; setores da Sociedade Civil Organizada, tais como a Dra. Leila Adesse (médica sanitarista, doutora em Saúde da Mulher, Adolescente e Criança (IFF/ FIOCRUZ) e diretora da Ong Aids); representação da ONG Criola; e representação da ADOULASRJ. Este grupo de Trabalho Mortalidade Materna atuou entre maio e dezembro de 2017, e apontou como sínteses para o enfrentamento da mortalidade materna no município: a importância do acesso da população às informações de qualidade acerca dos seus direitos; a necessidade da formação profissional constante; o combate à violência obstétrica e ao racismo institucional, apontado como um forte elemento da manutenção dos altos índices de mortalidade materna na cidade. Outro importante apontamento foi a necessidade de enfrentar os altos índices de mortalidade materna por aborto na Cidade do Rio de Janeiro. Diante da esfera de atuação municipal optou-se por investir na informação e acesso das mulheres aos serviços de aborto legal. Neste sentido, o GT produziu um cartaz informativo direcionado a vítimas de violência sexual em parceria com as Secretarias Municipais de Saúde, Assistência Social e Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, com informações sobre atendimento de saúde, profilaxia e aborto legal. Este cartaz passou a ser distribuído pelos órgãos e instituições nos serviços de saúde, de atendimento às mulheres e outros17. 17 CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Relatório da Comissão de Defesa da Mulher. Período Março de 2017 a Março de 2018. Disponível em: Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 105 Esta produção ensejou a apresentação do PL 442/2017 com a finalidade de que o poder executivo municipal assumisse a responsabilidade de reprodução e distribuição dos cartazes com informações sobre os direitos das mulheres vítimas de violência sexual, em lugares visíveis nos serviços públicos de atendimento às mulheres. O Projeto de Lei apontava como conteúdo para o cartaz: Em caso de violência sexual, não fique sozinha! Dirija-se a Unidade Básica de Saúde ou Hospital de Emergência mais próximo. Você tem direito ao atendimento emergencial e integral de saúde em toda a rede pública, incluindo a prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis, HIV/AIDS, Contracepção de emergência e Gravidez (Lei 12.845/2013). Em caso de uma gravidez decorrente de estupro, você tem direito ao aborto permitido por Lei (art. 128, II do Código Penal). Não é necessário o Registro de Ocorrência ou Autorização Judicial para esse tipo de atendimento. 18 A justificativa do Projeto de Lei apontava os índices de violência sexual, a subnotificação do mesmo e a necessidade da produção de políticas públicas de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual. A cada 11 minutos é registrado um caso de estupro no Brasil (9º Anúario Brasileiro de Segurança Pública). O Dossiê Mulher constatou que foram registrados 4.705 casos de estupro no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2016. O equivalente a um estupro a cada 2 horas. Desses, 32% dos casos foram registrados no município do Rio de Janeiro [...] A pesquisa Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, produzida pelo Ipea, aponta que apenas 10% de casos notificados são registrados nas delegacias.” e a necessidade de políticas públicas para o atendimento as mulheres em situação de violência sexual e o desconhecimento das mulheres sobre esses direitos [...]. Diante deste quadro, é evidente a necessidade de políticas públicas que garantam o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, a atenção integral à sua saúde e direitos. Em especial, os direitos previstos na Lei 12.845/2013, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual e ao aborto legal previsto no art. 128, II, CP). Apesar destas garantias legais muitas mulheres desconhecem os direitos previstos nesta legislação ou a forma de acesso aos mesmos. https://issuu.com/mariellefranco/docs/relatorio_comissao_da_mulher__1_. Acesso em: 5 mar. 2024. 18 CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 442/17. Disponível em: https://aplicnt.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro2124.nsf/0325864700576d2603257735005e b2bc/0325864700576d26832581a700770238?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024. 106 | Gênero, violência e estruturas de poder Fazendo-se necessário o presente projeto de lei, que visa a ampliação das informações das mulheres.19 Ou seja, resta evidente que o projeto de lei tinha por objetivo promover o acesso a informações de direitos já garantidos pela legislação brasileira no atendimento à vítimas de violência sexual. Assim, buscava incidir sobre os obstáculos que afastam as mulheres dos serviços de saúde, como a falta de informações e/ou informações equivocadas, como por exemplo, a crença de que se necessite ter o boletim de ocorrência para acessar tais serviços. Como já mencionado anteriormente, o PL 442/17, assim como outros que versavam sobre direitos sexuais e reprodutivos, não foi votado. O mesmo foi arquivado no ano de 2020, final da legislatura para a qual Marielle Franco havia sido eleita. No entanto, no ano de 2021, a Vereadora Monica Benicio, viúva de Marielle Franco, desarquivou o PL 442/17 e os outros projetos deste campo, como uma das primeiras iniciativas de seu mandato. Sendo votado e derrotado em março de 2023 por uma mobilização conservadora contrária às informações relacionadas ao aborto legal, o debate sobre o objetivo do projeto de lei foi desvirtuado, gerando uma polarização sobre o tema do aborto em específico. Mobilização conservadora contra o aborto Em dois de março de 2023, ocorreu a primeira votação do Projeto de Lei 442/17 na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, resultando em sua aprovação com uma significativa maioria de votos. Consequentemente, conforme estipulado pelo Regime Interno da Câmara Municipal do Rio de Janeiro (art. 236), o projeto foi encaminhado para a segunda votação. A seguir, citaremos e analisaremos falas e posicionamentos das vereadoras e vereadores durante as sessões de discussão do Projeto de Lei na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.20 Por uma decisão política de não destacar lideranças do campo 19 20 Ibdem TV Câmara. Sessão Plenária 02.03.23. Disponível em: Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 107 conservador, optamos por não mencionar seus nomes diretamente e referenciar os mesmos através de numeração. Naquela ocasião, não houve qualquer oposição ao projeto. As Vereadoras Monica Benicio, Luciana Boiteux e Monica Cunha fizeram declarações de voto, ressaltando a importância desta votação como um seguimento do trabalho e legado de Marielle Franco. Elas expressaram apoio ao objetivo do PL, que visa garantir os direitos de meninas e mulheres vítimas de violência sexual, e enfatizaram a relevância deste evento, especialmente considerando o mês do Dia Internacional de Luta das Mulheres. Antes da segunda votação, foram propostas duas emendas com o intuito de modificar o conteúdo do cartaz conforme previsto no projeto original. A Emenda nº 1 tinha como objetivo remover a frase "Não é necessário o Registro de Ocorrência ou Autorização Judicial para esse tipo de atendimento" do conteúdo do cartaz. Por sua vez, a Emenda nº 2 propunha reduzir o conteúdo do cartaz para: Em caso de violência sexual, não fique sozinha: Dirija-se a Unidade Básica de Saúde ou Hospital de Emergência mais próximo. Você tem direito ao atendimento emergencial e integral à saúde em toda a Rede Pública e Denuncie, dirigindo-se a uma Delegacia Especial de Atendimento à Mulher.21 Assim, as menções à contracepção de emergência e ao aborto legal foram completamente removidas, e a denúncia à delegacia foi enfatizada. No caso de emendas apresentadas durante o processo de votação de um projeto de lei, o Regimento Interno da Câmara Municipal estipulou que o projeto retornasse às comissões designadas para análise e emissão de parecer, o que https://www.youtube.com/watch?v=cL6SmkghnX0&list=PL_jAEsgySjj767aqBf8hptlk_LXJpZRK&index=107. Acesso em: 5 mar. 2024. TV Câmara. Sessão Plenária 28.03.23. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7fZYZBofZVE&list=PL_jAEsgySjj6oEZCF_xwPf5xZ1vKKMON&index=93. Acesso em: 5 mar. 2024. TV Câmara. Sessão Plenária 30.03.23. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xJU068r0lEg&list=PL_jAEsgySjj6oEZCF_xwPf5xZ1vKKMON&index=91. Acesso em: 5 mar. 2024. 21 CÂMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei 442/17. Emenda Nº 2. Disponível em: https://aplicnt.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro2124.nsf/ab87ae0e15e7dddd032586320056 9395/e1799377835609db0325897b0052781f?OpenDocument. Acesso em: 10 mar. 2024. 108 | Gênero, violência e estruturas de poder resultou na retirada do projeto da pauta de votação. Para assegurar a continuidade da votação do PL 442/17, foi elaborado um acordo que contou com a assinatura conjunta de todas as comissões envolvidas nas emendas. Esse acordo evitou a necessidade de aguardar o prazo regimental para o retorno do projeto à pauta. Em 28 de março de 2023, o PL 442/17 foi submetido à votação em segunda discussão. Diferentemente da primeira votação, houve uma intensa mobilização por parte de setores conservadores para a sua não aprovação, manifestando posicionamentos contrários ao aborto, embora este não fosse o objeto principal do projeto de lei em questão. O debate em torno do PL 442/17 se prolongou por duas sessões de votação, caracterizadas por um intenso embate entre setores conservadores e progressistas. Esse confronto se manifestou não apenas nos discursos dos vereadores, mas também entre os segmentos da sociedade civil que acompanharam a discussão. As intervenções dos setores progressistas se concentraram em realçar o propósito original do projeto de lei, que era fornecer informações sobre o atendimento de saúde às mulheres vítimas de violência sexual. Entre as falas das vereadoras desse campo, a Vereadora Monica Benicio (i) relembrou que o PL 442/17 foi apresentado por Marielle Franco, (ii) salientou que o projeto não criava novos direitos, apenas informava sobre os direitos já garantidos às mulheres e pessoas vítimas de violência sexual, e (iii) destacou os alarmantes dados de estupro no Estado e na Cidade do Rio de Janeiro. Em relação à emenda proposta que visava remover a informação de que as mulheres não precisam fazer uma denúncia na delegacia para ter acesso ao atendimento de saúde em caso de violência sexual, a vereadora resgatou os diversos obstáculos que impedem as mulheres de denunciarem um estupro, como o medo, a vergonha e a revitimização das mulheres pela sociedade e pelas próprias instituições. Ela se posicionou como feminista e defensora da legalização do aborto, mas reiterou que o projeto não tratava desse tema. Da mesma forma, a Vereadora Luciana Boiteux enfatizou que o debate não se tratava da modificação de uma lei federal, mas sim da implementação de um cartaz informativo sobre o acesso a serviços de saúde e ao aborto em casos de estupro, conforme previsto no Código Penal Brasileiro desde 1940. Ela também mencionou Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 109 os casos de meninas estupradas no Piauí e em Santa Catarina que tiveram negado o acesso ao aborto legal. A Vereadora Thaís Ferreira também ressaltou a importância da informação sobre os direitos: “o desconhecimento sobre os nossos direitos nos colocam nos lugares de maior vulnerabilidade. A quem interessa que as mulheres desconheçam os seus direitos”. Apesar dos esforços para resgatar o objetivo principal do PL 442/17, os setores conservadores desviaram o debate para o tema do aborto. Inicialmente, tentaram justificar as emendas apresentadas como uma maneira de incentivar a denúncia e combater a impunidade, retratando-se como defensores do combate à violência contra as mulheres. Somos aqui a minha bancada, aqueles que eu represento da direita, os conservadores, defendem com unhas e dentes punições exemplares para esse tipo de crápula, pra esse tipo de sujeito que comete uma violência dessa contra uma mulher” - ‘não vejo clamor dessa “parte” da tribuna quando os criminosos traficantes estupram as mulheres” (Vereador 1), (Grifos nossos). [..] O projeto se desvia do foco da violência contra a mulher para uma propaganda pelo aborto; o projeto foca no aborto e não na repressão e combate ao criminoso. Na nossa emenda colocamos procure uma delegacia mais próxima… o que nós defendemos é a punição, que a mulher seja amparada… quem é a favor da castração química dos estupradores. O que queremos com a emenda é combater o criminoso, estimular a denúncia; a denúncia que estimula a prevenção. (Vereador 1), (Grifos nossos). Contudo, durante o processo de votação, estereótipos e preconceitos de gênero foram evidenciados nos discursos e posicionamentos através do frequente questionamento sobre a credibilidade das mulheres. Essa falta de confiança na palavra da vítima é um dos grandes obstáculos que as mulheres enfrentam ao realizar a denúncia nas delegacias e demais órgãos públicos. ”Se é Bolsonaro ou se é Lula tem que respeitar o presidente que baixou a portaria… nós estamos falando o seguinte a partir do momento que a pessoa denuncia um estupro tem que ir pra polícia; tem que fazer o IML, não adianta chegar em uma clinica ou hospital “eu fui vítima de estupro, tira aqui o meu filho, não é assim que funciona, isso não é bagunça, 110 | Gênero, violência e estruturas de poder sou contra qualquer violencia , mas não pode chegar em qualquer unidade de saúde e tirar o seu filho… imagina uma mulher que tem problema com seu marido ou namorado e depois você reconhece que foi de um namorado. e aí, o médico é preso… não é um estupro de um namorado… por isso tem que passar por uma delegacia porque qualquer estupro tem sinais; […] não é por isso que vamos autorizar qualquer mulher que chegar e falar que é vítima de estupro ter direito, isso tem lei, tem uma portaria” (Vereador 2), (Grifos nossos). A partir do momento que um mulher for no setor publico fazer um aborto vai aumentar ainda mais a violência… mediante a comprovação da a violência contra as mulheres e valorizar cada vez mais a vida das nossas crianças que podem nascer . vocês são contra isso, nós queremos a vida, nós queremos o bem. Sou contra o aborto, principalmente de uma mulher que queira fazer sem comprovação nenhuma que foi de um estupro” (Vereador 2), (Grifos nossos). Apesar da legislação brasileira considerar estupro de vulnerável o ato sexual com menores de 14 anos, um vereador chegou a sugerir a possibilidade de crianças mentirem sobre casos de estupro.22 […] vocês imaginam se qualquer pessoa , qualquer mulher, qualquer adolescente e hoje em dia qualquer criança depois de ter tido uma relação consensual ou não, estuprada ou não, vai a um hospital e diz eu fui estuprada como é que vai saber se foi estupro ou não., então existe legislação própria pra isso.” (Vereador 3), (Grifos nossos). Além disso, foram veiculadas informações incorretas sobre o acesso ao aborto legal e outras legislações, alegando que o aborto só é permitido em casos de estupro através de autorização judicial, tendo como exigência a realização de exame de corpo de delito e boletim policial. Assim, segundo a argumentação destes vereadores, o PL 442/17 gerava desinformação ao afirmar que não é necessário fazer uma denúncia na delegacia para receber atendimento médico e insegurança aos médicos para a realização do procedimento. 22 BRASIL. Código Penal Brasileiro. Art. 217 A. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 10 mar. 2024. Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 111 [...] é lei, precisa passar pelo IML antes de autorizar o aborto, então não podemos ter uma informação que causa uma desinformação, […] senão todas as mulheres que tiverem problemas, que não querem mais seu namorado, seu marido quem quer que seja e vai chegar em um posto de saúde, hospital e querer fazer um aborto” (Vereador 2) A gente tem falado muita da mulher que comete é acometida por estupro […] Todos nós unanimidade somos contra e quem comete estupro tem que tá na cadeia […] uma questão que quero levantar é sobre a situação do médico,.. que vai lá e retira o feto da mulher, comete o aborto e aí é constatado que não ocorreu um estupro. Como vai ficar esse médico que cometeu um crime… quem vai defender o médico, quem estará ao lado do médico, quem pensa na segurança do médico, como ficará a questão do médico.. já que é lei todos que são vítimas de etupro a ir na delegacia prestar queixa…. pra prender… mas não pode se ficar autorizado a qualquer uma q chegar lá foi vítima de estupro e se ela não foi, como é que fica esse feto, ´tirou vida, foi contra a família, como como fica a família e como fica o médico. .. por isso sou contra o aborto. Agora quando é cometida uma violência um estupro aí sim. Sou a favor da mulher tirar por um estupro, violência mais não pode ser assim. Qualquer tipo de aborto sou contra, a não ser por violência e estupro. Contra o aborto, pela família e pelo nosso Rio de Janeiro” (Vereador 2), (Grifos nossos). Dentre as tentativas de fundamentar legalmente essa argumentação, foram mencionadas: (i) a Portaria 2561/20 do Ministério da Saúde, que instruía médicos, profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde a acolherem as vítimas e a comunicarem à autoridade policial em casos que houvesse indícios ou confirmação de violência sexual. Esta portaria foi emitida pelo então Presidente da República Jair Bolsonaro com o intuito de dificultar o acesso aos casos de aborto previsto em lei e já estava revogada na época da votação do PL 442/17; (ii) a Lei 12845/13, que trata do atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, foi mencionada de forma manipuladora. A Lei 12845/13 estabelece o atendimento imediato e obrigatório às vítimas de violência sexual na rede pública de saúde, e embora o auxílio ao registro de ocorrência seja citado como uma das diretrizes no próprio serviço de saúde, não é uma condição para o atendimento. O atendimento imediato, obrigatório em todos os hospitais integrantes da rede do SUS, compreende os seguintes serviços: III - facilitação do registro da ocorrência e 112 | Gênero, violência e estruturas de poder encaminhamento ao órgão de medicina legal e às delegacias especializadas com informações que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual.23 Durante a votação, tornaram-se evidentes os posicionamentos conservadores e a estratégia de desviar o foco do debate sobre o PL 442/17 para um embate ideológico a favor ou contra o aborto, com o propósito de dificultar o acesso das vítimas de violência sexual ao aborto, já garantido por lei. [...] simplesmente é um projeto ideológico, tanto é que o atual governo retirou o Brasil da declaração internacional contra o aborto. o único e exclusivo objetivo desse projeto é que se estimule o aborto… o povo tá de olho nessa casa, hoje o povo vai saber quem é contra e quem é a favor do aborto. (Vereador 4) Grifos nossos Aqui não existe nenhuma questão pessoal, a nossa questão aqui é ideológica e existem pautas que são inegociáveis, existem pautas que são eternas e o assunto a favor da vida sempre será eterno e nós sempre discutiremos a favor da vida… votar um projeto desse estimulando o aborto é votar a favor do aborto e nós não negociamos isso. Por isso o nosso posicionamento é conservador, é em relação a família, eu sou família, não negocio a vida, não negócio sobre pedofilia, não negocio nada contra a vida. (Vereador 5), (Grifos nossos). Votação como a de hoje é extremamente importante porque mostra cada um da casa como pensa,... porque eu não tenho a menor dúvidas, que daqui a 1 ano e meio anos nas eleições que se aproxima, todos os vereadores ou a sua grande maioria dos que aqui estão vão às ruas pedir votos e vão pedir votos dentro da base da direita, dentro da base conservador e é bem claro, ficar muito explicitado aqui qual é o lado de cada um, quem defende o que, quais os princípios de cada um, o que q defende caa vereador, quais as pautas reais de cada um… fica bem claro e é importante guardar porque os mesmos que estão aqui contra vão pedir os votos de vocês (Vereador 1), (Grifos nossos). a questão é bem clara, não adianta depois se esconderem atrás de rótulos… não adianta se esconder é quem é a favor do aborto e quem é contra o aborto. não adianta ficar de historia porque o projeto é claro, eu sou contra… é claro isso, o problema é vereador que 23 Art. 3, Lei 12845/13 Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 113 se diz contra o aborto e no projeto se posiciona de forma contrária… eu eu sou contra o aborto e assim continuarei. eu sou contra o aborto (Vereador 2), (Grifos nossos). quem é contra o absurdo desse projeto de lei que tá em pauta não pode ser comparado com quem estar contra a mulher… aqui o que tá em jogo é quem é contra o aborto e a favor vida… Nós fizemos uma emenda pelo nosso mandato um emenda pela vida... Assim como a emenda do Rogério Amorim, […] as duas emendas são emendas pela vida… [...] e pra derrubarmos de uma vez por todas essa possibilidade de anúncio pelas ruas pelo aborto. Aborto é crime por isso sim a vida (Vereador 6), (Grifos nossos). Os posicionamentos sobre o aborto também foram o foco principal destacado nos cartazes e nas palavras de ordem das pessoas contrárias ao PL 442/17 que estavam presentes durante a votação, com frases como "Eu voto pela Vida" e "Aqui temos vida", "Sim à vida!", e "Aborto não". Além disso, foram empregadas frases e símbolos religiosos, como "Viva Cristo Rei!", chegando até mesmo a ocorrer uma oração. Adicionalmente, as vereadoras que defendiam o projeto foram frequentemente interrompidas e chamadas de assassinas. As vereadoras chegaram a denunciar os ataques sofridos durante a votação. A vereadora Thais Ferreira declarou: “Que a gente possa fazer um alinhamento sobre a nossa prerrogativa. Temos a polícia legislativa aqui para quem se sinta constrangida. Não aceitaremos ser chamadas de assassinas, presidente”. Além 114 | Gênero, violência e estruturas de poder disso, a utilização da fé e de elementos religiosos durante a votação, assim como a presença de grupos religiosos, também foram denunciados. o projeto é muito simples e por falar da garantia dos direitos uma delas […] um dos direitos das mulheres já garantidos em lei, é que ela não tem necessidade de procurar uma delegacia, de fazer um boletim de ocorrência para procurar o sistema de saúde e lá, ….se é que tá todo mundo tão preocupado assim com a informação, lá no sistema de saúde o médico o hospital tem a obrigatoriedade de informar sobre essa violência, a questão aqui não é sobre os direitos das mulheres, é sobre um moralismo e um fanatismo religioso, que nada interessa em um estado que é laico (Vereadora Monica Benicio), (Grifos nossos). Toda essa mobilização resultou na não aprovação do PL 442/17, com uma ampla maioria de votos, mesmo após a aprovação da Emenda 2 - proposta pelos mesmos setores - que eliminava qualquer menção à contracepção de emergência e aborto legal, focando apenas na denúncia do estupro. Isso mais uma vez evidenciou o caráter reacionário e conservador dessas mobilizações, cujo objetivo era impedir o acesso das mulheres à informação sobre seus direitos, que já estão legalmente garantidos. A esse respeito a Vereadora Mônica Benício denunciou: […] eu defendi na minha orientação de votação que se votasse contrário ao projeto da Marielle… pra garantir que não tivesse o nome da Marielle em um projeto de lei que tivesse um texto do excelentíssimo vereador Rogério Amorim… curioso que se importante é de fato proteger as mulheres e que elas sejam encaminhadas a delegacia e produzir dados…sequer quem construiu o texto votou no seu texto […] o vereadores que estavam defendendo as mulheres e que promoveu todo esse debate, vamos falar a verdade então a igreja ligando e pressionando o vereadores e os vereadores cederam a pressão da Igreja pra dialogar com essa base eleitoral….. eu não deito pra igreja católica, eu não deito pra igreja evangélica, eu não passo pano para base eleitoral porque não foi pra isso que eu fui eleita. […] Pela vida das mulheres está preocupada quem votou contrária às emendas” (Grifos nossos). Iara Amora dos Santos; Carolina Cagetti | 115 Considerações Finais O estudo de caso sobre a mobilização contra a aprovação do PL 442/17 reforça os acumulos teóricos que sugerem que a legalização do aborto tem sido utilizada como um "espantalho" moral para dificultar o acesso de meninas e mulheres a direitos já garantidos, como as possibilidades de realização de aborto já previstas em lei. Essa estratégia também é observada até mesmo nos âmbitos municipais e estaduais, onde não há competência para legislar sobre a matéria. Desta forma, é de extrema relevância acompanhar e dar continuidade às análises sobre as articulações conservadoras sobre os direitos sexuais e direitos reprodutivos no campo acadêmico e político, com maior atenção para as disputas que acontecem nos âmbitos locais, Estados e municípios. Assim, como avançar no reconhecimento dos movimentos sociais, neste caso, em especial dos feminismos, como motores de mudança social e dos direitos humanos. Reconhecendo a relevância das manifestações e mobilizações sociais em torno das conquistas de direitos e da resistência aos retrocessos. Assim como, dos resultados destes processos, como resultados de processos de lutas sociais. 24 24 DOS SANTOS, Iara Amora. O filho não é só da mãe: Luta das Mulheres pelo Direito à Creche no Brasil. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2022. 116 | Gênero, violência e estruturas de poder É necessário continuar promovendo a conscientização e a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, buscando a efetivação e garantia de políticas públicas e ações que respeitem a autonomia das mulheres e a garantia de seus direitos; e traçar estratégias para a garantia do acesso a informações e serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva, especialmente em casos de violência sexual25. Com um comprometimento contínuo e uma maior compreensão das nuances dos grupos abordados, poderemos enfrentar os desafios impostos pela atual conjuntura conservadora e assegurar a proteção desses direitos essenciais para a equidade de gênero e a construção de uma sociedade mais justa e cidadã. Referências Bibliográficas BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: Limites da Democracia no Brasil. Boitempo, 2018. BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e Política. Boitempo, 2014. BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia. 50 Anos de Feminismo: Brasil, Argentina e Chile. EDUSP, 2019. CAGETTI, Carolina. Uma luta contínua feminista: o processo de legalização do aborto e de garantia de acesso no Brasil e na Itália. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Università degli Studi di Roma La Sapienza. Rio de Janeiro, 2023. CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. 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Ministério da Saúde revoga portaria sobre aborto e outras medidas contrárias às diretrizes do SUS. 16 de Janeiro de 2024. Disponível em https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/01/16/ministerio-da-saude-revogaportaria-sobre-aborto-e-outras-medidas-contrarias-as-diretrizes-do-sus.ghtml. Acesso em 14 mar. 2024. RUIBAL, Alba M. Feminismo frente a fundamentalismos religiosos: mobilização e contramobilização em torno dos direitos reprodutivos na América Latina. = Rev. Bras. Ciênc. Polít. (14) • May-Aug 2014 Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-335220141405. Acesso em: 10 mar. 2024. DOS SANTOS, Iara Amora. O filho não é só da mãe: Luta das Mulheres pelo Direito à Creche no Brasil. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2022. SEPULVEDA, José Antonio. SEPULVEDA, Denize. Conservadorismo e seus Impactos no currículo Escolar. In: Currículo sem Fronteiras, v. 19, n. 3, p. 868-892, set./dez. 2019. 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A SEGREGAÇÃO URBANA E AS REDES SOCIABILIDADE DAS MULHERES NEGRAS PERIFÉRICAS https://doi.org/10.36592/9786554601566-06 Ana Letícia Chaves Santos Newton Ataíde Meira RESUMO A segregação a qual as pessoas racializadas sofrem no Brasil são marcas de um passado de exploração e escravidão que foi justificada pela ideologia de superioridade dos europeus (brancos). Este texto vem apontar como as redes de sociabilidade urbana, herdadas da cultura dos povos indígenas, ajudam essas mulheres a exercer o direito citadino na cidade, visto que possuem dificuldades com a infraestrutura urbana, a falta de empregos e de bons salários e a falta de políticas públicas que as atendam. Será apontado também, como a segregação espacial gerada pela urbanização que veio com o capitalismo para agregar valor a terra, e assim poder lucrar com ela, levou as mulheres para as margens das cidades e fez com que elas insurgissem atualmente nos movimentos sociais, principalmente os ligados à moradia digna, já que os bairros empobrecidos (favelas e ocupações muitas vezes) a qual residem possuem uma má qualidade de infraestrutura, não tendo serviços básicos garantidos em muitos casos. Além disso tem a questão de que muitas não se enquadram nas exigências dos programas habitacionais, devido a terem serviços informais ou por terem um salário muito baixo, levando assim a terem que recorrer às ocupações e favelas para morar em barracos que muitas vezes são levantados em mutirões, fato esse que comprova a sobrevivência dessas pessoas por meio das redes de sociabilidade. PALAVRAS- CHAVE: Mulheres negras, segregação, redes de sociabilidade. ABSTRACT The segregation of racialized people in Brazil is marked by a past of exploitation and flagellation that was justified by the ideology of superiority of (white) Europeans. This text aims to serve as networks of urban sociability, inherited from the culture of two indigenous peoples, helping these women to exercise their right to the city in the city, as they have difficulties with urban infrastructure, in the absence of jobs and good wages and in the absence of policies of public services we serve. It will also be pointed out, as a spatial segregation generated by urbanization that I see as capitalism to add value to land, and thus be able to profit from it, took women to the margins of cities and made our social movements, especially those linked to life, the way they are currently rising. worthy, since impoverished neighborhoods (often slums and squats) where residents have higher quality infrastructure, in many cases do not have guaranteed basic services. Furthermore, there is the issue that many do not meet the requirements of the two housing programs, because they are not aware of services or because they have a very low salary, thus increasing the need to go through squatters and favelas to live in shacks that are often erected on them. 122 | Gênero, violência e estruturas de poder collective efforts, a fact that makes up the survival of these people through social networks. INTRODUÇÃO As relações sociais nascem antes mesmo da constituição da cidade, por volta de 3.000 a.C, pois desde que as pessoas começam a viver coletivamente há a criação de vínculos e ajuda mútua para sobrevivência. Sabe-se que as bases da sociedade e da cidade possuem esse caráter coletivo e de parceria, no entanto esse princípio começa a ser perdido na era medieval quando se começa a produzir excedentes e esses são usados para a mercantilização da terra, ou seja, a terra que antes era ocupada agora passa a ser uma mercadoria. Rolnik 1 diz que, a mudança da vila medieval para cidade-capital de um Estado moderno é responsável por uma mudança radical na forma de organização das cidades, sendo a mercantilização do espaço o primeiro elemento colocado no jogo, ou seja, a terra urbana que antes era ocupada passa a ser uma mercadoria. Com o nascimento da questão da terra como mercadoria nasce os problemas relacionados à moradia, que são acentuados com a cidade capitalista que visa o lucro acima de tudo. A industrialização trouxe consigo uma valorização do capital e portanto o consumo passa a ser o motor das cidades, portanto, tudo a ser visto de uma perspectiva do ganho comercial. A partir disso, as pessoas empobrecidas que antes tinham suas casas próximas às fábricas, nos centros, passam a ser empurradas para as margens da cidades para que os centros possam passar por uma higienização e assim ter seu espaço valorizado. Lefebvre2 afirma que o valor de troca e a generalização da mercadoria tendem a destruir a cidade e a realidade urbana, quando as subordina a si. O processo de urbanização nasceu em consequência da Revolução Industrial europeia, devido a um êxodo rural ocasionado pela busca de empregos nas fábricas por camponeses empobrecidos, gerando uma rápida mudança urbana e tornando a cidade um lugar caótico e desordenado. A partir disso, há uma preocupação com 1 2 ROLNIK, Raquel. O que é Cidade. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.39. LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2008. p.10. Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 123 essa questão e o urbanismo vem para “resolver” os problemas criados por essa urbanização, no entanto sabe-se que o urbanismo trouxe uma forma de organização das cidades que jogavam os marginalizados para as franjas das cidades e tal característica urbanística foi transmitida aos demais países, que tiveram uma urbanização tardia e recente na escala temporal. No Brasil, o processo de urbanização é recente, e também causou os problemas sociais já citados. Lefebvre3 afirma que a ideologia do urbanismo expressam todos os problemas da sociedade em questão de espaço e transferem para termos espaciais tudo que advém da história, da consciência. Com o passado histórico brasileiro marcado pela escravidão é notório que a maior parte da população empobrecida do país seja constituída de pessoas negras e pardas, e portanto são as mais atingidas pela segregação causada pela urbanização. Essas pessoas foram empurradas para as margens da cidades, em áreas muitas vezes favelizadas ou empobrecidas muito distantes dos centros, que possuem pouco acesso a serviços básicos como o transporte. Sendo este fato um dificultador da locomoção dessas pessoas pela cidade devido ao alto preço, a ineficiência e a baixa quantidade de linhas. De fato, a vida urbana das pessoas racializadas (empobrecidas) é a prova de que a urbanização das cidades foram feitas de cima para baixo, por pessoas (na maioria dos casos homens brancos) que não conhecem de fato as necessidades básicas da população. Levando em consideração o fator gênero, que muitas vezes é esquecido nas pesquisas e políticas públicas, é perceptível o aumento de dificuldades enfrentadas nas cidades pelas mulheres, que sofrem com as demandas diárias da família e ainda precisam trabalhar para sustentá-las. O que está exposto aqui é que a mulher além de ter uma carga de sobretrabalho ainda possui como fator dificultador do seu dia a dia que são as longas viagens para ir e vir de seus trabalhos. Além disso, ainda é preciso enfrentar transportes cheios, atrasos e não raro importunação sexual tanto no percurso quanto nos próprios serviços. Outro marcador importante a ser analisado é o de raça, visto que as mulheres negras estão em maior quantidade nos índices de vulnerabilidade social. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Direitos 3 Id., 2008. p.43. 124 | Gênero, violência e estruturas de poder Urbanísticos, em 2018 63% dos lares chefiados por mulheres negras estavam abaixo da linha da pobreza. DESENVOLVIMENTO Castel apud Oliveira e Fialho afirmam que a sociabilidade determina as redes das quais são criados e estabelecidos espontaneamente os laços que por sua vez são fruto de conexões que os indivíduos possuem entre si. Para eles há uma diferenciação entre dois tipos de rede de sociabilidade, a primária que faz a conexão de membros a um grupo a nível familiar, de vizinha, dentre outros, que concebem redes de interdependência sem mediação de instituições. A secundária produz uma forma mais presente, sendo que é essencial a existência de finalidades e atividades especializadas. Além dessa conceitual, também é importante falar sobre a consistência dessas redes, ou seja, o quão elas podem ser fortes e fracas e o que isso tem de consequência para a sociedade. A cidade é dinâmica e está a todo tempo em disputa, os usos direcionados por uma lógica capitalista faz com que a população reaja e tenha alguns tipos de contrausos. Este tipo de reação social é normalmente empregada pela parcela da população que encontra-se em bairros onde há uma carência de infraestrutura urbana e social, isso faz com que as relações coletivas supra essa falta que as políticas assistencialistas. Este tipo de ação geralmente é aplicada a espaços públicos, no entanto o que está sendo retratado nesse texto vai além dessa dimensão, os espaços privados também cumprem essa função quando as relações de sociabilidade criada entre as pessoas vem cumprir uma demanda que o governo não cumpre. Nota-se que a função social da cidade não está sendo respeitada pois o que a move é a perspectiva de lucro, este aspecto é fruto do sistema capitalista que através do discurso liberal vem disseminar a ideia de meritocracia e esforço. Ou seja, levando em consideração essas falas, o empobrecimento histórico de pessoas negras levando a uma restrição de acesso a melhores trabalhos, a educação e a melhores condições de vida não são fatores que as impedem de ascender socialmente. Com este tipo de ideologia, a sociedade capitalista tira a responsabilidade das mazelas Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 125 sociais causadas pelo seu sistema e traz para o próprio sujeito um protagonismo sobre a sua situação social, sendo este responsável por sua pobreza ou riqueza, sem que fatores sociais e externos influenciem. As mulheres negras, são vítimas de um duplo preconceito herdado de um passado de escravidão, onde eram submetidas a trabalhos forçados e pesados, sendo que a feminilidade delas só era usada como forma de castigo, segundo Davis4 o povo negro era visto como propriedade, e as mulheres assim como os homens eram vistas como unidades de trabalho lucrativas, sendo que para seus senhores elas poderiam ser desprovidas de gênero, Elas eram antes de tudo integralmente trabalhadora, e só em poucas ocasioões mãe, esposa e dona de casa. Isso mostra que essas mulheres não estavam na dimensão do privado e da fragilidade como as brancas, elas só eram vistas como mulheres nas senzalas, onde tinham uma relação de sociabilidade com os seus, e quando vistas pelo gênero pelos seus senhores era de forma sexualizada. Desde esse tempo histórico, essas mulheres não se dispunham de tempo para cuidar dos filhos e da sua casa, e esse fato se estende até os dias de hoje, pois mesmo após o fim da escravidão essas mulheres continuam a ter trabalhos com longas horas e em alguns casos tendo que dormir nestes, é o caso das empregadas domésticas que ainda hoje é um serviço que tem grande presença de mulheres negras. Segundo o Ipea 5 92% das pessoas ocupadas com serviço doméstico são mulheres, sendo 65% dessas negras, a partir disso sabe-se que mesmo com a conquista das mulheres em espaços que antes não poderiam ser ocupados. grande parte das mulheres racializadas permaneceram ocupando subempregos que por sua vez geram baixos salários, com isso a situação delas permanecem e consequentemente elas e seus familiares continuam a ocupar os bairros marginalizados nas franjas das cidades. 4 5 DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 1 ed- São Paulo: Boitempo, 2016. p.24. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/revista.pdf>. Acesso em: 23 de julho, 2023. 126 | Gênero, violência e estruturas de poder Gráfico:Pessoas em Ocupações Informais Fonte: Agência IBGE Notícias6 A partir desse gráfico, pode-se concluir que que a população racializada inserida em ocupações informais é maior que a população de brancos, isso se deve a uma herança do passado de exploração e pobreza a qual foram submetidos. Essas áreas possuem uma carência de serviços básicos, como tratamento de esgoto, coleta de lixo e além dessas creches e escolas primárias, fazendo com que para que acesso a esses serviços a população desses locais tenham que procurar fora da sua área. Muitas vezes essas pessoas não conseguem tê-los mesmo que procurem em outras áreas, devido a grande demanda ou ao próprio preconceito que sofrem. Grande parte dessa população de assentamentos irregulares, estão as mulheres negras e seus familiares, segundo dados da Agência de notícias IBGE7 56,3% da população total se declara preta ou parda, sendo que 70% do total de pessoas abaixo da linha da pobreza são dessa cor/raça, a pesquisa ainda mostra que as mulheres pretas e pardas foram 6 <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.> Acesso em : 22 de Julho, 2023. 7 Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.> Acesso em : 22 de Julho, 2023. Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 127 as mais afetadas sendo 28,7% da população, porém 39,8% dos extremamente pobres e 38,1% dos pobres. A rede de sociabilidade, muito presente em relações dos povos tradicionais, são muito utilizadas entre as pessoas empobrecidas que são vítimas de um sistema falho e que causa grandes diferenças sociais entre ricos e pobres. Para que essas pessoas, em sua grande parte mulheres negras, possam ganhar o sustento da família elas precisam ir longe para achar trabalhos pois como normalmente estão no serviços domésticos as famílias que as contratam são as de classe média e alta e residem em bairros nobres e condomínios fechados mais perto dos centros e bem afastados de onde elas moram, a partir disso nota-se que elas possuem grande demanda dos serviços básicos, como escolas e creches, no entanto como esse acesso é limitado nesses bairros essas mulheres muitas vezes contam com os vizinhos para cuidar dos filhos e das suas casa enquanto estão trabalhando. Essas redes de sociabilidade externas as famílias possuem grande importância na vida dessas mulheres negras visto que grande parte delas são chefes de família, ou seja as mulheres são a fonte de renda da família, além disso ainda existe o fator de parte dessas famílias serem monoparentais. Portanto, a mulher é a única provedora dessa família e além de não contar com a ajuda financeira, elas não possuem normalmente outras presenças que possam assumir as responsabilidades de cuidados do lar e dos filhos na sua ausência, levando assim a necessidade desses laços que são estabelecidos nas comunidades, pois muita vezes a falta de creches e escolas limita essas mulheres de irem em busca de trabalho por não terem quem cuide dos filhos pequenos, já que em alguns casos nem os mais velhos possuem idade suficiente para liderar a responsabilidade pela casa e irmãos. Esse tipo de relações coletivas muito presente na vida de povos indígenas, não possuem espaço na sociedade capitalista, em que tudo é definido pelo valor agregado, até mesmo as relações pessoais são delimitadas nessa dimensão. A cidade perde seu valor social e passa a ter um valor de mercadoria, tudo que ocorre nela tem uma dimensão de consumo, ou seja, a cidade e suas relações são regidas por um produtivismo. A ótica coletiva que era regida na sociedade brasileira, foi suplantada pela colonização, que constituiu um sistema de exploração, no entanto 128 | Gênero, violência e estruturas de poder essa relação de sociabilidade foi conservada pelos negros e povos indígenas com o objetivo de sobreviverem a exploração. Lefebvre8 diz que: Atribuir a crise da cidade à racionalidade limitada, ao produtivismo, ao economicismo, à centralização planificadora preocupada acima de tudo com o crescimento, à burocracia do Estado e da empresa, não é falso. No entanto, esse ponto de vista não supera completamente o horizonte do racionalismo filosófico mais clássico, o horizonte do humanismo liberal. As desigualdades sociais sofridas pelas populações empobrecidas que foram empurradas para as áreas marginalizadas da cidade no processo de urbanização, que encontra respaldo no capitalismo para produzir áreas lucrativas, portanto esse processo tem aspectos classicistas que visam uma melhoria física e social nos bairros enobrecidos, enquanto os bairros pobres são esquecidos. Pior ocorre com as ocupações informais, que surgem também desse urbanismo capitalista, já que o valor agregado à terra passa a ser inalcançável para alguns cidadãos que não possuem nem mesmo direitos garantidos através de políticas assistencialistas, levando assim a essas pessoas a necessidade de residir em áreas de ocupação informal e favelizadas, que possuem na maior parte das vezes uma estrutura física degradante, devido a falta de recursos básicos para atender decentemente essa população. Os problemas relacionados à terra não são poucos no Brasil, nesse caso a discussão está centralizada na dimensão urbana, mas o fato é que ocorre essas dificuldades também na dimensão do rural. A especulação imobiliária faz com que o preço dos lotes e imóveis cheguem a valores exorbitantes, para se tenha essa valorização são tomadas medidas, nos bairros de classe média e alta, como o uso melhoramento de aspectos físicos ligados como revitalização e construção de praças e parques, além da gentrificação que é um fato empregado a fim de vender não um imóvel mas a experiência de viver em uma área. Harvey 9 fala do caráter classicista da urbanização, devido ao excedente ser tirado de alguém sendo o 8 9 LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2008. p.75. HARVEY, David. O direito à Cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n.29, p. 2, dez. 2012. Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 129 controle da distribuição concentrado em poucas mãos, sendo a persistência dessa situação de responsabilidade do capitalismo que produz o excedente, levando a uma conexão estreita entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbanização No entanto, nota-se com isso que tal ação possui um caráter segregatório, visto que a oferta de empregos e salários não são as mesmas para a população. A mulher já possui uma certa dificuldade de ter acesso à terra, quando se acrescenta o fator raça tal situação ainda tende a piorar devido ao duplo preconceito que elas sofrem da sociedade e da herança social de empobreciemento do povo negro. A luta por uma moradia digna marca a luta dessas pessoas racializadas, principalmente das mulheres negras, pois como já mencionamos estão em maior número na condição de pobreza e extrema pobreza levando assim a residirem em lugares que não possuem uma estrutura básica adequada. Além disso, a própria relação da mulher com o lar é diferente da que o homem possui devido aos vínculos criados pelo cuidado com o próprio espaço e com seus entes, levando-as a buscarem de moradias com o mínimo de conforto para atender a demanda da sua família e dar um bem estar a todos que estão sob seus cuidados. A luta dessas mulheres negras por moradias com melhores condições de vida às levaram a um protagonismo nos movimentos sociais, segundo Isaias a centralização feminina na dinâmica de organização e sustentação diária dos territórios é recorrente nas lutas populares por moradia ou terra. A falta de garantia dos direitos citadinos dessas mulheres e seus familiares não se restringe apenas à falta de moradia digna, a própria cidade é negada a eles devido ao preconceito que sofrem por parte de moradores e frequentadores de bairros de classe média e alta. Como faltam praças, creches, jardins em seus bairros ou nas ocupações e favelas em que moram essas pessoas buscam esses equipamentos urbanos nos demais, no entanto devido a dimensão capitalista e classicista já mencionada eles não são bem aceitos, causando assim uma disputa urbana por espaços das cidades. Além de não serem bem aceitos nesses espaços públicos devido a sua localização em bairros elitizados, pode se pontuar também a dificuldade de acesso a esses locais via transporte coletivo, pois há o empecilho do valor da passagem e também a questão do próprio tempo para lazer que falta principalmente as mulheres empobrecidas, que em sua grande parte são negras, devido a carga de trabalho fora 130 | Gênero, violência e estruturas de poder do lar ser grande e ainda terem o tempo de deslocamento que são extensos e em condições precárias por terem excesso de passageiros, horários e frotas reduzidas. Após todo esse tempo e esforço essas mulheres ainda possuem obrigações no seu próprio lar, que gera um sobretrabalho a elas e faz com que o tempo de lazer ou mesmo de ócio seja quase inexistente sendo portanto mais um fator de exclusão dessas mulheres de espaços públicos, que fere o direito à vida citadina delas e as deixa reféns de um uso da cidade exclusivamente na lógica do trabalho. As redes de sociabilidades já citadas nesse texto agem como forma de reação dessas pessoas marginalizadas, pois além de darem apoio para que as crianças tenham onde ficar para que as mães possam trabalhar, elas também promovem mutirões para levantar barracos, mutirões para trazer melhorias para seu bairro. Isso mostra que por mais que a cidade seja excludente e desigual, as pessoas que sofrem dia a dia com essas questões criam formas para sobreviver em meio a essa dimensão capitalista que visam o lucro a todo o custo e esquecem de fazer valer a dimensão social que a cidade deve ter. Levando em consideração raça, é notório que grande parte dessa população que precisam usar de contravenções para sobreviver a cidade são negras e portanto fica claro que as cidades brasileiras são herança da colonizção, em que as pessas brancas herdaram ou ganharam a posse de terras, enquanto os negros foram marginalizar-se precariamente nas bordas das cidades após os anos de escravidão. As dificuldades enfrentadas por mulheres negras na sociedade capitalista a qual estão inseridas, não ocorre apenas em grandes cidades e metrópoles, o preconceito e o racismo as perseguem também em cidades médias e pequenas, por terem menos opções de empregos e a infraestrutura das cidades serem mais carentes, é possível que elas tenham ainda mais dificuldades, devendo contar muito mais com as redes de sociabilidade que construiu ao longo dos anos. A cidade de Montes Claros, localizada no Norte de Minas Gerais, é caracterizada como cidade média, sendo esta uma cidade universitária que recebe estudantes da região e também do suldoeste da Bahia, com isso é notório que a cidade possui uma grande quantidade de escolas e universidades, no entanto a cidade é quadro de diferenças sociais e segregação que as pessoas empobrecidas passam. Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 131 Os mapas e dados que serão apresentados possuem a função de comprovar que, as mulheres negras das médias e pequenas cidades possuem grandes desafios para que possam ter o direito citadino delas garantidos, aqui não retratando somente o direito à moradia digna mas também o acesso à universidade, a empregos com melhores salários. De modo geral, essas mulheres sofrem com a falta de políticas públicas que atinjam efetivamente a classe social a qual pertencem visto que muitas estão na classe c e d, os programas habitacionais por exemplo não conseguem atingir essa camada da população pois não atendem aos critérios mínimos exigidos, pois muitas dessas não trabalham de carteira assinada, estão inseridas de forma informal no mercado de trabalho, o que não lhes dá nenhuma garantia de direitos. Esses empregos são a fonte de sobrevivência delas, já que com a baixa escolaridade aliada ao preconceito que sofrem é a única solução que encontram para manter as famílias. 132 | Gênero, violência e estruturas de poder Mapa 1: Total de Mulheres Fonte: Atlas Ambiental10 10 Disponível em: https://www.posgraduacao.unimontes.br/uploads/sites/7/2020/03/atlascompactado.pdf. Acesso em: 17 de julho, 2023. Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 133 Mapa 2: Mapa de renda por região Fonte: Atlas Ambiental 11 11 Disponível em: https://www.posgraduacao.unimontes.br/uploads/sites/7/2020/03/atlascompactado.pdf. Acesso em: 17 de julho, 2023. 134 | Gênero, violência e estruturas de poder Mapa 3: Estabelecimentos Educacionais Fonte: Atlas Ambiental12 Ao analisar os mapas acima, nota-se que as mulheres estão inseridas em sua maioria nos bairros que possuem uma baixa renda per capita, sendo que nos bairros nobres da cidade não tem o maior número de mulheres presentes. O detalhe nesses dados é a respeito dos bairros com baixa quantidade de mulheres, como o Vilage e o Distrito Industrial é a quantidade total de habitantes desses serem baixas, o primeiro segundo o Atlas possui 5.553 habitantes e o segundo 12.214 desse modo quando se 12 Disponível em: https://www.posgraduacao.unimontes.br/uploads/sites/7/2020/03/atlascompactado.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2023. Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 135 leva em consideração tal fator nota-se que grande parte desses bairros é constituído por mulheres. Esses bairros também possuem a renda per capita mais baixa do gráfico e estão muito distantes do centro, além disso o quantitativo de escolas nesses locais é baixo. Nota-se que grande parte das escolas estão na parte mais central do mapa, ficando assim uma proporção bem pequena para as margens, dessa forma tomando por base a proporção de moradores dessas regiões pode-se concluir que essa quantidade de escolas não suprem a demanda do bairro, levando assim esses habitantes a buscarem escolas em outras regiões da cidade. Quando surge essa demanda de ter que sair do bairro em busca desses serviços básicos, surge a demanda de transportes, que nesses casos não possuem uma quantidade grande de frota e nem de horários. Outra problemática ainda nessa linha educacional é a distância de muitos desses bairros pobres e valorizados da principal universidade pública da cidade,e também de outras universidades públicas e das faculdades. Outro fator que pode ser levado em consideração é a dificuldade que essas mulheres residentes nessas margens da cidade possuem é a de chegar nos serviços, muitas dessas trabalham nas regiões mais próximas do centro, nos condomínios fechados e nos bairros nobres. Os ônibus urbanos que fazem a linha para essas regiões são poucos rodando apenas de hora em hora e aos fins de semana não circulam, além disso eles não possuem uma linha que saiam desses bairros das franjas das cidades e vão diretamente para essa região, tendo que ir até o centro e de lá pegar outro para esses locais. Em questões financeiras isso dificulta a vida dessas mulheres, ainda mais as que estudam pois como não há uma integração dessas linhas é necessário ter o dinheiro para quatro passagens por dia. Esses fatores diminuem a possibilidade dessas mulheres e seus familiares a entrarem na vida acadêmica, pois além do preconceito que já os afastam desses locais ainda tem a questão financeira, que como mostra o mapa muitas mulheres se localizam em áreas com uma renda muito baixa, ou seja, essas estão inseridas na linha da pobreza. Gonzales 13 fala que o mito da democracia racial tem funcionado na escala pública e oficial, o branqueamento define os afro-brasileiros na escala privada e em 13 GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro Latino Americano. 1 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2020. p.61. 136 | Gênero, violência e estruturas de poder mais duas esferas. Esse mito da democracia é falado pois após algumas políticas inclusivas como a de cotas nas universidades, a reserva de vagas em concursos, ainda há uma ideologia de superioridade da população branca em relação à negra. Quando se acrescenta à discussão o gênero, este fato fica pior, pois faltam políticas de permanência dessas mulheres nas escolas, visto que muitas precisam trabalhar e atender a demanda familiar ficando os estudos em segundo plano. Pode-se perceber essa exclusão quando mencionamos acima a dificuldade que essas mulheres têm de acessarem a cidades, no caso de Montes Claros, como a falta de infraestrutura urbana adequada interfere nos direitos citadinos dessas mulheres, e também os fatores econômicos, visto que as passagens de transporte público possuem valores altos e possuem uma defasagem nas conexões. Além disso, a questão econômica também está ligada à especulação imobiliária da cidade que empurrou essas pessoas empobrecidas para as franjas da cidade, para que houvesse uma valorização das áreas mais próximas do centro. CONCLUSÃO A segregação sofrida pelas pessoas racializadas ainda está presente na sociedade, mesmo com o mito da democracia racial é notório o preconceito e as marcantes diferenças sociais. Este fato torna-se pior quando acrescenta-se na pauta a questão de gênero, pois as mulheres negras são vítimas de um duplo preconceito, que muitas vezes é cometido até mesmo por homens negros e mulheres brancas. Isso ocorre devido a inferiorização sofrida pelas mulheres por parte dos homens e devido ao racismo, que é nutrido ainda por uma ideologia de superioridade dos brancos . Essas demandas sociais mencionadas no texto que não são supridas pelos governos, fez com que as redes de sociabilidade muito usadas na cultura dos povos indígenas fossem inseridas na vida dessas mulheres por meio da vida em comunidade nas ocupações e favelas, onde o objeto é uma autoajuda dos moradores a fim de sobreviverem na cidade capitalista, que prega o produtivismo e o lucro a todo custo. A vida citadina dessas mulheres e seus familiares são feitas através de contravenções, ou seja, mesmo com as dificuldades, falta de infraestrutura, falta de Ana Letícia Chaves Santos; Newton Ataíde Meira | 137 empregos com salários dignos e falta de políticas que atendam essa população eles ainda solucionam os problemas com o apoio da própria comunidade para que possam usar a cidade. A urbanização classicista e segregadora, é fruto do capitalismo e reafirma a cada dia o objetivo principal da cidade que é o consumo. Com isso, a população negra empobrecida devido a histórica exploração foi desde o início empurrada às margens da cidade para que seus assentamentos e ocupações não atrapalhasse a especulação imobiliária das áreas que seriam enriquecidas da cidade. A situação das mulheres negras atualmente é de grande empobrecimento, sendo que boa parte delas estão na linha da pobreza extrema e pobreza, fato herdado dos tempos de escravidão em que elas quando não trabalhavam em serviços braçais, trabalhavam como empregadas domésticas, tarefa essa que continua sendo a fonte de renda de grande parcela delas, permanecendo assim os baixos salários e a necessidade de viver em favelas e ocupações onde a especulação imobiária ainda não toma conta. Quando se analisa cidades médias e pequenas, não há uma melhoria nas condições de vida dessas mulheres racializadas, pelo contrário, devido a um menor investimento em políticas assistencialistas e um menor investimento em infraestrutura. Foram analisados dados de Montes Claros-MG, onde mostra a grande quantidade de mulheres em bairros favelizados e empobrecidos, sendo que um deles possui quase 90% da população sendo mulheres. Nota-se que há uma tendência a esses bairros empobrecidos terem uma quantidade maior de mulheres, e dessa forma pode-se concluir que em sua maioria são mulheres negras e pardas, visto que as pesquisas indicam que elas são a maioria das pessoas empobrecidas no país e na citada cidade não faz-se diferente. REFERÊNCIAS ATLAS AMBIENTAL DE MONTES CLAROS/MG. Marcos Esdras Leite. Montes Claros: Editora Unimontes, 2020. Atlas. Disponível em: https://www.posgraduacao.unimontes.br/uploads/sites/7/2020/03/atlascompactado.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2023. DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 1 ed- São Paulo: Boitempo, 2016. 138 | Gênero, violência e estruturas de poder GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro Latino Americano. 1 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2020. HARVEY, David. O direito à Cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n.29, p. (73-89), dez. 2012. LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2008. OLIVEIRA, Maria Isabel Candeias; FIALHO, Joaquim. 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AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O MOVIMENTO FEMINISTA: O FEMINISMO ALCANÇA A MULHER PERIFÉRICA BRASILEIRA?1 https://doi.org/10.36592/9786554601566-07 Vitória Márcia de Freitas Oliveira Resumo O presente trabalho tem como objeto estudar se o feminismo e mais especificamente, se as teorias feministas alcançam a mulher periférica brasileira. Mulheres essas que sofrem diariamente com problemas relacionados à economia, de saúde, habitacionais, entre outros, mas, principalmente apenas por serem mulheres. Este trabalho mostrará, todavia, que apesar dos esforços significativos para que as mudanças em relação à igualdade de gênero e o respeito as mulheres ocorra, a realidade que as mesmas enfrentam diariamente, é diferente do que aquelas que teorizam sobre o movimento feminista, uma vez que as políticas públicas são insuficientes para que elas se sintam em segurança. Para tanto, será feita uma conceituação do feminismo, da teoria feminista nas Relações Internacionais e a ciência do construtivismo e pós-moderna, bem como a descrição sobre o que é a periferia e a mulher periférica. A pesquisa será desenvolvida por meio da utilização do método qualitativo bibliográfico, fazendo uma revisão de literaturas feministas, das teorias feministas nas relações internacionais e relatos reais de mulheres periféricas que discorrem sobre suas posições, além de outros autores que escrevem sobre a periferia. Com isso, procura-se confirmar que as teorias feministas ainda não conseguem alcançar efetivamente a mulher periférica brasileira. Palavras-chave: Feminismo. Periferia. Mulheres. Relações Internacionais. Abstract The present work aims to study whether feminism and, more specifically, feminist theories reach the Brazilian peripheral woman. Daily, these women face problems related to the economy, healthcare, housing, among others, but mainly just because they are women. However, this work will demonstrate that despite significant efforts for gender equality and respect for women, the reality they face daily differs from the theoretical discussions within the feminist movement. This is due to the insufficiency of public policies to make them feel secure. To achieve this, the work will provide a conceptualization of feminism, feminist theory in International Relations, and postmodern science. It will also describe what the periphery and who the peripheral women are. The research will be conducted using a qualitative bibliographic method, involving a review of feminist literature, theories in International Relations, and reallife accounts from peripheral women discussing their experiences. Additionally, the work will analyze the perspectives of other authors writing about the periphery. 1 Artigo apresentado como trabalho de conclusão para a disciplina de Teoria das Relações Internacionais, do curso de mestrado em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia. 140 | Gênero, violência e estruturas de poder Through this approach, the study aims to confirm that feminist theories have not yet effectively reached the Brazilian peripheral woman. Keywords: Feminism. Periphery. Women. International Relations. 1 Introdução No Brasil, a cada um dia, três mulheres são vítimas de feminicídio. A cada dois dias, uma mulher transgênero é assassinada. A cada dez minutos, uma menina ou mulher é estuprada e a cada hora, vinte e seis mulheres sofrem com agressão física. Em 2022, mais de 61 mil mulheres sofreram violência doméstica, sendo essas, mais de 65,5% pertencentes à população negra do país2. Esses fatos são apenas alguns exemplos, entre centenas de dados encontrados sobre a condição atual da mulher brasileira. Eles demonstram como a vida da mulher, no Brasil é frágil e pode ser involuntariamente, interrompida a qualquer momento. Para alguns, tais informações podem causar um misto de sentimentos negativos, como indignação, perturbação ou fúria. Entretanto, a realidade experienciada pelas mulheres, é de apatia, por parte de diversos setores da sociedade, perante à absurdidade de violência, que permeia o cotidiano da vida feminina. A partir daí, o feminismo entra como uma ferramenta para explicitar o que se deve ser dito: as mulheres, vivendo em um sistema patriarcal e de hegemonia masculina, estão em uma condição de dominação. E essa dominação é perpetuada por aqueles que estão em uma posição dominante e de poder. No âmbito das ciências sociais e no meio acadêmico em geral, é comum que as teorias que estão emergindo e estejam em processo de construção de ideias sejam estudadas para que se entenda as mudanças que estão ocorrendo, afinal a construção de conhecimento é continuo. A teoria feminista, a partir dos estudos de desconstrução do gênero, está inserida em um contexto relacionado ao terceiro grande debate das relações internacionais, difundido a partir do final do século XX. E atualmente no mundo, é presente a discussão acerca do movimento feminista e o 2 Dados disponíveis em: &lt;https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-efontes/pesquisa/visivel-e- invisivel-aimizacao-de-mulheres-no-brasil-4a-edicao-datafolha-fbsp2023/&gt; Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 141 impacto que as teorias e produções sobre o tema, tem sobre os indivíduos e mais especificamente sob as mulheres. O objetivo do artigo é trazer a discussão sobre o papel das teorias feministas e mais especificamente a teoria feminista para a mulher periférica brasileira: as teorias feministas, as alcançam de fato? Utilizando como metodologia a teoria feminista do ponto de vista ou feminist standpoint theory. Não obstante, a problemática encontrada é a de que o movimento feminista, embora seja um movimento que enfatiza a igualdade e a diminuição das diferenças e desigualdades entre os gêneros, ainda é excludente, porque suas ações beneficiam e alcançam mais as mulheres que são privilegiadas, em detrimento de uma parcela da população que é marginalizada, excluída, e que estão em uma situação de dependência e que muitas vezes não é ouvida e é silenciada. Para que ocorra a explicação e análise de tais questões, o trabalho será composto por quatro seções. Após esta introdução, será feita a contextualização do tema, relacionando o feminismo com as relações internacionais contemporâneas, analisando as teorias construtivista, pós-positivistas, e as teorias feministas e póscoloniais nas RIs. A terceira parte, terá como enfoque a periferia, respondendo como a periferia é delimitada e seus aspectos caracterizadores, bem como relatos sobre a condição da mulher periférica brasileira. A quarta e última parte traz a discussão acerca das teorias feministas e se de fato elas alcançam a mulher periférica brasileira, bem como a explicação sobre movimentos feministas surgidos na periferia, e após as considerações finais. A metodologia a ser emprega pesquisa será a indutiva, com abordagem qualitativa por meio de pesquisa exploratória. Ela será utilizada no levantamento bibliográfico de livros, textos, periódicos e informações em geral e de caráter científico, que já foram publicados sobre a temática de feminismo, teoria feminista, periferia e mulher periférica. 2 FEMINISMO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS As mulheres têm trabalhado juntas através das fronteiras pelos direitos das mulheres desde pelo menos a era da primeira onda do feminismo. A luta pelos direitos políticos e 142 | Gênero, violência e estruturas de poder sociais, assim como pela paz e o antimilitarismo, uniram as mulheres nas primeiras décadas do século XX. Em meados do século, o movimento de mulheres começou a divergir, agrupando-se dentro de fronteiras nacionais ou zonas econômicas, enfatizando diferentes prioridades e alinhando- se com correntes ideológicas divergente 3(tradução da autora)4. 2.1 Teoria construtivista e o pós-positivismo No âmbito acadêmico das Relações Internacionais, e mais especificamente do chamado terceiro debate, destaca-se a teoria construtivista, e é a partir de sua discussão conceitual e desestruturação de linha de pensamento teórico que as teorias conhecidas como “pós-positivistas” irão se desenvolver. A partir daí, podemos discutir questões acerca das teorias pós-coloniais e feministas nas RIs, teorias estas que irão orientar o presente artigo. Em um momento anterior a discussão das teorias pós-positivistas, a teoria construtivista surge como um meio termo, entre à aplicação de ciências nas RIs por meio de teorias classificadas dentro do primeiro grande debate das relações internacionais - os racionalistas (ou realistas), que preferiam a explicação das “relações internacionais como simples respostas comportamentais às forças da física que atuam em objetos materiais a partir do exterior” 5 , e entre os grandes cânones daqueles que escreveram teorias durante o conhecido “segundo debate das relações internacionais” - os behaviouristas e ou cientificistas, que buscavam entender o comportamento dos atores internacionais de uma forma científica, baseando-se em metodologias experimentais para alcançar os pressupostos científicos. O construtivismo para Adler, é 3 Shepherd, L.J. Gender Matters in Global Politics: A Feminist Introduction to International Relations (2nd ed.), Routledge, 2010, p. 295. 4 Women have worked together across borders for women’s rights since at least the era of first-wave feminism. The struggle for political and social rights, as well as peace and anti-militarism, united women in the early decades of the twentieth century. In mid-century the women’s movement began to diverge, grouping itself within national boundaries or economic zones, emphasizing different priorities, and aligning with divergent ideological currents. 5 ADLER, Emanuel. O construtivismo no estudo das relações internacionais: Where‘s the Power?. Lua Nova: Revista De Cultura E Política, 1999, p. 204, 1999. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ln/a/wtb8YfCjS5T3NsL4ZXtHnRR/?lang=pt#>. Acesso em: 27 de jun. 2023. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 143 a perspectiva segundo a qual o modo pelo qual o mundo material a forma, e é formado pela ação e interação humana depende de interpretações normativas e epistêmicas dinâmicas do mundo material. O construtivismo mostra que mesmo nossas instituições mais duradouras são baseadas em entendimentos coletivos; que elas são estruturas reificadas que foram um dia consideradas ex nihilo pela consciência humana; e que esses entendimentos foram subsequentemente difundidos e consolidados até que fossem tidos como inevitáveis. Além disso, os construtivistas acreditam que a capacidade humana de reflexão ou aprendizado tem seu maior impacto no modo pelo qual os indivíduos e atores sociais dão sentido ao mundo material e enquadram cognitivamente o mundo que eles conhecem, vivenciam e compreendem. Assim, os entendimentos coletivos dão às pessoas razões pelas quais as coisas são como são e indicações de como elas devem usar suas habilidades materiais e seu poder 6. Portanto, o construtivismo surge como alternativa para o campo epistemológico das ciências nas RIs, aumentando o campo de discussão, para o que poderia ser pensado de outras formas não convencionais e doravante modernas para compreender a relação entre “agente- estrutura”, bem como a introdução da discussão sobre como os agentes individuais constroem socialmente essas estruturas que os “amarram”. A partir de então, os diálogos entre as correntes teóricas clássicas e tradicionais do pensamento político tão necessários para a discussão de questões nas relações internacionais, também passaram a dividir espaço com novas e modernas filosofias, que hoje possuem maior abrangência (mesmo que, atualmente ainda sutis) no campo teórico das relações internacionais, como as discussões feitas pela teoria crítica, teoria pós-colonial, teoria pósmoderna, e teoria feminista. Assim, Adler enfatiza que Do outro lado da divisa, pós-modernos e pós-estruturalistas (Ashley e Walker, 1990; Der Derian e Shapiro, 1989), teóricos críticos (Cox, 1986; Hoffman, 1987; Linklater, 1989, 1996) e teóricos feministas (Runyan e Peterson, 1991; Tickner, 1992) constroem uma filosofía da ciência relativista e uma sociologia interpretativista do conhecimento; eles propõem que se debata a natureza das relações sociais internacionais e que se discuta meio para seu estudo porque, no mundo social e interpretado em que (como eles o vêem) vivemos, apenas as idéias importam e podem ser estudadas 7. 6 7 Ibid, p. 204. ADLER, loc. cit. 144 | Gênero, violência e estruturas de poder Após o desenvolvimento do construtivismo, a teoria pós-positivista entra em debate. Barros argumenta que o pós-positivismo tem como característica “a crítica à utilização de um único método nas análises de um objeto de estudo complexo como as relações internacionais e destaca a ideia de construção social para o entendimento do comportamento dos atores no campo da política internacional”8. O pós-positivismo também se destaca principalmente em relação à critica ao pensamento racionalista, pois para os pós-positivistas, o racionalismo e sua episteme funcionava como uma forma de impor ao mundo uma “visão epistemológica ocidental”, além disso, a metodologia pós-positivista empregada é baseada na interpretação histórica e textual, dando ênfase na importância de que para a produção de ciência é necessário que haja “a reflexão humana sobre a natureza das instituições e sobre o caráter da política mundial além de considerarem as Relações Internacionais como um conjunto de fenômenos socialmente construídos” e os pós-positivistas tendem a ter “uma desconfiança perante modelos científicos universais que explicam a política mundial”9. Assim, As perspectivas pós-positivistas são de caráter fundamentalmente interrogativo. Não se pretende a explicação do mundo, mas sim, a desmistificação de explicações já formuladas e que hoje são entendidas como realidade sobre a qual não temos poder de ação. Ao se tornar uma ideologia fundada em realidades reificadas, a ciência moderna privou o ser humano da possibilidade de pensar em mudanças, como se o status quo fosse o mundo em sua única possibilidade e nada pudesse ser feito a respeito. Diferentemente do que a maioria dos críticos positivistas sugere, os pós- positivistas não pretendem destruir o que fora até aqui construído, mas mostrar que como construções sociais, outras construções podem ser feitas, mobilizando as questões relativas ao conhecimento. Os pós-positivistas argumentam que a consciência da prática política diária devolve para o homem a ideia de responsabilidade sobre o mundo que ele constrói. O entendimento da política internacional como um ambiente onde a moral não pode ser discutida tira a responsabilidade dos ombros daqueles que 8 BARROS, Mariana de Oliveira. Pós-positivismo em Relações Internacionais: contribuições em torno da problemática da identidade. 2006. p. 14. (Flávia de Campos Mello) – Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006. Disponível em: <https://www.academia.edu/5285963/TIAGO_DANTAS_DE_P%C3%93S_GRADUA%C3%87%C3%83O_ EM_RELA%C3%87%C3%95ES_INTERNACIONAIS>. Acesso em: 10 de jul. 2023. 9 BARROS, loc. cit. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 145 constroem a realidade internacional diariamente. O pós-positivismo é critico a essa ideia10. É nas correntes pós-positivistas que se situam as teorias feministas, as teorias críticas, as teorias pós-modernas, as pós-estruturalistas e as póscolonialistas das relações internacionais. As contribuições pós-modernas/pós-estruturalistas e as feministas questionam qualquer visão logocêntrica de desenvolvimento ou de conhecimento cumulativo, argumentando que a própria ideia de progresso – assim como qualquer outro discurso de verdade - é composta por uma prática política que pretende privilegiar uma visão de mundo em detrimento de outras11. Não obstante, há de se destacar também a relação conceitual entre a teoria feminista e a teoria pós-colonial, que pode ser feita para discorrer sobre a condição da mulher periférica brasileira. A teoria pós-colonial enfatiza que os povos de culturas não-dominantes, ou não- ocidentais, e que estão fora do eixo americanoeuropeu (e que recebe tanto foco nas RIs)12, também merecem ter suas questões ouvidas bem como ter voz perante às comunidades (epistêmicas, acadêmicas e etc)13. Portanto, Estudos teóricos do pós-colonialismo refletem a perspectiva não hegemônica, não ocidental de povos dominados e de culturas excluídas ao longo dos tempos pelas principais potências. A escola pós-colonial abarca a perspectiva crítica das partes não amplamente representadas pelos holofotes da academia do eixo americano-europeu das Relações Internacionais. (...) Ou seja, há brados legítimos dos povos, das culturas, dos 10 Ibid, p. 61. Ibid, 2006, p. 49. 12 MONTE, Izadora Xavier do. Gênero e Relações Internacionais – Uma Crítica ao Discurso Tradicional de Segurança. Izadora Xavier do Monte – Brasília, 2010, p. 5, – 145 f. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/7726/1/2010_IzadoraXavierMonte.pdf>. Acesso em: 07 de jul. de 2023. 13 Feminismos pós-coloniais são também conhecidos como anti-racistas ou anti-imperiais. A economia é importante fator explicativo para essa corrente, mas sua principal ênfase está na interseção entre imperialismo, colonialismo, capitalismo e racismo e a opressão das mulheres. As mulheres do Terceiro Mundo experimentariam formas particularmente agudas de opressão por causa dessas interrelações. As pós-coloniais desafiam a distinção entre o local e o global, afirmando que estruturas de dominação perpassam esses níveis. (MONTE, 2010, p. 76). 11 146 | Gênero, violência e estruturas de poder dialetos e das línguas “não universais” que precisam ser escutados até mesmo como forma de consolidar o contraditório, ampliando o conceito de democratização analítica das Relações Internacionais14. Não obstante, as questões de gênero, raça e classe devem ser pensadas com o mesmo valor e com o mesmo peso, mesmo que ocorra a priorização de alguma em um determinado momento da análise intelectual, uma vez que elas estão, de fato, intrinsecamente conectadas. Pode-se então, relacionar a teorias pós-colonial com a teoria feminista, uma vez que a periferia e a mulher periférica, estão inseridas nesse contexto de opressão de gênero e classe (e, também, muitas vezes de raça)15. 2.2 Teoria feminista nas RI Os temas relacionados ao feminismo só começaram a ser colocados na agenda dos debates das Relações internacionais a partir do final da década de 1980, sendo pensados como uma alternativa para discutir questões importantes do cenário político internacional 16 . O gênero passou a ser enfatizado como fator importante para analisar as relações entre agentes e instituições internacionais, entre o Estado, bem como a importância do gênero e suas implicações para a construção do mundo atual. Castro argumenta que O approach feminista é de natureza pós-positivista no lapso temporal do terceiro grande debate das RI. Sendo pós-positivista, a escola feminista, como a escola construtivista e perspectiva do sociologismo histórico, tece críticas sobre o método científico das ciências sociais como ferramenta de operacionalidade e previsibilidade lógica. Advogam, portanto, aspectos da teoria normativa como meio de superar as limitações do 14 CASTRO, Thales. Teoria das relações internacionais. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão FUNAG, 2016, p. 390. 15 D’ANDREA, T. Contribuições para a definição dos conceitos periferia e sujeitas e sujeitos periféricos. Novos estudos. Cebrap, v. 39, n. 1, p. 19–36, jan. 2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/nec/a/whJqBpqmD6Zx6BY54mMjqXQ/?lang=pt#>. Acesso em: 01 de julho de 2023. 16 MONTE, 2010. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 147 positivismo clássico vigente por durante as duas grandes gerações de debates teóricos em RI17. Além disso, Monte enfatiza que “as estudiosas feministas utilizam as análises de gênero para desconstruir a estrutura teórica das Relações Internacionais e revelar o enviesamento em conceitos de poder, segurança e soberania”18. Não obstante, A inclusão do gênero como parte do campo de estudo das relações internacionais no pós-Guerra Fria foi ponto de partida para o surgimento de um número considerável de abordagens feministas na disciplina. Algumas delas têm ampla bagagem histórica e caráter mais político do que propriamente um programa de pesquisa científico, como as feministas liberais. Em comum, todas procuram nas instituições e normas do sistema internacional explicações para a assimetria nas relações entre os gêneros e para a construção das identidades baseadas nessa categoria; todas incluem no seu projeto científico uma dimensão política – não apenas de superação da opressão feminina, mas também de construção de uma ordem internacional mais justa, na qual hierarquias, de gênero, classe ou raça não estejam presentes. A ênfase nas instituições não impede que algumas dessas abordagens utilizem métodos empiristas, enquanto outras se concentram na desconstrução do discurso científico tradicional – o uso do gênero como categoria de análise continua sendo o fio de ligação entre elas 19. Portanto, entende-se que a teoria feminista nas RIs tem como um dos propósitos a desmistificação da relação entre o estudo de gênero e o campo político, enfatizando que a ordem internacional tem um determinado olhar “masculino” para lidar com questões tanto de high polítics (questões relacionadas à segurança e defesa) e low polítics (questões relacionadas à economia e sociais). Assim, a teoria procura que seja repensado o “olhar hegemônico-dominante masculino” para estudar e explicar tais questões20, e também, A teoria feminista pós-moderna lida com a constituição das relações internacionais por gênero. Argumenta que as relações internacionais são resultado de um discurso 17 CASTRO, 2016, p. 405. MONTE, 2010, apud True, 2005, p. 05. 19 MONTE, 2010, p. 35. 20 CASTRO, 2012. 18 148 | Gênero, violência e estruturas de poder hegemônico masculino e que, consequentemente, "qualquer assunção de 'realidade' que negue, sub-represente ou mesmo re-[a]presente as mulheres devem ser plenamente contestadas e, portanto, radicalizada” 21. A partir do explícito, o artigo fundamenta-se a partir da abordagem de pensamento da teoria do ponto de vista feminista ou Feminist standpoint theory. A teoria do ponto de vista feminista é uma vertente da teoria feminista “que enfatiza a legitimidade e a autoridade da experiência e argumenta que as mulheres têm acesso exclusivo a um tipo particular de conhecimento e experiência em virtude de sua feminilidade22, tradução da autora23”. Além disso, a teoria coloca menos ênfase à experiência individual dos grupos socialmente construídos do que nas condições sociais dos mesmos 24 . Não obstante, A teoria do ponto de vista feminista tem uma compreensão explicitamente crítica do estado como um conjunto de práticas patriarcais que apoiam, mas silenciam, as desvantagens estruturais que as mulheres enfrentam. Crucial para colocar a crítica do feminismo ao estado patriarcal é a separação histórica da esfera pública e privada, com as mulheres localizadas na última, enquanto os homens seriam os governantes do público, bem como da família patriarcal. Para trazer à tona as implicações do estado patriarcal, deve-se, segundo o ponto de vista do feminismo, mudar o estudo de estados abstratos para como mulheres vivas reais são impactadas por estruturas econômicas e de segurança dentro e fora das fronteiras do estado. Isso envolve uma dupla mudança de foco das principais relações internacionais e do feminismo racionalista, na medida em que se move de estados para gênero e de estruturas abstratas para indivíduos concretos. As feministas do ponto de vista argumentam ainda que se deve focar em particular nas 21 RUNYAN, A. S; PETERSON, V.S. “The Radical Future of Realism: Feminist Subversions of IR Theory”. Alternatives: Global, Local, Political, vol. 16, no. 1, 199, p. 100. JSTOR. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/40644702>. Acesso em: 06 de jul. de 2023. 22 SHEPERD, 2010, n. p 23 That emphasises the legitimacy and authority of experience and argues that women have unique access to a particular kind of knowledge and experience by virtue of their femininity. 24 COLLINS, Patricia Hill. Comment on Hekman‘s "Truth and Method: Feminist Standpoint Theory Revisited": Where‘s the Power?, Signs: Journal of Women in Culture and Society, The University of Chicago Press, v. 22, ed. 2, 1997, p. 375-381. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/pdf/3175278.pdf?casa_token=DYN4sgAPGIAAAAA:dCEduhKj0JENI_7 Ju_V8aEJlHgLols1X6nCl7IaRl9qlsCwLu4ORFOC31pvsb8MaKUeduW8_T8sIwnMheOpUsTHYe_IvJcE2 ZxoftB6pidIImxzWY>. Acesso em: 07 de jul. de 2023. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 149 mulheres marginalizadas, pois elas são particularmente desfavorecidas, mas 25 sistematicamente negligenciadas, tradução da autora . Além disso, o feminismo liberal argumenta que a opressão das mulheres é causada pelas barreiras legais que o Estado impõe, impedindo-as de terem seus direitos individuais assegurados. Assim, o Estado é o principal agente para promover a igualdade entre os gêneros e a maior autoridade para garantir os direitos essenciais da mulher26. Portanto, Qualquer que seja sua classificação racial/étnica, os pobres como um grupo enfrentam barreiras semelhantes em questões básicas de sobrevivência. Nesse sentido, a teoria do ponto de vista parece especialmente adequada para explicar as relações de raça e/ou classe social porque esses sistemas de poder compartilham estruturas institucionais semelhantes27. Logo, o Estado não tem ações e políticas pontuais tendo em mente que as mulheres são o grupo que mais sofrem com os problemas enfrentados pelas pessoas que vivem nas periferias. Relacionando a logica das teorias feministas mais tradicionais, percebe-se que o debate acerca das causas “pró-feministas” ainda são operados dentro de uma estrutura excludente e de privilégios. Quem tem voz perante à comunidade internacional, que tem condições de irem a protestos e eventos feministas e liberais, que podem debater e estarem presentes no movimento e na produção das teorias feministas? A comunidade internacional. E essa comunidade é composto principalmente por mulheres, brancas e europeizadas ou norte-americanas, de 25 Feminism has an explicitly critical understanding of the state as a set of patriarchal practices that support, yet silence, the structural disadvantages that women face. Crucial to standpoint feminism’s criticism of the patriarchal state is the historical separation of the public and the private sphere, with women being located in the latter whilst men would be the governors of the public as well as the patriarchal family. In order to bring out the implications of the patriarchal state, one should, holds standpoint feminism, shift the study from abstract states to how real living women are impacted by economic and security structures within and across state boundaries. This involves a double shift of focus from mainstream IR and rationalist feminism in that it moves from states to gender and from abstract structures to concrete individuals. Standpoint feminists argue further that one should focus in particular on marginalized women as these are particularly disadvantaged, yet systematically overlooked. 26 Monte, 2010. 27 COLLINS, 1997, p. 378. 150 | Gênero, violência e estruturas de poder classe média alta, que tiveram acesso a todos os privilégios que suas classes sociais permitem. A partir de então, entende-se que a periferia muitas vezes não é incluída neste debate, nos debates acadêmicos e filosóficos sobre temas do feminismo. A teoria feminista do ponto de vista surge como uma possibilidade de dar voz e “lugar de fala” das mulheres periféricas, uma vez que prioriza as experiências individuais de corpos femininos marginalizados. 3 A PERIFERIA E A MULHER PERIFÉRICA BRASILEIRA 3.1 O que é a periferia? A periferia discutida aqui é entendida como um lugar ou lugares (espaciais e geográficos) relacionados ao espaço urbano e social que existem nas cidades (principalmente de países que tem problemas de subdesenvolvimento econômico), e enfrentam problemas coletivos de precarização por diversos fatores, sejam eles por questões habitacionais, de violência sistêmica, dependência econômica, falta de acesso à serviços básicos como educação e saúde pública, etc). Ivo argumenta que a periferia é o lugar que expressa criticamente a crise urbana, as desigualdades sociais existentes nas cidades do país, bem como o reflexo da precarização urbana28. É “um lugar de vivência contraditória de amplos segmentos populares adensados pela expansão imobiliária e pelo disciplinamento do espaço urbano promovido poder público”29. A periferia é, na linguagem popular, “um lugar gente pobre” e “um lugar afastado dos centros e da parte desenvolvida da cidade”. Entretanto, a periferia ao mesmo tempo não é apenas um lugar, mas também representa uma cultura, a cultura dos povos marginalizados, que estão em posição subalterna e que muitas vezes são subjugados. 28 IVO, Anete B. L. A PERIFERIA EM DEBATE: questões teóricas e de pesquisa. CADERNO CRH, Salvador, v. 23, ed. 58, 2010, p. 9-15. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ccrh/a/YwrthSbRhk96YXtQXkfkQgm/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 2 de jul. 2023. 29 Ibid, 2010, p. 9. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 151 A condição de "periférico", portanto, não é natural, mas representa um ponto de vista do "outro", ou seja, dos atores hegemônicos sobre o espaço construído e normatizado das cidades. Contém, portanto, tensões e conflitos inerentes às perspectivas e usos distintos atribuídos às cidades. Portanto, o periférico não se constitui num espaço apartado, mas num lugar de resistência e também de inovação das condições de moradia e reprodução da vida de seus moradores, na vivência da adversidade, do medo e da violência. Se, antes, tais espaços foram analisados a partir da configuração dos mercados informais, das lutas por moradia e pelas condições mínimas de reprodução social dos trabalhadores, hoje a essas questões se agregam outras, que expressam vivências controvertidas, amparadas e combinadas em normas compartilhadas de valores e disciplinamento extremamente complexas, nas fronteiras entre a reprodução da vida, do trabalho, da ordem e do disciplinamento do Estado, mas também da autonomia que sugerem os novos sentidos da política, impondo a busca de novos caminhos da pesquisa 30. Além disso, a periferia é o reflexo da exclusão, do distanciamento e segregação de determinados grupos marginalizados pela sociedade: exclusão essa que é reproduzida sistematicamente e principalmente pela camada da sociedade que é considerada como “superior” ou aquela que é elitista. Não obstante, a periferia para Jesus é traçada pelo Estado, pelas forças que agem em conjunto com ele e pela própria sociedade, uma espécie de linha: tênue o suficiente para se tornar invisível aos olhos de todos, inclusive de quem se encontra nesses locais; e, em contrapartida, forte o bastante para limitar a efetividade de políticas sociais, o fornecimento de serviços públicos estruturais e a autonomia na vida pública desses sujeitos. Noutras palavras, reforçamse as desigualdades, ao mesmo tempo em que elas são naturalizadas31. Portanto, a periferia carrega um sentido político, econômico e social, e que representa a perpetuação das desigualdades sociais existentes32. Em relação à sua dimensão demográfica, é impossível denominar ou delimitar a quantidade da 30 Ibid, loc. cit. JESUS, Likem Edson Silva de. PERIFERIA, UM TERMO CRÍTICO: DISTANCIAMENTOS ESPACIAIS, SOCIAIS E SIMBÓLICOS NAS CIDADES. Revista Movimentos Sociais e Dinâmicas Espaciais, Recife, v. 10, p. 58-78, 2021, p. 59. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistamseu/article/viewFile/244989/38612>. Acesso em: 11 de jul. 2023. 32 Ibid, 2021. 31 152 | Gênero, violência e estruturas de poder população periférica no mundo, entretanto, por meio de pesquisas quantitativas e levantamentos demográficos, pode- se estimar que existam mais de 200 mil favelas, em que a população varia entre centenas até milhões de pessoas em cada uma delas, assim, pode-se ter uma noção de que a periferia abrange milhares de pessoas em todo o mundo. No Brasil, a periferia surge como algo concreto em um contexto histórico a partir do século XIX, durante a época conhecida como Brasil colonial, principalmente no período em que os negros escravos passaram a ser considerados “livres” e alforriados por seus senhores. Uma vez que os escravos não possuíam mais serventia para os senhores, eles foram dispensados e em como toda história de dominação, a reprodução sistemática de opressão apenas se transformou e ficou encoberta. Mas será que eram livres de fato? Os mesmos não possuíam propriedade ou terras, portanto, passaram a ocupar espaços urbanos considerados inacessíveis, não ocupáveis e inabitáveis, afinal, era a única alternativa que tinham, formaram-se então os cortiços e as favelas. Além disso, pode-se considerar outros movimentos populacionais como marcadores para o desenvolvimento da periferia como conhecemos atualmente: “no Brasil, a construção do espaço urbano é marcada pelos intensos movimentos populacionais do campo para as cidades e pela chegada de trabalhadores imigrantes, principalmente para os aglomerados metropolitanos”33. Ivo argumenta que as metrópoles latino-americanas receberam a imigração massiva e viram crescer a classe trabalhadora, cuja presença se manifestou na formação de subúrbios populares, de moradias urbanas precarizadas, e nas diversas formas de lutas, às quais o Estado respondeu, nas décadas de setenta e oitenta, com programas de urbanização popular. Essa realidade expressava a convergência de uma modernização inconclusa, no sentido de ter integrado parcialmente as novas massas urbanas no mercado de trabalho, mas de modo muito limitado em termos da cidadania política e social 34. 33 34 Ibid, 2021, p. 61. IVO, 2010, p. 10. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 153 Há de enfatizar também que utilização do termo “periférico” não substitui os “marcadores raciais e de gênero que também explicitam as diferentes trajetórias e opressões que são vivenciadas por determinados grupos sociais, ainda que estes sujeitos possam compartilhar uma certa experiência urbana nas periferias e uma dada realidade socioeconômica”35. Assim, o sujeito periférico não é caracterizado apenas por estar em determinada localização, mas pelo poder de auto-atribuição das características relacionadas à cultura, linguagem e costumes organizados nas periferias36. 3.2 Problemas globais da periferia São inúmeros os problemas que a população periférica enfrenta em seu cotidiano. Os periféricos se encontram em risco a todo tempo, e o processo de precarização da periferia é evidente entre diversos setores, e são relacionados a problemas: econômicos, ambientais, sanitários, de saúde, de carência material, de violência e segurança (como a violência doméstica, violência institucional, violência institucional escolar), de discriminação, entre outros. Assim, “os pobres urbanos têm de resolver uma equação complexa ao tentar otimizar o custo habitacional, a garantia da posse, a qualidade do abrigo, a distância do trabalho e, por vezes, a própria segurança”37. Como argumenta Davis, é comum que nas periferias se encontre problemas ambientais, seja pela poluição do ar (causada principalmente por indústrias poluentes), desorganização de tráfego e trânsito congestionado, pela infraestrutura que vive em colapso, até pela má geologia dos espaços ocupados, que muitas vezes não suportam o contingente populacional que ali habitam38. 35 GOMES, Kátia Ramalho. Ser periférico: trajetórias materiais, perspectivas simbólicas. Le Monde Diplomatique Brasil, Brasil, p. n. p, 14 out. 2023. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/serperiferico-trajetorias-materiais-perspectivas-simbolicas/>. Acesso em: 12 jul. 2023. 36 É importante destacar que o uso do termo “periferia” em um sentido de autoatribuição crítica pelos próprios moradores dessas regiões não é uma prática que surgiu recentemente. Em São Paulo, na década de 1970, mobilizações sociais nesses territórios já utilizavam expressões como o “povo da periferia”, “mães da periferia”, “mulheres da periferia” (GOMES, 2020, n. p). 37 DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo, Editora Boitempo, 1° edição, 2006, p. 82. 38 Por exemplo, “os solos lateríticos muito desgastados sob as favelas das encostas de Belo Horizonte e de outras cidades brasileiras são catastroficamente suscetíveis a deslizamentos e desabamentos de terra” (DAVIS, 2006, p. 340). 154 | Gênero, violência e estruturas de poder Além disso, a falta de acesso à saúde pública de qualidade faz com que, na periferia, seja crescente os números de pessoas com doenças crônicas, doenças infecciosas e parasitárias (causadas pela contaminação da água e pelas péssimas condições sanitárias), DST`s39, e até mesmo de subnutrição. A desigualdade social presente também influencia nas questões de saúde, uma vez que problemas como o alcoolismo, tabagismo e sedentarismo, são aumentados pelas condições sociais e econômicas que os sujeitos periféricos estão inseridos. “Os pobres urbanos” (...) são a interface entre o subdesenvolvimento e a industrialização, e os seus padrões epidemiológicos refletem os problemas de ambos. Do primeiro recebem o fardo pesado das doenças infecciosas e da desnutrição enquanto da segunda sofrem a gama típica de doenças crônicas e sociais 40. Neste cenário de vivência entre a precarização das condições materiais e naturais naturalizadas na periferia, juntamente com a privação das condições sociais básicas (ampliadas principalmente pela exclusão social e perpetuadas principalmente pelo Estado que nega os direitos desses cidadãos), é evidente que nesses locais, a violência esteja institucionalizada, e seja experienciada diariamente por seus moradores. Nestes locais, é comum que a violência seja causada principalmente pela falta de segurança pública, e criminalidade exacerbada (causadas principalmente pelo tráfico de drogas, roubos e posse de armas ilegais), além disso há a opressão de gênero, violência contra adolescentes e crianças, entre outros. Não obstante, de acordo com D´Andrea, pontua-se aqui que existe também uma opressão territorial, sendo a periferia o polo oprimido dessa relação de opressão. Resultante de uma produção e de uma distribuição desigual da riqueza no espaço, a referida desigualdade se perpetua e se expressa por 39 Doenças sexuais transmissíveis, aumentadas principalmente pela falta de acesso à educação sexual. 40 DAVIS, 2006, p. 405. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 155 meio da dominação que o polo dominante, a área de habitação das elites, exerce sobre o polo dominado, a área de habitação dos mais pobres 41. Todos esses fatores, perpetuam os moradores da periferia à condição de indivíduos marginalizados. 2.3 A mulher periférica brasileira Tão pequenina, uma linda O sonho de vária das mãe, uma menina Uma filha mulher pra tecer pra trocar, pra tirar da solidão que existe lá Mães sofrem em silêncio há tanto tempo Nem todas tem a casa com equilíbrio no sustento As vezes naquela mais bela mansão Uma rotina de dor vai tecendo esse refrão Não é emprego, nem é profissão Mãe é mãe e a minha chora no caixão Ceis não sabe o que é favela Ceis nunca moraram nela Ceis vivem as suas vidas e ainda criticam elas... as mães...jovens, as filhas Nascer pra ser feliz, não só pegar barriga Mãe solteira, obesa, de periferia professora de escola pública, o alvo do dia Filha de um preto com uma nordestina O que pra vocês é vitimismo, pra nós, é nossa vida Abandono e o descaso são temperos deste coração Eu prometi que ia ser rico e cuidar dos meus irmãos Cuidar da minha irmã, agora só em prece Ela não tá mais aqui... é que esse mundo não te merece Eu vou ganhar dinheiro, mãe Porque é só assim que eles respeitam a gente 41 D’ANDREA, T. Contribuições para a definição dos conceitos periferia e sujeitas e sujeitos periféricos. Novos estudos. Cebrap, v. 39, n. 1, p. 19–36, jan. 2020, p. 5. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/nec/a/whJqBpqmD6Zx6BY54mMjqXQ/?lang=pt#>. Acesso em: 01 de julho de 2023. 156 | Gênero, violência e estruturas de poder (Mas pensar assim, Kleber, não é vitória do sistema, tio?) (Da onde eu vim, fi, sempre é vitória do sistema) (Bairro que depende do bom prato) (E os que nem bom prato tem?) (...) Ceis não sabe o que é amor, ceis só sabe que é rancor Ceis não têm dimensão do tamanho dessa dor Uma mãe não abraçar seu filho na situação Isso é tão triste da minha mais triste canção (...) Amor, precisamos de amor Precisamos nos abraçar pra acabar com a dor Sorrir. Cantar e resistir Questionar o real motivo de tudo isso aqui Pois abandono e o descaso são temperos desse coração 42. A realidade diária de uma mulher periférica é a de luta e de desamparo. As mulheres da periferia sentem diariamente o peso de não estarem inseridas em um contexto de aparato social, (aparato este que deveria ser feito pelo Estado), quanto pela própria estrutura em que a periferia foi institucionalizada. Além dos problemas comuns, compartilhados pelo povo periférico943, as dificuldades econômicas, a falta de segurança e a violência generalizada, se sobressaem na vida da mulher periférica brasileira. Na periferia, se por um lado podemos enxergar a construção de uma identidade feminina criada a partir do território, por outro percebemos agravantes promovidos pela falta de direito de serviços públicos básicos como a saúde, educação, moradia e o transporte, além de constantes violências advindas principalmente do Estado 44. De acordo com Spivak, “a consciência de classe permanece atrelada a um sentimento de comunidade ligado por conexões nacionais e por organizações políticas, e não àquele outro sentimento de comunidade cujo modelo estrutural é a 42 PEQUENINA. Intérprete: Criolo, Jaques Morelenbaum, Liniker, Maria Vilani e MC Hariel. Compositor: Criolo. In: SOBRE VIVER. Compositor: Criolo. São Paulo: OLOKO Records, 2022.faixa 8 (4:33 min). Disponível em: <https://open.spotify.com/track/3aZy5TkQmjnVvxwaMikBAd?si=93ffbbc5ddf84854>. Acesso em: 3 de jul. 2023. 43 Sejam eles problemas de: raça, mobilidade urbana, saúde, assistência social e etc. 44 AQUINO, De Lima C. DA GEOGRAFIA FEMINISTA À MULHER PERIFÉRICA NA ATUALIDADE. Revista Espirales, [S.l.], p. 6–16, 2021, p. 12. Disponível em: <https://revistas.unila.edu.br/espirales/article/view/2676>. Acesso em: 10 jul. 2023. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 157 família”45. Portanto, na periferia, o conceito de família é significativo para quando se discute a questão de reprodução de modos patriarcais de opressão, pois muitas vezes expressa que a mulher, precisa estar e viver naquele sistema de desamparo social, pois ela “precisa conseguir” cuidar dos filhos, do marido, dos pais e etc. A professora Núbia Amorim, em uma entrevista, indagada sobre a condição da mulher periférica brasileira, argumenta que: “Não existe opção, você nasceu mulher, preto e pobre periférica não existe opção ou você vai pra luta e defende a sua vida ou você vai ser exterminado e você vai ser exterminado sem ter ninguém pra lutar por você. (...) a partir do momento que nenhuma política pública alcança essas mulheres, elas estão marginalizadas, elas não recebem nenhum apoio de nenhum momento, o pouco apoio que chega é: eu te dou um prato de comida” 46. Joana Ferreira Carvalho, conduz outro testemunho sobre a condição da mulher periférica: “Meu nome é Joana Ferreira Carvalho, eu moro no Parque Santo Antônio, tenho um filho. Trabalho na Berrini há quinze anos na mesma empresa. E estudo no CIEJA. Tô me realizando, tá voltando a estudar aos cinquenta anos, porque onde eu nasci não tinha escola. Eu nasci no sertão da Bahia. Não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não tinha não tinha ônibus, não tinha nada. Às vezes até faltava o alimento. Aí você não tinha, não tinha escola mesmo. Não tem como você estudar. depois eu vim pra cá com os dezenove anos eu cheguei aqui eu ia estudar aí eu fiquei fui criar meus filhos só e a minha a minha prioridade foi cuidar dos meus filhos, trabalhar e cuidar deles. Quando eu tive a oportunidade, que eles cresceram, eu fui trabalhar no horário que não dava. Não é todo mundo que tem coragem, a coragem que eu tive de criar dois filhos sozinha, de ser discriminado, você é discriminada, você é visto com outros olhos, você escuta coisas que você que lhe assusta. Eles vão virar bandido. Eu escutei muito isso”47. 45 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte. Editora UFMG. p. 133, p. 48. Disponível em: <http://wisley.net/ufrj/wpcontent/uploads/2015/03/images_pdf_files_Pode_o_subalterno_falarSpivak.pdf>. Acesso em: 15 de jul. de 2023. 46 INSTITUTO CLARO. Mulheres periféricas formam rede de apoio para resistir à desigualdade. Youtube. 15 de set. de 2021. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=ZjUm_wLXjs0>. Acesso em: 15 de jul. de 2023. 47 NÓS, MULHERES DA PERIFERIA. Nós, Carolinas - vozes das mulheres da periferia. Entrevista com Joana Ferreira Carvalho. Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=firLn02imCM>. Acesso em: 15 de jul. de 2023. 158 | Gênero, violência e estruturas de poder E em um lugar onde a educação sexual não é ensinada de uma forma eficaz, que o índice de gestação na adolescência é alto, e que muitas vezes essas mulheres são abandonas ainda gestantes ou ainda recém-nascidas, “sobra” para a mulher, o pesado fardo de cuidar (em um ambiente muitas vezes hostil) de sua família. Restalhes então a preocupação com aqueles que elas cuidam, e o que ocorre é que muitas, acabam não tendo a oportunidade de ter uma vida social, de cuidar de si mesmas, e ficam presas a um ciclo entre trabalho, cuidar da família e cuidar da casa. 4 O FEMINISMO E A MULHER PERIFÉRICA Se não nascemos mulheres, mas nos tornamo-las 48 , tornar-se mulher em condições tão difíceis como as que se encontram em locais periféricos demonstra ser um imenso desafio. Lidar também com o sentimento de não ser capaz ou suficiente para poder sobreviver em um sistema que oprime a mulher apenas por ser mulher, que faz o silenciamento dos corpos oprimidos, é exterminador. Os oprimidos “podem falar e conhecer suas condições”49, entretanto, na realidade, não é comum assistir mulheres periféricas falando sobre suas condições. Dona Jacira, escritora negra e da periferia de São Paulo, em uma fala, argumenta que a informação sobre suas condições de fato não alcança a mulher periférica, ela diz que: Devo dizer que assim eu assisto bem pouco os canais de televisão. Foi uma opção minha porque eu precisava ler e buscar mais sobre a minha história. Mas no dia oito eu estava na rua. Então todos os lugares que tinha televisão sempre estava se falando das melhorias, “a partir do dia oito a vida da mulher vai melhorar”. Eu falei gente parece que eu estou em outro mundo. Punha num canal e era um ministro, punha num outro canal e era uma outra pessoa e todo mundo dizendo das coisas que nós estamos falando todos os dias. Mas aí eu volto para o meu lugar. Jardim Brasil Novo, Jardim Ataliba Lionel, como diz os meninos do rap, da ponte pra lá. As mulheres de lá não sabem disso. Eu conheço toda a luta das meninas das mulheres do grupo e do meu grupo de resistência do Iluminan. Mas isto me custa cento e trinta reais de condução. A gente não tem como fazer essa travessia. Eu posso ir de outro meio, mas antes de tudo eu preciso que a 48 49 BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,1980, p. SPIVAK, 2010, p. 70. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 159 informação chegue aonde eu estou, e pra eu buscar esta informação, primeiro os meus filhos tiveram que ir até lá e conseguir meios, para que eu conseguisse deslocar de um lugar onde eu estou. A gente não aparece nas estatísticas. De manhã nos pontos dos ônibus só tem mulheres. Não é? A gente vê os homens em várias situações, mas quem comanda, quem vai buscar o dinheiro, quem vai trabalhar são as mulheres, mas elas não conhecem a própria situação (RODA VIVA, 2019) 50. Porém, alguns movimentos feministas estão conseguindo realizar, mesmo que em passos lentos, a descolonização do conhecimento em algumas áreas periférica que antes não tinham qualquer acesso à movimentos em prol da vida feminina, principalmente nas periferias de cidades grandes e cosmopolitas, como algumas regiões de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Tal descolonização seria um meio para que as mulheres entendessem sua posição e suas necessidades enquanto moradoras de periferia, desmistificasse conceitos relacionados ao feminismo, e que pudesse dar mais espaço e voz para essas mulheres. Medeiros51, fala que esse desenvolvimento do coletivo feminismo periférico surge a partir dos movimentos artísticos e culturais na periferia, como os saraus periféricos e o movimento de Hip-Hop. Assim, O “feminismo periférico” é constituído por coletivos que, na maioria das vezes, se autocompreendem como feministas e que surgem a partir do ano de 2010, por iniciativa de mulheres jovens, nascidas nas décadas de 1980-90, sem estruturação políticopartidária e a partir do encontro entre movimentos culturais periféricos e debates sobre feminismo nas redes sociais digitais. Suas principais práticas são de caráter artísticocultural52. Spivak argumenta que na sociedade o subalterno não pode (ou não tem condições) de falar, e que não há valor algum atribuído à "mulher" como um item 50 RODA VIVA. Dona Jacira sobre a importância da informação para mulheres periféricas. Youtube. 9 de março de 2021. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=6jihDD3HR3Q>. Acesso em: 08 de jul. de 2023. 51 MEDEIROS, Jonas. DO “FEMINISMO POPULAR” AO “FEMINISMO PERIFÉRICO”: MUDANÇAS ESTRUTURAIS EM CONTRAPÚBLICOS DA ZONA LESTE DE SÃO PAULO*. Revista novos rumos sociológicos. v. 7. n. 11. 2019. 52 Ibid, p. 302. 160 | Gênero, violência e estruturas de poder respeitoso nas listas de prioridades globais 53 . Portanto, é necessário que as mulheres comecem a falar sobre suas realidades e vivências, entretanto, o desafio enfrentado é dar a oportunidade e as ferramentas necessárias para que as mulheres periféricas falem sobre suas vidas. Esse apoio social, pode ser o primeiro passo, para que a mulher subalterna fale. Parece, entretanto, que o problema do sujeito emudecido da mulher subalterna, embora não seja resolvido por meio de uma busca "essencialista" de suas origens perdidas, tampouco pode ser determinado com o apelo por mais teoria no contexto angloamericano”54. Porém, pode-se questionar, a teoria feminista tem esse papel? Ela precisa dar voz à essas mulheres? Se o feminismo é popularmente conhecido como uma oportunidade de “ação política” para que as mulheres conquistem direitos, enquanto promotoras e agentes de mudança social, e as teorias, que falam sobre o sistema de opressão global patriarcal, hegemônico e que trata as mulheres com desigualdade, tem sim, como papel, fazer com que essas estruturas sejam quebradas, modificadas e devem criar oportunidades para que essas disparidades sociais sejam diminuídas. O papel do feminismo é abrir portas, e as mulheres periféricas precisam desse espaço e acolhimento, para que a teoria alcance lugares mais remotos. Em relação a teoria feminista das relações internacionais, considerando que a mesma, surgiu com o objetivo de poder ter um novo olhar ao se observar os fenômenos no cenário político internacional, é imprescindível que não apena os Estados (enquanto nações), mas que as feministas e aqueles que produzem pesquisas científicas e trabalham para o desenvolvimento das teorias feministas, olhem para a situação das mulheres marginalizadas e periféricas brasileiras. Empoderar os pobres, incluindo as mulheres, de modo que eles tenham controle sobre suas próprias estratégias de vida, certamente vale a pena lutar: uma época em que os 'pobres' são tão 'empoderados' que podem rejeitar os ditames de governança das 53 54 SPIVAK, 2010, p. 165. Ibid, p. 116. Vitória Márcia de Freitas Oliveira | 161 instituições ocidentais será um fascinante um para viver, não menos pelas respostas das instituições que eles rejeitam55. Considerações Finais O desenvolvimento deste estudo buscou apresentar de maneira breve uma análise da relação entre feminismo, periferia e a mulher periférica brasileira, dando enfoque para a teoria feminista do ponto de vista, com o propósito também de levantar a discussão acadêmica sobre as condições das mulheres periféricas brasileiras, que estão desamparadas e convivem com questões de violência de gênero, violência doméstica, além de outros problemas no cotidiano, apenas por serem mulheres que moram na periferia. Não obstante, é um fato que as correntes teóricas feministas na disciplina de Relações Internacionais encontram diversas intercorrências em seu desenvolvimento e aplicabilidade. A dificuldade se encontra no assentamento da disciplina como algo importante e que merece ter mais ênfase em seu estudo por outras vertentes das RIs. O fato de que as teorias de gênero, as teorias feministas e o feminismo não eram levados em questão e não eram vistas como importantes, reflete o mundo e o sistema internacional como um sistema patriarcal, machista e que mede seu poder por meio da opressão e violência em que vivemos por muito tempo, afinal, mulheres sempre estiveram presentes nos conflitos, e principalmente a partir do século XX, no desenvolvimento das teorias políticas e das relações internacionais. As teorias clássicas lidavam, sobretudo, com questões de guerra e paz, soberania e Estado. O feminismo só pode se desenvolver de fato dentro da disciplina após as teorias clássicas demonstrarem estar defasadas e não terem êxito em explicar questões atuais, do cenário político internacional. Não é à toa que estamos estudando a todo momento sobre as mudanças. Entretanto, o debate feminista das relações internacionais ainda é centrado no internacional. Assim esse exercício de reflexão sobre a natureza dos Estados (que estão inseridos no sistema internacional) e como eles lidam com os problemas relacionados ao gênero e dão amparo às mulheres é necessário para que a realidade 55 SHEPERD, 2010, p. 229. 162 | Gênero, violência e estruturas de poder das mulheres periféricas brasileiras, mudem. Pergunto-me qual o papel do internacionalista e principalmente enquanto internacionalista feminista brasileira, no papel da mudança e poder ser agente de transformação não apenas em algum lugar ideal ou ideológico, mas de fato pela construção de novas ideologias. A mudança está ocorrendo agora, e cabe a nós acompanhá-las. Os centros urbanos e a classe social que habitam na periferia refletem principalmente uma questão econômica, mas que também política. Porém, há, principalmente entre aqueles cidadãos que são caracterizados como a “elite econômica” a ideia de que a periferia é um lugar feio, sujo, e nominalmente horrível. Talvez seja que de fato, a estética encontrada nos locais que estão longe do centro, represente uma desigualdade e ou uma diferença social e econômica. Entretanto, é na periferia que as garçonetes, as empregadas domésticas, os professores e grande parte dos trabalhadores brasileiros, residem, existem e sobrevivem. Todos os dias, é na conurbação periférica que milhares de pessoas se relacionam e também participam ativamente da ordem política. E são essas pessoas que não tem acesso à cultura, a arte, a educação e saúde de qualidade. Por fim, a realidade é cruel e distante de uma utopia de segurança, paz e igualdade e que é tão discutida quando se relaciona a conceitos das Relações Internacionais. Referências AQUINO, De Lima C. DA GEOGRAFIA FEMINISTA À MULHER PERIFÉRICA NA ATUALIDADE. Revista Espirales, [S.l.], p. 6–16, 2021. Disponível em: <https://revistas.unila.edu.br/espirales/article/view/2676>. Acesso em: 10 jul. 2023. ADLER, Emanuel. 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A VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO FUNDADO TEMOR DE PERSEGUIÇÃO DENTRO DO ESCOPO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS https://doi.org/10.36592/9786554601566-08 Lúcia Pfeifer Cruz1 INTRODUÇÃO Assim como o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional dos Refugiados apresenta-se como um ramo relativamente recente no Sistema Internacional. O contexto no qual a matéria de “refugiados” foi criada data do Pós Segunda Guerra Mundial, uma vez que os documentos que regulamentam a temática, quais sejam, a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967, são dessa época. A Convenção de 1951, responsável por definir o status de refugiado, é vista como um documento de caráter não discriminatório, uma vez que este não define em seus critérios um gênero específico para o conceito de refugiado. Supostamente, tal característica significaria que, sendo o solicitante de refúgio homem ou mulher, a solicitação não seria condicionada com base no gênero. Concomitantemente, as peculiaridades de determinado gênero, masculino ou feminino, tampouco seriam consideradas – mesmo quando determinantemente inseridas em um contexto de violação de direitos humanos. A primeira questão a ser analisada aqui trata-se de que o elemento não discriminatório não é exatamente verdadeiro quando se trata de mulheres que tiveram experiências com perseguição por razões de violência de gênero. Para que tal questão seja endereçada, um passo para trás deve ser dado: qualquer tipo de violência de gênero não era considerada relevante no âmbito do Direito Internacional até o fenômeno do Feminismo atingir uma escala global. Nesse sentido, uma vez que a violência de gênero não é vista como uma preocupação a ser endereçada internacionalmente, quando muito na seara 1 Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS 166 | Gênero, violência e estruturas de poder doméstica, seu reconhecimento como fundamento para pedidos de refúgio estava longe de ser considerado discutível por autoridades quando a Convenção de 1951 foi redigida. Tal ausência de normativa não fez, nem faz, tal temática menos importante ou perceptível, uma vez que a violência contra as mulheres trata-se de um problema que sempre existiu. Para endereçar apropriadamente a violência de gênero como uma questão que requer atenção internacional, a perspectiva masculina e branca prevalescente no Direito Internacional deveria ser adaptada aos movimentos feministas que aconteciam para fins de alterar a narrativa de proteção aos direitos humanos. Para que isso ocorresse, juntamente com o Feminismo, um movimento de acadêmicas, pesquisadoras e advogadas de direitos humanos iniciaram um processo de crítica e questionamento à falta de atenção existente no Direito Internacional em relação à proteção dos direitos das mulheres. Após a criação da CEDAW (Convenção de Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres) e o aparecimento de documentos de soft law que, de certa forma, adaptaram o conceito de refugiado, inserindo a violência de gênero como fundamento para pedidos de refúgio através da classificação de mulheres vítimas de tal violência como pertencentes a determinado grupo social, foi possível a alteração de um paradigma de que os direitos das mulheres seria apenas uma questão de ordem privada e, portanto, pertencente ao âmbito doméstico. Apenas após o surgimento do movimento feminista internacional que a lacuna de gênero dentro do Direito Internacional dos Refugiados passou a ser questionada e inserida no âmbito internacional de proteção aos direitos humanos. 1. A LACUNA DE GÊNERO NA CONVENÇÃO DE 1951 E NO PROTOCOLO DE 1967 A determinação do status de refugiado (Refugee Determination Status - RDS) é demonstrada através da existência de elementos específicos, quais sejam, a demonstração de fundado temor de perseguição em função de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou por tratar-se de membro de determinado grupo social. Lúcia Pfeifer Cruz | 167 No entanto, deve-se atentar ao fato de que os critérios para a determinação do status de refugiado sofreu um processo de flexibilização através dos anos após o avanço dos direitos das mulheres. Ademais, cumpre mencionar que para que a lacuna de gênero fosse retratada no cenário da comunidade internacional, foi necessária a realização de um processo crítico e questionador dos estáveis e imutáveis critérios para concessão de refúgio, de forma que estes fossem adaptados ao movimento global dos direitos das mulheres. Ainda assim, para que tal processo seja tratado, o contexto no qual a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 foram criados deve ser analisado. A Convenção relativa aos Estatuto dos Refugiados de 28 de julho de 1951 e seu Protocolo de 1967 são os documentos legais que formam a base de trabalho do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Ratificados por 149 países, tais documentos definem o termo “refugiado” e seus direitos e, ao mesmo tempo, reúnem as obrigações dos países signatários no que tange à proteção dessas pessoas.2 A Convenção de 1951 foi redigida no contexto Pós Segunda Guerra Mundial e tinha como objetivo proteger os cidadãos que tiveram que deixar seus territórios em função do conflito. Já o Protocolo de 1967 expandiu o escopo de atuação da convenção a nível global – antes havia certa limitação à proteção de cidadãos europeus e, com o advento do Protocolo de 1967, houve uma preocupação em aumentar a proteção de migrantes forçados no âmbito mundial, bem como considerado que não haveria uma limitação em termos de datas ou espaços geográficos para a aplicação das disposições da Convenção. A ACNUR define refugiado como “[...] alguém que é incapaz ou impedido de retornar ao seu país de origem em razão de fundado temor de ser perseguido por razões de raça, religião, nacionalidade, por pertencer a determinado grupo social ou por opinião política.”3 2 UNHCR, United Nations High Commissioner for Refugees, https://www.unhcr.org/1951-refugeeconvention.html#:~:text=The%201951%20Refugee%20Convention%20and,of%20States%20to%20pro tect%20them, 2019 3 ACNUR, Texto da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, pág. 03, 1951 168 | Gênero, violência e estruturas de poder A Convenção de 1951 também possui várias garantias contra a expulsão de refugiados, sendo necessário citar a importância do princípio de non-refoulment, o que implica que nenhum Estado pode expulsar ou devolver um refugiado contra a sua vontade para o território no qual ele ou ela teme por ameaças a sua vida ou liberdade4. A razão pela qual tal princípio existe se dá pelo comprometimento em proteger a vida humana dos refugiados, sem a opção de devolve-los ao contexto de abuso e vulnerabilidade dos quais escaparam. Paralelamente ao desenvolvimento de uma consciência internacional no contexto de proteção aos refugiados, alterações começavam a surgir no âmbito internacional em termos de direitos das mulheres. Ao fim dos anos 1970, a Convenção pela Eliminação de todas as Formas de Violência contra a Mulher (CEDAW) foi criada e reconhecida como a Convenção dos direitos humanos das mulheres. A CEDAW foi determinante, juntamente com o movimento feminista que emergia à época, para o reconhecimento da importância de uma perspectiva de gênero dentro do Direito Internacional e do Direito Internacional dos Refugiados – ou mais especificamente, a percepção de uma lacuna de gênero existente no conceito de refugiado desenvolvido pela Convenção de 1951. A criação da CEDAW foi responsável pelo início de vários eventos referentes aos direitos das mulheres que foram capazes de enfatizar a ausência de uma abordagem de gênero no âmbito do Direito Internacional. A referida Convenção deu início a uma série de conferências de nível global que trataram de questões concernentes ao papel da mulher e seus direitos, tais como: I Conferência Mundial sobre Mulheres, “Igualdade, Desenvolvimento e Paz” (México, 1975); II Conferência Mundial sobre Mulheres, “Educação, Emprego e Saúde” (Copenhague, 1980); a III Conferência Mundial sobre Mulheres, “Revisão e Avaliação das Conquistas da Década para Mulheres pelas Nações Unidas”, (Nairóbi, 1985), IV Conferência Mundial sobre Mulheres, “Ações por Igualdade, Desenvolvimento e Paz” (Pequim, 1995). Mesmo sendo a definição de refugiado neutra em termos de gênero, a lacuna existente na Convenção de 1951 pode ser referida pelo fato de que acadêmicas feministas, por muito tempo, destacaram a falha em reconhecer e proteger mulheres 4 UNHCR, Text of the 1951 Convention Relating to the Status of Refugees; 1951 Lúcia Pfeifer Cruz | 169 de formas de dano relacionadas a sua condição de gênero em nível internacional 5. Tal crítica feminista resta no fato de que a definição de refugiado reflete a filosofia da época em que foi redigida no que tange à proteção de direitos humanos. Dessa forma, a evolução referente às normativas sobre o tema foi desenvolvida através da percepção de que solicitações de refúgio eram, majoritariamente, realizadas por homens – o que implicaria que estes eram (ou ainda são?) os agentes principais de resistências políticas e os que seriam dignos de proteção internacional contra perseguições6. A definição de refugiado na época da Convenção implica que as atividades políticas inseridas na esfera pública, a qual trata-se de um espaço predominantemente masculino, seriam mais legítimas de proteção do que atividades associadas a mulheres, que eram vistas como pertencentes à seara privada 7 . Crawley (2016) vai além e refere que O Direito Internacional moderno, incluindo Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Internacional dos Refugiados, são baseados em e reproduzem inúmeras dicotomias entre as esferas pública e privada: uma distinção é criada entre matérias de ordem “pública” internacional e matérias “privadas” inseridas na jurisdição doméstica de Estados, e sobre as quais a comunidade internacional não possui nenhum interesse legal. Charlesworth (1994) refere que esse foco singular na esfera pública sustenta e reproduz a dicotomia do público/privado existente no Direito Internacional, o que significa que o “público” pertence a questões internacionais, enquanto matérias de ordem “privada” são limitadas apenas ao campo doméstico. Através dessa perspectiva, temáticas vinculadas aos direitos das mulheres são predominantemente situadas na esfera privada, fazendo com que as experiências de 5 CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”, University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020 6 CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016. 7 CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016 170 | Gênero, violência e estruturas de poder mulheres com violações a seus direitos, garantias e segurança por agentes não estatais sejam invisíveis e irrelevantes à comunidade internacional8. Além disso, em termos de proteção internacional, o significado de uma lacuna de gênero, no âmbito do Direito Internacional como um todo, expressa que as experiências de mulheres com agressões e violências não se encaixariam como perseguição no escopo dos critérios necessários para que uma solicitação de refúgio fosse concedida9. Dessa forma, mesmo que a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 possuam um teor não discriminatório em razão de sua neutralidade de gênero, no que tange ao conceito de refugiado, tal deficiência possui o poder de negar direitos de proteção internacional a mulheres10. A relativamente recente flexibilização no conceito de refugiado foi possível graças ao trabalho de acadêmicas feministas que buscaram preencher a lacuna de gênero lançando luz sobre tais questões referentes à dicotomia público/privado. Tal processo foi possível ao dar visibilidade às experiências de mulheres com perseguições no âmbito privado, tais como o uso de estupro e violência sexual como uma arma de guerra. Da mesma forma, ao destacar as dimensões estruturais da violência contra as mulheres, em particular no âmbito de instituições como a família e em suas comunidades, enfatizando normas e práticas culturais e ideológicas opressivas, que constituem experiências nocivas vividas por mulheres, estas passaram a ser vistas como violações aos direitos humanos das mulheres11. Através de uma leitura pura da Convenção de 1951, tem-se que as experiências de mulheres com danos ou agressões não são adequadas para fins de serem inseridas na definição de refugiados. De acordo com Goldberg (1994), a 8 CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”, University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020 9 BINDER, Andrea, “Gender and the ‘Membership in a Particular Social Group’ Category of the 1951 Refugee Convention”, 10(2) Columbia Journal of Gender and Law 167, 2001 10 VALJI, Nahla, DE LA HUNT, Lee Anne, MOFFETT, Helen, ‘Where are the women? Gender discrimination in refugee policies and practices’, 55 Agenda: Empowering Women for Gender Equity 61, 62., 2003 11 CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016 Lúcia Pfeifer Cruz | 171 dificuldade resta não na definição legal propriamente dita, mas sim em como tal definição é interpretada e aplicada. Uma maior consciência acerca de normativas de gênero dentro do escopo de Direito Internacional foi responsável por uma mudança de paradigma a partir de meados dos anos 198012. Tal alteração ocorreu através de esforços anteriores de acadêmicas feministas que deram atenção apropriada às experiências de mulheres com agressões, supostamente ocorridas na esfera privada, reconceitualizando-as e desafiando o paradigma existente no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos 13 . Ao dar uma leitura distinta a tais experiências de violência – por exemplo, reconhecendo que a violência sexual sofrida por mulheres é frequentemente tudo mesmo privada, uma vez que pode ser utilizada como arma de guerra – elas também podem ser vistas como uma forma de perseguição em razão de gênero utilizada como forma de opressão política14. Como mencionado anteriormente, a criação da CEDAW e do seu Protocolo Opcional foi uma conquista notável da crítica feminista direcionada ao Direito Internacional dos Direitos Humanos 15 . A CEDAW foi responsável por inserir os direitos das mulheres e reconhece-los como direitos humanos. É imprescindível ressaltar o quão significativo foi para o Comitê da CEDAW, na Recomendação Geral n.º 19, afirmar que a violência contra a mulher, estando inclusa a violência doméstica, é uma forma de discriminação que impede e inibe as mulheres de usufruírem de seus direitos humanos16. Quando se pensa em todos os documentos sobre direitos humanos já redigidos, a sua vasta maioria é posicionada através de uma perspectiva masculina, até a criação da CEDAW – e é por isso que ela cumpre um papel fundamental no campo dos direitos humanos das mulheres. Uma abordagem de gênero, e também 12 CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”, University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020 13 Idem. 14 Idem. 15 CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”, University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020 16 CEDAW, Committee on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women, General Recommendation No. 19: Violence against women, 11th sess, UN Doc A/47/38 (1992) [6], 1992 172 | Gênero, violência e estruturas de poder feminista, ao Direito Internacional era mais do que necessária para fins de endereçar de forma apropriada a violência de gênero como um problema de ordem global. Assim, uma crítica responsável, se não a mais relevante, por flexibilizar a ótica internacional acerca de violência de gênero, pode ser demonstrada pelo fato de que a violência doméstica não se trata de um conflito de ordem privada que surge em razão de tensões diárias17, e sim de uma violência que funciona como ferramenta de subordinação feminina autorizada por normas sociais, o que a faz legítima de proteção internacional18. Copelon (1994) define a violência doméstica como um mecanismo de controle patriarcal de mulheres que é construído sobre ideais de superioridade masculina e inferioridade feminina, papéis e expectativas acerca de sexo biológico estereotipados e a predominância econômica, social e política de homens sobre mulheres. Graças a tais avanços, o Sistema Internacional no âmbito dos direitos humanos tomou ações para fins de redigir documentos que estariam, finalmente, de acordo com uma consciência pública do ato de inserir os direitos das mulheres como uma preocupação internacional. Em 1985, o Comitê Executivo do Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) criou a Conclusão n.º 39, um documento que reconheceu que “mulheres solicitantes de asilo que enfrentavam situações severas ou de tratamento desumano por terem transgredido normas sociais da sociedade” poderiam ser inseridas no conceito de refugiadas19. Além disso, alterações e desenvolvimentos no Direito Humanitário Internacional e no Direito Internacional dos Direitos Humanos, como a jurisprudência do Tribunal Penal Internacional no caso de países que consistiam na Iugoslávia e no 17 WHO, World Health Organisation, ‘Violence Against Women’ (Fact Sheet, 29 November 2017) <https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/violence-against-women>, 2017 18 CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”, University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020; MARSDEN, Jessica, “Domestic Violence Asylum after Matter of L-R”, The Yale Law Journal, 2512, 2514, 2014. 19 ACNUR, Executive Committee, Refugee Women and International Protection: Conclusion No. 39 (XXXVI), UN Doc A/40/12/Add.1 (18 October 1985), 1985 Lúcia Pfeifer Cruz | 173 caso de Ruanda20, ocorreram em conjunto e auxiliaram na mudança de paradigma no contexto de refúgio envolvendo questões de gênero. Com a chegada da Conclusão n.º 39, uma variedade de documentos internacionais e diretrizes foram redigidas acerca da temática, indicando que mulheres perseguidas por razões de gênero seriam legítimas da concessão de refúgio. Uma das funções desses documentos era servir como recurso para que tomadores de decisão desenvolvessem uma abordagem mais sensível ao julgar tais pedidos de refúgio e obtivessem um melhor entendimento dos atravessamentos existentes entre gênero e o contexto de perseguição sofrido por mulheres. O advento de uma significativa lista de diretrizes e Position Papers acerca de perseguição por razões de gênero redigida pela ACNUR e outros21 possibilitou que a análise e o entendimento de questões de gênero no contexto de refúgio pudessem avançar substancialmente em termos de jurisprudência, políticas públicas e produção acadêmica. Isso é perceptível através de uma maior consideração pelas diferenças entre sexo, como indicador em termos de biologia, e gênero, na forma de papeis socialmente definidos associados a determinado sexo ou outro em termos das relações entre homens e mulheres22. O documento mais relevante no tocante ao papel do gênero na determinação do status de refugiado são as Diretrizes de 2002 sobre Proteção Internacional. Tais diretrizes foram responsáveis por fornecer uma interpretação sensível em termos de gênero à Convenção de 1951 através da “[certificação] de que os procedimentos para determinação do status de refugiado não marginalizariam nem excluiriam experiências de perseguição relativas à gênero”23. Em nível regional, os Estados puderam desenvolver e redigir suas próprias diretrizes e documentos que reconhecessem a violência de gênero como uma forma de perseguição sofrida por mulheres mundialmente. Por exemplo, em 1993, o 20 HAINES, Rodger, “Gender-Related Persecution”, Cambridge University Press, 2003 UNHCR, ‘Guidelines on the Protection of Refugee Women’, July 1991; UNHCR, ‘Sexual Violence Against Refugees: Guidelines on Prevention and Response’, 1995; the Symposium on Gender-Based Persecution held in Geneva, 22–23 Feb. 1996 (reported in International Journal of Refugee Law, special issue, 1997, pp. 1–251), and UNHCR, ‘Gender-Related Persecution’, UNHCR Position Paper, Jan. 2000 (hereinafter ‘UNHCR, 2000 Position Paper on Gender-Related Persecution’). 22 Idem. 23 ACNUR, Guidelines on International Protection: Gender-Related Persecution within the context of Article 1A(2) of the 1951 Convention and/or its 1967 Protocol relating to the Status of Refugees, 2002 21 174 | Gênero, violência e estruturas de poder Conselho de Imigração e Refugiados Canadense redigiu importante documento denominado “Diretrizes sobre Mulheres Refugiadas Requerentes Tementes de Perseguição em razão de Gênero”, que foi finalizado após extensiva consultoria realizada com agentes não governamentais e governamentais. Em 1995, os Estados Unidos desenvolveram as “Diretrizes de Gênero Estadunidenses”, que dariam aos tomadores de decisões instruções específicas para fins de reconhecer o estupro e outras formas de violência sexual como perseguição e, também, reconhecer que mulheres que sofriam agressões e tortura ou que fossem sujeitas a tais tratamentos como consequência de renúncia às suas crenças sobre direitos igualitários, seriam legítimas de proteção internacional24. A ACNUR, ativistas, críticos do Sistema Internacional, práticos de Direitos Humanos e outros agentes foram capazes de construir as bases e fundamentos relevantes à existência de uma adequada preocupação a questões de gênero inseridas no âmbito do Direito Internacional dos Refugiados, elevando o direito internacional dos direitos humanos das mulheres, bem como os esforços do movimento internacional pelos direitos das mulheres. Para fins de endereçar as experiências de mulheres com perseguição, esses agentes da mudança destacaram que um processo de evolução nas normativas sobre refugiados era necessário através de um procedimento interpretativo que “utiliza o framework do Direito Internacional de Refugiados, em vez de alterá-lo incorporando novas previsões específicas sobre gênero”25. Por exemplo, as Diretrizes de Gênero Estadunidenses são transparentes de uma forma que solicitações de refúgio em razão de gênero “devem ser vistas dentro do framework fornecido pelos instrumentos existentes de direitos humanos internacionais e através da interpretação desses instrumentos por organizações internacionais”, tendo estes sido ratificados pelo governo dos Estados Unidos ou não26. É possível afirmar que um corpo de normas internacional tem sido desenvolvido desde a adição e reconhecimento dos direitos das mulheres como 24 CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016 25 Idem. 26 Idem. Lúcia Pfeifer Cruz | 175 parte do sistema internacional de proteção de direitos humanos. Enriquecer o debate acerca deste fenômeno é mais frutífero do que simplesmente adicionar o elemento gênero ou sexo aos critérios e razões atualmente legítimos de refúgio – o problema não restaria resolvido e tampouco seria possível analisar apropriadamente os casos nos quais o dano temido (o elemento de perseguição) era inerente às mulheres, ou por elas desproporcionalmente afetado, como nos casos de estupro ou mutilação genital feminina27. Apesar da perspectiva de gênero referente ao regime jurídico do refúgio ser relativamente recente em termos de ordens jurídicas internacionais, os fundamentos para uma abordagem mais sensível em termos de gênero já estão postos para serem aplicados. Fornecendo as ferramentas e recursos adequados aos Estados e seus tomadores de decisão para melhor aplicarem os entendimentos mais recentes no que tange aos direitos das mulheres e à legítima proteção que estes requerem no âmbito internacional, isto, por si só, já configura considerável avanço e uma prospecção positiva para o futuro dos direitos das mulheres refugiadas. 2. VIOLÊNCIA DE GÊNERO – UMA CRÍTICA FEMINISTA AO DIREITO INTERNACIONAL Conforme já mencionado, o movimento pelos direitos das mulheres, dentro do Direito Internacional, foi responsável pelo fenômeno que criticou o status quo imposto pela perspectiva masculina no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Juntamente com a criação da CEDAW, uma abordagem feminista ao Direito Internacional foi iniciada por acadêmicas e pesquisadoras responsáveis por tal alteração de paradigma. Anker e Lufkin (2003) estabelecem um ponto importante ao referirem que para começar, “gênero” no contexto dos direitos humanos se refere à divisão de papéis socialmente determinados para homens e mulheres, a noções socialmente construídas 27 ANKER, Deborah E., LUFKIN, Paul T., Gender and the Symbiosis Between Refugee Law and Human Rights Law, The Online Journal of the Migration Policy Institute, https://www.migrationpolicy.org/article/gender-and-symbiosis-between-refugee-law-and-humanrights-law; 2003 176 | Gênero, violência e estruturas de poder de feminilidade e masculinidade, e disparidades de poder resultantes destes aspectos que moldam e definem as identidades e status das mulheres dentro de uma sociedade. Para que o aspecto “gênero” fosse inserido nos critérios de refúgio, alguns argumentos e assertivas foram destacados e, de certa forma, fundados pela referida crítica construída. Primeiramente, cita-se o fato de que (i) a violência de gênero é vista como um fator social pertencente à esfera privada e, em função disso, não seria suficiente para caracteriza-la como motivo de fundado temor de perseguição para solicitações de refúgio; em segundo lugar, há um debate acerca da possibilidade de (ii) inserir mulheres vítimas de violência de gênero como membros de determinado grupo social e, por último, a abordagem na qual (iii) há a impossibilidade de as mulheres serem protegidas por autoridades domésticas e internacionais. A violência contra a mulher ainda é vista como algo comum, ou um mero infortúnio, por se tratar de um fenômeno que ocorre na esfera privada ou doméstica, não se caracterizando como motivação suficiente para ser classificada como perseguição. Ainda assim, mesmo tratando-se de um crime, a forma mais exacerbada de violência de gênero ainda é percebida por um prisma que a conceitua como um problema de natureza privada. Raramente, mesmo em contextos de conflito armado ou estados de exceção, a violência contra as mulheres é tida como um ato político ou um método de controle de um grupo que subjuga outro, como símbolo de domínio ou resultado direto da violação de direitos humanos. Ainda nesse contexto, mulheres que fazem pedidos de refúgio nessas ocasiões tem seus pedidos negados – e tal negativa pode custar as suas vidas28. Considerando os debates atuais acerca da temática, o movimento crítico feminista mencionado é categórico ao referir que a razão pela qual ainda há uma discussão concernente à ausência de um consenso global sobre violência de gênero resta na (i) existência de flagrante negligência acerca de tal violência, ao ponto desta ser subestimada como matéria de preocupação institucional e (ii) pelo fato de que esta ainda é vista como um problema de ordem privada. 28 PATRICK, Erin, “Gender-Related Persecution and International Protection”, Migration Policy Institute,https://www.migrationpolicy.org/article/gender-related-persecution-and-internationalprotection , April 1, 2004 Lúcia Pfeifer Cruz | 177 Casos de negativa de refúgio a mulheres, nos quais a violência de gênero não preenche os requisitos para que o caráter persecutório seja reconhecido, refletem a relutância de autoridades de Estado e migratórias em perceberem tal violência como uma conduta que caracteriza a perseguição de determinado grupo social. Essas negativas também podem ser explicadas pelo fato de que a violência contra mulheres que buscam refúgio é vista como uma norma social nos seus países de origem e, portanto, estaria vinculada a crimes inseridos na esfera privada29. Como resultado, a violência de gênero é considerada uma categoria muito abrangente para ser inserida como critério de perseguição – ela não é vista, nem legislada, da mesma forma que a violência direcionada a determinadas minorias étnicas em função destas pertencerem a determinado grupo social. Ao considerar-se os casos dessas mulheres, Bhargava e Mukhopadhyay (2020) ressaltam que a característica perseguição pode ser dividida em duas categorias: (i) o primeiro tipo está inserido na esfera privada, na qual o “perseguidor” é geralmente um indivíduo que compartilha uma relação íntima com a vítima, na forma de um parceiro ou parente. Aqui podem ser incluídos atos de violência sexual e violência doméstica, abuso financeiro ou emocional, ou práticas culturais regressivas, como mutilação genital feminina, homicídios por honra etc. (ii) o segundo tipo é tolerado por agentes não-estatais, público ou privado, como governos ou grupos militares que sujeitam mulheres de específica etnicidade à violência sexual ou subjugação. Essa categoria abrange estratégias de controle de populações forçadas, penas que restringem direitos reprodutivos femininos, abuso sexual, estupro, tráfico humano, casamentos forçados etc. Pela divisão supracitada, é possível perceber as diferenças entre a violência sofrida por mulheres no âmbito privado, por agentes não estatais, e outra praticada por normas culturais e tradicionais, sustentadas pelo poder do Estado. Em ambas categorias, a perseguição sofrida por mulheres ocorre em razão de sua condição de gênero e em função de seu particular status social como tais. Nesse sentido, ao considerar-se a perseguição como um meio de exercício de controle sobre 29 Idem. 178 | Gênero, violência e estruturas de poder determinada raça, religião ou determinado grupo social, as mulheres que sofrem violência de gênero, claramente, podem ser inseridas na categoria que atesta a existência de perseguição.30 O caso Ward, de 1993, foi responsável por afirmar a posição da ACNUR e caracterizar a violência de um agente não estatal como perseguição através do fracasso do Estado em proteger. Apesar de não se tratar de um caso de violência doméstica sofrida por uma mulher solicitando refúgio, a Suprema Corte Canadense determinou que sérias violações de direitos humanos por agentes não estatais podem ser classificadas como perseguição, se o Estado em questão não protege ou falha em proteger seus cidadãos de tais violações, sugerindo que tal falha pode ser demonstrada por uma “confirmação clara e convincente” de tal inabilidade em proteger31. Crawley (2016) menciona que o conceito de “inclusão excludente”, desenvolvido por Susan Keybone, trata-se de uma tentativa de explicar, e fazer sentido, nas contínuas dificuldades vividas por mulheres em garantir proteção no escopo do Direito Internacional dos Refugiados contra violações de direitos humanos. Tal conceito sugere que o problema mais significativo concernente à dominante abordagem atual sobre pedidos de refúgio, trata-se da construção de um estereótipo de mulheres refugiadas, que em razão de sua vulnerabilidade em sociedades patriarcais nas quais mulheres são subordinadas a homens como vítimas, ou potenciais vítimas, de violência sexual ou qualquer outra violência direcionada a estas pelo fato de serem mulheres. Kneebone e acadêmicas feministas também sugerem que tal construção pode fazer com que mulheres e suas experiências sejam incorporadas ao regime de refúgio de forma particular em termos 30 BHARGAVA, Shebani; MUKHOPADHYAY, Shreenandini, “The Quest for Gender Based Asylum: Exploring ‘Women’ as a Particular Social Group”, INTLAWGRRLS, Voices on International Law, Policy, Practice, https://ilg2.org/2020/08/13/the-quest-for-gender-based-asylum-exploring-women-as-aparticular-social-group/ 13 Agosto de 2020 31 Patrick (2004) também apresenta como relevante o fato de que a Corte Canadense considerou se o fundado temor de perseguição, baseado na inabilidade de proteger do Estado, subsiste se a solicitante não abordou o Estado para que esta fosse protegida. Nesse caso, a falha consistente na não chamada ao Estado pela solicitante apenas comprometeria seu pedido de refúgio, se a proteção estatal estivesse às vias de acontecer. Contudo, no caso de tratar-se de um padrão do Estado em ser incapaz ou relutante em fornecer referida proteção, o fundado temor de perseguição estaria presente de qualquer forma, independentemente de a solicitante ter buscado auxílio do Estado. Lúcia Pfeifer Cruz | 179 de gênero, de forma que isso serviria apenas para enfraquecer a proteção que estaria disponível a elas.32 Para mulheres que fogem da violência doméstica e que almejam classificarse como refugiadas, deve haver um nexo causal entre o temor de perseguição e um dos cinco quesitos estabelecidos na Convenção de 1951. Como já apontado, o critério mais aproximado a ser utilizado por mulheres nessa situação, seria inseri-las como membro de Determinado Grupo Social (DGS) – mesmo que a utilização de tal critério tenha provado, também, ser um obstáculo.33 É possível perceber o escopo abrangente do critério Determinado Grupo Social e a margem de apreciação dos Estados em relação este, o que leva a concluir-se que não há, ainda, uma abordagem uniforme na sua forma de interpretação por autoridades para fins de concessão de refúgio. Alguns Estados interpretam DGS de uma forma que apenas dificulta inserção de mulheres que tentam se refugiar em razão da violência de gênero, com base no referido critério. Mesmo que exista determinado consenso acerca de alguns aspectos de DGS como um critério para concessão de refúgio, é aceitável o fato de que inexiste qualquer requisito para que um grupo exiba certa identificação interna para que este seja considerado DGS - da mesma forma que um DGS pode ser constituído independentemente do seu tamanho. Ademais, para que um grupo social seja considerado como tal, não basta que seus membros compartilhem do mesmo temor de perseguição, bem como não é necessário demonstrar que todos os membros estejam sob o risco de perseguição para que sejam considerados DGS.34 Para que mulheres fossem devidamente inseridas em determinado grupo social, sob qualquer contexto geográfico, tal tentativa dependeria das narrativas predominantes acerca de mulheres em geral, sobre seus países de origem e sobre as formas particulares de violência que estas alegam sofrer ou vivenciar.35 32 CRAWLEY, Heaven, ‘[Engendering] International Refugee Protection: Are we there yet?’ in Bruce Burson and David Cantor (eds), Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory (Brill, 2016); 2016 33 PATRICK, Erin, “Gender-Related Persecution and International Protection”, Migration Policy Institute,https://www.migrationpolicy.org/article/gender-related-persecution-and-internationalprotection , April 1, 2004 34 Idem. 35 CRAWLEY, Heaven, ‘[Engendering] International Refugee Protection: Are we there yet?’ in Bruce Burson and David Cantor (eds), Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice 180 | Gênero, violência e estruturas de poder Patrick (2004) atesta que deve haver um reconhecimento legal que defina gênero como uma característica de determinado grupo social. Mesmo que tal reconhecimento já exista em documentos de soft law, como as Diretrizes sobre Gênero da ACNUR e outros documentos domésticos, há um limite para sua aplicação, uma vez que não se trata de documentos com força vinculante. Uma das alternativas para impedir que tomadores de decisão formulem e estabeleçam determinados grupos sociais “complicados demais e artificialmente forçados” para mulheres que estão fugindo de violência doméstica, poderia ser precisamente codificar “gênero” como uma das características definidoras de DGS na seara doméstica, obrigando estes tomadores de decisão a utilizarem esse aspecto, instituindo a ideia e a cultura de “mulheres em determinado contexto social” como DGS.36 Embora a ideia de criar um arcabouço legal pelo Legislativo doméstico, como apontado supra, tenha ocorrido em países como Espanha e Austrália, ainda assim, não há exatamente uma solução da problemática acerca da violência de gênero dentro do Direito dos Refugiados. Mesmo que os países devam aprimorar seus aparelhos normativos de forma a adaptar suas leis aos avanços internacionais no âmbito dos Direitos Humanos, tal mudança é pouco provável de ocorrer, uma vez que tais avanços não apresentam natureza vinculante ou estejam bem estabelecidos pela comunidade internacional. Ainda assim, há um movimento emergente em países da América Latina, no qual consiste em alterações legislativas realizadas por Estados, através da inserção da categoria “gênero” como fundamento para solicitações de refúgio em suas legislações internas, indo além da alternativa supramencionada que encaixa mulheres como Determinado Grupo Social e inserindo nos seus sistemas domésticos as peculiaridades de gênero já abordadas por documentos de soft law. Crawley (2016) cita Mullally (2011) de forma que and Theory (Brill, 2016); 2016 sobre MCKINNON, Sara, ‘Positioned in/by the State: incorporation, exclusion, and appropriation of women’s gender-based claims to political asylum in the United States’, 97(2) Quarterly Journal of Speech, 2011 36 PATRICK, Erin, “Gender-Related Persecution and International Protection”, Migration Policy Institute,https://www.migrationpolicy.org/article/gender-related-persecution-and-internationalprotection , April 1, 2004 Lúcia Pfeifer Cruz | 181 o risco de tornar essencial a posição de mulheres em determinada sociedade perpassa por várias solicitações de refúgio por questões de gênero e isso é particularmente evidente onde mulheres são vistas dentro de parâmetros que as categorizam como membros de determinado grupo social. Nestes casos, mulheres são vistas como “vítimas”, um sujeito com atenção limitada em razão de diferenças históricas, econômicas e de outras ordens que moldam e definem a experiência de discriminação por gênero e que fragmentam a categoria “mulheres” O problema das solicitações de refúgio que enquadram as experiências de mulheres como membros de DGS é o fato de que elas refletem uma concepção estática e particular de que o gênero é definido e replicado através de estruturas normativas e masculinas de Direito Internacional dos Refugiados, reforçando a ideia de que as mulheres não são atores políticos, e sim atores culturais e sociais, negligenciando o contexto no qual tal violência de gênero acontece. A razão pela qual isso ocorre provém de uma ênfase demasiada quando da determinação do status de refúgio em formas de danos específicos contra mulheres e na falha em explorar completamente a questão da não discriminação, da violação que pode fornecer uma explicação pela qual tais danos ocorrem e do nexo para um dos critérios listados na Convenção de 1951.37 Em suma, conforme já enfatizado, a ideia reforçada pelo Direito Internacional dos Refugiados a qual consiste que mulheres não são atores políticos, reduzindo-as a vítimas de um sistema patriarcal que as subjuga, retira qualquer poder de agência destas e as coloca em uma posição de dependência e vulnerabilidade. Foote (1994) ressalta que a implicação é a de que mulheres refugiadas, em razão de serem mulheres, são vítimas perenes e, portanto, pertencentes a determinado grupo social; mulheres, entretanto, são colocadas na desconfortável posição de possuírem características biológicas que determinariam sua vulnerabilidade e consequente status legal. 37 CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016 182 | Gênero, violência e estruturas de poder A mudança de paradigma que surgiu nos últimos 30 anos é, indubitavelmente, notável. Apesar de a mitigação da deficiência de gênero existente na definição de refugiado tratar-se de um trabalho conjunto de parte da comunidade internacional que, ao lançar críticas, denunciou o sistema corrente, os “transtornos” causados por acadêmicas feministas, pesquisadoras e advogadas de direitos humanos tem, ao menos, alcançado os tomadores de decisão e criadores de políticas públicas. Apesar de haver um longo caminho a ser trilhado, mudanças estão ocorrendo. Recentemente, o Brasil redigiu um documento através do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) que reconhece como refugiadas mulheres vítimas de mutilação genital feminina e que são oriundas de países onde tal prática é institucionalizada38, o que denota a adoção de uma postura mais recente do país no que concerne à problemática em questão. CONCLUSÃO É possível afirmar que a lacuna de gênero existente na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967 não será preenchida, uma vez que não há indicação de que, em breve, a definição de refugiado presente em tais documentos será alterada por qualquer movimento dentro do Direito Internacional dos Refugiados. As mudanças possíveis graças às funções desempenhadas por acadêmicas feministas e praticantes pelos direitos das mulheres acerca da temática são, naturalmente, emblemáticas no que tange à alteração de um paradigma internacional quase estagnado. Apesar de claramente existir desafios no reconhecimento da violência de gênero como uma matéria digna de preocupação internacional pelos governos e tomadores de decisão, mudanças estão ocorrendo tanto na ordem internacional quanto doméstica – conforme exemplos de países latino-americanos mencionados acima. A dicotomia do público e do privado sustentada e denunciada pelo trabalho da escola crítica de Direito Internacional mostra a face de um status quo de longa data que impede que os direitos das mulheres sejam garantidos e os perpetradores de 38 https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/conare-aprova-reconhecimento-de-mulheresrefugiadas-vindas-de-contextos-de-mutilacao-genital-feminina Lúcia Pfeifer Cruz | 183 tais violações, responsabilizados. Ao atestar tal realidade, a comunidade internacional pode operar de uma forma que não apenas a questione, mas também desenvolva uma consciência acerca do mal que tal realidade cria, bem como desconstrua os padrões que edificam e mantém essa dicotomia. Não há mudança sem o desmantelamento desse status quo. Ainda assim, tomadores de decisões ainda são resistentes à ideia de adaptar os critérios de refúgio de forma a reconhecer a violência de gênero como fundado temor de perseguição. Cabe às instituições globais imporem os mais recentes avanços e novidades introduzidas pelo trabalho de agentes internacionais. A demanda de mulheres vítimas de várias formas de agressão trata-se de um crescente e sempre existente problema, e como tal, este deve ser endereçado como a seriedade apropriada como qualquer outra forma de violação de direitos humanos. REFERÊNCIAS ACNUR, Executive Committee, Refugee Women and International Protection: Conclusion No. 39 (XXXVI), UN Doc A/40/12/Add.1 (18 October 1985), 1985 ACNUR, Guidelines on International Protection: Gender-Related Persecution within the context of Article 1A(2) of the 1951 Convention and/or its 1967 Protocol relating to the Status of Refugees, 2002 ANKER, Deborah E., LUFKIN, Paul T., Gender and the Symbiosis Between Refugee Law and Human Rights Law, The Online Journal of the Migration Policy Institute, https://www.migrationpolicy.org/article/gender-and-symbiosis-between-refugeelaw-and-human-rights-law; 2003, acesso em 18 de março de 2023; BHARGAVA, Shebani; MUKHOPADHYAY, Shreenandini, “The Quest for Gender Based Asylum: Exploring ‘Women’ as a Particular Social Group”, INTLAWGRRLS, Voices on International Law, Policy, Practice, 13 Agosto de 2020, https://ilg2.org/2020/08/13/the-quest-for-gender-based-asylum-exploringwomen-as-a-particular-social-group/ BINDER, Andrea, “Gender and the ‘Membership in a Particular Social Group’ Category of the 1951 Refugee Convention”, 10(2) Columbia Journal of Gender and Law 167, 2001; CHOW, Eugene “’Not There Yet: Women Fleeing Domestic Violence & the Refugee Convention”, University of New South Wales Law Journal Student Series No. 20-33, 2020; 184 | Gênero, violência e estruturas de poder Committee on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women, General Recommendation No. 19: Violence against women, 11th sess, UN Doc A/47/38 (1992) [6], 1992 COPELON, Rhonda, “Recognizing the Egregious in the Everyday: Domestic Violence as Torture”, 25 Columbia Human Rights Law Review 291, 305; 1994; CRAWLEY, Heaven, “[En]gendering international refugee protection: are we there yet?”, in Human Rights and the Refugee Definition: Comparative Legal Practice and Theory, ed. By Bruce Burson and David James Cantor, (ISBN 9789004288591), 2016; GOLDBERG, Pamela, “Where int the World Is There Safety For Me?: Women Fleeing Gender-Based Persecution”, Women’s Rights, Human Rights: International Feminist, ed. Julie Peters & Andrea Wolper, Routledge, 1994; HAINES, Rodger, “Gender-Related Persecution”, Cambridge University Press, 2003; MARSDEN, Jessica, “Domestic Violence Asylum after Matter of L-R”, The Yale Law Journal, 2512, 2514, 2014; MCKINNON, Sara, ‘Positioned in/by the State: incorporation, exclusion, and appropriation of women’s gender-based claims to political asylum in the United States’, 97(2) Quarterly Journal of Speech, 2011; PATRICK, Erin, “Gender-Related Persecution and International Protection”, Migration Policy Institute,https://www.migrationpolicy.org/article/gender-relatedpersecution-and-international-protection , April 1, 2004; UNHCR, Text of the 1951 Convention Relating to the Status of Refugees; 1951; UNHCR, United Nations High Commissioner for Refugees, https://www.unhcr.org/1951-refugeeconvention.html#:~:text=The%201951%20Refugee%20Convention%20and,of%20Sta tes%20to%20protect%20them, 2019 (acesso em 18 de março de 2023); VALJI, Nahla, DE LA HUNT, Lee Anne, MOFFETT, Helen, ‘Where are the women? Gender discrimination in refugee policies and practices’, 55 Agenda: Empowering Women for Gender Equity 61, 62., 2003; World Health Organisation, ‘Violence Against Women’ (Fact Sheet, 29 November 2017) <https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/violence-againstwomen>, 2017, (acesso em 18 de março de 2023). 9. VIOLÊNCIAS DE GÊNERO E CONTROLE TERRITORIAL: O CONFLITO ARMADO COLOMBIANO https://doi.org/10.36592/9786554601566-09 Alice de Carvalho Nogueira1 Resumo A presente pesquisa propõe uma análise acerca das formas de exercer controle territorial e as violências de gênero envolvidas nesse processo, a partir do estudo de caso do conflito armado colombiano. Ao compreendermos os mecanismos empregados por grupos armados não estatais para dominar e, posteriormente, manter controle sobre o território a ser conquistado, violências relacionadas ao gênero surgem de forma sistemática e associadas a um continuum de violações vividas em tempos de paz. No contexto colombiano, as disputas territoriais foram travadas entre grupos guerrilheiros e paramilitares, em um cenário no qual os altos índices de violações sexuais trazem à tona o seu uso como uma arma estratégica de controle, atrelada a determinados objetivos políticos e econômicos. Destaca-se que a compreensão do problema é proposta a partir de perspectivas locais, devido às particularidades das formas de violência no território latino-americano, e vistas no feminismo decolonial, tendo como eixo o conceito de femigenocidio colocado por Rita Segato. Palavras-chave: Violência de gênero; Violência sexual; América Latina; Colômbia. Introdução A América Latina tem menos de 10% da população mundial, mas produz um terço dos homicídios de todo o mundo. Dados produzidos pelas Nações Unidas indicam que a taxa de assassinatos anual da região é de 19,5 a cada 100 mil habitantes, enquanto outras regiões como a África e a América do Norte, figuram com taxas abaixo de 122. A situação se intensifica em países como El Salvador (62,1), Honduras (41,7), Brasil (30,5) e Colômbia (26). Dentre as principais causas estão o 1 Mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI-UERJ) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2013409818595988. Contato: alicecnog@gmail.com. 2 United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Global Study on Homicide: Homicide Trends, Patterns and Criminal Justice Response. 2019. 186 | Gênero, violência e estruturas de poder crime organizado, os conflitos internos, as desigualdades sociais, as hierarquias de gênero e, essencialmente, a facilidade com que as redes paraestatais de controle da vida se estabelecem e se expandem em toda região. Tais redes se relacionam com um universo bélico de baixa formalização, caracterizado por lucros provenientes da economia ilegal, por conflitos armados internos e pela repressão policial3. No Brasil, por exemplo, a polícia já foi citada como a que mais mata no mundo, em ações dirigidas à população jovem, pobre e periférica4. Os dados são alarmantes e seus reflexos nas questões de gênero são comumente deixados de lado, conforme indica a Agência das Nações Unidas para Drogas e Crimes (2019). Apesar da legislação avançada em diversos países 5, doze mulheres são assassinadas por dia em decorrência de violências de gênero e 98% das mortes sequer chegam às instâncias judiciais na região6. Apesar das diferenças históricas, políticas e culturais que caracterizam os países da região, é possível afirmar que os elevados índices de mortalidade feminina estão intrinsecamente relacionados com a formação e a manutenção de uma desigualdade estrutural de gênero. As origens de tal sistema remontam ao período colonial, que não só insere as hierarquias de gênero como binárias nas dinâmicas das relações de poder, mas também endossa as diversas manifestações de subjugação da feminilidade7. A conjuntura se intensifica em países que vivenciaram conflitos armados internos no momento em que as dinâmicas violentas e masculinizadas da militarização se alinham às hierarquias de gênero pré-sancionadas. Nestes contextos, observa-se um continuum de violência que vai além das fronteiras tradicionalmente definidas de guerra e paz, e que deve ser analisada à luz das dimensões estruturais, políticas e sociais do problema. O país a ser analisado neste trabalho, a Colômbia, é emblemático para a região por ter vivenciado o conflito mais 3 Destaca-se que a repressão policial é aqui vista como um registro da dualidade do Estado, em atuar de forma estatal e paraestatal. 4 AMNESTY INTERNATIONAL. Use of force, guidelines for implementation of the UN basic principles on the use of force and firearms by law enforcement officials. 2015; SEGATO, R.. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019. 5 Como exemplo, a Lei Maria da Penha é reconhecida pelas Nações Unidas como uma das mais avançadas legislações do mundo no combate a violência doméstica de mulheres. A promulgação da lei levou a criação de novas estruturas judiciais, promovendo a atenção às vítimas e mecanismos que facilitam as denúncias. 6 ONU Mujeres. Hechos y cifras: Poner fin a la violencia contra las mujeres. 2018. 7 SEGATO, R.. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019. Alice de Carvalho Nogueira | 187 destrutivo da história contemporânea da América Latina, com marcas que perduram até os dias atuais8. A violência de gênero no país é um problema persistente e que enfrenta grandes obstáculos no que se refere a justiça e proteção adequadas. No âmbito do conflito armado colombiano, todos os principais grupos armados não estatais envolvidos no embate, divididos entre guerrilheiros e paramilitares, instrumentalizaram as violências de gênero em busca de determinados ganhos e/ou fins. A violência sexual, entendida no seu amplo aspecto, desponta como a principal forma de subjugação e controle de gênero neste cenário, perpetuando a marginalização e a vulnerabilidade das atingidas. Este trabalho busca compreender este problema partindo de perspectivas locais que trazem à tona a dinâmica interna dos países latino americanos. Como o proposto por Davies e True (2015), o ponto é ir além das motivações que levaram ou não ao crime, mas sim compreender as condições estruturais de gênero que o tornaram possível em primeiro lugar — “ou seja, os papeis de gênero na sociedade e as desigualdades de poder nas instituições da família, do Estado e do mercado” 9 . Em outras palavras, o propósito é ir além da ideia sobre violência de gênero na guerra como uma mera pauta de segurança, compreendendo que a questão também deve ser vista a partir das intersecções com outras áreas da formação social do país analisado. Portanto, a presente pesquisa propõe uma análise acerca das formas de exercer controle territorial em meio ao conflito e as violências de gênero envolvidas nesse processo, a partir do estudo de caso do conflito armado colombiano. Destacase, que apesar do conceito violência de gênero ser aplicado para uma ampla gama de casos, o trabalho busca trazer luz às violências cometidas contra mulheres. O recorte temporal a ser analisado parte da década de 1990 até o início dos anos 2000, período de intensificação da violência e também de abertura acadêmica para produção de dados a serem observados. Os objetivos a serem desenvolvidos, dentro das limitações aqui delineadas, são: (i) investigar os aspectos que compõem a violência sexual e seu uso como 8 CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo: informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017. 9 DAVIES, S.; TRUE, J. Reframing conflict-related sexual and gender-based violence: Bringing gender analysis back in. Security dialogue, v. 46, n. 6, p. 495-512, 2015. 188 | Gênero, violência e estruturas de poder estratégia de guerra, indicando questões ligadas ao binário de gênero e ao corpo da mulher com o território em que habita, (ii) abordar as causas estruturais que perpetuam as desigualdades de gênero e o controle sobre os corpos das mulheres no território colombiano, e (iii) contextualizar o conflito armado colombiano, para a compreensão das disputas territoriais envolvidas entre os grupos armados. Conflito Armado e Violências de Gênero Os efeitos da violência na guerra afetam todos à sua volta, e dentre os diversos fatores que influenciam em como os impactos atingem o corpo e a sociedade em que se encontram, o gênero é um dos mais relevantes. Em uma visão binária, a experiência feminina e masculina em meio aos conflitos difere tanto no papel de agente, quanto no de vítima. Homens costumam estar à frente de exércitos, grupos armados, e a apresentar os principais papeis de instigadores da guerra, porém, as principais vítimas, tanto em seu próprio ser, quanto em seu papel de gênero socialmente construído, costumam ser mulheres. O papel feminino marginal ao embate gera taxas de mortalidade menores em relação às masculinas, mas as torna as principais vítimas de fenômenos como a violência e a escravidão sexual. Tais fenômenos apresentam marcas profundas que vão além da morte, e deixam cicatrizes nas vítimas, suas famílias e em toda a comunidade. As violências de gênero surgem com formas e circunstâncias extensas dentro das guerras e conflitos armados, o que suscita diversas questões para análise. Embora o enfoque analítico deste estudo se concentre nas experiências de meninas e mulheres, é importante reconhecer que o conceito de violência de gênero deve ser entendido de forma inclusiva, abrangendo todos os gêneros, e compreendida como um padrão de violência intrinsecamente relacionado às dinâmicas de poder. Como Sara Meger defende, o uso do termo violência baseada em gênero deve ser entendido como um formato de violência que tem o propósito de manter e reforçar as hierarquias de gênero, incluindo tanto homens quanto mulheres nos papeis de vítima e perpetuador10. 10 MEGER, S. The fetishization of sexual violence in international security. International Studies Quarterly, v. 60, n. 1, p. 149-159, 2016. Alice de Carvalho Nogueira | 189 Ao aplicarmos a perspectiva no cenário de guerra, trazer o tema para a esfera pública se torna um ponto-chave, assim como ponderar a devida variação. Rita Segato (2019) introduziu uma distinção fundamental entre as diferentes formas de violência que ocorrem nos âmbitos privado e público, lançando luz sobre os conceitos de femicídio, relacionado à violência interpessoal, e femigenocídio, vinculado à violência sistêmica em contextos de conflito e guerra. As violências de gênero comumente surgem associadas a esfera íntima, o que muitas vezes leva a um movimento de deslegitimação das denúncias e ao desencorajamento de suas vítimas a se manifestarem. Destaca-se a importância de estabelecer tipificações rigorosas em prol do combate ao silêncio e a impunidade que permeiam tais contextos. Nas palavras de Segato: Se toda violência de gênero é estrutural e ceifa vidas em números que se aproximam de um genocídio sistemático e em uma multiplicidade de cenários, é imprescindível, para fins de estratégias de combate à vitimização das mulheres, ou seja, para poder investigar e desmantelar os agentes perpetradores do dano, entender que existe um tipo de violência de gênero que é gerada e transita por cenários absolutamente impessoais 11. Os femigenocidios surgem atrelados a um cenário em expansão no território latino-americano de guerra informal, em que as violações reafirmam o caráter público e impessoal. Alguns exemplos podem ser vistos, como: na guerra repressiva guatemalteca, em que agentes do Estado agiam de forma paraestatal violando mulheres sistematicamente com fins de controle social; na Costa Pacífica da Colômbia, em que mulheres convivem com a truculenta violência de grupos paramilitares até os dias atuais; ou nos corpos de mulheres indígenas, como no caso do povo Guarani Kaiowá no Mato Grosso (BR), torturadas e violadas pelo mandato masculino12. Outro ponto central da análise, é como a categoria corpo age como um local de atuação da política global e se torna a base para entender as lógicas e os sentidos 11 12 SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 84. SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 84. 190 | Gênero, violência e estruturas de poder de tal violência13. Lauren Wilcox (2016), pontua que tais corpos tidos como alvos das práticas violentas são intrinsecamente políticos, moldados em relação a contextos políticos históricos e, simultaneamente, agindo sobre o nosso mundo. O movimento de lançar luz ao corpo dentro da análise atua em direção à compreensão de que a violência sexual em conflitos armados não se limita a países ou grupos abstratos, mas sim atinge diretamente corpos, subjetividades e territórios. O corpo não é só uma realidade material ou biológica, mas o produto de diferentes normas e práticas regulatórias que o dão forma, sentido, o marcam e o classificam, é um espaço material e simbólico, no qual ocorrem processos de construção de significados, criação e resistências14. Os corpos em que as práticas de violência são perpetuadas são profundamente políticos, constituídos em relação às condições sociais e históricas na qual estão inseridos e, ao mesmo tempo, agindo sobre o mundo em que vivem15. Nas relações de gênero, a dominação social é exercida pelo poder masculino e ocorre como um processo de reafirmação constante da assimetria, que produz uma situação de vulnerabilidade para as mulheres e para os corpos com identidades de gênero não normativas (CNMH, 2017). Laura Shepherd argumenta sobre o papel da violência de gênero na constituição da subjetividade ao afirmar que esta "marca e cria corpos", investigando os tipos de corpos que são impactados e formados por meio desses atos violentos16. Para a autora, a “reprodução violenta de gênero” ocorre no momento em que as vítimas da violência sexual são automaticamente feminizadas, enquanto os perpetuadores dos atos violentos de agressão são entendidos como masculinos, independentemente do sexo ou gênero real da vítima, ou do autor. Para Rita Segato, no contexto armado contemporâneo o corpo da mulher, por sua afinidade arcaica com a dimensão territorial, se torna “o quadro, ou tábua, sobre 13 PURNELL, K. Rethinking the Body in Global Politics: Bodies, Body Politics, and the Body Politic in a Time of Pandemic. 1a ed. Abngton, Inglaterra: Routledge, 2021. 14 BUTLER, J. Quadros de guerra. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. 288 p. 15 WILCOX, L. Bodies of violence: Theorizing embodied subjects in international relations. Oxford University Press, 2015. 16 SHEPHERD, L. Gender, violence and security: Discourse as practice. Bloomsbury Publishing, 2008, p. 2. Alice de Carvalho Nogueira | 191 a qual os signos de adesão [do conflito] são inscritos”17. Na abordagem da autora, a violência sexual é enfatizada como um crime de ordem pública, que atua em prol da privatização da vida, do domínio dos territórios e da expansão de economias extrativistas. O crime assume uma função dupla por permitir acesso a ganhos econômicos e políticos, enquanto reafirma a dominação baseada em uma hierarquia sexual. Em suas palavras: O corpo e, muito especialmente, o corpo da mulher, pela sua afinidade arcaica com a dimensão territorial, é, aqui, a moldura em que se inscrevem os sinais de adesão. Os atributos de associação codificados são fragmentados ou anexados a ele. E nele, principalmente no corpo feminino e feminilizado, os inimigos da rede gravam ferozmente os sinais de seu antagonismo 18. No contexto armado, a condição precária não leva a um reconhecimento recíproco, ao contrário, a apreensão da precariedade conduz a uma intensificação da violência, a uma percepção da vulnerabilidade física de certo grupo de pessoas que incita o ímpeto de destruí-las. O poder militar busca maximizar a precariedade para o outro, enquanto busca minimizá-la para si19. As hierarquias de gênero se reforçam na conjuntura de dominação dos atores armados, onde os corpos das vítimas passam a ser a propriedade sobre a qual as normas patriarcais são registradas para punir, moralizar e disciplinar, tornando o ambiente um terreno fértil para a manifestação das diversas formas de violências de gênero20. Em sociedades colonizadas, tal como a colombiana, a conjuntura de gênero se intensifica ao surgir atrelada às determinações coloniais em prol da dominação e do disciplinamento de corpos. A imposição do gênero como princípio organizativo aos colonizados foi imprescindível para a exploração do capitalismo global e eurocêntrico, ao destruir os vínculos de solidariedade entre as vítimas da dominação e a relativa complementaridade existente entre o feminino e o masculino, que se opunham à nova lógica de poder. Com a hierarquização 17 SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 84, p. 69. SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 84., p. 69. 19 BUTLER, J. Quadros de guerra. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. 288 p. 20 CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo: informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017. 18 192 | Gênero, violência e estruturas de poder entre o espaço público (ocupado pelos homens) e o espaço privado (ocupado pelas mulheres), houve a despolitização deste último e a consequente perda de poder político por parte das mulheres21. Neste sentido, Rita Segato argumenta que a colonialidade impõe uma estrutura binária sobres sociedades antes caracterizadas pela dualidade. No mundo dual, os gêneros ocupam espaços distintos na vida social, mas ontologicamente plenos e completos. As relações são baseadas na complementaridade, no sentido em que espaço público, com suas tarefas políticas e de intermediação, não se sobrepõe ao espaço doméstico e suas diversas atividades compartilhadas. Essa estrutura é capturada pela colonialidade e seus binarismos, que se afirma “reduzindo o ‘outro’ à função de alter do ‘um’”, do “sujeito universal”, extraindo sua plenitude ontológica22. Como os teóricos pós-coloniais afirmam, este “outro” (feminino, não branco, subdesenvolvido) se torna condição para existência deste “Um”. A partir do conceito de colonialidade de gênero, elaborado por María Lugones (2008), a autora reflete como as práticas de dominação, tutela e violência contra os corpos de mulheres e homens colonizadas/os são recorrentemente legitimadas, uma vez que esses corpos seriam classificados como pertencentes à uma subhumanidade e compreendidos como territórios de disputa. Desta forma, a associação realizada por Rita Segato (2018) entre o corpo feminizado/racializado e o território traz a tona a reflexão de como os corpos das mulheres são tratados como território de conquista no cenário violento informal, sobre os quais os grupos criminosos e as forças de segurança estatais e paraestatais desejam exercer alguma tutela. Em suas palavras: [...] a destruição do inimigo no corpo da mulher, o próprio campo de batalha em que a insígnia da vitória é pregada e significada, está inscrito nele a devastação física e moral do povo, tribo, comunidade, vizinhança, localidade, família, bairro ou gangue que esse corpo feminino, por meio de um processo de significação próprio de um imaginário ancestral, incorpora23. 21 SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019. SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 99. 23 SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 361-362. 22 Alice de Carvalho Nogueira | 193 É a partir de violências físicas e sexuais, e dos feminicídios perpetrados contra mulheres de grupos rivais que esses atores afirmam seu poder sobre determinado território. O Caso Colombiano O conflito armado colombiano é marcado por ser heterogêneo ao longo dos seus mais de 50 anos de história, apresenta diversas transformações, alianças e dinâmicas sociais complexas no âmbito de seus atores, de sua extensão territorial, das suas vítimas e de seus repertórios violentos. Classificado como o conflito mais sangrento da história contemporânea da América Latina pelo Centro de Memória Histórica da Colômbia (2013), o número de vítimas contabilizadas pelo governo chega a marca de 220.000 mortes entre os anos de 1958 e de 2012. A violência expressiva é uma forte característica do conflito, junto com a incidência deste na vida da sociedade civil. O principal fator que transpassa toda história do embate, por meio do qual a população civil é mais envolvida, é a questão agrária, a busca dos atores armados por conquistar e afirmar seu poder sobre os territórios a serem possuídos. Os ganhos econômicos, sociais e políticos dos atores armados se relacionavam com as atividades extrativistas e de produção agrícola em grande escala, além da luta política por demonstração de poder entre o Estado e as forças insurgentes. Apesar dos diferentes impactos em cada região do país, o ponto comum era a busca pela desconexão das populações de suas terras, empurrando-os para o deslocamento e também minando a possibilidade de retorno24. Em outras palavras, um projeto que buscou destruir as bases comunitárias e abrir espaço para a exploração. A dinâmica social complexa e a preponderância do fator agrário no cerne das disputas, leva o conflito ao interior das comunidades e de seus territórios, gerando um movimento de migração da população em busca de segurança. Como indica Lina Céspedes-Báez (2010), a ampla relação entre conflito armado interno e território produz dinâmicas de deslocamento forçado, que, geralmente, culminam 24 CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo: informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017. 194 | Gênero, violência e estruturas de poder em crises humanitárias das quais os Estados não estão capacitados para atender. Este delito raramente ocorre de forma isolada em relação às outras condutas ilícitas como, por exemplo, a violação sexual, traçando assim a inter-relação entre as violências25. Ao tratarmos da violência sexual, o informe produzido pelo Centro Nacional de Memória Histórica (2017), indica três principais fatores condicionantes que facilitam a sua emergência no contexto citado, sendo estes: (i) a tolerância social a prática, (ii) o sistema de normas socialmente aceito sobre gênero que promove as masculinidades guerreiras, (iii) e os fatores econômicos, ligados a economia legal e ilegal com a expansão da probreza. A tolerância social se conecta ao discurso social que reduz a importância da violência de gênero perante as outras formas de violência, alimentando imaginários que naturalizam e normalizam as violações sexuais desde a esfera privada. Ao naturalizar, a narrativa promove a tolerância ao crime e leva ao silenciamento das vítimas em receio a possível discriminação em seus ambientes sociais. O fator seguinte, se refere às relações raciais e de gênero que regem a sociedade colombiana, estabelecidas em meio ao sistema patriarcal hierárquico, excludente e violento. Neste contexto, diversas organizações feministas e defensoras dos direitos humanos, apontam como o conflito armado vem reforçando o binário de gênero e a subordinação das mulheres em seus territórios de maior incidência26. O embate formou uma chave com a estrutura de gênero tradicional da sociedade colombiana, contribuindo para a formação de “subjetividades masculinas guerreiras e subjetividades femininas objetificadas”27. As formas de socialização masculina se intensificam em meio ao conflito, de modo que as demonstrações de virilidade por meio do militarismo se tornaram símbolos de prestígio em diversos setores do país. Segundo Segato (2019), a 25 CÉSPEDES-BÁEZ, Lina María. La violencia sexual en contra de las mujeres como estrategia de despojo de tierras en el conflicto armado colombiano. Revista Estudios Socio-Jurídicos, Bogotá: Universidad del Rosario Bogotá, v. 12, n. 2, p. 273-304, 2010. 26 ABCOLOMBIA, Sisma Mujer et al. Colombia: mujeres, violencia sexual en el conflicto y el proceso de paz. 2013.; CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo: informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017, p. 156. 27 CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo: informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017, p. 156. Alice de Carvalho Nogueira | 195 masculinidade pode ser empregada como um mecanismo enunciativo, uma forma de violência expressiva para manifestar a autoridade e o controle de alguns homens sobre outros e seus territórios. A dominação sexual atua não somente no físico, mas também no lado moral da vítima e de seus familiares: reduzir moralmente o outro é um requisito para um poder completo, e a sexualidade, no mundo de hoje, está diretamente ligada à moralidade (Segato, 2019). Com isso, a capacidade de manter o controle absoluto e soberano no corpo das vítimas e em seu território está na centralidade da mensagem que a violência sexual transmite. Isto é, uma reivindicação da posse do corpo das mulheres, e por extensão, a posse dos seus territórios28. A dinâmica de conflitos e as disputas entre os grupos armados geraram um cenário de violência, em que os corpos das mulheres foram utilizados como palco para os embates e como marcadores de controle territorial 29 . Os paramilitares priorizaram sua estética, sua masculinidade e barbárie acima da diversidade, negando a possibilidade de uma vida digna nos territórios e transformando corpos em palcos para controle, punição e batalha30. Na busca por impor sua própria ordem, o grupo estabeleceu diversos mecanismos de regulação sobre a vida privada das mulheres e punições para as que não cumprissem o dever que lhes fora imposto. Observa-se que, ao instituir hierarquias e facilitar a normalização de diferentes formas de violência contra a mulher, o ideal de "masculinidade hegemônica" demonstrou sua força entre os símbolos de gênero presentes na sociedade colombiana31. Observa-se que na Colômbia as violações de gênero constituem uma engrenagem crucial dentre as formas de embate empregadas. Uma violência que ocorre em um cenário impessoal, uma forma de femigenocidio, em que o perpetuador busca transmitir uma mensagem ao cometê-la e que transforma o corpo da mulher colombiana em parte do campo de batalha. A violência sexual 28 SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019. SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019. 30 QUINTERO BENAVIDES, Alexandra; CELY GÓMEZ, Laura; IDROBO ARAGÓN, Natalia; RAMÍREZ CARDONA, Claudia; CHAPARRO MORENO, Liliana. Mujeres en Conflicto: Violencia Sexual y Paramilitarismo. Corporación Sisma Mujer, Bogotá – Colombia. 2009. 31 THEIDON, Kimberly. Reconstructing masculinities: The disarmament, demobilization, and reintegration of former combatants in Colombia. Human Rights Quarterly, v. 31, p. 1, 2009. 29 196 | Gênero, violência e estruturas de poder relacionada ao conflito deve ser caracterizada como um ato criminoso de violência por meios sexuais, um ato exibicionista de dominação e não relacionado a desejos puramente sexuais. Retirar a ideia de libido do discurso é necessária para trazer à tona a questão ao âmbito público da discussão, em um mundo no qual “tudo o que nos passa enquanto mulheres é empurrado para o campo do íntimo”32. Em 2008, o tema foi levado à Corte Constitucional da Colômbia, e por meio da decisão judicial Auto 092, estabeleceu-se que a violência sexual é generalizada e sistemática no conflito, sendo utilizada por todos os grupos armados. O Auto, e posteriormente a Comissão da Verdade (2017), reconhecem o impacto desproporcional do conflito para as mulheres e a conexão com os altos índices de deslocamento forçado na Colômbia. Apesar das cifras oficiais não refletirem a real magnitude, principalmente devido ao fato de apenas 18% das mulheres denunciarem após serem vitímas da violência sexual, os dados se tornam relavantes para compreensão sistemática do ato 33 . De acordo com pesquisa promovida pelo Centro de Memória Histórica da Colômbia (2017), entre os anos de 1997 e 2005 se registraram 8.242 casos de violência sexual em ocasião do conflito armado, muitos dos quais seguidos de morte. O aumento de casos na época está diretamente ligado ao maior período de intensificação da violência, com a expansão do grupo paramilitar em todo território nacional e a consolidação de suas alianças políticas e econômicas ligadas às atividades do narcotráfico. A investigação estima que 4.342 destes casos foram perpetrados por paramilitares, ou seja, 52,6% do registro. Enquanto os grupos guerrilheiros estima-se que perpetuaram 1.941 casos no período citado, isto é, 24% dos registros de violência sexual. Dentre os dados, 1.761 foram classificados como propagados por autor desconhecido, 101 por grupos armados não identificados e 69 por agentes do Estado. Destaca-se que as estruturas de gênero e os padrões de comportamento presentes na sociedade colombiana a séculos, sustentam esta forma de violência muito antes do advento do conflito armado. Além do sistema patriarcal baseado na 32 SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019, p. 227. ABCOLOMBIA, Sisma Mujer et al. Colombia: mujeres, violencia sexual en el conflicto y el proceso de paz. 2013. 33 Alice de Carvalho Nogueira | 197 dominação e na discriminação de gênero, outro fatores de risco ganham destaque, como a marginilização social, política e econômica 34 . Tais condições se intensificam para mulheres indígenas e afro-colombianas, que já vêem sua existência marcada pela discriminação de raça e se tornam as mais afetadas pelo conflito. Considerações Finais As dinâmicas violentas travadas dentro dos conflitos armados expõem a população civil as mais diversas formas de violências em prol dos ganhos econômicos e políticos dos grupos armados envolvidos. A conquista e o controle territorial apresentam um papel relevante ao analisarmos este contexto e as violências de gênero envoltas a este processo são diversas vezes deixadas de lado ao propor uma pesquisa. Em direção a uma análise inclusiva dos fatores que perpassam tais pontos, este trabalho apresentou um breve panorama das conexões entre as formas de exercer controle territorial e as violências de gênero envolvidas neste processo. O caso observado, o conflito armado colombiano, evidencia as dinâmicas de poder relacionadas às hierarquias de gênero e como elas se alinham as disputas armadas em prol de determinados fins anteriormente pretendidos. As violências de gênero são utilizadas como táticas de guerra, visando não apenas infligir danos físicos e psicológicos nas vítimas, mas também desestabilizar comunidades e grupos sociais, buscando afetar sua coesão e resistência. Os altos índices de violência sexual ganham destaque neste cenário, atrelada ao deslocamento forçado da população vitimada, evidenciando como as violações não surgem como produto de um acaso, mas sim como parte de um conjunto de estratégias políticas e de guerra que impulsionaram os interesses dos grupos armados em meio a suas campanhas de expansão, dominação e controle territorial. Por fim, destaca-se que na sociedade colombiana, as violações de gênero antecedem a guerra, de modo que os valores patriarcais da sociedade se 34 ABCOLOMBIA, Sisma Mujer et al. Colombia: mujeres, violencia sexual en el conflicto y el proceso de paz. 2013. 198 | Gênero, violência e estruturas de poder intensificam dentro do conflito armado gerando uma maior vulnerabilidade às mulheres, ou aos grupos historicamente excluídos. Isto é, é um formato de violência que apresenta profundas raízes históricas, políticas econômicas e sociais. Como indica o Centro de Memória Histórica da Colômbia (2017), tal fenômeno não segue só uma interpretação, mas sim liga elementos da estrutura social que expressam, de forma simultânea e indissociável, aspectos institucionais de caráter moral, político, familiar, econômico, religioso, comunitário e simbólico. Referências ABCOLOMBIA, Sisma Mujer et al. Colombia: mujeres, violencia sexual en el conflicto y el proceso de paz. 2013. AMNESTY INTERNATIONAL. Use of force, guidelines for implementation of the UN basic principles on the use of force and firearms by law enforcement officials. 2015. BUTLER, Judith. Quadros de guerra. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. 288 p. CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. Basta Ya! Colombia: memorias de guerra y dignidad. Bogotá: Imprensa Nacional, 2013. CENTRO NACIONAL DE MEMÓRIA HISTÓRICA DA COLÔMBIA. La guerra inscrita en el cuerpo: informe nacional de violencia sexual en el conflicto armado. Bogotá: Imprensa nacional, 2017. CÉSPEDES-BÁEZ, Lina María. La violencia sexual en contra de las mujeres como estrategia de despojo de tierras en el conflicto armado colombiano. Revista Estudios Socio-Jurídicos, Bogotá: Universidad del Rosario Bogotá, v. 12, n. 2, p. 273-304, 2010. DAVIES, Sara; TRUE, J. Reframing conflict-related sexual and gender-based violence: Bringing gender analysis back in. Security dialogue, v. 46, n. 6, p. 495512, 2015. JIMENO, Myriam. Emoções e Política: A Vítima e a Construção de Comunidades Emocionais. MANA, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 99-121, 2010. KALDOR, Mary. New and Old Wars. Cambridge: Polity Press. 2012. LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula rasa, n. 09, p. 73-101, 2008. MEGER, Sara. The fetishization of sexual violence in international security. Alice de Carvalho Nogueira | 199 International Studies Quarterly, v. 60, n. 1, p. 149-159, 2016. OLIVEIRA, Susane. Memórias, subjetivação e educação no tempo presente: como as representações de violência sexual são abordadas nos livros didáticos de História? Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 11, n. 28, p. 466-502, 2019. PURNELL, K. Rethinking the Body in Global Politics: Bodies, Body Politics, and the Body Politic in a Time of Pandemic. 1a ed. Abngton, Inglaterra: Routledge, 2021. QUINTERO BENAVIDES, Alexandra; CELY GÓMEZ, Laura; IDROBO ARAGÓN, Natalia; RAMÍREZ CARDONA, Claudia; CHAPARRO MORENO, Liliana. Mujeres en Conflicto: Violencia Sexual y Paramilitarismo. Corporación Sisma Mujer, Bogotá – Colombia. 2009. SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficante de Sueños, 2016. SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019. SHEPHERD, Laura. Gender, violence and security: Discourse as practice. Bloomsbury Publishing, 2008. THEIDON, Kimberly. 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CORPO DESVIANTE FEMININO COMO CORPO POLÍTICO https://doi.org/10.36592/9786554601566-10 Aline Tusset De Rocco1 RESUMO A partir da ideia de que há um padrão esperado do corpo feminino no Brasil e que este se reflete não só na estética, mas também na inclusão e exclusão social e política da mulher, podemos refletir sobre estes corpos que estando fora da norma também estão fora dos espaços de poder. Com isto, o artigo visa atrair maior visibilidade ao tema, assim como discutir sobre corpos femininos desviantes e suas relações sociopolíticas. Navegando pelas redes sociais como o Instagram percebemos a presença de corpos femininos fora da norma, e percebemos que estes, apesar da sua diversidade, demonstram uma unidade no que tange à resistência ao padrão social imposto. Assim, a partir das manifestações no Instagram de mulheres com corpos desviantes proponho uma reflexão abrangente sobre corpos desviantes que se apresentam como corpos políticos. Palavras-chave: Desvio; Corpo Político; Mulheres. 1 INTRODUÇÃO Com a colonização e o estabelecimento de um padrão eurocêntrico de corpo feminino no Brasil, institui-se a idealização dos corpos, o que também se reflete na construção social e política de corpos que podem estar dentro ou fora deste padrão. Deste modo, atenta-se que o corpo desviante de um padrão feminino magro, branco, cisgênero e sem deficiência é também o corpo marginalizado socialmente, economicamente e politicamente. Corpos fora da norma são corpos fora dos espaços de poder. Assim, este artigo terá como foco dar maior visibilidade ao tema de modo a aprofundar conhecimentos sobre práticas sociais de corpos desviantes e suas relações sociopolíticas. Apesar da vigência de um padrão de corpo feminino, no bojo das ações afirmativas têm emergido críticas ao padrão eurocêntrico e a um corpo idealizado quase inalcançável. O discurso que une o movimento dentro e fora da Internet é o da construção de uma identidade feminina brasileira que contemple 1 Doutoranda em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 202 | Gênero, violência e estruturas de poder também mulheres com corpos considerados fora da norma, ou seja, corpos desviantes. Este discurso tem se mostrado cada vez mais em evidência tanto na mídia, quanto no interior da própria militância feminista, e tem sido relevante nas redes sociais em diferentes contextos. Ao olharmos brevemente para o Instagram, podemos perceber discursos diferentes, mas que possuem uma unidade no que tange desafiar a norma social do corpo feminino e esta suposta unidade será o foco do artigo aqui proposto. Assim, a partir das manifestações de mulheres com corpos desviantes no Instagram proponho uma reflexão sobre estes corpos políticos. É com isto em mente que buscarei aqui refletir sobre o conceito de biopolítica de Foucault (2015) 2 relacionando aos corpos desviantes femininos no espaço do Instagram. Assim, irei explorar o conceito de biopolítica atrelado ao conceito de desvio de modo a incorporar a ideia de corpos que não atendem a uma norma social. Desta maneira, pretendo abordar intersecções do gênero feminino com o corpo negro e gordo, e a intereseccionalidade do corpo feminino trans e com deficiência motora; de modo a compreender como o conceito de biopolítica pode nos ajudar a compreender mais sobre feminilidades fora da norma. 2 O CORPO DESVIANTE Para iniciar a conceituação de corpo, e assim também do corpo desviante, podemos assumir o corpo como expressão de um sistema de comunicação, uma demonstração tanto do coletivo como também do individual. Mauss 3 (2003) é o precursor deste pensamento sobre o corpo. Para ele, o corpo não é nem apenas natural, ou biológico; nem apenas social, já que cada cultura estabelece diferentes formas de interagir e perceber o mesmo. Em Mauss (2003), vemos o corpo como o primeiro objeto técnico da humanidade. A técnica do corpo para ele é um ato tradicional transmitido a outras pessoas do grupo, e os gestos são formas de linguagem nas interações sociais. É a partir da ideia de técnica do corpo que Mauss (2003) apresenta também o conceito de "habitus". O autor usa o termo em latim para exprimir o conceito de que 2 3 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Paz e Terra. 2015. MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. Cosac Naify. 2003. Aline Tusset De Rocco | 203 não existe expressão corporal que não seja adquirida, sendo gestos, andar, modos de olhar, todos parte da cultura e não apenas trejeitos biológicos. Com a ideia de Mauss podemos compreender o corpo como parte biológica, mas também com seus traços e implicações culturais que se sobrepõem ao que muitas vezes delega-se ao natural. O autor ressalta que "esses "hábitos" variam não simplesmente com as pessoas e seu gestual, mas também com as sociedades, a educação, a moda e o que é conveniente socialmente. Além disso, para Mauss (2003) toda atitude é permitida ou não, podendo variar conforme seu contexto. O ato se impõe de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo. O indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado diante dele ou com ele pelos outros. É precisamente nessa noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado, autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento social. No ato imitador que se segue, verificam-se o elemento psicológico e o elemento biológico. Mas o todo, o conjunto é condicionado pelos três elementos indissoluvelmente misturados. (MAUSS, 2003. p. 405). Assim, conforme Mauss (2003) na citação anterior, o reconhecimento de posições é também o reconhecimento do que é aprovado. Logo, tudo que representa o diferente, o estranho, o anormal, o que margeia as normas é percebido como desestruturado. Quando pensamos em corpo, este corpo quando está fora das proximidades ele se torna também fonte de inquietação e medo. Esta percepção é possível de ser percebida, por exemplo, em corpos femininos com deficiência no Instagram. Mulheres com deficiência motora geram não só aversão aos seus corpos quando ao expor imagens deles, mas geram também uma inquietação no público que muitas vezes se transforma em comentários pejorativos e até mesmo no riso. É complementando essa ideia de Mauss (2003) que Rodrigues4 (2006) em seu livro intitulado "Tabu do corpo" atenta que o corpo carrega em si a marca da vida social, expressando o que a sociedade define que deve ser impresso no mesmo. O autor percebe o corpo como uma massa de modelar à qual a sociedade impõe suas formas. Sendo assim, teríamos um corpo biológico, mas também um corpo 4 RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. SciELO - Editora FIOCRUZ, 2006. 204 | Gênero, violência e estruturas de poder social/cultural, indo assim de encontro com Mauss (2003). Para Rodrigues (2006) somos incapazes de perceber o que são necessidades naturais, e o que são necessidades sociais, pois consciente ou inconscientemente o corpo expressa práticas e representações que são parte do processo de socialização. Toda a atividade é uma expressão da estrutura social e a "estrutura biológica do homem possibilita-lhe ver, ouvir, cheirar, sentir e pensar, mas a cultura fornece o rosto de suas visões, sentimentos e pensamentos, criando novos cheiros, sons e visões, constituindo novos universos e novos corpos (RODRIGUES, 2006)". Ao tratarmos o corpo como em parte biológico, mas ao mesmo tempo também cultural, podemos percebê-lo como uma força que reproduz o que a sociedade deseja, mas também o que ela teme já que paralelamente ao fato de ser culturalizado, este corpo também desvia do controle. O corpo feminino desviante no Instagram não só desvia da norma, como também escandaliza a norma demonstrando a existência de uma reprodução de um padrão impossível. Rodrigues (2006) afirma com esse pensamento que o corpo representa a dualidade da estrutura social, já que a pessoa se reconhece em seu corpo, ao mesmo tempo que tende a rejeitá-lo em seus aspectos que não atendem à expectativa social. Para afirmar-se culturalmente a pessoa se vê obrigada a rejeitar esse corpo natural, e por assim dizer animal, e todos os processos orgânicos cabidos a ele. Em contraponto, a pessoa busca reconhecerse em um corpo cultural, aquele que tem a "dignidade da natureza humana", como aponta o autor. Esse corpo cultural separa a pessoa de sua própria natureza, tentando controlá-la e moldá-la, tentando imprimir a morte das dimensões que diferem da norma. Mesmo que haja esse reconhecimento do corpo cultural, é essencial lembrar que ele é ferramenta da sociedade que o manipula a fim de expressar-se. Assim, ao pensar o corpo estamos também pensando sobre a estrutura social, e ao codificá-lo estamos codificando a sociedade. É deste modo que Rodrigues (2006) afirma que ao controlar e evitar o que é considerado "inapropriado" controla-se também as relações sociais. O autor também lembra que a cultura é quem dita as relações do corpo, e que cada pessoa aprende comportamentos aos poucos e então torna-os naturais. Este ponto evidencia o fato de que o corpo biológico está sempre sendo conformado pela esfera cultural, por religião, família, classe, e outros aspectos Aline Tusset De Rocco | 205 sociais. Assim, é neste mesmo corpo conformado que vemos as conotações também da publicidade, da moda, dos filmes, ou como atenta Hassen 5 (2001) o corpo é atingido pelas diversas esferas do poder, inclusive pelo consumo, ou como no caso trazido neste artigo, pela comunicação de consumo e redes sociais. Agregando a esta percepção, Hassen (2001) recorda que se o corpo é atingido pelas diversas esferas do poder, ele é também capaz de se mostrar um veículo de transformação cultural, logo, se o corpo reproduz poder ele também é a arma necessária para combatê-lo. Sabe-se também que além dos atributos citados que são elegidos pela cultura a fim de moldar o corpo, é necessário reconhecer a educação como meio de inculcar nas crianças tais atributos de modo que aos poucos se adequem às exigências sociais. Nesse movimento sabemos que muitos dos atributos impostos são impossíveis ou inalcançáveis, mas são idealizados pela sociedade e aprendidos pelas pessoas em seu processo de socialização. Para Rodrigues (2006) a socialização é o processo pelo qual a criança aprende a ser um membro da sociedade, quando abre mão da sua autonomia em favor do controle social. A socialização difere em cada sociedade, e pode ser baseada em leis ou acordos informais que constituem valores sociais capazes de transformar comportamentos, e assim também corpos. Rodrigues (2006) ainda aponta que não é apenas por medo de penalidades que pessoas seguem regras, mas também para que se sintam parte de uma comunidade. Apesar da maioria das pessoas respeitar a maior parte das regras sociais, normas formalmente estabelecidas são percebidas de maneiras diferentes por pessoas em sua implementação prática. Em um raciocínio rápido, o autor lembra que se toda regra existe para ser obedecida, existe também para ser quebrada; e isso é imperativo estrutural do sistema social. Tanto é verdade que toda sociedade admite algum nível de transgressão às suas regras. 5 HASSEN, Maria de Nazareth Agra. Da visão íntima na prisão: A corporalidade negociada. In: Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001. 206 | Gênero, violência e estruturas de poder Com isto em mente podemos pensar a partir de Becker 6 (2008) e sua ideia de desvio. De acordo com Becker (2008) todos os grupos sociais criam regras e definem comportamentos apropriados, e as pessoas que apresentam um comportamento desviante são chamadas de "outsiders". Assim, para o autor, a pessoa "outsider" se molda a partir do que a sociedade e as demais pessoas têm como imagem dela. Por essa lógica, podemos relacionar à expectativa ao corpo feminino também a uma regra social e à uma imposição do que é adequado, e o que é desviante. O desvio pode ser um traço de exclusão e pode impedir com que a pessoa com corpo desviante participe de grupos, o que pode resultar também em grupos organizados desviantes. Este movimento de grupos organizados desviantes é algo que vemos, por exemplo, no movimento Body Positive, no qual mulheres gordas apresentam seus corpos desviantes também como corpos bonitos e aceitos. Para Rodrigues (2006) o desvio não estaria na conduta em si, mas na interação entre as pessoas, na reação das mesmas ao perceberam a transgressão. Para o autor, a consciência sobre transgressões nada mais é do que o reflexo das pessoas sobre as sanções sociais, seja qual a forma que se apresente, desde as manifestações da opinião pública até a própria culpa individual sobre um ato. Desta maneira para ele, nem atos e nem transgressões estão diretamente ligados às pessoas, mas sim às condições sociais responsáveis pelo sentimento. Logo, tornar os corpos desviantes mais aceitos socialmente também pode tirá-los do espaço de desvio e assim também da própria exclusão social derivada dele. Quando começamos a pensar sobre corpos femininos desviantes retomamos Mauss (2003) onde encontramos uma ideia que reforça a diferenciação do olhar, e do corpo, feminino e masculino. Em Mauss (2003) já encontramos a ideia de que as técnicas corporais podem ser segmentadas por gênero. Apesar dos estudos de gênero muitas vezes negligenciar estudos sobre o corpo quando fala-se de identidades, é pelo corpo que se produz e vivencia a sociedade. O corpo é assim uma expressão de uma pessoa ou grupo social, e é também uma expressão do que é considerado "ser mulher". Um exemplo que o autor traz é de como homens fecham o punho com o polegar para fora, enquanto a mulher faria o mesmo gesto com o 6 BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2008. Aline Tusset De Rocco | 207 polegar para dentro. Isso está diretamente relacionado à educação do que é ser homem, nesse caso saber dar um soco, e do que é ser mulher em nossa sociedade. É neste ponto que entendemos que existe uma maneira de ser do corpo feminino, um corpo que deve se apresentar com determinadas características, mas que também deve gesticular, olhar e falar de maneiras tipicamente femininas que são sociais, e não naturais à mulher. Em Rodrigues (2006) entendemos que as definições de gênero estão relacionadas diretamente a direitos e obrigações, e assim expectativas, sobre cada gênero. Em todas as sociedades as crianças são ajustadas conforme o papel de gênero que devem exercer, papel esse que é comportamental. O social, assim, está presente nas menores e menos prováveis ações humanas e produz comportamentos e pensamentos inconscientes sobre os gêneros. Com isso em mente temos um trecho de Lopes 7 (2001) no livro Corpo e Significado onde a autora aponta a importância da socialização para a feminilidade de uma travesti, de modo a adaptar o seu corpo (e com ele seus trejeitos e toda a sua expressão) para uma expressão que possa ser percebida enquanto feminina. Fui percebendo que tornar-se travesti é bem mais que se "montar" de mulher e sair por aí. Deixa-se os cabelos e as unhas crescerem, as sobrancelhas num estilo Gilda ou Elizabeth Taylor, acessórios em abundância e roupas femininas, rendas, transparências, decotes e cores. Um exagero que se aproxima do Drag-Queen. Mas isso não é o suficiente. Carol Karydan, uma amiga travesti, fala que, nessa fase de transformar-se travesti, o máximo que se consegue ser é uma "caricata", expressão utilizada para designar a travesti iniciante. A construção desse "feminino" envolve tempo e familiaridade com esses novos elementos. O que usar com o quê, a busca de um estilo próprio. "Usar fuso, tênis e uma camisa de seda não dá, né? É preciso usar só renda, langerie, uma linha jeans ou clássica". Essa forma econômica, discreta, só vem com o tempo. (LOPES, 2001, p. 228). 7 LOPES, Suzana Helena Soares da Silva. Corpo, metamorfose e identidades: de Alan a Elisa Star. In: Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001. 208 | Gênero, violência e estruturas de poder No trecho apresentado, Lopes (2001) atenta que tornar-se travesti vai além de apenas escolher uma roupa, mas se relaciona especialmente às escolhas, a adaptação de uma norma de corpo e vestir feminino. O sistema de normas sobre o corpo que cria o desvio a partir da sua percepção, também define as expectativas relacionadas ao que é ser mulher e o que é ter um corpo feminino. Mesmo que a construção da feminilidade seja temporal e cultural, os corpos que divergem deste padrão social sofrem com uma violência coletiva através da exclusão. Ao mesmo tempo que sofrem violências, esses corpos também abrem a possibilidade da concepção de um novo modelo de corpo feminino. É assim que Victora8 (2001) compreende que ao mesmo tempo que o corpo se adequa às normas e expressa significados, ele próprio é discurso sobre a sociedade passível de leituras diversas por diferentes pessoas. Postura, forma, manifestações, trejeitos, tudo emite significados e imagens do que é constitutivo de ser mulher, ao mesmo tempo que também permite a leitura e interpretação desta imagem. Assim, existe o discurso expresso pelo corpo, mas também o discurso compreendido por quem o percebe, podendo estes dois pontos divergirem. Não só a linguagem expressa o corpo, mas também as representações o fazem. Logo, podemos observar o habitus de Mauss no discurso e imagens produzidos pelos corpos femininos que estão divergindo da norma, do mesmo modo que podemos compreender de que maneira eles são lidos. 3 O CORPO POLÍTICO EM FOUCAULT Se em Mauss (2003) têm-se a ideia de técnica do corpo, e em Rodrigues (2006) o corpo carrega a marca da vida social, em Foucault (2015) podemos explorar o corpo político. Em seus múltiplos trabalhos Foucault estudou o disciplinamento dos corpos e prestou especial atenção às práticas e discursos que agem sobre corpos visando à produção de determinados modos de ser e agir. É a partir deste disciplinamento que Foucault9 (1977) vê as subjetividades hegemônicas munidas de 8 VICTORA, Ceres G. As imagens do corpo: Representações do aparelho reprodutor feminino e reapropriações do modelo médico. In: Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001. 9 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1977. Aline Tusset De Rocco | 209 aptidões e habilidades e que percebe o treinamento do corpo humano para se tornar mais produtivo na sociedade capitalista. Assim, Foucault (1977) entende que os corpos foram construídos como "dóceis" de forma a se tornarem mais capacitados e adequados ao capitalismo industrial. Ao mesmo tempo que todo corpo está inserido no contexto capitalista e na docilização para produção, mulheres com corpos desviantes ao confiscar o discurso sobre seus corpos, mesmo que apenas por alguns momentos, quebram o monopólio do discurso sobre um suposto padrão do corpo feminino apresentando um corpo que cria fissuras na norma. De acordo com Foucault (2015) o corpo "é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos - alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria resistências". É a partir desta linha de pensamento que Foucault (2015) apresenta o corpo como efeito de diversas práticas e que podemos entender um conceito que vem a ser central quando pensamos em corpos e resistência, a ideia de "biopolítica". Para ele, existe um biopoder que age sobre o corpo humano com o objetivo de gerir a vida do corpo social. O corpo social aqui não é apenas corpo biológico, mas é um corpo que emerge como espaço que abrange um corpo físico e também cultural, ele é o corpo apresentado também por Mauss (2003) e Rodrigues (2006). Este biopoder, segundo Foucault (2015), gere nascimento, mortalidade, duração da vida, e não se restringe a um poder meramente disciplinar. Quando falamos de poder temos a tendência de imaginar o poder pela repressão, pela lei que proíbe. Porém em Foucault (2015) o poder não é aquele que apenas proíbe, pois se assim fosse jamais seria obedecido. Para ele, se o poder agisse apenas de modo negativo e produzisse uma repressão exagerada, se tornaria frágil. Deste modo, para Foucault (2015) o poder só é forte porque produz efeitos positivos a nível de desejo e saber, produzindo discurso e induzindo ao prazer. "Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir" (FOUCAULT, 2015, p. 45). É a partir do poder sobre o corpo que a medicina conseguiu progredir enquanto saber, e é a partir do desejo do corpo perfeito que o poder domina os corpos. É o poder que faz com que nós mulheres tenhamos o desejo do corpo ideal, e é ele que produz a exclusão daquelas que não conseguem estar de acordo com a expectativa do corpo feminino. O autor retoma afirmando que cada 210 | Gênero, violência e estruturas de poder sociedade tem seu regime de norma, seus próprios discursos que são tidos como verdade, e também o estatuto daqueles que dizem o que funciona como verdadeiro. Assim, podemos relacionar que cada sociedade tem seu próprio padrão de corpo feminino, e suas expectativas sobre o mesmo. Se toda sociedade apresenta um padrão, resistir ao poder pode ser apresentar um corpo em desvio, que pode vir ser o corpo feminino gordo e negro; como também o corpo feminino trans e com deficiência. Quando Foucault (2015) aborda o poder, ele trata também de regras e relações de dominação. Para ele, as regras substituíram a guerra e a humanidade instalou sua violência nelas para prosseguir com novas dominações dobrando aqueles que antes dominavam. Nesta lógica foucaultiana, as regras são um grande jogo, onde existem os que as utilizam, e outros que as invertem para uma nova vontade submetendo-a a uma nova interpretação. Neste caso, percebemos as mulheres gordas e negras ou trans e com deficiência não só como estes corpos desviantes, mas também como as pessoas capazes de inverter essa regra e apresentar uma nova interpretação para seus próprios corpos. As redes sociais permitem com que mulheres fora do padrão invertam a norma e produzam resistência. É também com a criação e interação a cerca de um corpo desviante que criam-se locais seguros para a resistência e para a troca a partir de um pensamento de confronto à norma. Ainda assim, vale atentar que em Foucault (2015) o poder não é fixo e é capaz de se deslocar e muitas vezes incorporar as fissuras criadas pela resistência. Percebemos este ponto quando olhamos para o corpo da mulher gorda. Ainda que pouco, a mulher gorda tem passado a ser representada nas imagens de consumo e nas passarelas de moda, entretanto, ao mesmo tempo esta mulher gorda continua sendo recusada em vagas de emprego e tem dificuldades ou não consegue acessar todos os espaços sociais e políticos. Logo, mesmo que minimamente incorporada ao poder através do consumo, ela ainda se mantém excluída socialmente e politicamente, ou seja, ela é minimamente incorporada em uma sociedade capitalista que não a incorpora em seus direitos como cidadã. É também com o pensamento de Foucault (2015) que encontramos a ideia de que as relações de poder são fenômenos complexos, e entre estes fenômenos podemos perceber a tentativa de domínio do corpo, através da exaltação de um Aline Tusset De Rocco | 211 suposto corpo belo, um corpo idealizado. Esta reflexão demonstra como o poder exerce domínio sobre o corpo, levando-nos à busca de um corpo ideal e à desaprovação do corpo que não atende esta expectativa. Entretanto, apesar do domínio do poder, uma consequência produzida pela dominação é também a resistência. Podemos entender os corpos femininos gordos e negros ou trans e com deficiência como corpos que se rebelam ao se afirmar possíveis, como corpos que fissuram o poder com seu discurso e buscam a resistência à dominação. Assim, o que era poder, passa a ser resistência. Logo, se o poder é capaz de se deslocar, ele também se mostra menos fixo do que o suposto. Assim, Foucault (2015) desfaz a ideia, que era vigente até a década de 1960, de que o poder é algo rígido e fixo, demonstrando que o poder pode ser tênue quando sobre o corpo. Ao falarmos do poder, e assim dos grupos poderosos e subordinados, é essencial voltar a Foucault (2015) e a sua afirmação sobre não ser possível identificar sujeito ou grupo como fonte do poder. Desta maneira, podemos compreender que o poder não pode ser irradiado para grupos subordinados. A ideia defendida é de que tanto grupos poderosos quanto grupos sem poder estão no mesmo circuito, embora de forma desigual. Quando tratamos do grupo que tem poder estamos falando sobre grupos de decisão que tentam moldar a sociedade de acordo com sua visão de mundo e valores, estabelecendo assim o que é visto como normal e o que é visto como anormal. Este grupo faz com que o normal pareça tão natural para todas as pessoas que acaba por conseguir estabelecer a hegemonia. Como afirma Foucault (2015, p. 138) "Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, (...) não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui." Foucault (2015) afirma que cada resistência tem um foco particular e que designar o alvo da luta é o primeiro passo para inverter o poder. Assim, mulheres com corpos desviantes ao confiscar o discurso sobre seus corpos, mesmo que apenas por alguns momentos, quebram o monopólio do discurso que socialmente se impõe sobre seus próprios corpos. É desta maneira que o autor entende que todas as pessoas que sofrem com a impressão do poder sobre seus corpos podem começar a lutar a partir de seu próprio lugar. Se, conforme Foucault (2015), o controle 212 | Gênero, violência e estruturas de poder da sociedade capitalista começa pelo corpo, e não pela ideologia, é apenas a partir do corpo e do discurso sobre o mesmo que pode-se romper com o poder. Ao mesmo tempo, a sociedade capitalista é capaz de absorver revoltas do corpo. Como resposta, muitas vezes o poder se utiliza do controle-estimulação. Assim, vemos o que Foucault (2015) chama de investimento do corpo pelo poder, ou seja, o trabalho insistente e meticuloso que o poder exerce a fim de conduzir e dominar o corpo. Ao mesmo tempo que o poder investe no trabalho sobre o corpo, o corpo reivindica o prazer e a diferença como uma contra ofensiva, mantendo esta uma batalha contínua. Porém a cada movimento de luta, o poder também se movimenta e cria novos efeitos. A partir de tal, se Foucault (2015) compreende a dominação como algo que não ocorre de um grupo sobre o outro, mas de maneira múltipla, então não temos uma posição central, mas temos diversas sujeições no interior do corpo social. Assim, para ele o poder se exerce em rede já que as pessoas em um momento exercem poder e em outro momento sofrem sua ação. Se por um lado uma mulher com deficiência sofre com a dominância do poder e suas implicações sobre seu corpo, esta mesma mulher pode ser branca e repercutir uma ação que propaga um ideal de branquitude. Ainda assim, o poder não se aplica às pessoas, mas passa por elas, sendo essas produto da relação de poder, desejos, movimentos e forças que se exercem sobre seus corpos. Logo, cada pessoa é efeito do poder ao mesmo tempo que é também sua fonte de transmissão. A circulação do poder permite que seus efeitos cheguem aos corpos, gestos, e a cada prática cotidiana. Assim, as estratégias do poder estão nas microrrelações, e com elas que avançam sobre novos domínios produzindo novos efeitos. Esta linha de análise vai de encontro à proposta aqui neste trabalho, já que ao retomarmos Foucault (2015), temos conhecimento dos mecanismos gerais da dominação, logo, podemos agora compreender também as microrrelações e como se dão as possíveis resistência destes corpos femininos no contexto brasileiro. Aline Tusset De Rocco | 213 Conforme Guizzo e Invernizzi10 (2012), no século XVIII com a introdução deste novo grupo de saberes para controle e manutenção da população, que Foucault (2015) veio a chamar de "biopolítica", é que os corpos femininos se tornam alvo de estratégias de normalização. É a partir deste momento que corpo e saúde se tornam pauta e que se constrói socialmente a figura da mulher, tomada a partir de um discurso que ressalta sua condição cultural. Esta nova dinâmica de poder é instaurada e também propagada pelas novas tecnologias no século XIX e XX a partir do o controle do corpo feminino e do papel social esperado de uma mulher. Assim, a mulher deixa de ser problema meramente político, mas se torna um problema biológico já que agora a biopolítica controla suas vidas muito mais do que apenas o controle do Estado através do controle e adestramento, ou mesmo da imposição da morte. Guizzo e Invernizzi (2012) apresentam quatro exemplos das estratégias de dominação sobre os corpos: "a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do corpo da criança, a socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização dos prazeres perversos". No caso da histerização da mulher, conforme Foucault11 (1988), este corpo foi analisado, qualificado e desqualificado, tornando-se locus dos exercícios de micropoderes que investem e modelam os corpos. A preocupação com as diferenças entre feminino e masculino, derivação da biopolítica, começa a se instaurar e a propagar a ideia que o corpo masculino é superior ao feminino. Os estudos médicos aos poucos reforçam esta ideia, atribuindo inclusive doenças à própria natureza da mulher. Além do reforço à condição de gênero, estabelece-se um paradigma onde o ser mulher está atrelado ao papel social da mesma. Ali, a própria divisão do trabalho se faz presente, quando entende-se que algumas habilidades são naturais à mulheres e outras não. Assim, vemos que a preocupação médica e social não se restringe às mulheres, mas se ocupa delas como algo primordial à construção biopolítica. Com isto em mente, vemos a ideia foucaultiana de não-neutralidade do saber, já que a verdade é produzida a partir do 10 GUIZZO, Daniele Cristina; INVERNIZZI, Noela. A potencialização das práticas biopolíticas pela tecnologia: novas produções do corpo e gênero feminino. Revista Ártemis, v. 13, n. 1, 2012. 11 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 214 | Gênero, violência e estruturas de poder poder e se impõe sobre o que deve ser o corpo feminino e para que este deve ser utilizado. Partindo da ideia de que Foucault (2015) defende que as novas formas de controle ultrapassam as disciplinas do corpo, para Bentes12 (2017) com a transição das tecnologias também vemos o surgimento de políticas de resistência que atravessam diferentes campos e que se confundem muitas vezes com a própria ideia de entretenimento. Assim, a partir da perspectiva foucaultiana e da ideia de um novo campo político através da tecnologia, podemos pensar como um novo ativismo identitário surge, produzindo imagens e discursos, mas também novas narrativas e propondo novas possibilidades de experienciar o próprio corpo. O uso de perfis do Instagram por mulheres com corpos desviantes pode assim ser percebido como uma estratégia individual para responder a demandas e a discursos sociais, ao mesmo tempo que também pode contribuir para dar novas formas ao ser mulher no Brasil. Logo, se para Foucault existe um biopoder, para Latour 13 (2008) "ter um corpo é aprender a ser afectado", ou seja, estar sempre em constante movimento de mudança, assim deveria haver também um biocontra-poder onde se localiza a busca por liberdade dos corpos. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o conceito foucaultiano de biopolítica atrelado a ideia de desvio de Becker (2008) podemos refletir sobre o padrão esperado do corpo feminino no Brasil, seja por conta dos trejeitos ou habitus esperados de maneira inerente ao feminino, seja pelo corpo enquanto forma, cor e aparência. Um pouco do que foi apresentado aqui, para além dos conceitos, foi a possibilidade de buscar o entendimento do movimento de corpos desviantes em redes sociais, mais especificamente no Instagram. Se o desvio produz exclusão, é a partir do desvio e da percepção de unidade de corpos desviantes que surgem novos grupos de resistência, tanto na Internet, 12 BENTES, IVANA. Biopolítica feminista e estéticas subversivas. Matrizes, v. 11, n. 2, p. 93-109, 2017. LATOUR, Bruno. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência, v. 10, n. 2004, p. 39-61, 2008. 13 Aline Tusset De Rocco | 215 quanto nos movimentos que transbordam para o meio não digital. Os corpos femininos apresentados no Instagram são os mesmos corpos que habitam a sociedade fora das telas, e são estes corpos que buscam o respeito na Internet, mas também a inclusão sociopolítica fora dela. Em espaços como o Instagram encontramos uma diversidade de corpos femininos que se apresentam e se impõem enquanto possíveis. Entretanto, mesmo nas fissuras geradas pelos corpos em resistência ainda assim podemos perceber que muitas vezes o padrão se readapta, absorvendo partes das reivindicações. De todo modo, a resistência destes corpos na Internet é capaz de agrupar uma diversidade de corpos que se reconhecem nesta luta e que se impõe em movimento de resistência também nos espaços sociopolíticos. Para finalizar, é essencial retomar que independente do corpo feminino desviante, a Internet, e em especial o Instagram, tem se mostrado como um espaço seguro de resistência. Mesmo que lá haja discursos que diminuem esses corpos femininos em desvio, também é lá que cria-se uma grande rede de apoio e de objeção a ideia de que só existe um corpo feminino possível, o corpo branco, magro, cis e sem deficiência. REFERÊNCIAS BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Editora SchwarczCompanhia das Letras, 2008. BENTES, Ivana. Biopolítica feminista e estéticas subversivas. Matrizes, v. 11, n. 2, p. 93-109, 2017. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Paz e Terra. 2015. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1977. GUIZZO, Daniele Cristina; INVERNIZZI, Noela. A potencialização das práticas biopolíticas pela tecnologia: novas produções do corpo e gênero feminino. Revista Ártemis, v. 13, n. 1, 2012. 216 | Gênero, violência e estruturas de poder HASSEN, Maria de Nazareth Agra. Da visão íntima na prisão: A corporalidade negociada. In: Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001. LATOUR, Bruno. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência, v. 10, n. 2004, p. 39-61, 2008. LOPES, Suzana Helena Soares da Silva. Corpo, metamorfose e identidades: de Alan a Elisa Star. In: Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001. MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. Cosac Naify. 2003. RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. SciELO - Editora FIOCRUZ, 2006. VICTORA, Ceres G. As imagens do corpo: Representações do aparelho reprodutor feminino e reapropriações do modelo médico. In: Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2001. 11. A MULHER E O TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO NA TEORIA DAS CAPACIDADES E NA INTERSECCIONALIDADE https://doi.org/10.36592/9786554601566-11 Carem Barbosa de Castro1 Maria Laura Maciel Fernandez2 Resumo O presente artigo tem o objetivo de verificar que a problemática brasileira do trabalho invisível do cuidado, assumido massivamente por mulheres e, principalmente por mulheres negras, pode ser analisado e enfrentado sob a perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum, mas também pela interseccionalidade. O artigo se divide em três capítulos. No primeiro capítulo, busca-se demonstrar o panorama do trabalho invisível do cuidado assumido pelas mulheres e, principalmente, pelas mulheres negras brasileiras. Após, passa-se à análise de mencionada problemática pela perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum e como esta pode ajudar a enfrentá-la. Por fim, busca-se demonstrar que mencionada problemática, além de ser enfrentada pela Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum e pelo recorte de gênero, também deve ser analisada e enfrentada através da interseccionalidade, principalmente pela intersecção com a raça. Para isso, foi utilizado o método de abordagem dedutivo, como forma de, partindo de análises gerais acerca da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum e da interseccionalidade, analisar o fenômeno específico do trabalho invisível do cuidado, assumido massivamente pelas mulheres, no contexto brasileiro. Foi utilizado como procedimento a pesquisa bibliográfica, com o estudo de artigos e publicações científicas sobre o tema. Abstract This article aims to verify that the Brazilian problem of invisible care work, undertaken massively by women and, mainly, by black women, can be analyzed and faced from the perspective of Martha Nussbaum's Capabilities Theory, but also through intersectionality. The article is divided into three chapters. In the first chapter, we seek to demonstrate the panorama of the invisible care work undertaken by women and, mainly, by black Brazilian women. Afterwards, we analyze the aforementioned problem from the perspective of Martha Nussbaum's Capabilities Theory and how it can help to face it. Finally, we seek to demonstrate that the aforementioned problem, in addition to being faced by Martha Nussbaum's Capabilities Theory and the gender perspective, must also be analyzed and faced through intersectionality, mainly 1 Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Email: castrocarem@gmail.com. 2 Mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Email: maria-laura-95@hotmail.com. 218 | Gênero, violência e estruturas de poder through the intersection with race. For this, the deductive approach method was used, as a way of analyzing the specific phenomenon of invisible care work, massively undertaken by women, in the Brazilian context, based on general analyzes about Martha Nussbaum's Theory of Capabilities and intersectionality. Bibliographical research was used as a procedure, with the study of articles and scientific publications on the topic. 1 INTRODUÇÃO No Brasil, cada vez mais, torna-se latente a necessidade de se enfrentar o problema do trabalho invisível do cuidado assumido, principalmente, pelas mulheres. Tendo em vista essa necessidade, o presente artigo procura demonstrar, ante dados brasileiros da massiva carga sustentada pelas mulheres no trabalho do cuidado, como estas precisam da atuação do Estado e de políticas públicas para conseguirem serem capazes de buscarem uma vida que elas considerem boa, sob a perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum. Além disso, o presente artigo visa demonstrar que não basta enfrentar o problema apenas com um recorte de gênero, mas também com um recorte de raça, utilizando a denominada interseccionalidade, uma vez que as mulheres negras sofrem massivamente mais que mulheres brancas nessa problemática do trabalho do cuidado. Como metodologia, foi utilizado o método de abordagem dedutivo, como forma de, partindo de análises gerais acerca da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum e da interseccionalidade, analisar o fenômeno específico do trabalho invisível do cuidado, assumido massivamente pelas mulheres, no contexto brasileiro. Foi utilizado como procedimento a pesquisa bibliográfica, com o estudo de artigos e publicações científicas sobre o tema. O artigo se estrutura em três capítulos. No primeiro capítulo, busca-se demonstrar o panorama do trabalho invisível do cuidado assumido pelas mulheres e, principalmente, pelas mulheres negras brasileiras. Após, passa-se à análise de mencionada problemática pela perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum e como esta pode ajudar a enfrentá-la. Por fim, busca-se demonstrar que mencionada problemática, além de ser enfrentada pela Teoria das Capacidades de Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 219 Martha Nussbaum e pelo recorte de gênero, também deve ser analisada e enfrentada sob a ótica da interseccionalidade, principalmente pela intersecção com a raça. Outrossim, após o exame em todos esses capítulos, busca-se verificar que a problemática brasileira do trabalho invisível do cuidado, assumido massivamente por mulheres e, principalmente por mulheres negras, pode ser analisado e enfrentado sob a perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum, mas também pela interseccionalidade. 2 A MULHER E O TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO NO BRASIL Em 2023 no Brasil, surpreendentemente, o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Os quatro textos motivadores que os alunos dispunham para redigir um texto dissertativaargumentativo frisavam que o trabalho do cuidado é essencial para a sociedade e para a economia. Esse trabalho de cuidado engloba o trabalho, por exemplo, de cuidar das crianças, idosos e pessoas com doenças e deficiências físicas e mentais, bem como o trabalho doméstico diário que engloba cozinhar, limpar, lavar, consertar coisas e buscar água e lenha. Entretanto, sinalizavam uma problemática com relação à divisão desse trabalho de cuidado: ele é desproporcionalmente assumido por mulheres e meninas3. Mais, atestam que as mulheres são responsáveis por mais de três quartos do cuidado não remunerado e compõem dois terços da força de trabalho envolvida em atividades de cuidado remuneradas. Frisam, inclusive, que esse trabalho não remunerado ou, muitas vezes, mal pago, é assumido principalmente por mulheres que pertencem a grupos que, além da discriminação de gênero, sofrem preconceito em decorrência da raça, etnia, nacionalidade ou sexualidade4. 3 EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de linguagens, códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em: https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD1.pdf. Acesso em: 29 mar. 2024. 4 EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de linguagens, códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em: 220 | Gênero, violência e estruturas de poder Segundo dados do IBGE, trazidos pelo ENEM, a medida de horas semanais dedicadas pelas pessoas de 14 anos ou mais de idade aos afazerem doméstico e/ou às tarefas de cuidados de pessoas, por sexo, era de 11 horas semanais para os homens e 21,4 horas semanais para mulheres, ou seja, quase o dobro. Esses dados, ressaltam os textos, demonstram que, apesar das inúmeras transformações sociais pelas quais a sociedade brasileira tem passado nas últimas décadas, como, por exemplo, as mudanças de percepções sociais a respeito dos valores e das convenções de gênero e a forma como as mulheres têm se inserido na sociedade, uma permanência choca: como a delegação quase que exclusiva às famílias – e, nestas, às mulheres - de atividades relacionadas à reprodução da vida e da sociedade, usualmente denominadas trabalho de cuidado5. Por fim, o ENEM traz dados da Revista Pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) que alerta sobre os desafios do cuidado. Há um aumento no número de pessoas que demandam serviços de assistência, como por exemplo, o envelhecimento cada vez maior da população brasileira com o aumento da expectativa de vida, obrigando o país a repensar seu sistema de atenção. Entretanto, no Brasil, o protagonismo dessa assistência continua no âmbito familiar e, dentro deste, o protagonismo dessa assistência continua com a mulher. Portanto, o tema da redação do ENEM de 2023, apenas da visibilidade à uma problemática que há muitos anos acomete as mulheres no Brasil, sendo pertinente6. Entretanto, a divisão do trabalho de cuidado no Brasil não se caracteriza apenas pelas desigualdades de gênero e de classe, mas está profundamente marcado também pelas desigualdades raciais. No país, boa parte da provisão de cuidados é de responsabilidade de mulheres negras, tanto no que se refere ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerados exercido no interior de seus https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD1.pdf. Acesso em: 29 mar. 2024. 5 EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de linguagens, códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em: https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD1.pdf. Acesso em: 29 mar. 2024. 6 EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de linguagens, códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em: https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD1.pdf. Acesso em: 29 mar. 2024. Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 221 domicílios quanto ao trabalho remunerado do cuidado. Mais, os dados do IBGE demonstram que, quando analisado sobre o recorte de raça, as 21,4 horas semanais em média que as mulheres despendem ao trabalho do cuidado, refere-se, principalmente, às mulheres brancas. Já, paras as mulheres negras, essa média sobe pra 22,3 horas por semanais. Ainda que essa diferença aparente ser pouca, ao final de um ano ela significa que as mulheres negras realizam quase 68 horas a mais de trabalho de cuidados não remunerados do que as mulheres brancas, o que equivale a uma semana e meia adicional de trabalho por ano, considerando a jornada de trabalho legal de 44 horas semanais7. Portanto, a problemática do trabalho invisível do cuidado não apenas se refere à uma desigualdade de gênero e à uma sociedade machista, misógina e patriarcal, mas também racista. O referido problema deve ser enfrentado pelo Estado e por políticas públicas, para que as mulheres sejam menos sobrecarregadas e consigam cuidar de si mesmas, perseguindo uma vida que considerem boa. 3 O TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO NA TEORIA DAS CAPACIDADES DE MARTHA NUSSBAUM Após a exposição acima de como as mulheres brasileiras são as principais encarregadas do trabalho invisível do cuidado e como isso afeta a sua persecução por uma vida que elas considerem boa, deixando de lado seu bem-estar em prol da família, expõem-se, sob o olhar da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum, como o problema pode ser enfrentado para que as mulheres sejam vistas como seres humanos com desejos, sonhos, necessidades e que também necessitam de cuidados. Estas, ao estarem sobrecarregadas, não conseguem perseguir o que consideram ser uma vida boa ou, em outras palavras, a felicidade subjetiva que desejam. Martha Nussbaum é uma das mais famosas filósofas estadunidenses, referência em filosofia do Direito e moral. Ademais, é professora emérita de Direito e 7 BRASIL. Nota Informativa nº. 1/2023 – Secretaria Nacional de Cuidados e Família – As mulheres negras no trabalho de cuidado. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, 2023. 222 | Gênero, violência e estruturas de poder Ética da Universidade de Chicago. Em seus trabalhos, bem como em sua Teoria das Capacidades, ressalta a grande influência do economista e ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen, e do filósofo estadunidense John Rawls8. A denominada “abordagem das capacidades” ou “Teoria das Capacidades”, é um guarda-chuva que abrange diversas espécies de teorias desenvolvidas em seu bojo e nas mais diversas áreas do conhecimento. No caso de Martha Nussbaum, esta desenvolveu sua espécie da Teoria das Capacidades no âmbito da Teoria da Justiça, sendo influenciada por ambos teóricos acima referidos. Mais, Martha Nussbaum, em sua Teoria das Capacidades, realiza um recorte de gênero, para demonstrar como estas carecem de promoção nas ditas capacidades9. Segundo Amartya Sen, uma das principais preocupações na vida das pessoas, não é apenas focar no tipo de vida que se consegue efetivamente levar, mas também na efetiva liberdade que realmente se tem para escolher entre diferentes estilos e modos de vida. Assim, segundo o autor, Na verdade, a liberdade para determinar a natureza de nossas vidas é um dos aspectos valiosos da experiência de viver que temos razão para estimar. O reconhecimento de que a liberdade é importante também pode ampliar as preocupações e os compromissos que temos10. Assim, a Teoria das Capacidades afirma que para as pessoas alcançarem o bem-estar, estás devem se questionar o que são capazes de fazer ou ser e, portanto, o tipo de vida que efetivamente são capazes de levar. Ou seja, não é observado se a pessoa efetivamente consegue fazer algo ou ser algo, e sim, caso esta queira fazer algo ou ser algo, esta tenhas as condições substanciais para tanto. Nesse sentido, Amartya Sem narra o exemplo de uma pessoa que passa fome pela pobreza e outra que jejua por livre e espontânea vontade. A que passa fome, caso não queira passar, não possui as condições necessárias para sair de seu estado de miséria e falta de alimentos. Entretanto, a pessoa que jejua por sua livre e espontânea vontade, o faz 8 NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. 9 NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 10 SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 261. Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 223 porque quer e, caso deseje não mais passar fome, possui as condições substanciais, reais e materiais para tanto11. O economista Amartya Sen foi pioneiro ao apontar que uma nação rica não é a nação com o PIB mais elevado e sim, a que distribui melhor essa riqueza entre seus cidadãos. O autor analisa essa distribuição pelo viés de sua Teoria das Capacidades, em que uma nação com igualdade é a nação que promove igualmente as capacidades das pessoas para quando desejarem algo ou quando quiserem ser algo, consigam efetivamente e substancialmente lograrem êxito12. Martha Nussbaum, coaduna com o exposto por Amartya Sen. Entretanto, sua Teoria das Capacidades, uma das espécies dentro do guarda-chuva da abordagem das capacidades, vai além. A autora, além de defender a promoção das capacidades dos cidadãos para efetivamente serem livres para escolher a boa vida que desejam levar, esta cunha uma lista efetiva de dez capacidades que são primordiais e que devem ser promovidas para todos os cidadãos indistintamente, sob pena de, na falta de apenas uma, as pessoas não serem efetivamente livres e iguais. Segue a lista: As capacidades humanas centrais 1. Vida. Ter a capacidade de viver até o fim de uma vida humana de duração normal; não morrer prematuramente, ou antes que a própria vida se veja tão reduzida que não valha a pena vivê-la. 2. Saúde física. Ser capaz de ter boa saúde, incluindo a saúde reprodutiva; de receber uma alimentação adequada; de dispor de um lugar adequado para viver. 3. Integridade física. Ser capaz de se movimentar livremente de um lugar a outro; de estar protegido contra ataques de violência, inclusive agressões sexuais e violência doméstica; dispor de oportunidades para a satisfação sexual e para a escolha em questões de reprodução. 4. Sentidos, imaginação e pensamento. Ser capaz de usar os sentidos, a imaginação, o pensamento e o raciocínio – e fazer essas coisas de um modo “verdadeiramente humano”, um modo informado e cultivado por uma educação adequada, incluindo, sem limitações, a alfabetização e o treinamento matemático e científico básico. Ser capaz de usar a imaginação e o pensamento em conexão com experimentar e produzir obras ou eventos, religiosos, literários, musicais e assim por diante, da sua própria escolha. Ser 11 12 SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 224 | Gênero, violência e estruturas de poder capaz de usar a própria mente de modo protegido por garantias de liberdade de expressão, com respeito tanto à expressão política quanto artística, e liberdade de exercício religioso. Ser capaz de ter experiências prazerosas e evitar dores não benéficas. 5. Emoções. Ser capaz de manter relações afetivas com coisas e pessoas fora de nós mesmos; amar aqueles que nos amam e que se preocupam conosco; sofrer na sua ausência; em geral, ser capaz de amar, de sentir pesar, sentir saudades, gratidão e raiva justificada. Não ter o desenvolvimento emocional bloqueado por medo e ansiedade. (Apoiar essa capacidade significa apoiar formas de associação humana que podem se revelar cruciais para seu desenvolvimento). 6. Razão prática. Ser capaz de formar uma concepção de bem e de ocupar-se com a reflexão crítica sobre o planejamento da própria vida. (Isso inclui proteção da liberdade de consciência e de prática religiosa). 7. Afiliação. A. Ser capaz de viver com e voltado para os outros, reconhecer e mostrar preocupação com outros seres humanos, ocupar-se com várias formas de interação social; ser capaz de imaginar a situação do outro. (Proteger essa capacidade significa proteger as instituições que constituem e alimentam tais formas de afiliação e também proteger a liberdade de associação e de expressão política). B. Ter as bases sociais de autorrespeito e não humilhação; ser capaz de ser tratado como um ser digno cujo valor é igual ao dos outros. Isso inclui disposições de não discriminação com base em raça, sexo, orientação sexual, etnia, casta, religião, origem nacional. 8. Outras espécies. Ser capaz de viver uma relação próxima e respeitosa com animais, plantas e o mundo da natureza. 9. Lazer. Ser capaz de rir, brincar, gozar de atividades recreativas. 10. Controle sobre o próprio ambiente. A. Político. Ser capaz de participar efetivamente das escolhas políticas que governam a própria vida; ter o direito à participação política, proteções de liberdade de expressão e associação. B. Material. Ser capaz de ter propriedade (tanto de bens imóveis quanto de móveis) e ter direitos de propriedade em base igual à dos outros; ter o direito de candidatar-se a empregos em base de igualdade com os demais; ter a liberdade contra busca e apreensão injustificadas. No trabalho, ser capaz de trabalhar como ser humano, exercendo a razão prática e participando de relacionamentos significativos, de reconhecimento mútuo com demais trabalhadores13. 13 NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 91-93. Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 225 Mas, Martha Nussbaum, vai além de Amartya Sen e, não só cunha uma lista de dez capacidades, mas realiza um recorte de gênero em sua Teoria das Capacidades, ressaltando que as mulheres compõem um dos grupos minoritários que não possuem suas capacidades efetivamente promovidas por conta da sociedade misógina e patriarcal. É, principalmente em Woman and Human Development: The Capabilities Approach, que Martha Nussbaum demonstra como as mulheres são esquecidas quando da promoção das capacidades pelo Estado e sua máquina pública (administração), uma vez que para ela, estes são os principais responsáveis por promoverem as dez capacidades mencionadas anteriormente14. Segundo Martha Nussbaum, principalmente no capítulo 4, denominado “Amor cuidado e dignidade”, de Woman and Human Development: The Capabilities Approach, as mulheres são taxadas como naturalmente doadoras de amor e cuidados. Entretanto, seguindo a mesma esteira de John Stuart Mill, em A sujeição das mulheres, a autora ressalta que essa falácia da natureza da mulher para o trabalho do cuidado é algo eminentemente artificial15. Segundo Martha Nussbaum, praticamente em todas as culturas, o papel tradicional das mulheres implica na criação dos filhos e o cuidado do lar, marido e família. Esse papel designado a elas está associado à falácia de que estas possuem virtudes morais, tais como a preocupação altruísta, a sensibilidade para as necessidades dos demais e uma disposição para sacrificar seus próprios interesses a favor dos demais16. Entretanto, Martha Nussbaum, como uma feminista liberal igualitária, aduz que quando grupos minoritários em situações específicas de vulnerabilidade, em que suas capacidades não conseguem serem promovidas, como as mulheres no caso do maçante trabalho do cuidado, precisam de promoção substancial e efetiva de suas capacidades pelo Estado e sua máquina pública, bem como serem vistas como um fim em si mesmas e não como um meio para o fim de terceiro. Nesse caso, 14 NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 15 MILL, John Stuart Mill. A sujeição das mulheres. São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2017. 16 NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 226 | Gênero, violência e estruturas de poder claramente Martha Nussbaum se coaduna com o tão criticado individualismo que o liberalismo prega17. Explica-se. Quando a mulher, no seio da família é tida como a cuidadora por natureza, esta não é vista como um fim em si mesma ou, em outras palavras, como um indivíduo separado do corpo “família” com objetivos, sonhos e desejos próprios, sem relação com esse bolo denominado “família”. Assim, quando se preceitua que esta precisa ser vista como um fim em si mesma, a mulher, dentro da família e como um membro desta, deve possuir um plano de vida e desejos, necessidades, sonhos, separados do resto do corpo da família. A mulher, não pode ser um meio para o fim dos filhos, marido e outras pessoas que dependam do seu cuidado. Ela deve ser tratada como um indivíduo que necessita que suas capacidades sejam promovidas, para buscar o que considera uma vida boa18. No caso da promoção das capacidades, uma vez que o Estado e a máquina pública são os responsáveis pela promoção das mencionadas dez capacidades, este não deve promover a separação estanque entre privado e público e sim, deve adentrar na família para corrigir essa distorção, surgida no âmbito de uma sociedade machista, misógina e patriarcal, onde a mulher é sobrecarregada com o trabalho do cuidado e forçada a esquecer de si mesma19. Em muitos casos, os danos que as mulheres sofrem na família assumem uma forma particular: a mulher é tratada não como um fim em si mesma, mas como um agregado ou um instrumento das necessidades dos outros, como mera reprodutora, cozinheira, lavadora, lugar de descarga sexual, cuidadora, mais do que como fonte de capacidade de escolha e busca de objetivos e como fonte de dignidade em si 20. Assim, Martha Nussbaum ressalta a sobrecarga que mulheres sofrem ao serem, “naturalmente”, colocadas nesse papel de cuidadoras, sendo forçadas a não 17 NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 18 NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 19 NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 20 NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 327. Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 227 se verem como um fim em si mesmo e, tendo em vista a sua sobrecarga, não possuem as capacidades listadas, uma vez que não possuem tempo, por exemplo, ao ócio, que ajuda na capacidade de número 4, sentidos, imaginação e pensamento, bem como não possuem tempo para efetivarem substancialmente a capacidade de número 9, lazer. Nessa falta de promoção de suas capacidades, Martha Nussbaum ressalta: A saúde sofre, seu equilíbrio emocional fica gravemente comprometido e perdem muitas outras capacidades que teriam, de outra forma, desfrutado. Uma sociedade digna não pode assegurar que todos os cuidadores tenham vidas felizes, mas pode lhes proporcionar um nível mínimo de capacidade em cada uma das áreas-chave21. A autora menciona que as perguntas que devem ser feitas são: e as cuidadoras? Quem cuida das cuidadoras? E as suas capacidades? E para resolver essa problemática, a autora ressalta o papel do Estado e das políticas públicas para promoverem as capacidades das mulheres no seio da família, espaço este privado, mas que também é âmbito de ingerência do Poder Público, na seara do liberalismo igualitário, para serem consideradas como fins em si mesmas e para possibilitar que procurem a vida boa que desejarem, evitando que sejam sucateadas pelo trabalho invisível do cuidado que, pelos olhos de uma sociedade patriarcal, machista e misógina, é taxado de natural para as mulheres22. 4 A NECESSIDADE DA INTERSECCIONALIDADE NA PROMOÇÃO DAS CAPACIDADES FEMININAS QUANDO NO ÂMBITO DO TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO Entretanto, Martha Nussbaum, ao ressaltar o papel do Estado e das políticas públicas na promoção das capacidades das mulheres no âmbito privado e, mais especificamente, no âmbito da família, para serem consideradas como fins em si mesmas e para que possam efetivamente e substancialmente terem capacidade de 21 NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 209. 22 NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. 228 | Gênero, violência e estruturas de poder buscar uma vida que considerem boa, olvida-se de que no âmbito da sociedade, o trabalho invisível do cuidado é mais sentido por mulheres negras e/ou pobres. Dito olhar, pela perspectiva desse grupo específico de mulheres, pode ser realizado por meio da denominada interseccionalidade. Essa, é o estudo da sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação, como a raça, por exemplo. O conceito da interseccionalidade surgiu a partir de círculos sociológicos no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, em conjunto com o movimento feminista multirracial23. O termo foi cunhado pela jurista negra norte-americana Kimberlé Crenshaw24 em sua tese de doutorado, em 1989, e demarcou o paradigma teórico e metodológico da tradição feminista negra, proporcionando, desta forma, conexões políticas e jurídicas 25 . Entretanto, Lélia Gonzalez, filósofa brasileira, no final dos anos 1970, articulou questões ligadas à opressão de gênero, raça e classe, e já alertava sobre a interseccionalidade, mas sem usar claramente a expressão que foi penas cunhada anos mais tarde. Assim, “apesar de não ter cunhado o termo feminismo interseccional, a gênese do conceito já estava em sua obra e em sua intervenção política”26. Lélia Gonzalez ressaltou que estava cansada de perceber que nem na escola e nem nos livros onde as pessoas estudavam, não se mencionava a efetiva contribuição das classes populares, das mulheres, dos negros, dos índios, na formação histórica e cultural do Brasil, sendo que, na verdade, o que se fazia, era folclorizar todos eles27. Assim, 23 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2023. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em espaços para discriminação racial relativos ao gênero. In: Revista Estudos Feministas, v.10, n.1. p. 171-188, 2002. Disponível em: chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j 8fSBQQ/?format=pdf&lang=pt. 25 COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021 26 RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 254. 27 GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509709/mod_resource/content/0/06%20%20GONZALES %2C%20L%C3%A9lia%20%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf. Acesso em: 25 jun. 2023. 24 Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 229 As mulheres negras (compreendidas como pretas e pardas) são vítimas das mais diversas formas de desigualdade, mulheres negras apresentam duas características decisivas nas dinâmicas sociais que contribuem para vulnerabilidades específicas, ser mulher e negra28. A mulher negra, principalmente, conforme exposto anteriormente, é a mais negligenciada no que tange à promoção de suas capacidades, quando estas são analisadas sob a perspectiva da Teoria das Capacidades, uma vez que O mito da “mãe preta” fez perpetuar o histórico papel desempenhado pela mulher negra: é ela quem cuida até hoje da casa e dos filhos da mulher branca! A relação entre mulheres brancas e negras é caracterizada pela dominação, com mulheres brancas exercendo poder sobre mulheres negras. E o ambiente doméstico era onde essa relação desigual ficava mais aparente29. Assim, mesmo estando sujeitas a sofrer discriminação de gênero, as mulheres negras e brancas, não estão em condições de igualdade e suas experiências vão ser diferentes, uma vez que em razão da discriminação racial, a mulher negra é exposta a múltiplas discriminações. A mulher negra é massivamente considerada um meio para o fim alheio, principalmente pelo histórico escravagista do Brasil, em que as mulheres negras apenas eram consideradas como cuidadoras do lar, fazenda, filhos do senhor e, até mesmo, do próprio senhor de escravos, a despeito deste possuir uma esposa, branca30. Portanto, as mulheres negras, no Brasil, sofrem mais ainda com a designação, dita natural, do trabalho invisível do cuidado. Assim, para estancar o problema da massiva designação das mulheres ao trabalho invisível do cuidado e carência de uma promoção efetiva de suas capacidades, sob a perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum, não basta se fazer apenas um recorte de gênero, mas também é preciso observar o problema pela perspectiva da raça, pois as 28 SILVA, Silvana Oliveira da et al. A cor e o sexo da fome: análise da insegurança alimentar sob o olhar da interseccionalidade. In: Cadernos de Saúde Pública [online]. v. 38, n. 7, e00255621, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311XPT255621. Acesso em: 27 nov. 2023. 29 HOOKS, Bell. Escrever além da raça: teoria e prática. São Paulo: Elefante, 2022, p. 77. 30 CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Revista Estudos Avançados, 2003. 230 | Gênero, violência e estruturas de poder mulheres negras precisam de um Estado e de políticas públicas mais incisivos para estancar mencionado problema e promover suas capacidades, uma vez que estas não sofrem apenas com o machismo, mas também com o racismo e o histórico escravagista do país, que as colocam em um papel de eternas cuidadoras, mascarando esse papel como natural de sua raça31. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo buscou demonstrar que o trabalho invisível do cuidado é de maneira desproporcional, assumido pelas mulheres. Não porque estas querem, mas sim, por uma concepção dita natural de sua natureza para tanto, fruto de uma sociedade patriarcal, machista e misógina, que desemboca na desigualdade de gênero latente na sociedade brasileira. Conclui-se que o trabalho das mulheres de cuidado nas famílias não é reconhecido como tal. Mas, o reconhecimento da natureza política da instituição da família é o começo do avanço, pois leva imediatamente às perguntas: quais leis estão implicadas nos problemas que enfrentamos atualmente, e como a lei poderia fazer melhor o seu trabalho? O enfrentamento do problema pela perspectiva da Teoria das Capacidades de Martha Nussbaum é importante na medida em que se busca, pelo Estado e políticas públicas, a promoção das capacidades das mulheres para que estas sejam consideradas como fins em si mesmas, com sonhos e desejos próprios, e que tenham a capacidade real e substantiva de quando desejarem fazer algo ou serem algo, estas consigam lograr êxito. Essa virada de chave é importante, uma vez que a mulher, na sociedade machista, patriarcal e misógina, é vista como um meio para fim alheio, sendo essa engolida pela instituição família da qual faz parte. Segundo Martha Nussbaum, muito pode ser feito para estancar esse problema pelo Estado e sua máquina pública, como forma de promover as capacidades das mulheres, como por exemplo: (a) pagamento direto a membros da família que realizem o trabalho de assistência (salário); (b) municipalidade contratar assistentes 31 RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Carem Barbosa de Castro; Maria Laura Maciel Fernandez | 231 para a realização de certos serviços de cuidado; (c) compensação pela perda de renda durante um período de assistência a um parente deficiente; (d) apoio à licença remunerada do trabalho dos pais; (e) estipular um Serviço Nacional da Juventude para que jovens ajudem no trabalho do cuidado na sociedade em que vivem; (f) oferecer, alternativamente, serviço militar por dois anos ou um serviço civil por três anos; (g) oferecer uma educação pública que modifique a concepção de masculinidade que torna os homens relutantes em assumir a tarefa do cuidado e (h) mudanças nos locais do trabalho, com flexibilidade do tempo e do local do trabalho e meio expediente sem comprometimento do progresso de carreira32. Entretanto, conclui-se que não basta apenas enfrentar o problema sob uma perspectiva da Teoria das Capacidades de Marthe Nussbaum, com um recorte de gênero apenas. Mas, também, a interseccionalidade pode ser utilizada para uma investigação precisa e sistemática dos indicadores de (des)igualdade social, assim como para a elaboração de políticas públicas e estratégias pertinentes para alteração desse quadro e para a luta de movimentos sociais, principalmente no que tange às mulheres negras, com a intersecção do estudo e dos enfrentamentos do problema, não apenas com o gênero, mas com a raça. O próprio conceito de interseccionalidade e sua flexibilidade decorre de sua natureza aberta que permite que as pessoas a usem de maneiras diferentes para projetos distintos. A interseccionalidade é uma metodologia maleável, ou, como afirmam Collins e Bilge 33, uma teoria crítica social ainda a ser muito trabalhada. REFERÊNCIAS AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2023. BRASIL. Nota Informativa nº. 1/2023 – Secretaria Nacional de Cuidados e Família – As mulheres negras no trabalho de cuidado. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, 2023. CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Revista Estudos Avançados, 2003. 32 NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. 33 COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021. 232 | Gênero, violência e estruturas de poder COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em espaços para discriminação racial relativos ao gênero. In: Revista Estudos Feministas, v.10, n.1. p. 171-188, 2002. Disponível em: chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.scielo.br/j/ref/a/mbT pP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?format=pdf&lang=pt. EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO. Exame Nacional do Ensino Médio: Prova de linguagens, códigos e suas tecnologias e redação, prova de ciências humanas e suas tecnologias. Disponível em: https://download.inep.gov.br/enem/provas_e_gabaritos/2023_PV_impresso_D1_CD 1.pdf. Acesso em: 29 mar. 2024. GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509709/mod_resource/content/0/06%2 0%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasi leira%20%281%29.pdf. Acesso em: 25 jun. 2023. HOOKS, Bell. Escrever além da raça: teoria e prática. São Paulo: Elefante, 2022, p. 77. MILL, John Stuart Mill. A sujeição das mulheres. São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2017. NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. NUSSBAUM, Martha C. Women and Human Development: The Capabilities Approach. 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Depois, para dialogar com isso na prática, faz um breve relato das experiências e ações que estão sendo desenvolvidas pelo Coletivo Território em Justiça Social através de metodologias ativas que procuram construir as narrativas a serem contadas de modo coletivo. Por fim, trazemos alguns elementos do porquê um devirgênero que permeia todas essas questões. Trata-se, portanto, de um texto aberto e coletivo, de um ensaio verdadeiramente experimental, mas com uma entrega muito importante: romper a solidão acadêmica é um passo fundamental para as mudanças do mundo por vir, ouvir mais do que falar e escrever, talvez nos permita contar uma outra história que não a unívoca. Há aí a necessidade das tramas coletivas e interseccionais. Introdução Não há um texto pronto, não se trata de um estudo consolidado. Assim como as práticas, é um texto sobre vivências. De experiências que experimentam, de algum modo, pensar o como fazemos pesquisa e de que forma é possível construir coletivamente tramas que dialogam entre si, entre esse lugar do saber, do conhecimento que chamamos academia e as ruas, ou melhor, tudo que está do lado de fora. É também sobre o desejo, a premissa de uma estética política que nasce nas ruas dos movimentos feministas da Argentina: nos mueve el deseo, acrescentandose nisso a presença política do que nos move intimamente, raiva, fúria e coragem. De tal modo que o pessoal é político e que talvez não haja a possibilidade de se fazer 1 Pós-doutoranda em Direitos Humanos pela UniRitter, bolsista Capes; Consultora de Projetos na Terceiro Andar; Doutora em Filosofia pela PUCRS com estágio doutoral em Hamburg, Alemanha; Mestra em Ciências Criminais pela PUCRS; Co-fundadora do Coletivo Território em Justiça Social. Email: pesquisadora.reguadagnin@gmail.com. 234 | Gênero, violência e estruturas de poder uma produção do conhecimento e dos saberes que não seja interseccional, ou que pelo menos leve em consideração os recortes que isso implica. Na apresentação no Congresso de Estudos em Gênero e Interseccionalidade de 2023 minha intenção e inquietação era muito clara: quero falar sobre as coisas que faço para além da academia mas que conversam com ela para falar sobre gênero e interseccionalidade, raça e classe. Quero contar como sobre as nossas práticas e nossas lutas para fazer pequenos movimentos que, apesar de parecerem pequenos, exigem esforços e uma energia que está em outra ordem, e só é possível de movimentar porque nos movemos coletivamente. Talvez não haja muito espaço para escrever desse modo na academia. Mas, me parece que esses espaços precisam, de algum modo, começar a dialogar proximamente na e para a construção de apoio mútuo. Com uma gama de pensadoras que vem colocando as torções das teorias feministas e do tornar-se mulher na sociedade que vivenciamos, desde o slogan emblemático de muitos movimentos feministas do “o pessoal é político” ao “não se nasce mulher, torna-se mulher” até os slogans dos movimentos feministas das campanhas surgidas especialmente na Argentina:“nos mueve el deseo” e “disculpen la molestia, nós estan matando”, para muito além da construção metodológica das filosofias feministas, o saber feminista é também uma memória dos combates com uma epistemologia sólida e própria, tal como nos diz Elsa Dorlin em “Sexo, Gênero e Sexualidade”2. O recorte deste ensaio será uma espécie de experimento sobre como atravessamentos teóricos e práticos de uma ética em pesquisa buscam pequenas ações cotidianas para adiar o fim do mundo combatendo as violências. Os rastros teóricos e filosóficos que irão marcar a tentativa de tal experimento, passam por Fanon, Beauvoir, Krenak, bell Hooks, Elsa Dorlin e outras pensadoras, às vezes citadas diretamente e, às vezes, presentes demais para serem citadas. Tentarei, assim, construir uma narrativa que, por um lado, fricciona como uma forma de contar uma história de modo hegemônico, da história unívoca, auxilia para anular, reduzir à categoria de coisa, qualquer pessoa que se identifique como mulher ou que seja desviante do gênero masculino e da heteronormatividade e também da 2 Dorlin, E. (2008) Sexo, Gênero e sexualidade - introdução à teoria feminista. [recurso eletrônico] São Paulo: Crocodilo/Ubu, 2019. Renata Guadagnin | 235 branquitude. Isso quer dizer, os efeitos de poder dos discursos filosóficos, históricos, antropológicos, jurídicos, totalizantes sobre o corpo das mulheres, pessoas lgbtqiap+ e pessoas negras. Compreendemos que há nas teorias feministas e de autores atualmente chamados de interseccionais e decoloniais um terreno entre insubordinação e dispositivo defensivo a partir dos quais podemos colocar alguns questionamentos tanto do ponto de vista teórico como prático: o que a violência produz nos corpos dominados? Como aquele que a sofre, que é anulado enquanto sujeito e objetificado chega a transformá-la? Como se dá o processo de reapropriação do seu corpo e de sua potência? Quais as estratégias mobilizadas? Essas questões ecoam, através de Dorlin, desde Fanon. Através delas, Dorlin desenvolve uma ética do combate. Acenando para como a autodefesa permite a irrupção de um sujeito no contexto de dominação colonial e neocolonial. É então o esforço de compreender como nossos corpos, ainda que marcados por expressões como: caça (Márcia Tiburi), presa (Fanon e Dorlin), carne (Derrida), escravo.a (Hegel e Beauvoir), vem construindo a possibilidade de contar uma outra história e de constituir espaços seguros de sobrevivência, de reapropriação de si e dos nossos corpos-territórios, corpos-arquipélagos. “Nós não é plural de eu”: porquê a interseccionalidade é necessária Para a filósofa Elsa Dorlin a expressão “o pessoal é político” continua sendo compreendida como um emblema feminista e diz respeito ao “trabalho de historicização de uma relação de poder e ao trabalho de conscientização sobre essa relação”3. Isso significa dizer que os saberes feministas também se relacionam com um trabalho histórico em diversos campos e tradições disciplinares. Tratam de questionar o estatuído enquanto dentro e fora do âmbito político: “os papéis de sexo, a pesonalidade, a organização familair, as tarefas domésticas, a sexualidade, o corpo”4. 3 Dorlin, E. (2008) Sexo, Gênero e sexualidade - introdução à teoria feminista.[recurso eletrônico] São Paulo: Crocodilo/Ubu, 2019, p. 07. 4 Dorlin, E. (2008) Sexo, Gênero e sexualidade - introdução à teoria feminista.[recurso eletrônico] São Paulo: Crocodilo/Ubu, 2019, p. 07. 236 | Gênero, violência e estruturas de poder Dorlin, que será a autora mais presente aqui, trata na sua obra Sexo, Gênero e Sexualidade - introdução à teoria feminista, através das contribuições de Franz Fanon e de Homi Bhabha, do processo de racialização dos homens árabes, negros e indígenas. Apontando como historicamente esses grupos foram tratados sob duas perspectivas opostas, ou enquanto excessivamente viris e agressivos, ou femininos e passivos. Na primeira opção considerados bestiais, na segunda passíveis de serem simbolicamente castrados, sujeitos à castração genital e estupro. Assim como discute a necessidade de uma compreensão mais profunda do termo patriarcado, analisando o quanto ele é marcado por duas características cruciais: o patriarcado é branco e o patriarcado é imperial. A compreensão da presença desses dois conceitos enquanto constituintes do patriarcado são, para a autora, a chave de análise das relações de poder racistas e coloniais que fabricam o desenvolvimento do capitalismo, a partir de problemáticas caras ao feminismo interseccional, não se restringindo às questões de classe ou de raça, mas demonstrando a interligação dos usos coloniais para a subalternização das mulheres e de toda pessoa que não fosse branca e imperial. A fabricação deste patriarcado também produz os lugares ocupados pelos feminismos ao longo da história, sem deixar de fora a crítica necessária a ser feita ao racismo inerente ao feminismo branco, Dorlin retoma a crítica de Angela Davis e a contribuição feita por todo movimento “black feminism” para a perspectiva interseccional que temos hoje. Diante deste cenário, o saber feminista coloca no percurso da história um trabalho histórico realizado a partir de múltiplas tradições disciplinares. Logo, todos esses trabalhos, até então à margem do político, na verdade significam um trabalho de historicização, portanto, de politização do espaço considerado privado, do íntimo, da individualidade, isso é, o político é reintroduzido necessariamente pela condição de ser mulher, ser negro ou uma pessoa dissidente do gênero heteronormativo, no âmbito privado, nas nossas esferas íntimas, em nossas individualidades. Se o político é reintroduzido nessas esferas, aí também estão as relações de poder. A introdução das relações de poder significa também conflito. Isso tudo, de algum modo, faz pensar que o corpo é, portanto, atravessamento político em transe. Melhor dizendo, o corpo que resiste ao modo Renata Guadagnin | 237 operacional do patriarcado e do capitalismo é um movimento, um acontecimento político. E como tal, é resistência. O conflito se dá em diversas camadas que não serão abordadas aqui. Mas, não seria difícil de intuir que em algum momento haverá sempre uma tentativa de captura dessa resistência pelos dispositivos de poder. Os ambientes acadêmicos e dos movimentos sociais também são lugares em que há uma captura constante. É também um terreno bastante árido e áspero para que os gêneros e raças dissidentes circulem. Exatamente por isso, tenho pensando que só há uma maneira de fazer com que nossos corpos resistam nestes espaços como forma de resistência e como aposta ético-política dos feminismos subversivos, se infiltrando coletivamente, sendo um corpo coletivo. É neste sentido que não há possibilidade de se construir saberes sem considerarmos a interseccionalidade (termo cunhado pela autora Kimberlé Crenshaw5). Sabendo que há nela limites, que há na interseccionalidade, fronteiras. Mas que trata-se de um conceito necessário para a compreensão das formas de opressão, discriminação e desigualdade, e do modo como elas se sobrepõem e integragem entre si. O que, por sua vez, promove experiências interconectadas e inseparáveis. Olhar para o nosso modo de fazer pesquisa através de uma lupa interseccional permite, então, uma abordagem complexa para compreensão das opressões e privilégios, como essas interações moldam as experiências individuais e coletivas das pessoas. Nesse sentido, criando um corpo coletivo que ocupe os lugares e que também construa espaços seguros, significa construir um outro modo de fazer pesquisa também levando em consideração todos estes aspectos enquanto manejamos o fazer pesquisa. Relatos de tramas para pensar outras práticas e narrativas na pesquisa Neste trecho, gostaria de contar a vocês que nós, do Coletivo Território em Justiça Social, que foi criado no final de 2021, nesses dois anos construímos projetos que procuram trazer respostas de apoio mútuo para mulheres em situação de 5 Crenshaw, Kimbeler. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Califórnia: Stanford Law Review, Vol. 43, p.1241-99, jul. 1991. 238 | Gênero, violência e estruturas de poder vulnerabilidade e encarceramento. Temos desenvolvido algumas atividades pontuais e outras de período mais longo. Entre elas: 1) Projeto Folhear; 2) Poéticas da Liberdade; 3) Elaboração coletiva de artigo que conta a história de Tatiane Santos; 4) Oficinas de Arte, criação e escrita. O primeiro projeto elaborado foi o Projeto Folhear, que visa cursos de formação em sustentabilidade econômica para mulheres do presídio Madre Pelletier e de Guaíba, além de grupos de remição pela leitura. Com esse projeto nós enfrentamos dois anos de burocracias do sistema de justiça para que todos os partícipes, que são sete instituições, assinassem o Termo de Convênio da Susepe que permitiria realizarmos o curso. Apesar dos entraves, que merecerão ser descritos em outro momento, no início de novembro de 2023 finalmente o termo foi assinado, de modo que será possível realizarmos as atividades formativas a partir de março do ano que vem. O detalhe curioso disso é que foi a própria Susepe que em novembro de 2021 nos solicitou a elaboração de um projeto com esses objetivos. Pontuo isso para falar da dificuldade que temos de trabalhar com o sistema carcerário, em especial, o feminino e que, desde já, vale a pena pontuar que há uma questão de raça e gênero que perpassa o encarceramento de pessoas. E esperamos que isso depois fique mais claro. O segundo projeto nasceu da demanda da Direção do Instituto Penal Feminino de Porto Alegre, o IPF - POA, que é o lugar onde pessoas privadas de liberdade cumprem pena no regime semi-aberto. Tendo em vista a dificuldade que muitas das mulheres em situação de encarceramento enfrentam ao saírem do regime fechado para o semi-aberto, a Direção expressou a vontade de que fosse possível realizar algum curso para algumas das mulheres fora do Instituto. Vale destacar que, no cumprimento da pena no regime semiaberto, a saída da pessoa privada de liberdade só é permitida no caso de ter um contrato de trabalho (geralmente intermediado pela própria Susepe) ou em caso de visita à família ou o chamado passeio, que são direitos adquiridos pela pessoa conforme a pena e o comportamento. Pois bem, nesse sentido, conversamos com um professor da Escola de Humanidades que estava iniciando a elaboração de uma cadeira extensionista que visava integração comunitária. Tratava-se de uma cadeira chamada Antropologia Filosófica, ministrada na graduação de Filosofia. Houve interesse por parte do professor e então Renata Guadagnin | 239 elaboramos o projeto que pretendeu, ao longo deste segundo semestre de 2023, promover 6 encontros com a vinda das pessoas privadas de liberdade até a PUCRS, e realizar uma integração comunitária com a turma. A proposta foi de discutir expressões como: justiça, narrativas de si, direitos humanos, abolicionismo; como seria um mundo sem prisões; e por fim redigir cartas sobre suas experiências autobiográficas com inspiração no livro Cartas para Minha Avó, de Djamila Ribeiro. Este projeto foi executado, no entanto, houve o seguinte entrave: como resultado dos encontros se pretendia realizar uma roda de debates e uma exposição aqui na PUCRS com os materiais produzidos e a presença das pessoas privadas de liberdade que participaram da integração comunitária. No entanto, mesmo havendo um termo de consentimento livre e esclarecido que foi assinado pelas participantes, a Susepe, o Departamento de Tratamento Penal sinalizou que, qualquer coisa que gerasse material a ser apresentado publicamente, deveria passar por um processo interno deles para aprovação. Nesse sentido, ainda estamos vendo como conduzir. Mas a pergunta que gera: uma vez que há uma autorização judicial para que a pessoa que está sob custódia do Estado possa sair para realizar um curso fora da casa prisional, ela não deveria ter a liberdade para pensar, expressar e produzir aquilo que quisesse, desde que em conformidade com a Lei, obviamente? Essa não configura mais uma forma de controle sobre os corpos e cerceamento da liberdade? E o terceiro projeto sobre o qual eu gostaria de relatar é o desenvolvimento de um artigo que narra uma história escrita por múltiplas mãos, com a participação ativa de Tatiane da Silva Santos, uma mulher preta, periférica, que teve sua vida atravessada pelo sistema punitivo e por todas as nuances de punição que uma mulher pode sofrer em nossa sociedade, e das integrantes do Território em Justiça Social, propondo pensar em que medida a violência, a punição e os sentidos de justiça atravessam a realidade vivenciada por Tatiane e por outras mulheres sobreviventes ao sistema punitivo carcerário brasileiro e latino-americano. Tivemos acesso a Tatiane porque uma das integrantes do coletivo a conhece e Tatiane está agora em regime semiaberto. Para a construção da escrita estabeleceram-se como perguntas orientadoras: “Em que medida a violência, a punição e os sentidos de justiça atravessam a 240 | Gênero, violência e estruturas de poder realidade vivenciada por Tatiane e outras mulheres sobreviventes ao sistema punitivo brasileiro e latino-americano? E de que modo é possível pensar nas estratégias feministas de autodefesa como modos de produção de resistência coletiva ao cenário de violência e punição?” Temos por objetivo mobilizar certas categorias como violência, justiça e punição, e, assim, fazer ecoarem as vozes de milhares de mulheres atravessadas pela violência do cárcere e do sistema de justiça criminal para pensar estratégias de autodefesa e resistência feminista. Pois bem, a intenção aqui não é a de transcrever o artigo que foi escrito, mas dar a notícia da possibilidade de adoção de metodologias que permitam essa intersecção mais direta com as pessoas de fora da academia, de modo que elas também sejam narradoras e escritoras da própria história. O artigo em si deverá ser publicado no próximo ano pela rede internacional de investigação e pesquisa feminista La Laboratoria. Gostaria, de outra parte, mencionar, ainda que de modo muito breve a história que levou Tatiane à prisão para que possamos compreender a importância de se pensar outras metodologias em pesquisa que deem espaço para uma real construção coletiva de compreensão das camadas da estrutura de poder cisheteronormativa, falocêntrica, patriarcal, excludente, ou como se queira dominar, os modos de silenciamento e de poder sobre os corpos, a importância dos estudos interseccionais e o devir de gênero. Tatiane da Silva Santos6, uma mulher proveniente do Rio Grande do Sul, estado do sul do Brasil, teve sua vida marcada por uma série de eventos trágicos e abusivos que culminaram em um julgamento controverso e uma condenação impactante. Em 2013, ela foi acusada de homicídio qualificado comissivo, tortura e maus-tratos relacionados à morte de seu filho mais novo de apenas um ano, Diogo. Desde sua infância, Tatiane foi testemunha de um relacionamento abusivo entre seus próprios pais. Essa exposição precoce à violência deixou marcas profundas em sua vida. Com apenas 17 anos, engravidou e logo conheceu Amilton, o homem com quem teve outros três filhos. 6 Estes trechos compõem também o artigo escrito coletivamente pelo Coletivo, Tatiane e o nodo brasileiro da Rede La Laboratoria e que em breve será publicado pela rede. Renata Guadagnin | 241 A dependência de drogas de Amilton o transformou em uma figura agressiva e volátil, e Tatiane enfrentou inúmeras dificuldades para manter a segurança dela e de seus filhos. Seus esforços para buscar ajuda através da polícia e do sistema de justiça frequentemente caíram em ouvidos surdos, inclusive, quando do pedido de Medida Protetiva, Tatiane escutou palavras como “ele se comprometeu em se tratar, dá mais uma chance”. O assasinato de seu filho Diogo ocorreu em 2013, quando Tatiane, desesperada para sustentar seus filhos, deixou Diogo aos cuidados de Amilton enquanto trabalhava em uma padaria. O que se seguiu foi uma sucessão de eventos aterrorizantes: Amilton agrediu brutalmente Diogo, resultando na morte da criança. A cena que Tatiane encontrou quando foi amamentar o filho era de horror indescritível. O julgamento que se seguiu lançou luz sobre a complexidade do caso. Amilton, réu confesso, foi condenado a 42 anos de prisão pelo homicídio. Tatiane, porém, também enfrentou acusações. Investigada, denunciada e pronunciada, foi julgada pelo tribunal do júri. Pela acusação, ela foi retratada como imprudente, masoquista, narcisista e mãe negligente. No entanto, essa narrativa esqueceu de capturar a realidade mais ampla das violências que Tatiane havia sofrido ao longo de toda sua vida, bem como os esforços para se manter viva. O caso de Tatiane revela um padrão brutal de negligência e ineficácia por parte das autoridades. Ela enfrentou uma vida repleta de maus-tratos e abusos, mas as tentativas de escapar desse ciclo de violência muitas vezes foram frustradas por um sistema de justiça que não conseguiu fornecer apoio e proteção adequados e que a puniu quando buscou autonomia financeira, porque afinal ela deveria estar em casa cuidando do filho sem ter o que dar para os outros comerem. Razão que levou Tatiane deixar o filho sob os cuidados do pai da criança. Após o julgamento, Tatiane foi considerada culpada pela morte de Diogo e condenada a 24 anos de prisão por omissão e tortura. Dentro de uma perspectiva interseccional, a história de Tatiane da Silva Santos revela a emergência da violência como um intrincado tecido que afeta corpos feminizados de maneiras interconectadas e estratégicas. Sua trajetória foi marcada por uma série de violências que se entrelaçam, abrangendo diferentes formas de opressão, exemplificando como o conceito de violência, conectando-o a uma rede de 242 | Gênero, violência e estruturas de poder opressões que inclui o feminicídio, exploração econômica, racismo e repressão estatal. Foi nesse sentido que procuramos desenvolver o artigo escrito em conjunto com Tatiane, tornando-a voz ativa na narrativa, onde ela não só é protagonista como também autora como um prática de autodefesa. A construção é coletiva, ou não será Desde uma “interseccionalidade radical” 7, desdobra-se a percepção de que “os corpos estão carregados de inúmeros marcadores, como raça, classe, religião, local de nascimento, lugar de moradia, idade, orientação sexual, que vão além de sexo e gênero”8, como elementos de exposição desigual à violência. Nesse sentido, talvez possamos dizer que não existe hierarquia de opressão, pois elas se atravessam, contaminando umas às outras de acordo com território, idade, localização, gênero como relatamos. A opressão assume um acordo sem fronteiras, em que, apesar das diversidades que revelam as desigualdades, esse se mantém como aspecto comum compartilhado de precarização, independente dos contextos em que se associa. É nesse sentido que pensar as vulnerabilidades, considerando esses marcadores e suas nuances na reivindicação por justiça, é tarefa indissociável às análises que propõem frear as demandas de punição. A dimensão colonial da violência encontra eco nas histórias das pessoas em situação de encarceramento, e na de Tatiane. Sua resistência em meio a essas adversidades se alinha à ideia de mobilizações massivas como demonstrações de poder coletivo que desafiam estruturas de poder existentes, um exemplo concreto da autodefesa proposta por Elsa Dorlin 9 . Ainda estar viva e criando narrativas, fabricando sua própria história combativamente àquela que foi criada para poder punir seu corpo, Tatiane e todas as pessoas com as quais estamos tendo, de algum 7 Butler, Judith. Bodies that matter: On the Discursive Limits of ‘Sex’, London: Routledge. [Corpos que pesam. Tradução de Veronica Daminelli e Daniel Yago Françoli. Revisão técnica Daniel Yago Françoli, Carla Rodrigues e Pedro Taam. São Paulo: N-1 Edições, 2019]. 8 Rodrigues, C. Por uma filosofia política do luto.In Revista O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.46, p.58-73, jan.-jun.2020. Disponível em: <https://www.academia.edu/44140282/Por_uma_filosofia_pol%C3%ADtica_do_luto>. 9 DORLIN, Elsa. Se défendre: une philosophie de la violence. Paris, Zones, 2017. Renata Guadagnin | 243 modo, essa construção coletiva sempre em movimento, num momento em que todas nós compartilhamos o comum, há ali um senso de que há algo que nós atravessa comumente ainda que com todas as nossas subjetividades. Uma ânsia e uma necessidade de luta por nossas liberdades a partir dos atravessamentos interseccionais (sem deixar de dizer que é importante, nessa coletividade é preciso que os homens, na posição privilegiada na ordem patriarcalista, traia a supremacia masculina, hétero, cis, branca, colonial imperialista). Ampliamos a expressão de Beauvoir, devir-mulher, para devir-gênero, e neste sentido, passa pela ruptura de construções sociais ancoradas no patriarcado, que limitam a existência aos moldes de gênero e afirmam um ideal de mulher e de homem deslegitimando outros, passando também pelo ato de tensionar políticas que subjugam e encarceram o feminino em um padrão. Além disso, devir-gênero se dá ainda pela transgressão e destruição da concepção de um modelo de masculinidade enrijecido, traindo-o. É crucial que questionamos o lugar determinado para nós, na sociedade patriarcal, entendendo-nos não apenas como um corpo regulado por sistemas que impõem padrões quase intransponíveis de desigualdades de gênero, mas como um corpo político em combate que tem por direito viver; no entanto, é preciso criar possibilidades para que este entendimento coletivo e político aconteça, pois acreditamos, enquanto pesquisadora e em coletividade com outras pesquisadoras, que a construção de metodologias ativas e esse olhar para estudos de gênero e interseccionais que formam epistemologias desde um outro lugar, é um caminho singular e importante para produzir tais possibilidades, sendo a produção de integração comunitária, a criação de possibilidades de sustento, e a escrita coletiva ferramentas potentes de autodefesa feminista, agenciamento coletivo para que todos esses corpos-territórios tomem para si a potência de suas existências e de suas lutas em todos os espaços. Assim, a intenção foi a de fazer um caminho experimental, com relato de experiência, a intersecção com as teorias de gênero e a necessidade de realizarmos de modo muito sério investigações e pesquisas interseccionais inclusive como modo de produção de apoio mútuo e autodefesa coletiva como meio para adiarmos o fim do mundo. 244 | Gênero, violência e estruturas de poder Não, para mim, para nós, não há uma possibilidade de existir pesquisa sem campo, campo sem esfera pessoal, e essas duas condições depõem sobre a impossibilidade de existir sem o que é político nos afetos, naquilo onde colocamos nossa energia independente de que grupo temático ou que área da vida estejamos falando, as escolhas que fazemos são impactadas e são políticas. Fazer pesquisa interseccional é então uma escolha sobre qual a academia queremos no mundo por vir. Referências Bibliográficas Bhabha, Homi. The Location of Culture. New York, Routledge, 2005 [1994]. Butler, Judith. 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A técnica da história de vida exige o ouvir, o escutar. Para isso o ouvir precisa ser transformado em escutar. Sobre, de sermos tocadas, foi o que senti fazendo esta pesquisa do mestrado. Em vários momentos, durante as entrevistas, ou na hora da transcrição das entrevistas, que levou horas a fio, fiquei conectada às histórias de vida dessas mulheres, como também trouxe, em alguns pontos entrelaçados às histórias de vida delas, a minha própria história de vida e da minha família. O ouvir pede o afeto e o respeito pelo que se ouve. A história de vida dessas mulheres, regadas por resistências, dificuldades e afetos, é o ponto que nos faz refletir, que sem essas mulheres e seus povos, não existiria floresta viva. Precisamos, enquanto pesquisadores, trazer e dar visibilidade para esses povos que vivem no meio da floresta, pois elas são as verdadeiras protagonistas dessas vivências. Palavras-chave: Floresta Nacional de Tefé; Mulheres; Protagonismo feminino na floresta; Histórias de vidas. ABSTRACT This paper constitutes an excerpt from a master's thesis, utilizing the life history technique and photography as methodologies to narrate the experiences of three women. These women emerge as the female protagonists within the Tefé National Forest - Flona context. Employing the life history technique affords us the opportunity to comprehensively understand individuals from childhood through adulthood, within the bounds of what is permissible. The interview process encompasses periods of dialogue, observation, and, crucially, attentive listening. The life history technique necessitates a form of listening that transcends mere hearing, demanding a deeper level of engagement. Throughout the course of this master's research, there was a palpable sense of emotional connection, particularly during interviews and the 1 Mestre, Universidade do Estado do Amazonas UEA/PPGED, Tefé, Amazonas, Brasil, E-mail: miguel261016@gmail.com 2 Doutora, Universidade do Estado do Amazonas UEA/PPGED, Tefé, Amazonas, Brasil, Email:rmachado@uea.edu.br 248 | Gênero, violência e estruturas de poder subsequent transcription process, where I found myself deeply immersed in the life stories of these women. Furthermore, I integrated aspects of my own life and familial history at certain intersecting points with theirs. Effective listening demands both empathy and respect for the narratives being shared. The narratives of these women, characterized by resilience, adversity, and bonds of affection, compel us to recognize that the vitality of the forest hinges upon their presence. As researchers, it is imperative to elevate the visibility of these communities residing within the forest, for they are the true protagonists of these narratives. Keywords: Tefé National Forest; Women; Female protagonism in forest environments; Life narratives. 1 INTRODUÇÃO Refletir sobre a história de vida das mulheres da Floresta Nacional de Tefé é reviver as narrativas de nossas ancestrais, marcadas pelo protagonismo e sabedoria ancestral. Essas histórias, muitas vezes esquecidas ou ignoradas, são fundamentais para entender a importância das mulheres no passado e como suas ações moldam o presente e podem transformar o futuro. Este relato é parte de uma dissertação de mestrado que documentou as experiências dessas mulheres, frequentemente compartilhadas na intimidade do lar, ao ar livre ou à beira do rio, e capturadas não só em palavras, mas também em fotografias. A técnica da história de vida permite um mergulho profundo na jornada do indivíduo pesquisado, no caso dessa pesquisa, as mulheres da Floresta Nacional de Tefé, enfatizando a importância de escutar e observar. A técnica da história de vida exige o ouvir, o escutar, que as autoras Diniz e Gebara (2022, p. 17) assim o definem: Ouvir exige silenciar-se, abdicar do poder e da sedução da palavra. Mas ouvir não é o mesmo que pausar a voz, é gesto ativo para o encontro feminista – somente sendo capaz de ouvir é que seremos tocadas por outras vidas diferentes da nossa. Para isso o ouvir precisa ser transformado em escutar. Sobre a reflexão das autoras acerca do encontro, de sermos tocadas, foi o que senti fazendo esta pesquisa do mestrado. Em vários momentos, durante as entrevistas, ou na hora da transcrição das entrevistas, que levou horas a fio, fiquei Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 249 conectada às histórias de vida dessas mulheres pela minha própria identidade de mulher da floresta, “Ouvir não pede só ouvidos, mas muitos afetos” (Diniz; Gebara, 2022, p. 18). O ouvir pede o afeto e o respeito pelo que se ouve. Eu fiz duas entrevistas com dona Raimunda. Ela, com sua idade avançada, já não escuta tão bem. Havia algumas vezes em que eu falava e era obrigada a repetir inúmeras vezes para que ela compreendesse o que estava dizendo. Naquele papel de pesquisadora, eu não era superior a ela e tive que usar uma linguagem mais simples para explicar minha pesquisa, que era sobre a história de vida delas. E foi como dona Raimunda sempre falava: “a gente aprende e ensina”. O afeto é revolucionário. Este trabalho tem como objetivo, identificar as identidades das mulheres da Flona através de suas histórias de vida, e entender como esse processo de identidade, e cultura fazem parte de uma educação transformadora, que é gerada na própria comunidade no meio da floresta e das águas. Ações que acontecem de várias maneiras, como, reuniões comunitárias, a escola da comunidade, o roçado de mandioca feito em ajuri, a horta, e a igreja. Essas pedagogias do movimento que norteiam a vida e cultura dessas mulheres, é identificada também, através das fotografias, como diz Martins (2022, p. 37), “A fotografia conta uma história”, que neste trabalho, se encaixa como técnica de visibilização dessas mulheres, com seus rostos, seus traços, que contam suas vivências, lutas e resistências para além das palavras. A fotografia assume seu papel de texto visual nesta pesquisa, conferindo visibilidade às mulheres da Flona. A fotografia nos remete à memória. Lembram um tempo em que foram felizes, tempo de união, tempo de vivência em comunidade para um projeto que era benéfico para todos. “O registro fotográfico oferece poucas garantias de uma leitura inequívoca, pois o discurso que produz é poroso, permeável às intenções com as quais é confrontado” (Samain, 2012, p. 142). Pensar a fotografia como narrativa é pensar a fotografia como movimento, do recordar ao se conhecer, é um movimento que protagoniza outros movimentos, trazendo visibilidade, como no caso desta pesquisa. 250 | Gênero, violência e estruturas de poder Abaixo vamos conhecer a história de vida das protagonistas da floresta, vamos tecer reflexões, da infância, a vivência no trabalho/educação, e a participação na comunidade como protagonismo individual e coletivo. 2 HISTÓRIA DE VIDA DA DONA EDNA LOPES Imagem 1: Dona Edna participando da feira Fonte: Arquivo projeto das feiras agroecológicas. Eu sempre tenho uma coisa comigo, que a gente tem que sofrer e valorizar e mais na frente contar o que a gente passou, para experiências para os outros. Porque senão a gente não tem nada para contar para os outros. A gente tem que ter história (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus). Dona Edna Lopes tem 48 anos e sua escolaridade é o ensino médio completo. Ela mora na comunidade de Bom Jesus, na Floresta Nacional de Tefé, é casada, mãe de cinco filhos. É uma das lideranças comunitárias na Flona, principalmente para as mulheres. Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 251 2.1 Infância e vivência pelo trabalho Dona Edna, como a maioria das mulheres que participaram desta pesquisa, morou desde o seu nascimento na comunidade. Desde pequena, ajudava os pais na roça, uma realidade bastante comum na vida do ribeirinho. Minha vida assim, como na agricultura, comecei desde nova no trabalho, no pesado, hoje eu sou toda arrebentada, porque eu tive esse trabalho, e não tive essa oportunidade de estudos, porque meus pais não tinham condições de me manter na cidade para eu estudar. A gente como agricultor, que mora no interior, a gente não tem essa condição toda (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus). Diante deste depoimento de dona Edna, podemos perceber que, ainda que não tivessem condições de estudar fora, na cidade, essas mulheres não deixavam apagar o desejo de frequentar uma escola. Percebe-se a realidade do trabalho braçal, pesado, desde muito cedo, para as crianças, o que é “comum”. As crianças tinham que acompanhar os pais para o centro, onde ficavam dias dentro da mata, como diz Dona Edna. Minha mãe e meu pai vieram do Maranhão, eles vieram na época da borracha. Aí vieram para cá, e aqui eles, começaram também na borracha, foram para dentro do rio Tefé, para os centros. A minha mãe trabalhou e sofreu muito. Eu também sofri muito, porque eu via o sofrimento dos meus pais, que não era aquela coisa boa que a gente conviveu. Dona Edna traz lembranças muito duras da sua infância. Ela me fez lembrar da minha própria história de vida, em que toda sorte de dificuldade e principalmente a fome faziam parte da minha realidade, pelo menos naquela época. Tudo era mais difícil. Eu já conto coisa ruim que eu vivi, eu conto que se eu pedisse café para beber, meu pai e minha mãe me batia, por que nós tinha que tomar chá, porque café era só para os mais velhos, o que mais me revoltava é que se chegava em casa gente que não era da nossa família, chegava e eles serviam café e nós que era da família, nós só tomava chá, até hoje 252 | Gênero, violência e estruturas de poder eu tenho trauma de chá. Estou tentando superar. A farinha tinha que molhar, tufar, fazer pirão, para dar um pouquinho para cada (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus). Durante as partilhas, um detalhe me chamou a atenção. Dona Edna sempre lembrava o quanto todos estavam sempre juntos, nas dificuldades e nos momentos felizes, e aquilo fazia deles mais fortes. 2.2 Adolescência de dona Edna e a escola Na sua adolescência, a vida de dona Edna era pautada pelo trabalho na roça e pela vontade de estudar. Na época da escola, eu e minha irmã Ezimar tinha muita vontade de estudar na cidade, mas nossos pais não tinha condição de deixar nós na cidade para gente ficar estudando. E eu tinha um desejo no meu coração, de vim para Tefé estudar, eu ia estudar de manhã, de tarde e se tivesse oportunidade estudar de noite. Porém não sei se ia dar certo, pois não tive essa oportunidade. Esse era o desejo do meu coração, mas as condições do meu pai e da minha mãe nunca deu. E quando foi a época que as aulas começaram no interior, nós abraçamos, e estudamos, e hoje eu e as minhas irmãs o que a gente sabe foi o que a gente aprendeu por lá mesmo na comunidade. Lá eu fiz até o nono ano, do primeiro ao quinto ano, estudei com outros professores e com a minha irmã, Raimunda, ela nos ajudou muito (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus). Essa dificuldade do acesso à escola ainda é muito presente nas comunidades, principalmente quando termina o ensino fundamental e os adolescentes têm que seguir para a cidade e cursar o ensino médio. Muitas famílias não têm condições de manter seus filhos na cidade, e esses jovens acabam desistindo da escola. As meninas casam e têm filhos, se tornam donas de casas e também trabalham na roça, mesmo que isso não seja o desejo dos pais ou até mesmo o desejo dessas jovens. Em outro momento da conversa, Dona Edna disse o seguinte: Tudo que eu sei, eu tive que aprender lá no sítio, e eu brigava com a minha irmã, quando ia secar aqueles pacotes de bolacha para gente fazer a mochila para ir para escola, nós amarrava duas alças na sacola e ia embora feliz. O nosso lápis era um dividido no meio, Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 253 e ai de nós se quebrasse ou acabasse logo, nós apanhava do nosso pai. A nossa borracha era o solado da sandália. Quando dona Edna fala de toda a dificuldade que passava com sua irmã, para conseguir ir à escola na comunidade, lembrando que “nós amarrava duas alças na sacola e ia embora feliz”, expressa um sentimento genuíno de agradecer até pela dificuldade. Claro que aqui não estamos romantizando a pobreza, a fome, a falta de escola, porém, mesmo sem condições de acesso ao estudo, por conta da ausência de políticas públicas voltadas à população das florestas, percebe-se nesse depoimento de dona Edna o sentimento de “felicidade” de poder ir à escola. Mesmo que tivesse que usar a sacola plástica do açúcar ou dividir o lápis, o importante era estudar. Assim é minha vida, hoje posso dizer que melhorou um pouco, do que a gente vivia no interior, mas, não é bom, hoje eu posso testemunhar como mãe que não é bom, eu lutei pelo bem dos meus filhos, para que eles possam ter esse estudo melhor que eu não tive, eles terem (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus). Como Dona Edna diz, a realidade dos filhos melhorou um pouco em relação à que ela enfrentou. É diferente do que foi a vida dela e das irmãs, porém, ainda há muita dificuldade e elas precisam lutar por uma boa educação dos seus filhos e pela própria educação. E eu com 48 anos, que agora eu entraria em uma faculdade. Porque eu vejo exemplos de pessoas na televisão que passam na faculdade com 60 anos, e eu com 48, será que eu não posso? Então é isso que sempre questiono em reunião que eu tou, assim para gente ter oportunidade, assim, pessoas lá da roça, mulher agricultora, que faz os seus trabalhos e tudo mais, a gente ter essa oportunidade, e até questão assim, de cor, que hoje as pessoas, eu não sei ainda qual o preconceito, da raça. A gente quer ter o mesmo espaço que o branco tem. A gente não é diferente, pode ser diferente em outra coisa, mas no saber, estudos, a gente também quer ser igual eles (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus). 254 | Gênero, violência e estruturas de poder Cansada da labuta na roça, sob o sol quente, Dona Edna encara o estudo como uma saída para a melhoria de vida. O mais bonito de ver é a vontade dela de entrar na faculdade. Mesmo com toda dificuldade, e de ter terminado o ensino médio somente há pouco tempo, ela pensa em entrar na universidade, e tem questionado, nas reuniões, as posições das mulheres sobre esse desafio, além de abordar a questão do racismo. Podemos perceber o quanto essas mulheres estão cientes dos seus direitos hoje. No terceiro capítulo, vamos abordar mais a fundo essa relação das mulheres e a organização para a sua emancipação dentro da comunidade e fora dela. 2.3 A participação na comunidade Sobre o seu período de estudos, que tiveram de ser interrompidos. Dona Edna conta o seguinte: Quando eu fiquei com o Falcão (esposo) eu já tinha 19 anos, eu já queria arriscar a sétima, oitavo e nono ano para gente concluir, né? E aí cheguemos até o nono ano, aí não deu para nós, nem vim para cidade. E para nós ficou difícil lá, porque era só o tecnológico, e também a gente ia para o retiro (local onde planta roça) aí a gente perdia muita aula, passávamos semanas por lá, aí não dava para estudar. A roça fica longe da comunidade, porque não tem terra para todo mundo da comunidade, tínhamos que dormir lá no meio do mato. Por isso passamos todo esse tempo sem estudar. Porém, agora eu e Falcão, conseguimos terminar o ensino médio, graças a Deus, agora é entrar em uma faculdade. No momento em que Dona Edna relata esse episódio da sua vida, quando teve de deixar de estudar para trabalhar na roça junto com seu esposo, e que eles, depois de mais maduros e com os filhos formados, conseguiram terminar o ensino médio juntos, é com brilho nos olhos que ela partilha o seu desejo de entrar na universidade. Assim, vê-se que não é uma questão de não ter vontade de estudar, por parte da maioria dos jovens das comunidades, e, sim, falta de opção, ausência de políticas públicas, como falamos anteriormente. Movida por esse desejo de estudar e participar, Dona Edna faz a seguinte reflexão sobre sua vivência na comunidade, e na família. Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 255 Na Flona, quando começou assim, em termo de participação, a nível da associação, ela ainda era muito devagar na participação das mulher, na participação dos jovens, eram muito pouco. Eu digo por que, logo que começou, eu não participava, só quem ia para reunião era o Falcão, porque eu tinha que ficar com os meninos, aí depois eu fui amadurecendo e vendo que não era só o Falcão que podia participar, eu também precisava participar, depois a gente foi envolvendo os filhos, tinha que envolver eles também. No momento que eu percebi que tinha que participar, tinha coisas assim, que era informado e se eu não tivesse na reunião, eu não ia saber de nada, por que ele estava indo, mas observando para ele, o que era dele, era dele. Por isso eu comecei a ir, e incentivar meus filhos também. Aqui Dona Edna retrata a sua vivência e a solidão pela ausência do seu parceiro, principalmente na roça, que é um trabalho braçal muito pesado para ela sozinha e os filhos. O marido de Dona Edna ocupa um papel muito importante de organização na Flona. Com isso, Dona Edna via-se muitas vezes na premência de ocupar esse papel dentro da comunidade, não igual ao do seu esposo, porém um papel que pudesse inspirar outras a irem na mesma direção. Porém hoje, isso não me impede mais não, tenho minhas funções na comunidade, na Flona e ele também. E teve um momento que percebi isso, a gente precisa buscar nossa memória, né? Teve uma época que meu esposo, foi presidente da associação e eu era secretária, foi aí que eu percebi que era importante a participação das mulheres nas reuniões, que a gente tinha força. Só que não tinha muitas mulheres, a que mais participava era dona Raimunda, Dorimar. E aí a gente começava a chamar as mulheres para as reuniões, incentivando. Então foi esse momento que lembro que tudo começou (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus). Segundo Dona Edna, foi nesta época que tudo começou a fazer sentido a respeito do seu papel de mulher na comunidade, e ela passou a convidar outras mulheres a irem também às reuniões e participarem. Esse movimento de participação teve mais mulheres com os projetos desenvolvidos pela universidade e parceiros na Flona e com os projetos das feiras agroecológicas, que serão descritos no terceiro capítulo deste trabalho. 256 | Gênero, violência e estruturas de poder O projeto da feira nos aproximou muito, apesar de toda dificuldade das mulheres. Eu fico puxando a Janete, a gente precisa se inteirar, precisa participar, o que a gente tem que fazer quanto mulher é se inteirar mesmo, ter a direção da gente. Eu não quero nada só para mim, se eu puder envolver os outros, eu envolvo. E é o que faço lá na comunidade. Tem toda uma articulação para participar das coisas, tem que ligar, sinal ruim, mandar mensagem, quando não dar, temos que ir de lancha até a comunidade para reforçar, tem toda uma movimentação para se organizar (Dona Edna, comunidade de Bom Jesus). Quando Dona Edna diz “que a gente tem muita força” e a “feira nos aproxima”, é essa potência feminina que paira sobre a Flona. Quando conheci essas mulheres, como fotógrafa voluntária desde o ano de 2019, percebi claramente essa força e essa potência através das minhas lentes, da minha memória. Vejo a relação de afeto que paira entre essas mulheres, vejo a força que tem dona Edna neste processo. O seu modo de falar, de se impor, é muito forte e isso, com certeza, empodera e inspira as outras mulheres que a conhecem e principalmente as mulheres da Flona. 3 HISTÓRIA DE VIDA DA DONA MARIA EZIMAR ROCHA LOPES Imagem 02: Dona Ezimar na feira de produtos agroecológicos Fonte: Arquivo projeto das feiras agroecológicas. Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 257 Eu digo para as mulheres que elas não fiquem de braço cruzado, vai correr atrás do seu trabalho, de se empenhar, de se organizar com as outras, porque eu digo, a gente organizado, consegue tudo, a união faz força (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). Dona Ezimar Rocha Lopes tem 51 anos e mora na comunidade de São Francisco do Bauana. Irmã de dona Edna, ambas vivenciaram a maioria de suas experiências, quando crianças, juntas. Porém, como toda a história de vida, cada uma tem sua singularidade. 3.1 Infância e vivência do trabalho Dona Ezimar vive há exatamente 51 anos na comunidade do Bauana. O que me chamou a atenção, no primeiro momento de partilha de sua história de vida, é que ela repete, várias vezes, que vive na comunidade há 51 anos e nunca pensou em sair de lá. A comunidade é sua casa. Vivo na comunidade do Bauana há 51 anos, meus pais são de lá, faleceram, mas nós continuamos lá, e foi lá que eu construí minha vida, dos meus filhos, e até hoje eu continuo lá naquela comunidade. Tenho seis filhos (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). Essa importância que Dona Ezimar dá à comunidade é muito presente em todas os depoimentos das outras mulheres. Elas falam da comunidade com acolhimento e afeto. Mesmo que aquele lugar seja de muito trabalho, mesmo assim é o lugar de onde tiram o dinheiro para sustentar a família e, nos rios, de onde tiram os peixes para comer. Na nossa infância era muito difícil, eu lembro que quando nós era criança, eu não lembro nem quantos anos eu tinha, nós ia para dentro do Garapé do Jatuarana, com nosso pai e nosso panerinho, cada qual tinha seu panerinho, e ele (pai) era só o quebrador e nós era para juntar castanha, ele ficava sentado em cima de um pau quebrando castanha no meio da mata e depois nós ia carregar. Ele não nos deixava em casa. Por cuidado 258 | Gênero, violência e estruturas de poder mesmo. Antigamente se nossos pais iam para um canto, eles levavam a gente. (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). Outro ponto importante que se deve ressaltar é o fato de ser bem nítido o trabalho infantil, que eu vivenciava muito na minha comunidade quando criança e adolescente. Minha mãe, desde muito pequena, trabalhou na seringa e na roça com meus avós, meus irmãos, principalmente os homens. As meninas pequenas ficavam para cuidar da casa ou dos irmãos. Essa questão é um ponto para reflexão. Eu penso assim, que tudo eu aprendi com meu pai e minha mãe. Eles eram umas pessoas que não eram rígidos, mas mostravam o trabalho porque a gente trabalhava, que era para ter nossa alimentação. Eu nunca lembro de faltar alguma coisa para gente comer, sempre dava um jeito de ter alguma coisa. Nós vivia na pobreza, mas nós tinha banana, cará, macaxeira, nós era pobre, mas ricos dessas coisas (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). Quando Dona Ezimar diz que “mostravam o trabalho porque a gente trabalhava que era para ter a nossa alimentação”, ela entende, quanto adulta, que aquele trabalho de criança, muitas vezes no sol quente, carregando paneiros nas costas, é um trabalho de cooperação para o bem comum da família, o qual não é encarado como exploração. Mamãe sempre dava um jeito de fazer mingau, bolinho de massa, de frutas. Eu digo que eu fui no ritmo da minha mãe. A minha mãe era uma pessoa muito trabalhadeira, uma guerreira, eu digo o que ela fazia ensinou para nós. Mas é assim, a vida, vivo na comunidade porque eu gosto, meus pais faleceram, mas eu digo que é a minha terra, eu tenho orgulho de ser o que sou. E eu digo assim, meu pai e minha mãe só ensinaram coisa boa para nós, trabalhar na agricultura, na função deles, e foi uma função que eles deixaram que eu faço porque eu gosto também (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). Assim, percebe-se, nesse relato sobre infância e trabalho, o quanto Dona Ezimar tem honra e orgulho de tudo que seus pais deixaram como legado, ensinando-a a trabalhar, e como ela sente satisfação em se dedicar à agricultura. Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 259 3.2 Adolescência e escola Dona Ezimar tem um grau de escolaridade muito parecido com o de Dona Edna. Quando mais novas, ambas não conseguiram estudar, o que só conseguirem bem mais tarde. Eu me lembro muito do meu pai, eu nunca esqueço, desde pequeninha meu pai e minha mãe me ensinou nós a trabalhar na roça e na agricultura. Se ele ia ele não deixava nós. Teve uma época que tinha umas escolinhas, e ele colocava nós, mas se a aula fosse de manhã, a tarde nós ia para roça com eles. Nossa merenda eu lembro que era peixe, nós pegava fritava um “bararuá” [nome do peixe], colocava farinha em cima, e levava, aquela era nossa merenda na escola. Hoje está tão diferente, hoje tem apoio nas escolas, tem merenda, tem o bolsa família (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). Era nesse ritmo que dona Ezimar levou sua vivência na escola na comunidade. Quando ela diz “que nossa merenda eu lembro que era peixe, nós pegava e fritava, colocava farinha e levava”, pensa-se na regionalidade e na riqueza local. Hoje, ela reflete sobre como os programas sociais beneficiam muitas famílias ribeirinhas e pelo Brasil afora, proporcionando a elas terem uma alimentação melhor. 3.3 A participação na comunidade Dona Ezimar realça muito fortemente a questão da mulher agricultora. Um dos pontos que ela destaca, a respeito disso, é o fato de o trabalho na roça ser muito pesado. Eu sou agricultora, trabalho na roça, sou animadora de setor da igreja, tenho essa função na igreja, que é para ajudar na igreja, sou também uma das mobilizadoras das mulher, eu oriento, procuro, nós temos um grupo de mulher. Eu faço meus plantios de hortaliça, de tudo um pouco eu procuro fazer. Tudo isso para bens dos meus filhos, eu digo para eles, o que eu não pude ter, meu estudo, ter um estudo para mim, ser alguém na vida, hoje eu quero para meus filhos. O nosso foco é lá na comunidade, na agricultura, que é para tirar 260 | Gênero, violência e estruturas de poder o sustento dos nossos filhos, ajudar eles nos estudos dele (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). A maternidade e o cuidado com o futuro dos filhos são questões muito importantes para todas as mulheres que fizeram parte deste estudo. Todas se preocupam muito com a educação dos filhos, com um futuro melhor, que não seja o de trabalhar na roça. Na roça é muito difícil, é um trabalho muito pesado, eu digo para as mulheres que não querem participar, nós não podemos tirar nosso sustento só da roça. É um trabalho muito pesado, o que então deveríamos fazer? Nós temos que criar galinha, nós temos que fazer nossos canteiros de hortaliça, vender na feira. E eu incentivo elas. Hoje algumas mulheres querem as coisas muito fácil, porém nada é fácil, tudo que a gente tem é com todo sacrifício do mundo. E hoje eu agradeço muito a Rita, porque ela ajudou muito nós, e continua ajudando. Eu dou muita força para as mulheres, elas sabem disso. Não é por falta de convite, eu convido muito, desde quando marca as datas das feiras, eu já estou falando, já estou articulando com elas, “olha vai ter feira, vamos ajeitar nossas verduras para levar” nós faz o bem para pessoas, e faz o bem para nós mesmos, que dali nós tira para comprar nosso rancho, nossa alimentação. Eu sou uma pessoa que eu bato muito, eu não quero só para mim, quero para todas. Dona Ezimar destaca o desafio do desinteresse de algumas mulheres em se envolver no movimento das feiras, ressaltando a necessidade de evitar idealizar as dinâmicas comunitárias, que, como qualquer grupo social, enfrentam problemas de articulação e interesse. Ela incentiva a participação e destaca a importância do projeto, inspirando outras mulheres com sua determinação e resistência. Sua fala sobre querer benefícios não apenas para si, mas para todas, reflete a essência da organização coletiva e a importância de entender esse processo. Eu fico muito feliz quando recebo um convite, dizendo que vai ter uma feira, porque eu já sei que lá vou ganhar meu dinheiro, porque quanto mais feira tem, mais eu vou ganhar meu dinheiro. A goma, tucumã, que a natureza nos dá, que Deus deixou, minha comadre um dia desses trouxe maracujá do mato, e ganhou muito dinheiro, porque só ela trouxe, e são coisas que ela não plantou, só foi lá na natureza e só colheu e trouxe e vendeu. Para mim, essas feiras, tem muito valor, para ganhar nosso dinheiro, dar para eu trazer minha Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 261 farinha, minha cebola, minha goma, macaxeira. Se as mulheres se esforçassem mais seria mais forte e movimento, porque não adianta só ter a feira, tem que ter gente para vender (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). Aqui ela destaca a relação das feiras com o sustento da família, e como isso é importante para todas as mulheres da comunidade, a felicidade delas em participar, de colher na floresta produtos que só a natureza dá, sentindo-se grata por isso. Eu sou agricultora, pescadora, sou uma negra que gosto da minha raça, eu amo essa cor que eu tenho. De primeiro eu dizia assim, aí eu não gosto do meu cabelo, do meu corpo. Agora eu amo, meu cabelo, meu corpo, eu tenho que me sentir amada por mim mesmo. Eu tenho orgulho de mim mesma, não tenho vergonha da minha cor. Não tenho mais vergonha do meu cabelo, antigamente qualquer coisinha queria prender, colocar um chapéu. O momento que foi revelado que eu tenho que gostar de mim, do jeito que sou, foi no grupo das mulheres, eu vi todo tipo de mulher naquele encontro, de mulher negra, mulher branca, lá tinha mulher corajosa, preguiçosa, todo tipo de mulher mesmo, então nesse meio, eu acreditei que tem gente que dar força para gente, olha você é assim, você é bonita desse jeito. E lá que eu fui acreditar que eu tenho que dar valor a minha cor, a minha raça (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). Dona Ezimar compartilha seu orgulho e amor próprio, influenciada pelo projeto “Elas Podem”, que aborda questões cruciais para as mulheres na sociedade. Sua história emociona e inspira, destacando sua força como mãe, trabalhadora e líder. O apoio mútuo entre as mulheres na comunidade é enfatizado, assim como a importância de reconhecer e valorizar essas mulheres em pesquisas científicas, honrando povos historicamente negligenciados. 262 | Gênero, violência e estruturas de poder 4 HISTÓRIA DE VIDA DE DONA RAIMUNDA MARQUES Imagem 03: Dona Raimundinha na sua comunidade Fonte: Arquivo projeto feiras. Eu gosto das participações na comunidade, pois ensina muita coisa que eu não sei. A gente aprende. O que eles não sabem a gente ensina, a gente vai aprendendo (Dona Raimundinha, comunidade de Bom Jesus). Dona Raimunda Marques tem 82 anos. É casada, agricultora, mãe e mora na comunidade de Bom Jesus. Dona Raimundinha, como gosta de ser chamada, é uma das moradoras mais antigas da Flona. Sua história e seu protagonismo tiveram grande importância para as todas as mulheres. Apesar da idade, sempre marca presença nos encontros das mulheres e adora participar das feiras. 4.1 Infância e vivência do trabalho Dona Raimundinha sempre trabalhou na roça junto com sua família, desde muito nova, e esse trabalho majoritariamente era na produção de farinha. Ela Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 263 também conta que sua mãe e seu pai trabalhavam e dividiam o tempo também com a seringa, nesse caso, só as irmãs mais velhas iam com eles. Porém, quando era solicitado, Dona Raimundinha acompanhava suas irmãs nessa tarefa. Minha mãe trabalhava na roça e meu pai na seringa, minha irmã e a minha mãe ajudava meu pai no seringal, e aí nós se criemos. Tinha dia que até chovendo nós ia para roça, mamãe dizia, bora para roça e eu e minha irmã iam, nós era seis irmã. Minha irmã serrava as árvores para gente plantar, com serra mesmo. Uma do lado e uma do outro, ela serrou muito para assoalhar nossa casa (Dona Raimundinha, comunidade de Bom Jesus). Essa relação de trabalho nas comunidades é muito comum e se repete nas histórias contadas nesta pesquisa. O trabalho é a vivência do comum. Ela fala, com um sorriso no rosto, que ajudava principalmente a mãe a cuidar da casa ou dos irmãos. Outra lembrança que Dona Raimundinha compartilhou conosco foi a de sua mãe trabalhando com o barro. Nas palavras que se seguem, ela narra essa memória, sempre sorrindo. Minha mãe trabalhava com o aguidá de barro, aí nós ia com ela de madrugada tirar barro, eu sei temperar e fazer, minha mãe me ensinou. Nós ia todos juntos tirar o barro, levava comida, na beira do Igarapé, grande e comprido, aí nós ia e tirava o barro, nós embrulhava em uma folha, levava para canoa, no outro dia ela já ia fazer para não endurecer o barro, aí já tinha o preparo na casa dela, a mesa, o caraipé que era o tempero do barro, é um arvore grande, queima, peneira e mistura no barro. Ela ensinava nós a fazer, ela dizia assim – minha filha é assim, botava, amassava, botava de novo. Se a gente amassasse e não quebrasse, estava bom! Quando bota demais, ele parte todinho e aí não presta. Nós ficava olhando e aprendia também, tudo ela fazia para nós de barro, prato, tigela, aqueles filtro de barro, para colocar água, que o rio era longe. Nós fazia os oguidá, porque nós não tinha dinheiro para comprar panela, prato. No momento em que eu estava colhendo a história de vida de Dona Raimundinha, essa parte do relato foi o momento em que ela mais se emocionou. Ficou pensativa, como se aquele trabalho que sua mãe fazia e o aprendizado dele que a sua mãe lhe deixou como herança tivessem sido tão marcantes na época da 264 | Gênero, violência e estruturas de poder sua infância que, se na sua comunidade do Bom Jesus tivesse o barro próprio para fazer o aguidá. Que são artesanatos. Era uma forma de manter a lembrança de sua mãe mais viva na sua mente. Eu não faço aqui, porque não tem esse barro que ela usava, aqui até acha nas beira do garapé, mas não tenho mais saúde para isso não. Um dia eu fiz um aguidá bem pequeninho para minha neta, eu pintei umas folhinhas, ficou muito bonitinho, mas foi só aquele mesmo, mas se tivesse barro, eu fazia, sim (Dona Raimundinha, comunidade de Bom Jesus). O sentimento do amor, do afeto, pairava sobre Dona Raimundinha em suas falas. O aguidá traz lembranças que, talvez, se não fosse eu a retomar a história de sua vida, não se teria a oportunidade e o prazer de ouvir essas memórias. 4.2 Adolescência de dona Raimundinha e a escola A vida escolar de dona Raimundinha é um retrato muito real das mulheres ribeirinhas da nossa região. Lembro-me de que eu fui a primeira da minha família a cursar uma faculdade. Incluindo a família da minha mãe, do meu pai e das tias e tios. Minha mãe e suas irmãs eram todas analfabetas – minha mãe ainda conseguia assinar o nome, bem devagarinho. Mas fazia questão de assinar, quando solicitado. Exatamente da forma como Dona Raimundinha relata abaixo: Quando a gente era criança, não tinha escola, a gente nem sabia o que era professor. Quem me ensinava algumas coisas era meu pai, eu estudava em casa com o papai, ele aprendeu algumas coisas lendo em sacos de fósforo que os patrão tinha. E ele perguntava do patrão dele como formava aquelas palavras e foi assim que ele aprendeu e aprendeu bem aprendido. E ele ensinava nós. Foi ele que ensinou a fazer meu nome. Depois que ele morreu eu sentia muito falta. Porque ele que sabia e ensinava nós, eu e meus irmãos. E ainda tem uma irmã minha que é até professora. Eu sentia falta de estudar, mais a gente não sabia de professor. Teve um tio meu que pediu da minha mãe para gente ficar e estudar, aí meu tio tinha roça, juta, nós fomos foi trabalhar, não estudava nem nada. Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 265 Como já disse anteriormente, era como minha mãe dizia sobre a sua infância. Ninguém pensava viver outra vida, porque ninguém teve oportunidade de vivenciar uma outra possibilidade para ver se era melhor do que a vida na roça e na seringa. 4.3 O caminho para a participação na comunidade Ativa na comunidade, dona Raimundinha é uma das mulheres mais importantes na região da Flona. Ela participa desde o início das feiras, das reuniões. Percebe-se na sua fala a importância da comunidade e da união entre as mulheres e o fato de elas serem as protagonistas das suas vidas. Mas até chegar à Flona e alcançar essa posição de protagonismo na comunidade, Dona Raimundinha, na sua juventude, passou por dois relacionamentos abusivos. No entanto, apesar da dificuldade financeira e da necessidade de criar seus filhos, nunca deixou que os homens tomassem as rédeas de sua vida. Eu vim de Copatana e vim para Tefé com minha patroa. Eu fiquei em Tefé e minha mãe foi embora, e eu fiquei com minha vó, minha vó morreu, e eu tive empregada pelas casas, aí achei um homem e fui para a acompanha dele, eu tive três filhos só. Aí abandonei ele, porque ele era muito cachaceiro, as vezes queria me bater, aí eu deixei ele e fui embora para casa da minha sogra, eu morei muitos tempos em Tefé. Aí arranjei outro e nós fomos embora cortar seringa, aí ele também era malandro, não queria fazer nada, só queria viver na custa do pai e da minha sogra, não esse vou me embora, eu tive dois filhos com ele. Aí fui embora para casa do meu tio, a minha mãe me levou embora. Eu levei meus três meninos junto comigo. Para lá se criaram, e depois com dez anos saíram de casa para trabalhar. Só depois de adultos que eu fui ver eles de novo (Dona Raimundinha, comunidade de Bom Jesus). Na sua história, Dona Raimundinha nos lembra da força da mulher da floresta, de conseguir se manter de pé, como as castanheiras, apesar das dificuldades. Mostra que cada mulher é protagonista da sua vida. Eu sempre trabalhei na roça, depois de velha que comecei a trabalhar com verduras para vender, no projeto da feira. Deu muita verdura, deu muita pimenta, cheiro-verde, cebola. Tudo deu! Fomos para Parintins levar nossas verduras, um monte de mulher foi. As 266 | Gênero, violência e estruturas de poder nossas cebolas eram bonitas, a gente aprendeu que a cinza que dar debaixo do forno é o mesmo que o calcário, aí a gente colocava tudo nas verduras e ficavam bonitas. Nós fomos várias vezes nas feiras, vender mel, vender cebola, pimenta, tem até as fotos que as meninas tiravam, tinha lá nossas fotos, trabalhando na horta, e as bacias de verduras, tão bonitas, né? Lá em Parintins, também apareceu nós no telão lá. Eu achei bom. Só que eu já não consigo mais carregar peso, até cortar alguma coisa eu tenho dificuldade. Esses últimos tempos, tenho me sentido muito doente (Dona Raimundinha, comunidade de Bom Jesus). Dona Raimundinha se destacou nas feiras da Flona, onde apresentava seus produtos e colaborava com outras mulheres da comunidade do Bom Jesus na organização do evento. Ela se orgulha de suas plantas e produções. Anteriormente, sua participação se limitava mais à organização da alimentação em reuniões comunitárias, mas nas feiras, ela e as outras mulheres assumiam papéis centrais, planejando e coordenando as atividades. Muitas das mulheres não gostam de participar mesmo não, a gente convidava para ajudar nós na cozinha, aparecia uma, duas, depois não vinha mais (Dona Raimundinha, comunidade de Bom Jesus). A comunidade, nesse sentido, se dá pela organização dessas mulheres, umas em relação às outras, em que cada uma tem o seu papel. Apesar do machismo que está estruturado na sociedade e de todas as dificuldades, hoje em dia percebemos, através de nossas pesquisas, que a cada dia mais mulheres estão ocupando esses espaços para além da cozinha. Principalmente depois dos projetos de educação que foram disponibilizados na Unidade de Conservação - UC, projetos que foram feitos para elas e que elas assumiram, como o projeto das feiras. Eu gosto das participações na comunidade, pois ensina muita coisa que eu não sei. A gente aprende. O que eles não sabem a gente ensina, a gente vai aprendendo (Dona Raimundinha, comunidade de Bom Jesus). Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 267 Apesar de todas as dificuldades apresentadas por essas mulheres para terem o poder de participação e organização na comunidade, elas sabem o seu papel. Quando Dona Raimundinha diz “O que eles não sabem a gente ensina, a gente vai aprendendo”, essa partilha é exemplo claro da reflexão que estamos propondo, ou seja, através da educação popular, as mulheres passam a ter consciência de que seus conhecimentos são válidos e importantes e nos ensinam também. Conhecimentos que vieram da vivência de viver na/da floresta e dos rios, conhecimento esse que foi trazido de uma ancestralidade. 5 REFLEXÕES SOBRE TRABALHO, INFÂNCIA E FAMÍLIA Todas as mulheres que participaram desta pesquisa lembram da sua infância sempre com o “trabalho na roça”, como diz Dona Ezimar: “Desde que eu me entendo por gente eu trabalho na roça” (Dona Ezimar, comunidade São Francisco do Bauana). E esse é um primeiro fato que trazemos para a reflexão. No caso das meninas, elas trabalhavam na roça, trabalhavam em casa com a mãe nos serviços domésticos e no cuidado com os irmãos e, muitas vezes, não podiam ir à escola. O trabalho na roça, na maioria dos casos, no plantio de mandioca, é muito exaustivo, exige muita dedicação e energia. “A região da Amazônia representa, sob o ponto de vista ecológico, um tipo unitário de área alimentar muito bem caracterizado, tendo como alimento básico a farinha de mandioca” (Castro, 2010, p. 41). Na fabricação da farinha, a importância do trabalho feminino e infantil era muito acentuada, assim como ainda é hoje. Para fazer a farinha é preciso juntar gente. Pois todas as etapas devem ser realizadas em um só dia ou no máximo dois: arrancar a mandioca, raspar, lavar, ralar, prensar e torrar. Embora normalmente o controle do processo da farinha seja feito por um homem, que é que determina as quantidades, as tarefas de cada um e o “ponto” de torrar a farinha, mulheres e crianças arrancam, raspam a mandioca, lavam, carregam água. (Wolff, 1998, p. 126). Sendo a farinha de mandioca a principal fonte alimentar dessas populações, a organização do trabalho da família exige que todos ocupem o papel nesse processo. 268 | Gênero, violência e estruturas de poder Segundo dona Edna, quando o esposo saía para as viagens para a organização da Flona, ela ficava em casa com as crianças e fazia o “básico” para sobreviverem por aquele tempo sem o “homem no lar”. Olhando essa situação pela perspectiva feminista de Silvia Federici (2019), É importante reconhecer que, quando estamos falando de trabalho doméstico, não estamos tratando de um trabalho como os outros, mas, sim, da manipulação mais disseminada e da violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora. (Federici, 2019, p. 42). É o que a autora chama de “trabalho do amor”, no qual, mesmo sobrecarregada, a mulher entende que o que ela está fazendo é o básico, e não é. Essa mulher vive uma tripla jornada, mesmo com o marido em casa. E, quando o marido não está, ela também assume o trabalho que era para ser do esposo. Durante as entrevistas, quando estávamos falando desse assunto de trabalho, quando as mulheres compartilhavam a sobrecarga de trabalho, no final, sempre diziam: “mas eu sou feliz”. Como se, mesmo ao compartilhar as suas dores de sobrecarga materna, trabalho na roça, cuidado do marido, estar feliz era cumprir o que a sociedade exige. “Quem nasce mulher, sente e sabe a discriminação de cada dia, mesmo que diferente para algumas, a carga de discriminação e é contra essa educação, sexista, machista, patriarcal e capitalista que estamos a questionar, permanentemente” (Andrade; Machado, 2018, p. 47). 6 REFLEXÃO SOBRE O ACESSO À EDUCAÇÃO PELAS MULHERES DA FLORESTA NACIONAL DE TEFÉ A educação das mulheres da floresta é a ferramenta que liberta. É uma educação marcada pelo compromisso, pelo afeto; é uma educação pelo comum, pela igualdade; é uma educação popular. Na maioria das partilhas que tivemos com as mulheres e no tempo que trabalho como fotógrafa voluntária nos projetos das feiras, pude perceber que a fraternidade das mulheres umas com as outras é muito forte. Porém, essa Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 269 fraternidade é marcada pelo difícil acesso à educação dessas mulheres, não somente pelo fato de as comunidades serem longe da cidade. Mas, principalmente, pelo impedimento por parte do pai ou do marido. Nesse processo, percebemos uma infância e uma adolescência silenciadas por homens, que, no papel conferido a eles pelo machismo e pelo patriarcado, oprimem a vida dessas mulheres, querendo ser seus donos e mandar nas suas vontades, sendo que a vontade delas é de ser elas mesmas, de fazerem sua própria história. Como diz Rejane: “Se não sairmos daqui para estudar, não vamos ser nada”. Como diz Perrot (2005), sobre o silêncio das mulheres. O silêncio é o comum das mulheres. Ele convém à sua posição secundária e subordinada, ele cai bem em seus rostos, levemente sorridentes, não deformado pela impertinência do sorriso barulhento e viril. Bocas fechadas, lábios cerrados, pálpebras baixas, as mulheres só podem chorar, deixar as lágrimas correrem como a água de uma inesgotável dor (Perrot, 1998, p. 9). Desse modo, o silenciamento dessas mulheres é muito real. Está em Rejane, que não podia estudar fora, porque o pai não deixava que ela e as suas irmãs saíssem de casa para estudar. O silenciamento está em Janete, que queria continuar seus estudos, mas o seu esposo não deixou. Conforme vamos conhecendo a história dessas mulheres, percebemos que há toda uma estrutura de silenciamento que é proposital, que é intencional. Por essa estrutura, a mulher não foi feita para sair de casa e fazer a sua história. Principalmente a mulher que vive na floresta, pois, além de tudo, existe a questão da geografia do lugar. A mulher foi feita para trabalhar na roça, parir, cuidar dos filhos e do marido, segundo o pensamento patriarcal dominante. No entanto, Dona Raimundinha, junto com o seu pai, quebrou e ultrapassou essa barreira. Seu pai, mesmo não sabendo ler e escrever, desafiou seus próprios limites de opressão e aprendeu a ler sozinho, em sacos de fósforo, movido pela curiosidade de perguntar para os seus patrões as palavras. Com isso, aprendeu a ler e pôde ensinar seus filhos e filhas. Quando o pai faleceu, Dona Raimundinha sentia saudade dele e também da educação que dele recebera. No meio da floresta, eles 270 | Gênero, violência e estruturas de poder tinham seus próprios meios de aprender, sua mãe ensinando a fazer o oguidá de barro, ou seus remédios da floresta. Um conhecimento usado na comunidade para seu povo, que passa de geração em geração. “O pensar a vida não era pensar apenas a partir de pensamentos de outros, mas era sobretudo o desafio de tomar sua própria vida, seus hábitos, seus conhecimentos, como fonte primeira do pensamento” (Gebara, 2016, p. 192). Essa sementinha da educação popular e a organização e a participação dessas mulheres nesses espaços proporcionam uma outra mentalidade para mulheres que foram oprimidas: a de pensar diferente de seus pais e seus maridos, mantendo sua afetividade com o lugar da comunidade. Como diz Dona Edna, “O maior desejo do meu coração, para a comunidade, eu tinha vontade dos meus filhos cursarem uma faculdade direitinho e eles voltarem para aplicar o conhecimento deles onde eles saíram, esse é o maior sonho”. 7 REFLEXÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA COMUNIDADE Este último tópico é de muita importância, pois compreender esse processo de participação é o eixo principal desta pesquisa. Deixamos este ponto como o último neste capítulo, pois esse processo de organização das mulheres da floresta que analisamos foi um longo caminho trilhado. Não foi um processo rápido nem teve um autor principal ou se constituiu de uma ação única. Mas, sim, foi o resultado do esforço de uma junção de processos, que contribuíram para a influência da organização para além da comunidade. Tanto na infância como na juventude dessas mulheres, a falta de acesso à educação foi uma das principais dificuldades que elas enfrentaram em suas vivências na comunidade. Marcia Kambeba (2020) propõe uma reflexão sobre o bem viver, a busca da coletividade, do bem comum, que foi a forma de essas mulheres se encontrarem nas suas comunidades e, juntas, transformarem a sua realidade, contornando as dificuldades por meio de ações que beneficiaram todo o coletivo. “Nascer e viver em aldeia me fez entender que a resistência precisa começar dentro de cada um de nós, buscando manter vivas as memórias no compromisso de lutar, junto com uma Marcela da Silva Barbosa; Rita de Cássia Fraga Machado | 271 coletividade por direitos e formas de seguirmos sendo comunidade” (Kambeba, 2020, p. 17). Que corrobora com o que diz Simonian (2001, p. 34), “[...] organiza-se e crer no potencial”. As mulheres perceberam, por meio das ações de estímulo que tiveram na Flona, a potencialidade de se organizar e que podiam conseguir muita coisa, através da organização. A crescente mobilização feminina em busca do reconhecimento de parte da sociedade e do Estado, para que as mulheres tenham direito a voz e a possibilidade de tomada de decisões, no contexto do desenvolvimento, chega a ser revolucionária. Ademais cresce o número das mulheres que passam a constituir-se em sujeitos mais participativos, com o que superam invisibilidade e desconsiderações de toda ordem (Simonian, 2001, p. 34). Em conformidade com o que a autora observa no seu texto, a mobilização/participação gera visibilidade para essas mulheres, gera pertencimento pela ação conjunta, pois a organização não se faz sozinha. Esse movimento é impulsionado por agente sociais, os quais, nesta pesquisa, são as mulheres da Floresta Nacional de Tefé. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se, portanto que as vidas das mulheres da floresta são essenciais no papel no fortalecimento dos cuidados da floresta e das águas. Suas histórias destacam seu protagonismo em outros espaços da vida, desde a família até a participação na comunidade. Essas mulheres se unem para fortalecer a identidade coletiva e a organização comunitária, influenciando positivamente suas comunidades e reforçando sua conexão com a floresta. A educação do povo da floresta, se dar por uma educação pautada através da identidade do seu povo e sua cultura, que passa de mãe para filha. Conhecimentos, crenças ancestrais que povoam as florestas e seus povos, trazendo orgulho de pertencimento, apesar de todas as dificuldades enfrentadas por suas ancestrais e no tempo presente, viver na floresta/comunidade é um presente, e esse sentimento é o que faz manter vivo a luta e dever de lutar pelos seus direitos, de educação, cultura e 272 | Gênero, violência e estruturas de poder saúde. E não tem como protagonizar essas ações, sem os afetos que norteiam as mulheres da Floresta Nacional de Tefé. REFERÊNCIAS ANDRADE, Êmila da Silva; MACHADO, Rita de Cássia Fraga. Mulheres da Floresta: dizendo sua palavra autonomia, participação e emancipação. In: MACHADO, Rita de Cássia Fraga; GAMA, Aildo da Silva (Org.). Mulheres, organização e produção agroecológica: Floresta Nacional de Tefé. Curitiba: CRV, 2018. CASTRO, Josué. Geografia da fome. 10 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. DINIZ, Debora; GEBARA, Ivone. Esperança feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022. FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019. GEBARA, Ivone. Educação popular: a ressignificação das expressões. In: CASTRO, Amanda Motta; MACHADO, Rita de Cássia Fraga (Org.). Estudos feministas, mulheres e educação popular. Curitiba: CRV, 2016. MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2022. KAMBEBA, Marcia Wayna. Saberes da floresta. São Paulo: Jandaíra, 2020. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Florianópolis: Edusc, 2005. SAMAIN, Etiene. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2012. SIMONIAN, Lígia. Mulheres da Amazônia Brasileira: entre o trabalho e a cultura. Belém: UFPA/NAEA, 2001. WOLFF, C.S. Mulheres da floresta: uma história – Alto Juruá, Acre (1980-1945). São Paulo: Hucitec, 1998. 14. ANÁLISE DAS FUNDAMENTAÇÕES DAS SENTENÇAS EM PEDIDOS DE HABEAS CORPUS EM BENEFÍCIO DAS MÃES ENCARCERADAS PREVENTIVAMENTE POR CRIMES DA LEI DE DROGAS1 https://doi.org/10.36592/9786554601566-14 Jessica Katharine Gomes Marques2 Tainá Ferreira e Ferreira3 RESUMO A forma que o sistema penal incide sobre as mulheres, sejam vítimas ou criminosas, só começou a ter maior destaque dentro do campo acadêmico a partir do desenvolvimento da criminologia feminista e do estudo do fenômeno criminal pela ótica de gênero. Ainda sim, a forma que o sistema de justiça criminal recebe essas mulheres demonstra que há muito ainda a se discutir acerca dos efeitos desse sistema sobre a vida das encarceradas. Com base em tais premissas, o problema proposto nesse artigo foi questionar como o TJPA está decidindo sobre a aplicabilidade do HC coletivo n.º 143.641 em casos de pedidos de Habeas Corpus com a conversão de prisão preventiva em domiciliar de mães encarceradas. Como objetivo geral busca-se aferir como tal HC está funcionando como mecanismo desencarcerador nos julgados do Pará, e, como objetivos específicos, se tem o estudo de como a criminologia feminista é uma ferramenta de estudo necessária para entender a forma com o sistema de justiça criminal incide sobre as mulheres, a análise de como os juízes estão decidindo sobre o trafico dentro da residência familiar da autora e dos filhos e como estão manejando o conceito de “situações excepcionalíssimas”. Para tanto, foi aplicado o método dedutivo, a partir do referencial teórico da criminologia feminista, com aplicação das técnicas de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, através da análise de conteúdo dos julgados do TJPA. Como conclusão da pesquisa, verificou-se que as decisões analisadas, em sua maioria, foram denegadas a partir de argumentos que não se adequam as exigências firmadas pelo HC coletivo, o que demonstra a lógica punitiva contra as apenadas. PALAVRAS-CHAVE: Encarceramento feminino. Maternidade. Tráfico de drogas. HC coletivo n.º 143.641. Jurisprudência do TJPA. 1 Artigo apresentado ao evento Congresso de Estudos de Gênero e Interseccionalidades de 2023 como fruto do resumo de mesmo nome e conteúdo apresentado no referido evento. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará. E-mail: jessicakgmarques@gmail.com 3 Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC Minas. Mestra em Direito pela Universidade Federal do Pará. Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará. E-mail: Ferreira.taina@yahoo.com.br 274 | Gênero, violência e estruturas de poder INTRODUÇÃO Muito se discute sobre as funções declaradas e as funções reais das penas. A criminologia crítica demonstrou que o sistema penal é um dos mecanismos de controle mais eficientes, de modo que, ao longo da história brasileira foi voltada, majoritariamente, para o encarceramento de homens, pobres, com pouca escolaridade e negros. Um breve olhar sobre o Código Penal de 1940, e ainda vigente, demonstra que as penas de crimes contra o patrimônio foram estabelecidas pelo legislador em patamares bem mais rigorosos em relação a outros delitos, o que indica uma tendência de proteção aos que são detentores desse patrimônio e colabora com o aumento de prisões dos mais pobres. Criminólogos, portanto, muito contribuíram para que tais percepções se tornassem essenciais para a compreensão do funcionamento do sistema penal, entretanto, restava um questionamento fundamental: e as mulheres? Em meio a tantos estudos sobre a seletividade penal e os processos de criminalização, pouco se falava sobre como esse sistema atua sobre as mulheres, qual o perfil da mulher encarcerada, os impactos do cárcere, os processos de revitimização entre outros temas que durante muito tempo permaneceram silenciados dentro dos estudos sobre as prisões. A Lei de Execução Penal brasileira foi promulgada em 1984, porém pouco trouxe disposições sobre como as mulheres deveriam cumprir suas penas, de maneira que, apenas em 2009, houve modificações mais incisivas acerca da assistência à saúde, à convivência com filhos menores, entre outras. Historicamente, portanto, as prisões foram pensadas por homens para homens, entretanto, não há como ignorar que mulheres também compõe a massa carcerária, e enquanto aos homens os crimes que mais levam à prisão são os patrimoniais, para mulheres é o tráfico de drogas o crime que mais prende. Isso implica que compreender como esse sistema incide sobre elas requer um método de pesquisa diferenciado, que não cabe na epistemologia tradicional da criminologia. Com base em tais percepções, o questionamento que se coloca deste breve artigo é o seguinte: Como o Tribunal de Justiça do Estado do Pará está decidindo Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 275 sobre a aplicabilidade do HC coletivo n.º 143.641 em casos de pedidos de Habeas Corpus para conversão de prisão preventiva em domiciliar? O objetivo geral é traçar um parâmetro de como o HC coletivo mencionado tem funcionado como mecanismo desencarcerador através de sua implementação nos julgados do Estado do Pará. Para tanto será analisado como a criminologia feminista é uma ferramenta essencial para o estudo do sistema penal e sua relação com as mulheres; de que modo os juízes estão decidindo acerca do tráfico de drogas na residência da autora onde seus filhos também habitam e; como o conceito de “situações excepcionalíssimas”, contido no julgando, está sendo empregado. A metodologia selecionada será a aplicação do método dedutivo, pois tem como premissa teórica a criminologia feminista de autoras como Soraia da Rosa Mendes, Vera Regina Pereira de Andrade, Carmen Hein Campos, com aplicação da técnica de pesquisa jurisprudencial com a análise de conteúdo, através da utilização do sistema do Tribunal de Justiça do Estado do Pará na pesquisa de suas jurisprudências com a busca pelos descritores “HC coletivo n.º 143.641” entre o ano de 2018 e 2019, e a pesquisa bibliográfica a partir do referencial teórico mencionado. 2. A MULHER CRIMINOSA E O ESQUECIMENTO PENAL Soraia da Rosa Mendes 4 afirma que para compreender o etiquetamento feminino, seja da mulher autora ou vítima de crimes, é necessário entender como historicamente o poder patriarcal e o poder punitivo articularam-se para sua custódia pela família, na sociedade e pelo Estado. Nas ciências em geral, a mulher foi relegada ao segundo plano, seja como pesquisadora, seja como sujeito e objeto das discussões. No campo das ciências criminais não foi diferente. Para Campos5 a crítica feminista ao caráter androcêntrico das ciências, de um modo geral, e às ciências sociais, em particular, aliada ao desenvolvimento da teoria do feminismo forneceram as bases para a crítica feminista à criminologia. 4 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 14. 5 CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia Feminista: Teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 217. 276 | Gênero, violência e estruturas de poder De maneira geral, graças ao feminismo, foi possível constatar que os modelos tradicionais de investigação social e sua concepção de definição de campo de estudo esqueceram importantes áreas para se concentrar na racionalidade do “ator social” consciente e pragmático. Assim, partindo do estereótipo de que sentimentos e emoções são ligados às mulheres e a racionalidade aos homens, elas foram negligenciadas como sujeito e objeto de pesquisas6. Ademais, as investigações das ciências sociais, durante longo período, centraram-se em situações públicas, oficiais e visíveis, deixando de lado o espaço privado também importante para a análise das organizações sociais. Com isso, os homens foram mais visualizados como criadores de estruturas sociais, em detrimento do isolamento das mulheres7. Com o surgimento do paradigma etiológico, na criminologia, enfatizou-se a relação da mulher com a sexualidade, de modo que em uma mulher considerada “normal” encontrava-se subordinada à maternidade, portanto, sendo aquela que coloca os filhos como prioridade absoluta. De maneira contrária, as criminosas seriam aquelas que abandonam seus filhos ou induzem as filhas à prostituição8. Nesse contexto, a prostituta torna-se o melhor exemplo de delinquente feminina. Lombroso ainda mencionava que a prostituição decorrida de uma predisposição orgânica à loucura moral, o que durante muito tempo serviu de embasamento para o estabelecimento de políticas para o tratamento dessas mulheres9. Com o nascimento da criminologia crítica, e o giro epistemológico que passou a analisar os processos de criminalização do indivíduo, deu-se o primeiro passo para uma proposta que se contrapunha à ideia do delito como uma doença e, portanto, a superação do paradigma etiológico. O crime e o criminoso, então, passam a ser analisados à luz do contexto social em que estão inseridos, com influência da epistemologia marxista, o estudo do fenômeno criminal não pode ser desprendido da investigação acerca da seleção 6 Ibidem. p. 217. CAMPOS, Carmen Hein de. Op cit. p. 218. 8 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 44 9 Ibidem. p. 44-4. 7 Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 277 penalizante realizada a partir de um sistema penal formado por agências que colocam em prática os processos de criminalização. Ocorre que, mesmo na criminologia crítica, o foco de pesquisa recaiu sobre situações definidas pelo que é o espaço público, limitando seu conceito de atores sociais aos que são visíveis na esfera pública, tal como ocorre com as classes sociais10. A partir dessa perspectiva, os estudos feministas conseguem ganhar espaço e, por conta disso, são promovidos estudos sobre as diferentes formas que o sistema de justiça criminal atua sobre a mulher, nos marcos da ideologia capitalista e patriarcal11. 2.1. O protagonismo da mulher nas ciências criminais Uma das características centrais de uma criminologia dita feminista é a análise do sistema penal a partir do gênero. Campos12 afirma que o desenvolvimento desta categoria revolucionou as análises feministas que, aplicadas a criminologia, não apenas questionaram seus pressupostos androcêntricos, mas construíram um novo referencial teórico capaz de analisar a criminalidade e demandas femininas, até então ignoradas. Para esta breve discussão, pode-se trabalhar com o conceito de gênero apresentado por Mendes13: Desde os anos setenta, portanto, o feminismo conhece do conceito de gênero para fazer referência à construção cultural do feminino e do masculino através de processos de socialização que formam o sujeito desde a mais tenra idade. O conceito foi libertador porque permitiu às mulheres demonstrar que a opressão tinha como raiz uma causa social, e não biológica ou natural 10 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 226. 11 Ibidem. p. 63. 12 CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia Feminista: Teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 221. 13 MENDES, Soraia da Rosa. Op cit. p. 86. 278 | Gênero, violência e estruturas de poder A autora também esclarece que patriarcado é a manifestação e institucionalização do domínio masculino sobre as mulheres e crianças da família e que se estende à sociedade em geral. Como consequência, os homens têm poder nas instituições importantes da sociedade, enquanto as mulheres são privadas de acesso a elas14. Campos15 afirma que em uma primeira fase a crítica feminista à criminologia se preocupou em expor o caráter androcêntrico da disciplina; visibilizar as mulheres que cometem crimes; revelar o sexismo institucional do estudo do crime e das maneiras pelas quais criminosos e vítimas eram tratados; problematizar a conformidade feminina como natural e auto evidente. Na segunda fase, houve preocupação com a incorporação do debate pós moderno e as feministas. Assim, passou-se a problematizar o termo mulher como categoria unificada; a incorporação das experiências das mulheres; relações de sexo/ gênero entre outros16. Como expõe a autora, a necessidade de repensar a criminologia decorre não apenas das transformações estruturais e culturais ocorridas nas últimas décadas, mas também da atual fragmentação do conhecimento. Dessa maneira, não é mais possível compreender a narrativa sobre o delito de maneira unificada, mas sim como um campo de incidência de diversas agências, práticas, políticas e discursos diferentes17. 2.2. O sistema de justiça criminal e a mulher criminosa Segundo Andrade18, o sistema de justiça criminal reflete o androcentrismo existente na sociedade. Falar sobre mulheres implica tratar sobre os espaços, papéis 14 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 88 15 CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia Feminista: Teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 223. 16 Ibidem. p. 223-224. 17 CAMPOS, Carmen Hein de. Op cit., p. 289. 18 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n 48, maio/jun. 2004. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15185/13811, p. 84-85. Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 279 e estereótipos que a elas são atribuídos. A autora afirma que temos duas esferas: a pública, configurada como esfera das relações produtivas, de propriedade, trabalhista e que é reservada ao homem e a privada, reservada ao lugar das relações familiares, cujo protagonismo é dado à mulher. Estamos perante o simbolismo de gênero com sua poderosa estereotipia e carga estigmatizante. Este simbolismo (enraizado nas estruturas)que homens e mulheres, no entanto, reproduzem apresenta a polaridade de valores culturais e históricos como se fossem diferenças naturais(biologicamente determinadas) e as pessoas do sexo feminino como membros de um gênero subordinado, na medida em que determinadas qualidades, bem como o acesso a certos papéis e esferas (da Política, da Economia e da Justiça, por exemplo) são percebidos como naturalmente ligados a um sexo biológico e não ao outro19. Nesse contexto, a mulher é vista como um não sujeito no funcionamento do sistema de justiça criminal. Aos homens poderosos e improdutivos, cabe o ônus da periculosidade e da criminalização e para as mulheres fragilizadas, resta o bônus (?) da vitimização20. De acordo com Mendes21 para as mulheres o cárcere não foi uma novidade moderna para aquelas que eram pobres e ociosas. Na historiografia, são muitas as menções aos conventos como locais de encarceramento, no Brasil a administração penitenciária feminina esteve sob a coordenação de ordens religiosas até meados do século XVI. Para as mulheres, portanto, os mecanismos de controle são diversos daqueles que incidem sobre homens, sobre elas recai um controle informal materializado na família (pais, irmãos, maridos etc.) e ainda em instituições como escolas, igrejas para que operem os papeis que lhe são atribuídos na vida privada. Por essa razão, que no 19 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n 48, maio/jun. 2004. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15185/13811, p. 85. 20 Ibidem. p. 86. 21 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 142-153. 280 | Gênero, violência e estruturas de poder Código Penal, nas prisões, a mulher criminosa é tratada somente de maneira residual, pois o sistema a classifica prioritariamente como vítima22. Atualmente, Andrade 23 considera o sistema de justiça como androcêntrico, pois constitui um mecanismo masculino de controle para o controle de condutas masculinas, em regra geral, praticadas pelos homens, e só residualmente feminino. O cárcere não foi tradicionalmente pensado para mulheres, mas sim para homens. Isso explica a realidade dificultosa e pouco debatida acerca da relação entre o encarceramento e a maternidade. Se no Brasil temos o princípio da intranscendência das penas, ou seja, a vedação de que a pena passe do condenado para membros de suas famílias, como considerar a realidade de filhos que passam os primeiros meses de vida encarcerados junto com suas mães? Pode-se notar, então, que o fato de historicamente a mulher ser considerada apenas como vítima, fez com que o sistema de justiça não estivesse preparado para recebê-la como acusada. Um breve olhar sobre a Lei de Execução Penal brasileira (Lei 7.210/1984) demonstra que somente em 2009, foi inserido o §3 do artigo 14 que previu a necessidade e prover a assistência necessária à mulher encarcerada grávida e o artigo 89 que trouxe a criação de creches para acolher os filhos dessas mulheres. Ou seja, mais de vinte anos após a promulgação da lei é que se percebeu a necessidade de adequar o cárcere para as presas. 3. AS MULHERES E O CÁRCERE BRASILEIRO Segundo os dados promovidos pelo INFOPEN mulheres 24 , 37,67% das mulheres encarceradas estão privadas da liberdade de modo provisório, ou seja, tiveram sua liberdade restringida antes de uma sentença condenatória transitada em julgado. De modo regionalizado, no Pará as encarceradas preventivamente representam 46,12% do total das apenadas paraenses. 22 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op cit., p. 88. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op cit. p. 88. 24 BRASIL. Ministério da Justiça. Infopen Mulheres, 2018, Brasília. Disponível em: https://www.gov.br/ depen/pt-br/servicos/sisdepen/mais-informacoes/relatorios-infopen/relatoriossinteticos/infopenjun-2017.pdf/view. 23 Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 281 Quanto às necessidades básicas de mães, gestantes e lactantes por estrutura adequada do cárcere brasileiro, tem-se que somente 14,2% unidades prisionais do País têm espaço próprio para grávidas e lactantes, 3,20% dos presídios nacionais dispõe de berçário e 0,66% das carceragens tem creches para alocar filhos maiores de 02 anos das internas. Segundo o mesmo levantamento do INFOPEN mulher 25 , o coletivo de mulheres brasileiras encarceradas são, majoritariamente, jovens (25,22% com 18 a 24 anos de idade), tem cor preta ou parda (63,55%), possuem ensino fundamental incompleto (44,42%), são encarceradas pelo delito de tráfico de drogas (59,9%), e, possuem filhos (28,9% têm um filho, 28,7% possuem dois filhos e 21,7% com três filhos). Em 2015, o projeto intitulado “Dar à luz na sombra: Condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão”, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA em 2015, fez um estudo para mapear a situação do exercício da maternidade nas prisões brasileiras, algumas das conclusões apontadas é de que a as carceragens femininas brasileiras são preenchidas por grupos mais vulneráveis, de acordo com os quesitos de raça e classe, e de que toda a mulher encarcerada exerce sua maternidade de modo vulnerável e sua gestação com diversos riscos, tendo em vista as diversas precariedades do cárcere. Sobre o tema26: Um dos paradoxos, que enfrentamos desde o início da pesquisa, é a escolha entre a institucionalização da criança ou a separação da mãe. Ao serem colocadas frente a esse paradoxo do sistema de justiça, diversas opiniões apareceram no campo revelando que não há consenso entre as mulheres sobre o assunto, tendo algumas priorizado a permanência com o recém-nascido, enquanto outras foram enfáticas de que prisão não é lugar para bebês. Uma das saídas desse (falso) paradoxo, entre institucionalizar a criança ou separá-la da mãe, seria a prisão domiciliar, essa opção choca com a cultura do encarceramento e a 25 Ibidem. ANGOTTI, Bruna; BRAGA, Ana Gabriela. Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidade futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Ministério da Justiça, IPEA, 2015. Série Pensando o Direito, 51. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/201clugarde-crianca-nao-ena-prisao-nem-longe-de-sua-mae201d-diz-pesquisa/pesquisa-dar-a-luz-nasombra-1.pdf, p. 79. 26 282 | Gênero, violência e estruturas de poder priorização do “combate ao crime” presente nos discursos e práticas do sistema de justiça. O aumento do encarceramento feminino, e logo do número de gestantes, puérperas e mães encarceradas demonstra que o sistema de justiça criminal vem ignorando recomendações de organizações internacionais contra o uso de prisão para essas mulheres. Concluímos que uma melhor possibilidade de exercício de maternidade ocorrerá sempre fora da prisão e, se a legislação for cumprida, tanto em relação à excepcionalidade da prisão preventiva como no tangente à aplicação da prisão domiciliar, grande parte dos problemas que afetam a mulher no ambiente prisional serão resolvidos. Diante destas informações pode-se notar como o cárcere feminino é preenchido por mulheres em situação de vulnerabilidade, quanto ao gênero, raça e classe, e formado por mulheres mães, que não gozam de qualquer acesso a uma estrutura adequada para exercer sua maternagem sem causar riscos a si ou a sua prole. 3.1. Tráfico de drogas e o encarceramento feminino Como dito anteriormente, a maior causa de encarceramento do público feminino brasileiro ocorre por conta do crime de tráfico de drogas, sobre essa relação é preciso refletir sobre as possíveis motivações e explicações para o fenômeno. O tráfico de entorpecentes é um delito com rápido retorno econômico, que pode ser realizado como uma atividade secundária às demais tarefas do dia a dia, por conta disso, torna-se uma forma de complemento da renda financeira e uma oportunidade de obter dinheiro enquanto exerce presença em sua casa com a criação de seus filhos, cumprindo o papel social tradicional destinado ao gênero feminino27. Sobre esse cenário, citam-se os dados produzidos pelo Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania – NUPEC (2015) por meio da produção da autora 27 CHERNICHARO, L. P. e BOITEUX, L. (2014). Encarceramento Feminino, Seletividade Penal e Tráfico de Drogas em uma perspectiva feminista crítica. In: Seminário Nacional de Estudos Prisionais, Marília, SP, Brasil, p. 04. Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 283 Monica Cortina em um estudo feito nos centros prisionais do Estado de Santa Catarina28: Após a coleta de dados, através de questionários e entrevistas semiestruturadas, constatou-se que no universo de 35 mulheres pesquisadas, 65% estavam presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas.3 A par da notável cifra, concluiu-se também que o perfil dessas mulheres agrega variantes comuns: 77% relataram histórico de abuso de drogas em algum momento da vida; 66% estavam desempregadas no momento da prisão; 60% possuíam baixo grau de escolaridade (sendo que 57% tinham o ensino fundamental incompleto e 3% eram analfabetas); 51% eram solteiras, viúvas ou separadas e 91% possuíam filhos/as. Nota-se que as mulheres seguem pelo caminho do comércio de entorpecentes não somente alguma influência de seus companheiros, muitas veem essa via como uma oportunidade de crescimento financeiro e de status social, um dos grandes fatores gira em torno da feminização da pobreza, tendo em vista que esse fenômeno socioeconômico atinge de maneira mais grave o público feminino29. Sendo assim, há a problemática das precárias formas de inserção de mulheres em espaços de trabalho, ocorrendo em muitos casos a exposição a tarefas mal remuneradas, o que leva ao empobrecimento de diversos lares que delas dependem. Segundo o tema30: O conjunto dos dados revela o cenário de exclusão escolar subjacente à redução de oportunidades formativas e laborais antes do aprisionamento e que permanece durante o cumprimento da pena, considerando as condições precárias gerais das unidades prisionais também nessa seara. Em contexto macroestrutural, o cenário de encarceramento em massa de mulheres em todo o planeta resulta de um conjunto de processos em curso desde a década de 1970: a ascensão de políticas neoliberais reduzindo o Estado Social (WACQUANT, 1999), a consolidação da política global de guerra às drogas e endurecimento das penas (BOITEUX, 2006A, 2010, 2015; CHERNICHARO, 2014; DEL OLMO, 1998; MOURA, 2005), a feminização da pobreza e o 28 CORTINA, Monica Ovinski de Camargo. Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia feminista. Revista Estudos Feministas (online). 2015, v. 23, n. 03. Acesso em: 12 out 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-026X2015v23n3p761. ISSN 1806-9584, p. 761. 29 Ibidem, p. 767. 30 GERMANO, I. M. P., MONTEIRO, R. A. F. G., & LIBERATO, M. T. C. (2018). Criminologia crítica, feminismo e interseccionalidade na abordagem do aumento do encarceramento feminino. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(n.spe.2), 27-43. https://doi.org/10.1590/1982-3703000212310, p. 34. 284 | Gênero, violência e estruturas de poder crescente empobrecimento de lares chefiados unicamente por mulheres (COSTA, PINHEIRO, MEDEIROS, & QUEIROZ, 2005), e o fenômeno geral da criminalização da pobreza, que fomenta a penalização das camadas pobres das populações. Portanto, as mulheres encarceradas brasileiras lidam com uma dinâmica de exclusão aos mecanismos legais de ascensão social por meio do trabalho e, ao mesmo tempo, precisam chefiar seus lares para prover o sustento de seus filhos, sem nenhuma forma de auxílio governamental o Estado se faz silente a tal mazela social, o que torna esse público extremamente vulnerabilizado e impulsiona soluções de rápida obtenção de dinheiro: o crime de tráfico. 3.2. O Habeas Corpus coletivo nº. 143.641 do Supremo Tribunal Federal Com o advento da Lei 13.257 de 2016, conhecida por Marco Legal da Primeira Infância houve uma modificação no Código de Processo Penal Brasileiro em seu art. 318 ao acrescentar no rol de possibilidades de substituição da prisão preventiva em domiciliar as gestantes e mães com filho de até 12 (doze) anos incompletos: Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: IV - gestante; V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; Diante disso, houve uma questão incontroversa quanto a hermenêutica interpretativa do termo “poderá”, o que levou ao questionamento: durante a análise da aplicabilidade do benefício da conversão do encarceramento preventivo em regime domiciliar haveria a possibilidade de discricionariedade do magistrado diante da situação fática do delito ou haveria uma obrigatoriedade em conceder a conversão mediante o reconhecimento dos critérios objetivos da lei? Tal questão levou a diversas formas de aplicação da norma por todo o País, o que gerou a impossibilidade de aplicação plena do dispositivo legal, ou seja, o mecanismo desencarcerador se tornou inoperante. Por conta disso, houve a impetração do Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641 ao Supremo Tribunal Federal impetrado em favor das mulheres preventivamente Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 285 encarceradas que estejam gestantes ou estejam no puerpério, bem como, que tenham filhos sob sua responsabilidade, para resguardar os direitos subjetivos da própria mãe como também das crianças. Assim, tal pleito visava deflagrar a condição degradante a qual essa parcela social era e é submetida durante o encarceramento que não dispõe de estruturas adequadas para que a maternagem seja exercida de modo saudável. Importante salientar a manifestação da Procuradoria-Geral da República por meio de seu parecer final que ponderou pelo descabimento do Habeas Corpus Coletivo citado anteriormente, dentre os diversos pontos de irresignação, há a argumentação de que a maternidade não poderia significar uma garantia contra a prisão da autora do delito, atribuindo ao art. 318 do Código Penal a interpretação de que há a primazia pela proteção das crianças, não representando uma prerrogativa de sua genitora. Entretanto, o voto do Relator Ricardo Lewandowski posicionou-se pelo conhecimento do Habeas Corpus e sua devida concessão, assim, destaca-se as teses arguidas quanto ao mérito do julgado: Há, como foi reconhecido no voto, referendado por todos os ministros da Corte, uma falha estrutural que agrava a “cultura do encarceramento”, vigente entre nós, a qual se revela pela imposição exagerada de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis. Tal decorre, como já aventado por diversos analistas dessa problemática seja por um proceder mecânico, automatizado, de certos magistrados, assoberbados pelo excesso de trabalho, seja por uma interpretação acrítica, matizada por um ultrapassado viés punitivista da legislação penal e processual penal, cujo resultado leva a situações que ferem a dignidade humana de gestantes e mães submetidas a uma situação carcerária degradante, com evidentes prejuízos para as respectivas crianças. (...) O cuidadoso trabalho de pesquisa de Eloísa Machado de Almeida, Bruna Soares Angotti, André Ferreira, Nathalie Fragoso e Hilem Oliveira, constante da inicial, revela, inclusive por meio de exemplos, a duríssima - e fragorosamente inconstitucional - realidade em que vivem as mulheres presas, a qual já comportou partos em solitárias sem nenhuma assistência médica ou com a parturiente algemada ou, ainda, sem a comunicação e presença de familiares. A isso soma-se a completa ausência de cuidado pré-natal (acarretando a transmissão evitável de doenças graves aos filhos, como sífilis, por exemplo), a falta de escolta para levar as gestantes a consultas médicas, não sendo raros 286 | Gênero, violência e estruturas de poder partos em celas, corredores ou nos pátios das prisões, sem contar os abusos no ambiente hospitalar, o isolamento, a ociosidade, o afastamento abrupto de mães e filhos, a manutenção das crianças em celas, dentre outras atrocidades. Tudo isso de forma absolutamente incompatível com os avanços civilizatórios que se espera tenham se concretizado neste século XXI. 31 Nesse sentido, ao analisar-se o teor da argumentação do Ministro Ricardo Lewandowski é notória a utilização de teses em defesa tanto dos direitos subjetivos da criança como os da mulher encarcerada, não havendo uma ponderação quanto a sobreposição de interesses entre esses dois públicos. Além disso, o do Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641 primou pela concessão da ordem e estabeleceu parâmetros a serem observados pelos juízes durante suas decisões pela denegação do benefício: se a situação fática tratar de crime praticado mediante violência ou grave ameaça, se for praticada contra seus descendentes ou em casos de situações excepcionalíssimas, mediante a fundamentação do magistrado. Houve, também, a extensão da tutela às demais mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de filhos com deficiência e às adolescentes que cumpram medidas socioeducativas que se enquadrem nas características do HC. Outro ponto abordado trata da credibilidade que deve ser atribuída à palavra da mãe quanto às afirmações sobre a situação de guarda de seus filhos, cabendo ao juiz, de modo subsidiário e em caso de dúvida, solicitar laudo social que ateste a situação. Houve, ainda, o claro reconhecimento da situação de insalubridade do cárcere brasileiro quanto a questões de saúde femininas, ocorrendo à menção a diversos problemas estruturais que assolam as instituições prisionais além do conceito de “cultura punitivista”, utilizado para se frisar a situação de vulnerabilidade das mulheres frente à persecução penal mediante diversas prisões provisórias descabidas. A Lei do Marco Legal da Primeira Infância conjuntamente com o do Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641 representam uma evolução normativa na tutela de 31 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC 143.641/SP, Relator Min. Ricardo Lewandowsk, data do julgamento 20/02/2018, Segunda Turma, data de Publicação 09/10/2018. Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 287 direito de um dos públicos vulnerabilizados pelo sistema penal: as mulheres mães, bem como, representou uma valorização das prerrogativas da própria prole, a quem necessita de sua genitora para seu completo desenvolvimento. Somada a essas garantias a Lei 13.769 de 2018 também dispõe das formas de estabelecer a conversão da prisão preventiva em domiciliar para encarceradas mães, e, alterou o Código de Processo Penal ao adicionar tais artigos: Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que: (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018). I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018). II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente. (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018). Art. 318-B. A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código. (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018). Diante de todo esse contexto, consagrou-se que a penalidade atribuída às mães encarceradas mediante diversas violações de direito advindas do recolhimento ao cárcere não pode representar uma baliza à efetivação de seu direito subjetivo de exercer a maternidade bem como dos direitos dos próprios infantes a um saudável desenvolvimento com a presença materna. 3.3. Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Pará Durante a pesquisa realizada à nível de 2ª instância no site eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em sua guia de pesquisa de jurisprudências, utilizou-se os descritores: “Habeas Corpus Coletivo nº 143.641” e a delimitação temporal de 20 de fevereiro de 2018 a 20 de fevereiro de 2019, com o fito de traçar como tal mecanismo desencarcerador se efetivou em seu primeiro ano de vigência dentre os julgados do Pará. 288 | Gênero, violência e estruturas de poder Com tal busca foram encontrados 59 resultados, dentre eles fez-se necessária uma seleção daqueles que mais se alinhavam metodologicamente à pesquisa desenvolvida, ou seja, processos que em seu teor trata-se de delitos relacionados à Lei n.º 11.343 de 2006 com o pedido de substituição da preventiva por prisão domiciliar com o fulcro no HC coletivo n.º 143.641. Sendo assim, restaram 32 decisões que embasarão este estudo, sendo todos Habeas Corpus, nos quais em apenas em 11 casos houve a concessão da benesse da conversão da prisão preventiva em domiciliar e em 21 ocorrências tal pedido foi denegado. Durante a análise das decisões encontradas, pôde-se observar que dois pontos se tornaram relevantes na escolha dos magistrados: a exigência de comprovação de que as mães eram indispensáveis para o desenvolvimento de seus filhos e a ocorrência do delito se dar dentro do lar em que aquelas crianças residiam junto de seus familiares. Mediante a leitura apurada do Habeas Corpus Coletivo n.º 143.641 e do dispositivo legal presente no art. 318 e 318-A do CP é notória que a aplicação da substituição do cárcere em prisão domiciliar deve ser analisada pelo juiz ao ponderar sobre a situação fática em consonância com a aplicabilidade da norma, entretanto, não se deve alargar a margem de discricionariedade do magistrado para abranger questões morais no julgamento, como ocorreu em muitos dos casos de não acolhimento do pleito. Diante das exigências do HC coletivo: que o crime não tenha sido cometido mediante grave ameaça ou violência, que não tenha como alvo o próprio infante ou em casos de situações excepcionalíssimas, nota-se que os crimes previstos na Lei n.º 11.343, tais como tráfico ou receptação, não representam delitos que envolvam violência ou ameaça de nenhum gênero, não é cometido contra a criança, assim, sua correlação ao mecanismo do HC coletivo n.º 143.641 é observada, excetuando a ocorrência de situações excepcionalíssimas. Nesse sentido, quanto à análise dos motivos da denegação da ordem de HC impetrados com base no pedido de conversão da prisão preventiva em domiciliar obteve-se os seguintes dados: em 10 decisões houve a argumentação de que não houve a comprovação da vulnerabilidade da criança e a consequente necessidade Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 289 do convívio com a mãe, em 1 decisão ocorreu a denegação pelo crime de tráfico ocorrer nas dependências do lar que a criança habitava, em 1 primou-se pela não concessão do pedido por tratar de situação excepcionalíssima. Por fim, em 01 decisão houve a negativa por não haver uma adequação da situação fática às exigências para a concessão da benesse e em 01 julgado houve a denegação por insuficiência de outras medidas cautelares alheias à prisão preventiva. Além disso, observou-se que há decisões que coadunam as motivações citadas anteriormente: em 03 casos os juízes entenderam pela denegação tendo em vista que o tráfico ocorreu na residência da autora e das crianças o que caracteriza situação excepcionalíssima, em 04 decisões houve argumentação pela não caracterização da vulnerabilidade do infante e a citação do crime ocorrer no domicílio familiar. Dessa forma, conclui-se que em 8 casos de denegação, houve a relação com o julgamento à prática ocorrer dentro da casa da paciente do Habeas Corpus e 14 decisões primaram pela não concessão segundo a não comprovação da necessidade do convívio materno com o infante. Como exemplo, cita-se: HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINAR. ARTS. 33 E 35 DA LEI Nº 11.343/06. (...)3. PEDIDO DE PRISÃO DOMICILIAR SOB A ARGUIÇÃO DE IMPRESCINDIBILIDADE DA PRESENÇA DA ORA PACIENTE PARA A CRIAÇÃO DOS FILHOS: NÃO ACOLHIMENTO. A SIMPLES JUNTADA DE CERTIDÕES DE NASCIMENTO E OUTROS DOCUMENTOS, NÃO FAZEM PROVA DA IMPRESCINDIBILIDADE DE SUA PRESENÇA, BEM COMO QUE SUA AUSÊNCIA DEIXARIA OS FILHOS DESAMPARADOS. PACIENTE QUE SEGUNDO INFORMAÇÕES DO MAGISTRADO SINGULAR “É PROPRIETÁRIA DA RESIDÊNCIA EM QUE AS DROGAS FORAM ARMAZENADAS E COMERCIALIZADAS, AINDA QUE NÃO RECEBESSE DIRETAMENTE O DINHEIRO DOS SEUS CLIENTES, VISTO QUE TAL, PROVAVELMENTE, ERA TRANSFERIDO DIRETAMENTE PARA AMADO BATISTA. ALÉM DISTO, NILZA TINHA FUNÇÃO DE RESPONSÁVEL FINANCEIRA DO GRUPO CRIMINOSO, RESPONSÁVEL PELAS TRANSAÇÕES ORIUNDAS DA MERCANCIA ILÍCITA E PAGAMENTO DE FUNCIONÁRIOS", BEM COMO FAZIA DE SUA RESIDÊNCIA, LOCAL QUE VIVE COM SEUS FILHOS MENORES DE IDADE, LOCAL PARA COMERCIALIZAÇÃO DE DROGAS, EXPONDOOS A DIVERSOS RISCOS INERENTES A CONDUTA DELITUOSA, RESTANDO EVIDENTE QUE A ORA PACIENTE NÃO É IMPRESCINDÍVEL PARA O CUIDADO DOS FILHOS. OUTROSSIM, O CONVÍVIO COM A IMPUNIDADE DIANTE DE CRIME TÃO GRAVE CAUSA IGUAL COMPROMETIMENTO E ABALO, NÃO SÓ NA CRIANÇA, QUE VÊ COM OLHOS DE 290 | Gênero, violência e estruturas de poder NORMALIDADE ESSA SITUAÇÃO, MAS TAMBÉM NA SOCIEDADE QUE, IMPOTENTE, SE VÊ À MERCÊ DO EFETIVO AUMENTO DA CRIMINALIDADE FEMININA. NESSA TOADA É IMPORTANTE ASSINALAR QUE O DIREITO A SEGURANÇA INDIVIDUAL E COLETIVA TAMBÉM É UMA GARANTIA FUNDAMENTAL E UM DEVER DO ESTADO. (...) HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONHECIDO. ORDEM DENEGADA. 32 Tal entendimento notou-se majoritário durante a análise das decisões, entretanto, houve ainda julgados que contestaram essa forma de aplicar o HC coletivo, firmando a tese de que a comprovação da necessidade da presença da mãe para o desenvolvimento do infante não é imprescindível para a concessão do benefício pleiteado, bem como, que há a possibilidade de aplicação do Habeas Corpus mesmo que a comercialização dos ilícitos se dê dentro da residência da autora: habeas corpus liberatório com pedido de liminar. tráfico de drogas praticado na residência da paciente. prisão em flagrante convertida em preventiva. sentença condenatória de 5 anos e 6 meses de reclusão que negou o direito de recorrer em liberdade, proferida em 11/10/2018. pleito de substituição da prisão cautelar por domiciliar com base no art.318, III e v, do cpp. paciente mãe de uma criança de 4 anos de idade. possibilidade de substituição. presença dos requisitos legais. proteção integral à primeira infância. prioridade. mudança de paradigma pelo stf. atendimento à decisão proferida pelo ministro Ricardo lewandowski no acompanhamento do cumprimento da ordem concedida pelo supremo tribunal federal no habeas corpus coletivo n. 143.641/sp. ordem concedida para substituir a prisão cautelar por domiciliar e aplicar cumulativamente as medidas cautelares previstas no art.319 do CPP, com exceção da fiança. decisão unânime. (...) 4. Na hipótese dos autos, a paciente foi condenada pela prática do crime tipificado no art.33, caput, da Lei nº 11.343/06, à pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de reclusão e 550 (quinhentos e cinquenta) dias-multa, a ser cumprida no regime semiaberto, sendo-lhe negado o direito de recorrer em liberdade. Através do presente writ a paciente pretende ter substituída a sua prisão por domiciliar, por ser mãe de uma criança menor de 12 anos de idade. Tratase, portanto, de reiteração do HC nº 0808837-20.2018.8.14.0000, o qual teve a Ordem denegada, à unanimidade, por esta Seção de Direito Penal, em 17/12/2019, ao entender caracterizada circunstância excepcionalíssima capaz de afastar a substituição da prisão cautelar pela domiciliar 32 HC 0805003-09.2018.8.14.0000 PA, Rel. ROSI MARIA GOMES DE FARIAS, Órgão Julgador Seção de Direito Penal, Julgado em 2018-08-27, publicado em 2018-08-28. Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 291 (tráfico realizado na residência em que residia o menor). No entanto, esta Seção, em consonância com a decisão proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no acompanhamento do cumprimento da Ordem concedida em sede do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641 do STF, referente aos Documentos Eletrônicos nº 471 e 550, modificou o entendimento anteriormente firmado e passou a admitir a substituição da custódia por domiciliar, em que pese se tratar de tráfico realizado na residência em que residia o menor. 5. Constata-se que a paciente comprovou ser mãe de uma criança de 4 anos de idade (certidão de nascimento - ID nº), aduzindo ser imprescindível aos cuidados da menor, o que preenche o requisito objetivo insculpido no art.318, V, do CPP. Depreende-se dos autos, além disso, que não estão presentes, in casu, nenhuma das exceções descritas pelo Pretório Excelso, já que o crime imputado à paciente (art.) não foi praticado mediante violência ou grave ameaça, ou contra seus descendentes, bem como não se trata de ré tecnicamente reincidente. Dessa forma, demonstrado, portanto, os pressupostos autorizadores da substituição da prisão cautelar pela domiciliar, elencados no art.318, inciso V, do Código de Processo Penal, revela-se adequada e proporcional a substituição da custódia por prisão domiciliar. Precedentes do STF e STJ. 6. Ordem conhecida e concedida para substituir a prisão cautelar da paciente por domiciliar, aplicando-lhe cumulativamente as medidas cautelares previstas no art.319 do CPP, com exceção da fiança. Decisão unânime. 33 4. CRÍTICAS ÀS DECISÕES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ Da leitura atenta do disposto no voto do Relator que concedeu a Ordem de HC n.º 143.641 depreende-se que a palavra da mãe que pleiteia o benefício goza da presunção de veracidade, assim, a simples comprovação da existência de filiação entre a ré e a prole juntamente com a manifestação da genitora deve ser o bastante para caracterizar a necessidade do convívio entre ambos. Outrossim, durante as argumentações de denegação dos pleitos pelos Habeas Corpus utilizou-se do fato de que os delitos ocorreram dentro do lar da família, para promover um julgamento moral da prática, atrelando o fato típico a uma depravação na maternidade exercida pela paciente. Entretanto, essa circunstância não se encontra no rol dos motivos para denegar a ordem de Habeas Corpus. 33 HC: 0809751-84.2018.8.14.0000 PA, Rel. ROMULO JOSE FERREIRA NUNES, Órgão Julgador Seção de Direito Penal, Julgado em 2019-02-04, publicado em 2019-02-06. 292 | Gênero, violência e estruturas de poder Tal situação já foi julgada pelo próprio Supremo Tribunal Federal e sua respectiva decisão foi utilizada em fundamentações da própria jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Pará para conceder ordens de Habeas Corpus, porém, foi posição minoritária entre os julgados. Destarte, nota-se que os principais motivos para a denegação não giram em torno da análise se há a possibilidade de conceder a ordem com base nas exigências firmadas pelo HC coletivo, e sim, uma análise discricionária acerca do modus operandi da autora do ilícito, promovendo um duplo julgamento: à mulher direcionouse a análise moral como criminosa que “contamina” sua prole com sua atuação e como uma mãe incapaz de exercer a maternidade por conta do crime. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por fim, conclui-se que a Lei 13.257 de 2016, representando o Marco Legal da Primeira Infância, conjuntamente com o HC coletivo n.º 143.641 e a Lei 13.769 de 2018, representaram uma importante evolução normativa que objetivava promover a real aplicação de direitos subjetivos tanto das crianças como das mulheres encarceradas, uma vez que o aprisionamento ocorre em circunstâncias insalubres e indignas para ocorrer um convívio saudável entre mãe e filho. Durante a análise da forma com que os julgadores paraenses de 2ª instância estão decidindo acerca da concessão da conversão da prisão preventiva em domiciliar com fulcro no HC coletivo, pôde-se observar que tal mecanismo desencarcerador não encontrou terreno fértil de aplicação no Estado do Pará em seu primeiro ano de vigência, tendo em vista que em 21 dos 35 casos analisados houve a denegação. Porém, mais importante do que a constatação do número de denegações aos pleitos de Habeas Corpus, é de fundamental importância citar a forma argumentativa com que as decisões foram desenvolvidas: na maioria dos casos, ocorreu um julgamento moral acerca da prática do crime ocorrer na residência da família, o que caracteriza uma análise além do crime e invade as circunstâncias da intimidade da relação materno-infantil, julgando a autora como uma “mãe ruim” não passível da concessão da liberdade. Jessica Katharine Gomes Marques; Tainá Ferreira e Ferreira | 293 Quanto à utilização do termo “circunstâncias excepcionalíssimas”, notou-se que, majoritariamente, tal motivação foi atrelada a outras argumentações, tais como a não comprovação da imprescindibilidade da mãe para a criação de seu filho e a ocorrência do crime ser no local da casa familiar. Desse modo, a minoria dos casos analisados que foram denegados tratou-se dos requisitos objetivos traçados pelo HC n.º 143.641 para a não concessão da liberdade, infelizmente, a grande maioria tratou de julgamentos éticos e morais à prática, não primando pela aceitação por invalidação da figura materna que tenha incorrido em um crime como alguém passível de prover uma boa criação a sua própria prole. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n 48, maio/jun. 2004. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15185/13811. Acesso em 07 out.2022. ANGOTTI, Bruna; BRAGA, Ana Gabriela. Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidade futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Ministério da Justiça, IPEA, 2015. Série Pensando o Direito, 51. 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FEMINISMOS E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES: DA ABERTURA DEMOCRÁTICA (ANOS 80) AO BOLSONARISMO (2018-2022) https://doi.org/10.36592/9786554601566-15 Francisca Elizabeth Cristina Araújo Bezerra Carmem Emmanuely Leitão Araújo RESUMO Desigualdades são estruturais, múltiplas e interseccionais, são fontes de resistência e contestação feministas, desde o século XIX, os movimentos feministas são movimentos políticos e organizados que buscam proteção e garantia de direitos materializados, também, via políticas públicas para mulheres. Portanto, o presente artigo objetiva apreender a relação entre os movimentos feministas e o Estado brasileiro no processo de construção de políticas públicas para mulheres. A metodologia adotada é exploratória, descritiva e explicativa, com base em uma pesquisa bibliográfica, com dados secundários (livros, artigos, teses, notícias, ensaios, etc.). Os resultados demonstram as políticas públicas como formas de garantir proteção social e cidadania enquanto investimento do Estado para um desenvolvimento social justo e sustentável; quando específicas, há a incorporação da questão de gênero e mulheres são beneficiárias, formuladoras e/ou executoras. Porém, isso só é possível considerando que vivências e saberes e iniciativas fortaleceram movimentos feministas e de mulheres em sua aproximação com o Estado e em algum nível de institucionalização desses movimentos. Nos anos 80, com a abertura democrática; nos anos 90, entre moldes neoliberais, mecanismos institucionais de mulheres (ministérios, secretarias, conselhos, comissões, comitês e afins) e a transversalidade de gênero às políticas públicas; entre 2003 e 2015, houve aumento na movimentação e desenvolvimento de políticas públicas para mulheres, processos participativos, democráticos e inclusivos; após 2016, com o impeachment da Presidenta Dilma, deslegitimação das mulheres enquanto sujeitos políticos via extinção de políticas e cortes orçamentários; de 2018 a 2022, o Governo Bolsonaro é marcado por retrocessos políticos e institucionais e perseguição moral versus agentes de mudanças que se movimentavam contra ao desmonte. O enfrentamento dessa situação persistente depende da coalizão de forças entre sociedade civil (movimentos sociais gerais, de mulheres e feministas) e Estado. Mesmo diante de um contexto extremamente desafiador, mulheres têm se organizado a partir de grupos, organizações, associações, ativismos e coletivos; trabalhando pautas na busca por fortalecer o reconhecimento, redistribuição e representatividade, que se interligam mutuamente, a fim de estreitar e manter as relações com o Estado para uma agenda solidária que vislumbra justiça social. PALAVRAS - CHAVE: Feminismo. Política Pública. Mulheres. Desigualdade de Gênero. Retrocesso Político. 296 | Gênero, violência e estruturas de poder INTRODUÇÃO As estruturas desiguais que conformam a sociedade são múltiplas, relacionam questões de gênero, classe, raça, sexualidade, geração, entre outras problemáticas que ocupam um lugar enquanto originário de resistência e contestação feministas frente a injustiças materiais e simbólicas - de trabalho e exploração, androcêntricas, desrespeitosas, marginalizadas e excludentes 1 . Tais injustiças interagem e como consequência dessa interação acabam por demarcar fronteiras, subjugando e dominando, estabelecendo e reforçando hierarquias que instituem a produção social, as preferências e as possibilidades, bem como as restrições versus a ampliação de horizontes2. Mulheres, enquanto grupo vulnerabilizado3, vêm se posicionando ao longo da história. Desde o século XIX, os Movimentos Feministas são reconhecidos como movimentos políticos e organizados, com mulheres em diversos pontos do mundo se rebelando contra as opressões mútuas. A organização dos movimentos feministas em períodos, ondas (quatro) - sufragistas e a luta pelo voto; tornar o pessoal como político e desfazer o muro entre esfera pública e privada; a interseccionalidade e o movimento/feminismo negro; e o uso das mídias sociais e digitais e a aproximação ao Estado -, nos dá uma visão histórica do caminho percorrido, da organização das lutas, de quem levanta essas pautas, de como ou se elas se relacionam e onde ocorrem, das conquistas alcançadas, das lutas que ainda serão traçadas4. O conhecimento desses processos assevera a percepção e identificação da negação, negligência e violação de direitos, em diferentes níveis, de forma individual ou coletiva. Para assim estabelecer estratégias que visam à alteração do status quo, no qual grupos privilegiados subalternizam e vulnerabilizam outros, estabelecendo ciclos de desigualdades que podem ser quebrados a partir da tomada de conhecimento, bem como por meio da redistribuição, reconhecimento e 1 Fraser, 2003; 2006. Biroli, 2013. 3 Matta et al, 2021; RBMC, 2021. 4 Marques, 2019; Hanisch, 2022; Beauvour, 1967; Davis, 2019; Gonzalez, 2020; Cochrane, 2013; Paradis, 2013; Matos, 2014; Silva, 2019. 2 Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 297 representatividade 5 viabilizados pela instituição e institucionalização de direitos materializados a partir de políticas públicas6. Portanto, o presente artigo objetiva apreender a relação entre o Movimento Feminista e o Estado brasileiro no processo de construção de políticas públicas para mulheres. Em específico, buscamos apontar em meio às ondas e que marcam as trajetórias históricas dos feminismos e da instituição de políticas públicas para mulheres; apresentar as articulações, reivindicações e conquistas; e analisar a relação entre os movimentos feministas e o Estado, como também o potencial de intervir nos processos de construção de Políticas Púbicas para mulheres. Na busca por maior conhecimento e entendimento sobre essas questões, foi selecionada como metodologia o uso de pesquisa bibliográfica, com dados secundários, por se realizar com base em registros disponíveis de pesquisas já realizadas (livros, artigos, teses, notícias, ensaios, etc.), definidos pelos temas estudados e áreas nas quais os trabalhos se situam7. Com isso, para além da Introdução, o presente artigo está divido em duas sessões: a primeira com foco na conceituação de políticas públicas e políticas públicas de gênero com foco em mulheres; e a segunda abordando a historicidade dos movimentos feministas em suas ondas e os direitos conquistas por e para mulheres dos anos 80 (ao longo da abertura democrática que representa a transição do fim da ditadura militar para o regime democrático) ao Governo Bolsonaro (20182022). Trajeto que oportuniza elaborar considerações que relacionam a coalizam de formas nesses processos que não são ou estão acabados; mas contínuos, entre direitos ainda não garantidos e novas demandas que venham a surgir 1 POLÍTICA PÚBLICA E POLÍTICA PÚBLICA DE GÊNERO A invisibilidade da mulher, ou melhor, torná-la visível, “foi o grande objetivo das estudiosas feministas... a segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como consequência a sua ampla invisibilidade 5 Fraser, 2006. Menicucci, 2018, pág. 19. 7 Severino, 2013. 6 298 | Gênero, violência e estruturas de poder como sujeito”8. Assim, ser mulher em diferentes contextos é equilibrar-se em meio aos seus desafios e oportunidades (também imbricadas por desafios), desde a sobrevivência/subsistência diária, na produção do conhecimento e na busca por interferir nas decisões relacionadas garantia de direitos, logo, a constituição de políticas públicas que compreendam e estejam de acordo às necessidades das mulheres. As políticas públicas representam formas de o Estado garantir proteção frente à riscos sociais e com isso promover o bem-estar das pessoas, com o incremento dos sistemas de proteção social, essas políticas assumiram um lugar intrinsecamente ligado à cidadania, “são vistas como investimento e produtoras de um desenvolvimento mais justo e sustentável”9. A autora supracitada, descreve grupos de políticas sociais, nos quais as formas de ações estão classificadas com base em seus objetivos, políticas e os grupos os quais abrangem. São especificamente três grupos: Proteção social: previdência social, saúde, assistência social e seguro desemprego; Promoção social: educação, cultura, qualificação profissional, agricultura familiar, habitação, mobilidade urbana, etc. Transversais – inclusão, proteção e promoção social: gênero, raça, jovens, idosos, etc. São consideradas reparadoras e afirmativas Nancy Fraser, teórica feminista, na busca por desenvolver uma teoria que especificasse as desigualdades e as opressões e formas de consertá-las/mitigá-las, com o intuito de desfazer a contraposição público x privado e refundar uma teoria democrática e de justiça social 10 , argumenta sobre grupos que precisam da redistribuição, outros do reconhecimento e outros que demandam os dois, denominadas como ambivalentes, para assim atender suas demandas e alcançar justiça social; para esse redistributivos/transformativos alcance a e reconhecimento/afirmativos para correção/ de teórica discorre sobre remédios compensação de seus déficits11 A autora em questão explica que os remédios para injustiças econômicas levam à reestruturação político-econômica por meio da Redistribuição (Ex.: Classe); 8 Louro, 1997, Pág. 17. Menicucci, 2018, pág. 19. 10 Matos, 2008. 11 Fraser, 2006. 9 Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 299 já para as injustiças culturais se faz necessária uma mudança cultural ou simbólica por meio do Reconhecimento (Ex.: Sexualidade); e nas coletividades intermediárias, bivalentes, elas são hibridas, o que faz com que surjam injustiças na economia, política e cultura, exigindo assim os dois remédios (Ex.: Gênero e Raça). Ao reavaliar/reconsiderar sua proposta, parte para um sistema tridimensional, acrescenta a representação (dimensão político-representativa, condição para o alcance das demais dimensões), considera que chega a um sistema que une uma visão multidimensional ao monismo normativo para atender a formas de justiças não típicas, que denomina como justiça abnormal, em um mundo globalizado12. Os grupos de políticas especificados por Telma Menicucci 13 relacionam-se com a teoria proposta por Nancy Fraser. Por meio da redistribuição, reconhecimento e representatividade políticas públicas são construídas ao mesmo tempo que representam as conquistas decorrentes das reivindicações de determinados grupos organizados, dentre eles, dos movimentos feministas, que são incorporadas enquanto legislações e que garantem acesso a direitos, serviços, benefícios e outras garantias nas áreas de violência, saúde, direitos sexuais e reprodutivos, educação, sexualidade, emprego e renda, política, etc. Há autores que usam a denominação de políticas públicas de gênero para ser referir a Políticas sociais que incorporam a questão de gênero, o que pode ocorrer com políticas voltadas exclusivamente para as mulheres, ou com políticas mais gerais que incluem as mulheres como beneficiárias em potencial, como é o caso de algumas políticas de combate à pobreza [...] ou pode ser um modelo no qual as mulheres são além de beneficiárias, formuladoras e executoras, ou seja, assumem um papel de sujeito no processo de formulação e implementação14 Para Flávia Biroli e Débora Quintela15, a pauta de gênero, a depender a forma como é abordada, pode vir a restringir direitos (quando moralista) e ajustar políticas públicas, pois, ao considerar as ideologias conservadoras, a divisão sexual do 12 Matos, 2008. Menicucci, 2018. 14 Nascimento, 2016, Pág. 319. 15 Biroli; Quintela, 2021. 13 300 | Gênero, violência e estruturas de poder trabalho é o que gera a sobrecarga para mulheres, o controle e regulação sobre seus corpos e desejos, buscando promover uma socialização que reforça papéis tradicionais. Por certo, vivências e saberes e iniciativas fortaleceram os movimentos em sua aproximação com o Estado, nas interações. Pois para que suas demandas fossem e sejam traduzidas enquanto legislações e consequentemente políticas política, se faz necessário algum nível de institucionalização desses movimentos16. 2 FEMINISMOS, ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES Para entender as particularidades dos movimentos feministas, deve-se considerar a história dos movimentos e os processos de luta que produzem e reproduzem uma reflexão crítica própria, relacionando militância e teoria (processo raro), com base na particularidade de quem impulsiona a luta17. Em suas trajetórias, desde o século XIX, pautas se destacaram em períodos específicos (ondas), desde as sufragistas e a luta pelo voto (1ª onda) 18 ; a busca por tornar o pessoal como político e desfazer o muro entre esfera pública e privada (2ª onda)19; a reivindicação pelo reconhecimento identitário, a intersecionalidade entre opressões, com destaque para o movimento punk, mas principalmente, a relevância de feministas ligadas ao movimento/feminismo negro (3º onda)20; e a tomada do espaço virtual como meio e estratégia de mobilização, articulação e propagação de ideias/pautas feministas e a aproximação junto ao Estado, conquistando espaço e influenciando na institucionalização de suas reivindicações (4ª onda)21. Os movimentos feministas, na quarta onda (em andamento), não olham (não mais) para uma versão genérica e universal do ser mulher, olham para sua pluralidade, sua diversidade, reconhecem em si e abraçam as lutas e desigualdades acima mencionadas. Pois a luta contra opressões que se intersecionam, adapta-se às condições de luta e desenvolve novas 16 Sanchez, 2021. Pinto, 2012. 18 Marques, 2019. 19 Hanisch, 2022; Beauvour, 1967 20 Davis, 2019; Gonzalez, 2020. 21 Cochrane, 2013; Paradis, 2013; Matos, 2014. 17 Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 301 estratégias para conquistar direitos que possam vir a atender às necessidades das mulheres e com isso construir uma sociedade orientada por justiça social22. 2.1. ANOS 80 - ABERTURA DEMOCRÁTICA Desde os anos 70 os movimentos feministas fizeram pressão e se opuseram à Ditadura Militar. Nos anos 80, em sua abertura democrática, foi oportunizada a interlocução e penetração no aparelho estatal e os movimentos feministas alcançaram conquistas como conselhos, delegacias, programas de saúde e igualdade formal23, a exemplo: 1984 - criação do programa de assistência integral à saúde da mulher (PAISM) - para assegurar direitos sexuais e reprodutivos; 1985 criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DEAM) em São Paulo; 1985 criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), vinculado ao ministério da justiça e o Fundo Especial dos Direitos da Mulher; 1985 - CNDM lança campanha Mulher e Constituinte: “constituinte para valer tem que ter palavra de mulher”; 1986 - Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes e Lobby do Batom; 1987 - abertura da Assembleia Nacional Constituinte, 26 mulheres eleitas deputadas constituintes; 1988 - CF e igualdade formal de direitos, licença maternidade e paternidade, planejamento familiar, contracepção; e o aborto que continua em pauta, mantido, ainda, somente em caso de estupro e risco de vida24. No Brasil, tudo acontece em meio à crise política, ao processo de golpe que levou à Ditadura Militar, de restrições de direitos no geral, porém a luta feminista não parou. Entre os anos 80 e 90 do século XX - Lélia Gonzalez, Filósofa, antropóloga, professora, escritora, militante do movimento negro e feminista, suas publicações vão de 1979 a 1994 (maior concentração nos anos 80), analisa como o capitalismo, população relativa, exército industrial de reserva; de como mulheres e negros foram drasticamente afetados por esses processos, tendo um baixo nível de participação como força de trabalho, e quando participam, em acentuado grau de exploração, perpetuados ao longo do tempo e percebidos numa discriminação de ocupação25. 22 Cochrane, 2013; Paradis, 2013; Matos, 2014. Pitanguy, 2008. 24 Fundação FHC, 2020 25 Gonzalez, 2020. 23 302 | Gênero, violência e estruturas de poder 2.2. ANOS 90 - MOLDES LIBERAIS E POLÍTICAS PONTUAIS Nos anos 90, mesmo nos moldes neoliberais de políticas pontuais, focais e fragilizadas 26 , emergem os mecanismos institucionais de mulheres (ministérios, secretarias, conselhos, comissões, comitês e afins) e, nesse sentido, foram e continuam sendo “catalisadores de demandas”, possibilitando a inserção e o relacionamento de movimentos de mulheres (e outras populações vulnerabilizadas já mencionadas), organizações não governamentais, redes feministas e coletivos nas instituições estatais, levantando a discussão sobre transversalidade de gênero na construção e implementação de políticas públicas27. Entre os marcos da década de 1990, podemos citar: Esvaziamento do CNDM no governo Collor (1990-1992), corte de recursos humanos e financeiros, assume caráter apenas consultivo; 1992 a 1993 - CPI da esterilização; 1993 - Declaração pela liberdade reprodutiva das mulheres, declaração de itapecerica da serra (geledes, 1993) (levou a programas como PNAISM em 2004); 1994 - Convenção de Belém do Pará - para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, referência para lei maria da penha; 1995 - CNDM volta à ativa (início do governo FHC); 1995 - lei estabelece cotas para as mulheres nas eleições (20%); ampliada para 30% em 1997; 1996 - lei 9.263 - lei do planejamento familiar (concepção e contracepção, laqueadura, vasectomia, pré-natal, parto, puerpério, neonatal); 1996 - Programa nacional de prevenção e combate à violência contra a mulher; 1997 - Programa viva mulher - prevenção do câncer do colo de útero; 1999 - Padronização do atendimento de mulheres em situação de violência sexual, via norma técnica (ampliada em 2004 para atenção humanizada ao abortamento)28. 26 Cisne; Gurgel, 2008. Paradis, 2013; Matos, 2014. 28 Fundação FHC, 2020 27 Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 303 2.3. ANOS 2000 - MOVIMENTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES (2003-2015) No início dos anos 2000 ocorreu a 1ª Marcha das Margaridas, com 20 mil trabalhadoras rurais em Brasília, contra fome, pobreza e violência sexista; também em 2000, Ellen Gracie Northfleet foi nomeada ministra do STF e no ano seguinte (2001) foi instituída a lei 10.224 que tipifica e penaliza o assédio sexual. Destacamos ainda que como reflexo das mudanças sociais ocorridas nos anos 80 foi aprovado o novo código civil em 2002, seguido da criação da secretaria de estado dos direitos da mulher (Sedim) como resposta aos movimentos de mulheres, ligadas ao ministério da justiça; e, antecedendo a lei Maria da Penha, foi instituída medida cautelar em casos de violência doméstica com a lei 10.455/200229. Até 2010 podemos citar: 2003 - criada a Secretaria Especial de Políticas para mulheres ligada diretamente à presidência com status de ministério, lançamento do Programa Bolsa Família e instituição da notificação compulsória nos serviços de saúde em casos de violência (Lei 10.778/2003); 2004 - violência doméstica entra no código penal, atualização da PAISM e instituição da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) abrange questão de gênero, racial e diversidade e 1ª conferência nacional de políticas para mulheres (CNPM); 2005 - 1º plano de políticas para mulheres (ao todo são três planos: de 2005 a 2008, de 2008 a 2011 e 2013 a 2015 o terceiro), 2005 - é instituída a lei 11.10/2005 para que gestantes possam ser acompanhadas no parto e apresentação do anteprojeto de descriminalização do aborto; 2006 - lei maria da penha; e 2007 - reação contra o aborto no congresso e proposta do estatuto do nasciturno, instituição do Pacto nacional pelo enfrentamento à violência contra a mulher que permite a formação de redes de atendimento e 2ª conferência nacional de políticas para mulheres (CNPM)30. A década de 2010 atravessa o governo Dilma (2011 a 2016), primeira presidenta do Brasil, no qual podemos destacar que seu mandato teve o maior número de ministras mulheres da história do País 31 . Também ocorreu: 2011 - 29 Fundação FHC, 2020 Fundação FHC, 2020 31 Fagundez, Mendonça, 2016 30 304 | Gênero, violência e estruturas de poder primeira marcha das vadias no mundo (canadá) e Brasil (São paulo) e 3ª conferência nacional de políticas para mulheres (CNPM); 2012 - ocorre a legalização do aborto de anencéfalos; 2013 - criação do programa mulher: viver sem violência (lançado pela secretaria especial de políticas para mulheres), PEC das domésticas aprovada; jornadas de junho e instituição da Lei 12.845/2013 sobre atendimento obrigatório de mulheres em situação de violência sexual pelo SUS; 2015 - construção da 1ª casa da mulher brasileira (espaço com diferentes serviços), lei do feminicídio (13.104/2015) e marcha das mulheres negras (30 mil pessoas em Brasília contra: racismo, violência e pelo bem viver); também foi entregue carta das mulheres negras à presidenta32. Por certo, o ativismo de mulheres negras brasileiras avançou no quesito visibilidade nas últimas décadas. Ocorreram mudanças de repertórios, surgimento de novas estratégias, cooperação, novos atores, ideias, ações, questionamentos sobre o lugar da mulher negra nas estruturas e processos sociais, em meio a uma dinâmica diversa e vozes plurais33. De forma ampla, entre 2003 e 2015, houve aumento na movimentação e desenvolvimento de políticas públicas para mulheres, processos populares participativos, envolvendo e desenvolvendo “rede de políticas públicas de reconhecimento, antidiscriminatórias e de inclusão democrática”34. Esse período que abrange os governos petistas (Lula e Dilma Rousseff), como evidenciados nos parágrafos anteriores, ocorreu o fortalecimento da secretaria de políticas públicas para mulheres, maior cooperação com o movimento de mulheres, representando êxito para os movimentos feministas35 através da institucionalização de suas pautas via programas, projetos, legislações e afins. Não restrito às mulheres, ocorreu também maior abertura para participação dentro e fora da estrutura estatal, que incluía mulheres, negros e LGBTQIA+, somado à intensificação de seus movimentos que buscam direitos e superação de desigualdades36. 32 Fundação FHC, 2020 Rodrigues, Freitas, 2021., 34 Campos, 2017, pág. 50. 35 Bohn, 2010. 36 Perez; Ricoldi, 2018. 33 Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 305 Dessa forma, faz-se relevante ratificar como as quatro Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres (CNMP), representam grandes marcos para a garantia de direitos das mulheres; pois: na 1ª CNPM (2003) foi discutido o desafio para a igualdade na perspectiva de gênero, a fim de propor diretrizes para um plano nacional e sua consequente ao presidente; a 2ª CNPM (2007) analisou a realidade nacional, os desafios para implantação do plano nacional idealizado na conferência anterior, avaliando ações, princípios e diretrizes já estabelecidos e reforçando a relevância da participação das mulheres nos espaços de poder; a 3ª CNPM (2011) teve como tema “a importância da autonomia para a igualdade das mulheres”, ratificando a discussão sobre políticas com esse fim nos domínios econômico, social, cultural e político; e na 4ª CNPM (2016) foram reivindicados “mais direitos, participação e poder para as mulheres”, para fortalecer a Política Nacional para Mulheres e garantir qualificação, controle social, informações e ações capilarizadas nas esferas nacional, estadual e municipal. Além dos avanços na representação de grupos tradicionais (indígenas, quilombolas, de matriz africana, ciganas e pessoas com deficiência)37. Nesse período que abrange as últimas duas conferências, o ativismo digital se fez presente, transitando do ambiente virtual ao presencial, como a primeira edição da Marcha das Vadias (2011), as Jornadas de Junho (2013) e a “primavera feminista1” que envolveram coletivos com pautas feministas, antirracistas, anticlassistas e ampliação dos direitos para a população LGBTQIA+38. Foi a partir da década de 90, que os movimentos feministas já vinham ganhando um novo contorno político, com redes de atuação e base na comunicação de massa e tecnologias39 em meio a 4ª onda feminista. Mas teóricas nacionais como Marlise Matos 40 , mostram que essa onda foi/vai/está além disso, abordam uma relação mais direta com o Estado, participação social e políticas públicas e a internet/tecnologia acaba por ser um meio e não a característica central das lutas travadas e conquistas já alcançadas até aqui. 37 Matos; Lins, 2018. Perez; Ricoldi, 2018; Oliveira, Otto, 2019. 39 Matos, 2014. 40 Matos, 2014. 38 306 | Gênero, violência e estruturas de poder Entre lutas iniciadas, denúncias feitas e conquistas alcançadas desde o início do ano 2000, nacionais e internacionais; algumas manifestações aqui mencionadas são exemplos e não a totalidade do que já ocorreu na constante da 4ª onda. Podemos considerar que a quarta onda segue seu percurso, sua presença na América Latina, envolve um feminismo estatal mais participativo41. 2.4. ANOS 2000 - GOLPE, RETROCESSOS DEMOCRÁTICOS E BOLSONARIMOS (2016 a 2022) Entre 2016 e 2017, o golpe que levou ao impeachment da presidenta Dilma coincidindo com a 4ºCNPM e essas mobilizações contra as violências que afligem mulheres contrariam pautas debatidas e reivindicações realizadas até o momento. A situação se agrava com “a extinção de secretarias e ministérios às quais estavam vinculadas as políticas para mulheres [...] cortes orçamentários ou deslegitimação progressiva das mulheres enquanto sujeitos políticos” 42 no ano de 2017, com a extinção do ministério das mulheres, igualdade racial e DH e competências transferidas para o ministério da justiça e cidadania. Podemos exemplificar que entre 2016 a 2018 (governo Temer foi um período de redução de orçamento para políticas para mulheres que chegou a mais de 60% e perda de cargos de mulheres feministas no governo; além do fato que 2018 foi um ano marcado pelo assassinato de Mariele Franco. Contudo, mesmo diante dos retrocessos, timidamente foi lançada a campanha “você tem voz” - pela eliminação da violência contra a mulher, instituição da lei 9.586/2018 que cria o sistema nacional de políticas para as mulheres (Sinapom) que integra políticas de todos os entes e a criação do plano nacional de combate à violência doméstica (PNaVID) envolvendo diversas áreas43. Os resquícios dos descompassos do Governo Bolsonaro antecederam à pandemia da Covid-19, isso é fato, os diferentes diagnósticos apontaram que “o período foi marcado pelo retrocesso político e institucional”44. No início do mandato 41 Paradis, 2013. Campos, 2017. 43 Fundação FHC, 2020 44 Avritzer; Kerche; Marona, 2021, pág. 09. 42 Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 307 foi perceptível que “Jair Bolsonaro chegou à presidência não como um líder político, e, sim, como um líder de um movimento capaz de destruir políticas e políticos”45, com uma atuação anti-institucional, fora dos padrões liberais, do conservadorismo, de qualquer forma de governo. Fala-se em “calamidade triunfal”46 para se referir a um governo negacionista em múltiplos sentidos, que conjugou diversas crises e o projeto de desconstrução bolsonarista que relacionou: política externa rudimentar, agenda neoliberal forçada, descaso com meio ambiente, desmonte da saúde, desestruturação da educação, desregulação trabalhista e previdenciária, insegurança pública, conflitos ideológicos e conservadorismo moral compensatório, tentativa de desvalorização da democracia via autoritarismo e inviabilização dos movimentos sociais47. É sabido que políticas públicas no geral devem considerar a diversidade da população, como políticas públicas para mulheres devem considerar as opressões que as impactam de forma interseccional; contudo, ocorreram ações pontuais, isoladas e sem continuidade, discursos vagos que vão na contramão de políticas públicas para as mulheres transversais, intersetoriais c comprometidas com a garantia de direitos e proteção social das mulheres48. No geral, o período de 2018 a 2022, com o agravamento do desmonte que já vinha ocorrendo no que se refere ao cuidado e proteção social do Estado para com as mulheres e demais pautas de gênero, a tragédia parecia anunciada, ao considerarmos as múltiplas crises que atravessaram um país já atravessado por uma desigualdade crônica 49 podemos agregar a perspectiva interseccional citada anteriormente e nos referirmos a uma calamidade interseccional que triunfa penalizando mulheres e outros grupos vulnerabilizados. As estruturas construídas pelas feministas nos últimos anos (décadas) foram movidas e/ou alteradas; desde 2018, a partir do governo Bolsonaro, os movimentos vêm sofrendo e enfrentando uma perseguição moral 50 associada a um 45 Avritzer, 2021, pág. 13-14. Musse, 2021. 47 Musse, 2021; Lopes, 2021; Dweck, 2021; Abrucio, 2021; Hochstetler, 2021; Oliveira; Fernandez, 2021; Guerra; Camargos, 2021; Ribeiro; Oliveira, 2021; Biroli; Quintela, 2021; Szwako; Lavalle, 2021. 48 Tokarski et al, 2023. 49 Satyro, 2021. 50 Belançon, 2019. 46 308 | Gênero, violência e estruturas de poder comportamento antifeminista (backlash) que vem despontando 51 . Contudo, nem tudo pode ser desmontado, ao considerarmos os agentes de mudanças envolvidos dentro (femocratas/ativistas institucionais – chefes, inclusas em outros caros ou atuantes nos mecanismos de políticas públicas para mulheres) e fora do Estado, que se movimentam na contramão do desmonte52. Pois, apesar dos (ainda) altos níveis de desigualdades de gênero, o enfrentamento dessa situação persistente “depende de uma coalizão de forças entre sociedade civil e Estado, através da ação dos movimentos sociais e políticas públicas de gênero eficazes” 53 e os movimentos feministas permanecem resistindo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Da luta pelos direitos das mulheres para o desmembramento do que se categoriza como mulheres, os feminismos em suas histórias, a cada passo e, principalmente, na contemporaneidade, estruturam-se a partir de vozes plurais, de forma inédita. Um movimento heterogêneo, que se desdobra em movimentos, que congregam diferentes correntes de pensamento, nos quais o diálogo torna-se essencial para interligar lutas, pensar em conjunto, respeitar diferenças e buscar alterar quadros de injustiças sociais. O caminho percorrido (até aqui e em sua continuidade) pelas mulheres, desafios e conquistas ao longo das ondulações dos movimentos feministas são estruturadas a partir da percepção da realidade, da sistematização e construção do conhecimento que fundamentaram projetos de leis e construção de políticas públicas (planos, programas, projetos e serviços). Nos últimos anos, as políticas públicas e sociais no Brasil vêm sofrendo um desmonte considerável, decisões e ações que contribuíram para a atual situação são anteriores a 2018, porém, o Governo Bolsonaro (2018-2022) agiu de modo a agravar ainda mais a situação de populações vulnerabilizadas, enquanto vulnerabilizou 51 Belançon, 2020. Belançon, 2020. 53 Nascimento, 2016, pág. 334. 52 Francisca Elizabeth C. A. Bezerra; Carmem Emmanuely L. Araújo | 309 outras, um governo marcado por retrocesso político e democrático e degradação política e institucional54, uma calamidade interseccional. Por certo, ainda é imprescindível considerar que a mudança de governo não exclui a coalização de forças entre sociedade civil e Estado e, também, dentro desses. Logo, a busca por uma “agenda solidária”55 que supere e/ou venha a mitigar desigualdades via efetivação de políticas de gênero eficazes não está isenta de desafios. Sem embargos, é nesse contexto que movimentos feministas e de mulheres continuam se organizando com pautas diversas na busca pelo reconhecimento, redistribuição e representatividade 56 de mulheres plurais e interligadas mutuamente a fim de estreitar e manter relações com o Estado visando a manutenção e conquista de direitos que assegurem justiça social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRUCIO, Fernando Luiz. Bolsonarismo e educação: quando a meta é desconstruir uma política pública. 2021. In. AVRITZER, Leonardo; KERCHE, Fábio; MARONA, Marjorie (Orgs.). Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. 1º ed. Belo Horizonte. Autêntica. 2021. 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Pimenta et al, 2021. 56 Fraser, 2003; 2006. 55 310 | Gênero, violência e estruturas de poder Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Ciencias Sociais, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Maringá, PR, 2020. BIROLI, Flávia. Autonomia e Desigualdade de Gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática. Editora Horizonte. Vinhedo – SP. 2013 BIROLI, Flávia. QUINTELA, Débora Françolin. Mulheres e Direitos Humanos: sob a ideologia da defesa da família. 2021. In.: AVRITZER, Leonardo; KERCHE, Fábio; MARONA, Marjorie (Orgs.). Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política 1ª ed. Belo Horizonte. Autêntica, 2021 BOHN, Simone R. Feminismo estatal sob a presidência lula: O caso da secretaria de políticas para as mulheres. Revista Debates, Porto Alegre, v.4, n.2, p. 81-106, jul.dez. 2010 CAMPOS, Mariana de Lima. 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Professora Adjunta no Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (DSC/FAMED/UFC) onde coordena o Internato em Saúde Coletiva. Coordena o Núcleo de Saúde Coletiva da UFC (NESC/UFC) e o grupo de pesquisa Observatório de Políticas Públicas de Saúde (OPP-Saúde/UFC). É professora permanente do colegiado do Programa de Pósgraduação em Saúde Pública (PPGSP/UFC) desde 2019. Coordenadora do PPGSP/UFC no período 2020-2021 e 2021-2023. Sobre o artigo Esse artigo foi organizado a partir da pesquisa (defesa para o segundo trimestre de 2024) de mestrado da autora, desenvolvida sob orientação da coautora. Faz referência a um recorte da construção histórica e revisão de literatura de uma pesquisa mais ampla que relaciona saúde coletiva, desigualdade de gênero, mulheres na ciência, movimentos feministas e de mulheres e políticas públicas para mulheres. 16. A VALORAÇÃO DA PROVA NO JULGAMENTO DE CRIMES DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO: O TENSIONAMENTO ENTRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA E O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REU https://doi.org/10.36592/9786554601566-16 Romana Leite Vieira1 RESUMO O papel da vítima no processo penal de persecução de crimes de violência de gênero gera inquietações. Com efeito, trata-se de um processo voltado ao dever de punir do Estado, contudo atinge diretamente as partes envolvidas, vez que as consequências da pena, em caso de condenação, podem interferir diretamente na dinâmica do lar. Por essa razão, as relações íntimas de afeto, o círculo de violência, o pensamento patriarcal e a possível dependência econômica e socioemocional da vítima podem interferir em seu depoimento, levando-a a alterar a verdade dos fatos, a fim de que não haja a condenação do acusado. No mesmo sentido, caso apenas haja o depoimento da vítima como elemento probatório, em razão de a atividade criminosa haver ocorrido dentro do domicílio, sem testemunhas, em crimes que não deixem vestígios, surge suposto tensionamento entre a palavra da vítima e princípio da presunção de inocência. Todas essas questões fazem parte de um problema maior que se resume em como dar concretude à dignidade das mulheres vítimas de violência de gênero, sem tolher as garantias processuais inerentes à defesa do acusado. Na presente pesquisa foi utilizado o método indutivo, através de uma abordagem qualitativa, de natureza aplicada, com objetivo exploratório, descritivo e explicativo, utilizando-se como procedimento a pesquisa bibliográfica e documental. Palavras-chave: Violência de gênero. Provas. Presunção de inocência. ABSTRACT The role of the victim in the criminal process of prosecution of crimes of gender violence generates concerns. In fact, it is a process aimed at the duty of the State to punish, however it directly affects the parties involved, since the consequences of the penalty, in case of conviction, can directly interfere in the dynamics of the home. The intimate relationships of affection, the circle of violence, patriarchal thinking and the possible economic and socio-emotional dependence of the victim can interfere in his testimony, leading her to alter the truth of the facts, so that there is no condemnation of the accused. In the same sense, if there is only the testimony of the victim as an evidentiary element, because the criminal activity occurred inside the home, without witnesses, in crimes that leave no trace, there is a supposed tension between the 1 Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS. Mestre em Direito e Gestão de Conflitos pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), 2022. Especialista em Direito e Processo Constitucional pela ESMEC - Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC), 2017. Especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), 2022. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), 2022. Atualmente é Promotora de Justiça do Estado do Piauí, titular da 8ª Promotoria de Justiça de Picos. 316 | Gênero, violência e estruturas de poder word of the victim and the principle of the presumption of innocence. All these issues are part of a larger problem that boils down to how to give concreteness to the dignity of women victims of gender violence, without hindering the procedural guarantees inherent in the defense of the accused. The inductive method was used, through a qualitative approach, of applied nature, with exploratory, descriptive and explanatory objective, using as procedure the bibliographical and documentary research. Keywords: Gender violence. Evidence. Presumption of innocence. 1 Introdução A pesquisa que ora se propõe visa analisar o tensionamento entre a presunção de inocência e a proteção à mulher vítima de violência de gênero, dentro do processo penal, especificamente quanto ao valor probatório do depoimento da ofendida, quando não há outros elementos de prova. O papel da vítima no processo penal de persecução de crimes de violência de gênero gera inquietações. Com efeito, trata-se de um processo voltado ao dever de punir do Estado, contudo atinge diretamente as partes envolvidas, vez que as consequências da pena, em caso de condenação, podem interferir diretamente na dinâmica do lar. Exemplifica-se: no caso de o agressor ser o provedor da família, eventual prisão preventiva ou até mesmo o cumprimento de pena definitiva, pode prejudicar a manutenção da companheira e dos filhos. Esse fator, agregado às relações íntimas de afeto, ao círculo de violência, ao pensamento patriarcal e à possível dependência socioemocional da vítima podem interferir em seu depoimento, levando-a a alterar a verdade dos fatos, a fim de que não haja a condenação do acusado. Por outro lado, caso apenas haja o depoimento da vítima como elemento probatório, em razão de a atividade criminosa haver ocorrido dentro do domicílio, sem testemunhas, em crimes que não deixem vestígios, prevalecerá qual versão? Nesse momento o princípio da presunção de inocência terá preponderância sobre a eventual vulnerabilidade da vítima? Até que ponto o julgador poderá valorar esse tipo de prova contra o acusado? Essas são as principais indagações que surgem, e desdobram-se em outras: a insuficiência instrutória do inquérito policial em razão da falta de estrutura e Romana Leite Vieira | 317 recursos humanos nas delegacias de polícia civil, falta de articulação da rede de apoio à mulher vítima de violência de gênero, ausência de sensibilidade dos operadores de direito quanto à temática de gênero – em que pese a inciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em criar um protocolo para mudança dessa visão –, medo de eventuais testemunhas em depor, por ainda entenderem se tratar de um “problema familiar”. Todas essas questões fazem parte de um problema maior que se resume em como dar concretude à dignidade das mulheres vítimas de violência de gênero, sem tolher as garantias processuais inerentes à defesa do acusado. No presente trabalho foi utilizado o método indutivo, através de uma abordagem qualitativa, de natureza aplicada, com objetivo exploratório, descritivo e explicativo, utilizando-se como procedimento a pesquisa bibliográfica e documental. 2 Desenvolvimento O processo penal é regido por regras e valores constitucionais que visam orientar a persecução penal dentro do Estado Democrático de Direito. Previstos primordialmente no artigo 5º da Constituição Federal (1988), congregam princípios como a presunção de inocência, o contraditório, ampla defesa, legalidade, inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e do domicílio, a anterioridade da lei penal e a irretroatividade da lei penal, vedação de penas degradantes ou de morte, dentre outros. Consoante GIACOMOLLI: [...] o nível constitucional normatiza, delimita e exige o processo devido. Como base principiológica da qual emanam todos os princípios e garantias constitucionais (princípio-garantia), o devido processo fornece um modelo constitucional de processo penal.2 Todo esse arcabouço constitucional reflete e direciona a interpretação do Código de Processo Penal, o qual é aplicado indiscriminadamente aos tipos penais, 2 GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2016, p. 95. 318 | Gênero, violência e estruturas de poder salvo um ou outro regramento próprio (como a Lei de Drogas ou rito do Tribunal do Júri, por exemplo). Nesse contexto generalista se encontram os crimes resultantes de violência de gênero. A violência contra a mulher, ao contrário de outras criminalidades, encontra especificidades que merecem destaque 3 : a relação de afeto, a convivência, a existência de filhos, a possível dependência emocional, financeira, psicológica, a influência da comunidade, e da sociedade como um todo, em razão da forte influência do patriarcado. Como bem ponderou Beauvoir4, a figura da mulher assemelhava-se a um bem, e, mesmo após a revolução industrial, tanto a burguesia quanto a classe trabalhadora ainda exigem “a presença da mulher no lar tanto mais vigorosamente quanto sua emancipação torna-se uma verdadeira ameaça”. Com efeito, o Estado brasileiro por muito tempo adotou a postura patriarcal e paternalista sobre a mulher. A esfera pública foi reservada, ao longo dos séculos, à figura masculina. A mulher era considerada um ser de capacidade limitada que necessitava de proteção da família e do Poder Público. Essa visão restou consubstanciada, por exemplo, no Código Civil de 19165 em que a mulher era tida como relativamente incapaz, assim como os pródigos, os menores de idade e os índios6. Com o advento da Constituição de 1988 7 , a igualdade entre os gêneros é alçada à proteção constitucional, e passa a ser diretriz a ser seguida em todos os âmbitos da vida social. Contudo, o que se observa, especialmente através das lides 3 MONTENEGRO, Marília. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro, Revan, 2020. 4 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. V. 1, p. 19. 5 BRASIL, 1916 - BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 05 jan. 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em: 22 nov. 2022. 6 “Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer: I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156); II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal; III. Os pródigos; IV. Os silvícolas. Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará á medida que se forem adaptando á civilização do paiz”.. 7 BRASIL, 1988 - BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 nov. 2022 Romana Leite Vieira | 319 que aportam no Poder Judiciário, nas delegacias de Polícia Civil e nas promotorias de justiça, é uma realidade diferente. Deveras, o papel do gênero feminino, nos casos em apreço, é subjugado ao lar, aos cuidados com a família. Ademais, os operadores do direito, ao aplicarem a lei, na maioria das vezes, não se atentam as nuances sociais e familiares que são levadas ao processo. O depoimento da vítima e até mesmo de outras testemunhas pode acabar sendo “contaminado” com o intuito de obter a pacificação dentro do lar. Contudo, algo que por muito tempo era considerado assunto privado, passou à esfera pública, e aos cuidados do Estado: a violência de gênero deixou de ser assunto exclusivamente de família, e passou a ser tratado publicamente, inclusive por meio dos instrumentos de persecução penal, após os avanços dos movimentos feministas em todo o mundo. Como exemplos, tem-se o advento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres – CEDM, de 1979, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (BRASIL, 2002), e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica Contra a Mulher, conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, incorporada ao ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto nº 1.973, de 01 de agosto de 1996 8. Dentro desse contexto, foi aprovada em 07 de agosto de 2006, após condenação do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – CIDH/OEA por omissão, negligência e tolerância em relação a crimes contra os direitos humanos das mulheres, em 2001, a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) 9. 8 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA. Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, “Convenção de Belém do Pará”. Belém do Pará, 9 jun. 1994. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em: 13 set. 2022. 9 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 08 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 25 nov. 2022. 320 | Gênero, violência e estruturas de poder Ao longo dos anos, as instituições foram se aperfeiçoando, a fim de melhor conduzir o processo penal na área de proteção à mulher: foram criadas as delegacias especializadas de atendimento à mulher, os juizados especiais, a Casa da Mulher Brasileira, dentre outros aparatos. Contudo, as regras processuais permaneceram as mesmas; focadas nos princípios constitucionais já elencados. Tem-se que na relação Estado-acusado, a parte processada é a mais vulnerável, motivo pelo qual carece de maior proteção frente ao poderio estatal. Entretanto, os instrumentos normativos que surgiram visando à proteção do gênero feminino costumam ir além da mera punição do agressor. Com efeito, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres – CEDM (BRASIL, 2002) compreende diferentes alçadas: direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos. A Lei n. 11.340/0610, conhecida como Lei Maria da Penha, possui natureza mista porque reúne institutos não apenas penais, como também cíveis, assistenciais e administrativos. Todo esse cuidado, porém, não encontra ressonância nas normas processuais penais. Isso porque a vítima, como dito anteriormente, não é protagonista do processo que interfere diretamente na sua vida. Apenas é tratada como meio de prova – prova essa comum, submetida ao contraditório, ampla defesa e que deve guardar ressonância com o acervo probatório. Quando o relato da vítima é isolado, aplica-se o princípio in dubio pro reu, vez que “o grau de potencialidade do estado de inocência afasta qualquer juízo condenatório lastreado em supedâneo probatório insuficiente”11. Com efeito, a vítima aparece apenas como meio de prova – não é sujeita processual. O objetivo do processo resume-se no exercício do poder punitivo do Estado. Contudo, essa visão tem se alterado ao longo dos anos diante do movimento conhecido como “redescoberta ou movimento vitimológico”, segundo o qual: 10 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 08 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 25 nov. 2022. 11 GIACOMOLLI, op. cit., p. 119. Romana Leite Vieira | 321 [...] a Dignidade da Pessoa Humana não pode ser entendida de modo estanque nem atribuível, em processo penal, a apenas um dos envolvidos do caso penal, o acusado, sob pena de se incorrer em grave injustiça, deixando a vítima ao desamparo e com sua dignidade exposta e vilipendiada12. O papel da vítima na persecução penal encontra três fases ao longo da história: a) a fase da justiça privada, que vigorava a vingança; b) a fase dos estados modernos, em que a jurisdição passou para a figura do monarca – a violação não era mais contra a vítima, mas sim contra o Estado; c) após a Segunda Guerra Mundial, surge a fase de redescobrimento da vítima, na qual a vítima deixa de ser simples coadjuvante para ocupar o papel de também protagonista13. A Vitimologia tem como fundador Benjamin Mendelsohn, professor de Criminologia da Universidade Hebraica de Jerusalém, que publicou seu primeiro estudo sistemático sobre o tema em 1940 (Giustiza Penale) 14 . Trata-se de uma ciência desvinculada da criminologia que tem por objeto de estudo a vítima: quem pode ser considerada como tal e como resgatar a sua importância dentro do contexto criminal15. Nessa mesma toada, a Declaração dos Direitos Fundamentais da Vítima, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU em 198516, preconiza que incumbe às instituições administrativas e judiciais melhorar a capacidade de seus serviços: a) Informando as vítimas da sua função e das possibilidades de recurso abertas, das datas e da marcha dos processos e da decisão das suas causas, especialmente quando se trate de crimes graves e quando tenham pedido essas informações; b) Permitindo que as opiniões e as preocupações das vítimas sejam apresentadas e examinadas nas fases adequadas do processo, quando os seus interesses pessoais 12 RODRIGUES, Roger de Melo. A tutela da vítima no processo penal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2014, p. 61. 13 BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 14 RODRIGUES, op.cit. 15 KIST, Fabiana. O valor da vontade da vítima de violência conjugal para a punição do agressor: oficialidade, oportunidade e justiça restaurativa. Leme – SP: JH Mizuno, 2019. 16 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder. 1985. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev29.htm. Acesso em: 20 nov. 2022, s.p. 322 | Gênero, violência e estruturas de poder estejam em causa, sem prejuízo dos direitos da defesa e no quadro do sistema de justiça penal do país; c) Prestando as vítimas a assistência adequada ao longo de todo o processo. Ao se analisar os crimes de gênero, verifica-se esses costumam ocorrer dentro da esfera doméstica, na maioria das vezes sem testemunhas oculares. Em caso de apenas haver a palavra da vítima contra a do agressor, acaba imperando a versão do acusado, sob o arrimo da presunção de inocência. Com efeito: Quando a valoração integral afastar a certeza cognitiva do julgador, produzindo a dúvida razoável, a solução do processo é a absolvição, com a proclamação do humanitário in dubio pro reu, o qual encontra sua potencialidade máxima no momento da valoração da prova 17. Nesse mesmo sentido, assevera Janaína Matida18: Essa mais do que justificada importância da presunção de inocência, contudo, acabaria por produzir o efeito perverso de se deixar impunes aqueles que cometem crimes de natureza sexual ou doméstica? [...] O magistrado terá de reconstruir os fatos tomando como ponto de partida a palavra da vítima. E, para isso, alguns cuidados devem ser tomados, de sorte que a produção e valoração probatórias realizadas sejam conducentes à uma correta determinação dos fatos. Também cabe cuidar para que o anseio por fazer justiça à vítima não acabe por promover decisões tomadas sem observância da presunção de inocência; assumindo mais riscos de condenar inocentes do que o sistema jurídico permite.” Contudo, aplicando-se a lei penal e processual, por meio de uma interpretação restritiva, não é possível entender a realidade por trás do processo. A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06)19, é multidisciplinar, e prevê a atuação multiagencial, de tal 17 GIACOMOLLI, op.cit. MATIDA, Janaina Roland. A determinação dos fatos nos crimes de gênero: entre compromissos epistêmicos e o respeito à presunção da inocência. In: NICOLITT, André; AUGUSTO, Cristiane Brandão (orgs.). Violência de Gênero: temas polêmicos e atuais. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, p. 93. 19 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção 18 Romana Leite Vieira | 323 sorte que se torna imprescindível a atuação de outros profissionais, como psicólogos e assistentes sociais, na gestão dos conflitos de gênero. Com efeito, à vítima cabe o direito de entender e ser compreendida. Nesse jaez, importa também se evitar a revitimização, seja dentro do processo ou fora dele. Isso porque, por se tratar de conflitos interpessoais de natureza subjetiva, a exposição da mulher pode incorrer em danos psicológicos. Na ação penal de crimes de violência de gênero, a ofendida conhece o seu agressor previamente, e comumente desenvolve com ele uma relação de afeto que pode afetar terceiros (filhos, familiares, círculo social). Toda essa dinâmica difere daquela própria de outras criminalidades: nos crimes contra o patrimônio, por exemplo, vítima e acusado não necessitam se conhecer e manter vínculos, para que haja o cometimento do crime; ao contrário dos crimes de violência de gênero, que necessariamente tem como requisito para sua configuração um relacionamento anterior20. A rede de proteção arquitetada em lei, infelizmente, não existe em todas as comarcas do País. Isso porque nem todas as delegacias são especializadas e nem sempre há varas e/ou juizados especializados, quiçá equipados com o núcleo multidisciplinar. Segundo o CNJ21, em 2016 eram 109 o número de varas e juizados exclusivos no País, número que aumentou apenas para 138 em 2020, mais concentrados nas capitais dos estados. Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 08 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 25 nov. 2022. 20 Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. 21 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Relatório: o Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Brasília: IPEA, 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/7b7cb6d9ac9042c8d3e40700b80bf207.pdf. Acesso em: 05 set. 2021. 324 | Gênero, violência e estruturas de poder Tudo isso acrescido à falta de estrutura dos equipamentos de proteção pode fazer com que os processos penais não se iniciem, ou sejam interrompidos sem resultado eficaz. Nos casos de ação penal pública, muitas acabam sendo finalizadas em razão da insuficiência probatória, já que a única prova, a palavra da mulher, não guarda respaldo em outros elementos dos autos, ou até mesmo é modificada, em detrimento à versão apresentada em sede policial. Não havendo processamento ou responsabilização do agressor, nos casos em que realmente houve a agressão, o ciclo de violência pode não ser interrompido, ou ser reiniciado com outra mulher. Diante de tal contexto, há que se verificar as soluções viáveis, já desenvolvidas por outras agências estatais. Em que pese alguns tribunais firmarem o entendimento22 de que a versão da vítima merece ser sopesada em razão da sua vulnerabilidade e do contexto social vivenciado, há que se analisar até que ponto, no dia a dia dos fóruns, a palavra da ofendida pode prevalecer sobre o depoimento do acusado, e a presunção de inocência, haja vista que o ônus probatório da acusação, nesse tipo de ação penal, costuma, segundo entendimento empírico, ser prejudicado em razão da aplicação irrestrita e incondicional do princípio do in dubio pro reu. Nesse ponto, vale destacar que do princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CRFB) emanam duas regras: a regra de tratamento e a regra probatória. Deveras, “a regra de tratamento aduz que o indivíduo deve ser tratado como inocente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” 23 . Já no momento do julgamento, em caso de dúvida relevante, deve o acusado ser beneficiado, e ser 22 "em casos de violência doméstica, a palavra da vítima tem especial relevância, haja vista que em muitos casos ocorrem em situações de clandestinidade" (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Habeas Corpus nº 615.661/MS. Impetrante: Esio Mello Monteiro. Advogado: Esio Mello Monteiro. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Paciente: João Alves Pereira Neto. Relator: Ministro Nefi Cordeiro, 24 de novembro de 2020. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 30 nov. 2020. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?i=1&b=ACOR&livre=((%27HC%27.clap.+e+@num=%2761 5661%27)+ou+(%27HC%27+adj+%27615661%27).suce.)&thesaurus=JURIDICO&fr=veja. Acesso em: 26 nov. 2022.). 23 LEITE, Hebert Soares; PINTO, Felipe Martins. O Princípio da Presunção de Inocência e a impossibilidade de produção de provas ex officio pelo julgador. Presunção de Inocência – Estudos em Homenagem ao Professor Eros Grau. Belo Horizonte: Instituto dos Advogados de Minas Gerais, 2020, p. 126. Romana Leite Vieira | 325 julgado inocente – concretização do princípio in dubio pro reu: “Se o réu é inocente, não precisa provar nada e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição.”24; Parte-se da premissa de que o ônus da prova incumbe exclusivamente a quem acusa: Os princípios democráticos e o modelo constitucional adotado impedem a culpa penal por presunção ou a responsabilidade criminal por suspeita. Nestes exatos termos não podem repercutir em desfavor do acusado situações jurídicas indefinidas, elementos de informação não provados ou juízos prematuros de culpabilidade 25. Voltando-se à condução dos processos de violência de gênero, o Conselho Nacional de Justiça, em 2 de fevereiro de 2021, lançou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Trata-se de um manual, cujo objetivo é reconhecer que a influência do patriarcado, do machismo, do sexismo, do racismo e da homofobia são transversais a todas as áreas do direito, não se restringindo à violência doméstica, e produzem efeitos na sua interpretação e aplicação, inclusive, nas áreas de direito penal, direito do trabalho, tributário, cível, previdenciário etc 26. Trata-se de uma medida inovadora – contudo pouco conhecida pela sociedade e até mesmo pelos próprios magistrados e operadores do direito – , a qual despertou o interesse pelo assunto e levou ao presente estudo. No referido protocolo, no que tange à valoração de provas e identificação de fatos, há esclarecimento quanto à necessidade de se deixar de lado preconceitos de gênero, isso porque “estupro, estupro de vulnerável, violência doméstica são situações nas quais a produção de prova é difícil, visto que, como tratamos na Parte I, Seção 2.d. acima, tendem a ocorrer no ambiente doméstico” 27 . O documento informativo leva os julgadores às seguintes indagações no momento da produção probatória: 24 LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 220. LEITE,; PINTO, op.cit, p. 129. 26 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ, op. cit., p. 8. 27 Ibid., p. 48. 25 326 | Gênero, violência e estruturas de poder Uma prova geralmente considerada relevante poderia ter sido produzida? (ex.: existem circunstâncias que poderiam impedir a produção de provas testemunhais, como medo por parte de testemunhas oculares de prestar depoimento?). Em vista da resposta conferida à primeira questão, é necessário conferir um peso diferente à palavra da vítima? [...] Posso estar ignorando como as dinâmicas de desigualdades estruturais interferem na vida de uma pessoa? Ou seja, é possível que dinâmicas de gênero tornem importantes fatos que, pela minha experiência ou visão de mundo, poderiam parecer irrelevantes? (ex.: uma mulher demorou para denunciar seu ex-marido por violência doméstica por medo de retaliação ou por ser financeiramente dependente?) 28. Tais questionamento encontram ressonância nas condições já apresentadas em que comumente ocorrem os crimes de violência de gênero: vulnerabilidade e hipossuficiência da vítima, influência de familiares e da sociedade, pensamento social patriarcal, dentre outras. Acrescente-se que a palavra da vítima, meio probatório de maior relance nesse tipo de ação penal, segundo o CNJ, deve ser valorada sob uma perspectiva de gênero: Faz parte do julgamento com perspectiva de gênero a alta valoração das declarações da mulher vítima de violência de gênero, não se cogitando de desequilíbrio processual. O peso probatório diferenciado se legitima pela vulnerabilidade e hipossuficiência da ofendida na relação jurídica processual, qualificando-se a atividade jurisdicional, desenvolvida nesses moldes, como imparcial e de acordo com o aspecto material do princípio da igualdade (art. 5º, inciso I, da Constituição Federal.29. Diante dessa realidade, e particularidades do tema, importa investigar como o processo penal que persegue a punição do acusado, nos crimes de violência de gênero, poderá atingir a sua função de pacificação social e respeito à dignidade da pessoa humana (especificamente da vítima e do acusado), em contraponto ao conjunto de regras processuais tradicionais, e de operadores do direito incursos em uma sociedade patriarcal, como é a brasileira. 28 29 Ibid, p. 49. Ibid, p. 85. Romana Leite Vieira | 327 Para tanto, propõe Janaina Matida30 propõe o uso da psicologia cognitiva, a fim de que o testemunho da vítima seja humanizado: É nesse contexto que o diálogo com a psicologia cognitiva não pode mais ser evitado. Se o direito genuinamente presente abraçar o objetivo de oferecer decisões judiciais racionais, não há mais qualquer espaço para manter-se ilhado, separado, isolado dos conhecimentos conquistados por outras áreas de investigação. Nesse sentido, avanços provindos das pesquisas de psicologia cognitiva devem ser ingressados o quanto antes em nossas práticas jurídicas. Por outro lado, a partir de uma visão mais audaciosa, um dos vieses seria a teoria do sopesamento, desenvolvida por Robert Alexy31: “Ela faz com que fique claro que o peso dos princípios não é determinado em si mesmo ou de forma absoluta e que é possível falar em pesos relativos”. De fato, em caso de tensionamento de princípios de igual envergadura (caso assim se considere nesse caso), há que se levar em consideração o caso concreto de aplicação, e suas circunstâncias especiais. Nesse diapasão, supõe-se que o sopesamento de valores faria parte da decisão judicial, na qual o magistrado, através do livre convencimento motivado, faria esse sopesamento a depender do caso posto em análise. 3 Conclusão Em que pesem os avanços normativos em prol dos direitos das vítimas de violência de gênero, há muito o que se refletir acerca da sua proteção dentro do processo penal. Isso porque, a clássica relação existente entre Estado e acusado acaba por conceber a ofendida como mero objeto de prova. Prova essa a ser inserida dentro de um acervo probatório maior, a fim de que seja possível a responsabilização do suposto agressor. Dentro da comunidade jurídica o princípio da presunção de inocência, especificamente a regra de julgamento in dubio pro reu, é visto como uma garantia 30 MATIDA, op. cit, p. 107. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 168. 31 328 | Gênero, violência e estruturas de poder constitucional instransponível. Não obstante, os tribunais pátrios, voltados para uma visão política do assunto, em crimes de gênero, sopesam positivamente a palavra da vítima, ainda que não corroborada por outros elementos probatórios, haja vista que muitos desses delitos são cometidos na clandestinidade. Diante dessa tensão, visando proteger a dignidade da vítima, instrumentos de proteção foram pensados, tal como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, pelo Conselho Nacional de Justiça, o qual traz instruções aos julgadores, a fim de evitar julgamentos permeados de conceitos patriarcais e distantes das realidades vivenciadas pelas mulheres vítimas de violência de gênero. Ainda nesse sentido, importa a conjunção de esforços multidisciplinares para abordagem do problema, como o uso da psicologia cognitiva, a fim de reunir esforços de vários profissionais, inclusive daqueles que não são operadores do direito, para acolhimento e oitiva dessa vítima. Em último caso, ainda, segundo a visão dessa autora, é necessário ao julgador sopesar os princípios tensionados na espécie: a presunção de inocência e a dignidade da vítima, sob pena de imputar a essa última um sofrimento maior, qual seja, passar por todo desgaste de uma instrução processual, para ao fim ver seu agressor impune, sob o argumento de ausência de provas de um crime que se deu na clandestinidade, situação na qual a produção probatória era impossível. O Estado, em sua função jurisdicional, também possui responsabilidades que perpassam o processo penal, a fim de que a Justiça se realize no caso concreto. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006. ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder. 1985. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus /prev29.htm. Acesso em: 20 nov. 2022. BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. Romana Leite Vieira | 329 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. V. 1. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 nov. 2022. BRASIL. Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto no 89.460, de 20 de março de 1984. Diário Oficial da União, Brasília, 16 set. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm#:~:text=DECRETO% 20N%C2%BA%204.377%2C%20DE%2013,20%20de%20mar%C3%A7o%20de%201984 . Acesso em: 25 nov. 2022. BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 08 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 25 nov. 2022. BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 05 jan. 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em: 22 nov. 2022. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Habeas Corpus nº 615.661/MS. Impetrante: Esio Mello Monteiro. Advogado: Esio Mello Monteiro. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Paciente: João Alves Pereira Neto. Relator: Ministro Nefi Cordeiro, 24 de novembro de 2020. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 30 nov. 2020. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?i=1&b=ACOR&livre=((%27HC%27.clap.+ e+@num=%27615661%27)+ou+(%27HC%27+adj+%27615661%27).suce.)&thesauru s=JURIDICO&fr=veja. Acesso em: 26 nov. 2022. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: ENFAM, 2021. Disponível em: https://protocolopara-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf Acesso em: 25 nov.2022. 330 | Gênero, violência e estruturas de poder CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Relatório: o Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Brasília: IPEA, 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/7b7cb6d9ac9042c8d3e40700b80bf20 7.pdf. Acesso em: 05 set. 202 GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal: Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2016. KIST, Fabiana. O valor da vontade da vítima de violência conjugal para a punição do agressor: oficialidade, oportunidade e justiça restaurativa. Leme – SP: JH Mizuno, 2019. LEITE, Hebert Soares; PINTO, Felipe Martins. O Princípio da Presunção de Inocência e a impossibilidade de produção de provas ex officio pelo julgador. Presunção de Inocência – Estudos em Homenagem ao Professor Eros Grau. Belo Horizonte: Instituto dos Advogados de Minas Gerais, 2020. LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. MATIDA, Janaina Roland. A determinação dos fatos nos crimes de gênero: entre compromissos epistêmicos e o respeito à presunção da inocência. In: NICOLITT, André; AUGUSTO, Cristiane Brandão (orgs.). Violência de Gênero: temas polêmicos e atuais. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019 MONTENEGRO, Marília. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro, Revan, 2020. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA. Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, “Convenção de Belém do Pará”. Belém do Pará, 9 jun. 1994. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em: 13 set. 2022. RODRIGUES, Roger de Melo. A tutela da vítima no processo penal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2014. 17. REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO A PARTIR DAS OBRAS DE MICHEL FOUCAULT https://doi.org/10.36592/9786554601566-17 Alan Silva Carvalho1 Alene Silva da Rosa2 Resumo O presente trabalho apresenta-se enquanto fruto das discussões e reflexões que surgiram no processo de elaboração da dissertação. Com o ascendente debate acerca da questão de gênero nas últimas duas décadas, identificamos uma diversidade de pontos a respeito do assunto, tais como desconhecimento, distorção e má interpretação de conceitos, bem como a disseminação de inverdades. Nesse sentido, tendo como base a produção de Michel Foucault, buscamos compreender e refletir sobre a construção da identidade de gênero, e dialogando com outras elaborações contemporâneas como a obra de Judith Butler. O estudo de caráter bibliográfico, buscou principalmente partir do conceito de cuidado de si elaborado nas obras de Michel Foucault, a compreensão da construção da identidade de gênero e do cuidado de si enquanto prática de liberdade. Concluímos que em cada pessoa há uma necessidade de se ver como uma tela em branco, a qual cada um vai “se pintando” com vistas a construir a sua própria obra. O cuidado de si vai ao encontro deste exercício de autolibertação e se transforma em um pincel que pinta um novo horizonte na luta contra o poder. Palavras-chaves: Identidade de Gênero; Cuidado de Si; Michel Foucault; Judith Butler INTRODUÇÃO Nas últimas duas décadas temos visto ascender em distintas camadas da sociedade, o debate sobre a questão de gênero. No seio dessa discussão o que analisamos é a existência de uma vulgarização e um esvaziamento do tema e do conceito, que inclusive se torna uma das temáticas centrais na disputa política brasileira, o que contribuiu tanto para dar visibilidade à questão, quanto para vulgarizar e esvaziar o conceito e o debate. 1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul (UCS); Assistente Social na Universidade Federal do Pampa. E-mail: alancarvalhosb@gmail.com 2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos na Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Professora Substituta do Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Paraná. E-mail: alenesilva@gmail.com 332 | Gênero, violência e estruturas de poder Nesse sentido, esse trabalho nasce fruto tanto da observação das situações da realidade cotidiana, quanto a partir das discussões e reflexões fomentadas na elaboração da dissertação e de um artigo apresentado no SIEPE 2019. O trabalho se caracteriza enquanto uma pesquisa qualitativa de caráter bibliográfico, que buscou principalmente partir do conceito de cuidado de si elaborado nas obras de Michel Foucault, a compreensão da construção da identidade de gênero e do cuidado de si enquanto prática de liberdade, e a partir dessa apreensão elaborar o diálogo com outras produções contemporâneas, como a obra de Judith Butler. Para a elaboração desse estudo, definimos dividi-lo em dois momentos, iniciando por visitar a obra de Foucault e apreender a partir do autor qual a sua elaboração sobre cuidado de si e posteriormente a construção da identidade de gênero, em seguida no segundo tópico abordaremos a temática a partir de Judith Butler, considerando a contemporaneidade da sua produção. I. O que nos ensina Foucault sobre cuidado de si e construção de identidade de gênero O debate acerca da sexualidade, tornou-se um fenômeno cada vez mais recorrente no seio das discussões sociais, discussões estas permeadas por questões que apontam para um horizonte de reformulação conceitual. O tema da sexualidade sempre esteve presente nas estruturas hierárquicas sociais, basta recorrer à história para encontrar evidências da relevância que este tema ocupou e ainda ocupa, mostrando-se como um objeto de disputa e de controle, seja individual ou socialmente. Política e história balizam e ajudam a formar os significados identitários que regulam as interações no âmbito social e institucional, no entanto, o debate oriundo deste processo está constantemente em transformação, isto reforça a necessidade de discutir não só a sexualidade, mas também a ideia de identidade de gênero, não como meros fenômenos ou de forma isolada, mas a partir da politização da sexualidade. Foucault ao analisar documentos históricos nas mais variadas bibliotecas da França, procurou entender como se davam os processos educacionais e Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 333 disciplinares, onde foi possível constatar que até o advento da revolução francesa o poder estava centrado na figura do soberano (rei), cabendo a ele, inclusive, o poder de tirar a vida de seus súditos ou deixá-los viver se assim bem entendesse. Assim não seria de se espantar que o ato de suicídio, configurava um crime, pois usurpava o direito de morte que somente o soberano (rei ou Deus) poderia exercer (Foucault 1988). No entanto, após a revolução francesa foi possível perceber uma mudança na forma em que o Estado (até então centralizado na figura do soberano) exercia o poder sobre a vida. A partir do momento em que o poder assume a função de gerir a vida, se tornou cada vez mais difícil aplicar penas de morte. Pois para o poder se tornara mais interessante e lucrativo garantir a vida dos súditos A velha potência de morte em que se simbolizava o poder do soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. (Foucault 1988, p 131) Assim, poderia ser o gênero a premissa para definir a identidade, ou seria o inverso? Quais seriam as estruturas fundantes desta relação, que ao mesmo tempo as normatizam e as condicionam? Dentro de uma sociedade marcada pela égide patriarcal e falocêntrica, o campo no qual se faz, ou se pretende fazer, a discussão sobre gênero e identidade não só é instável como também mutável. De uma forma geral, a construção de nossa sociedade deu-se através de um processo binário, admitindo-se o masculino/macho e o feminino/fêmea. Percebe-se que concepções pautadas em uma perspectiva biologizante/determinista de corpo, não podem dar conta (quando não agem propriamente contra) da multiplicidade de gêneros e identidades que um indivíduo pode assumir, assim sendo, a construção da superfície dos corpos que pretensamente são construídos culturalmente e socialmente entra em xeque exigindo uma análise interdisciplinar e quiçá pós-disciplinar. Frente a todas as questões que advêm com tais considerações surge a pergunta a seguir. Se não é a biologia e tão pouco a cultura, o que então constrói a identidade de um sujeito? 334 | Gênero, violência e estruturas de poder Para Michael Foucault a construção desta categoria tão central na condição humana advém da necessidade de conhecer a respeito do próprio sexo e aos dos outros, tal necessidade só é igualmente grande aos mecanismos que a reprime, lançando assim o que ele considerava ser a razão de tudo, “o sexo, razão de tudo”. Contudo este mesmo autor elucida que a questão da sexualidade está estritamente vinculada ao poder, mas sempre em relação de negação Com respeito ao sexo, o poder jamais estabelece relação que não seja de modo negativo: rejeição, exclusão, recusa, barragem ou ainda, ocultação e mascaramento. O poder não “pode” nada contra o sexo e os prazeres, salvo dizer-lhes não, se produz alguma coisa, são ausências e falhas; elide elementos, introduz descontinuidades, separa o que está junto, mascara fronteiras. Seus efeitos tomam a forma geral do limite da lacuna (Foucault, 1988, p. 81) Não seria esta relação de negação o mecanismo que negligencia e dificulta a abordagem desmistificadora acerca do gozo feminino e também acerca do reconhecimento pleno de diferentes e novas manifestações da sexualidade? Para Foucault a resposta a esta indagação é mais do que afirmativa, para ele as estruturas que regem a moral da sexualidade se estabelecem através de ciclos de interdição Não te aproximes, não toques, não consumas, não tenhas prazer, não fales, não apareças, em última instância não existirás, a não ser na sombra e no segredo. Sobre o sexo, o poder só faria funcionar uma lei de proibição. Seu objetivo: que o sexo renunciasse a si mesmo. Seu instrumento: a ameaça de um castigo que nada mais é do que a sua supressão. Renuncia a ti mesmo sob a pena de seres suprimido, não apareças se não quiseres desaparecer (Foucault, 1988, p. 81) A sobrevivência social de um corpo sexualizado só seria possível frente a um processo de anulação das pulsões e em última instância de negação da sua existência. Esta tentativa reducionista e punitiva tenta criar uma regra universal para gerir a sexualidade, no entanto Não existe uma estratégia única, global, válida para toda a sociedade e uniformemente referente a todas as manifestações do sexo: a ideia, por exemplo, de muitas vezes se Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 335 haver tentado, por diferentes meios, reduzir todo o sexo à sua função reprodutiva, à sua forma heterossexual e adulta e à sua legitimidade matrimonial não explica, sem menor dúvida, os múltiplos objetivos visados, os inúmeros meios postos em ação nas políticas sexuais (Foucault, 1988, p. 98.) Desta forma se faz necessário problematizar tais conceitos de forma a criar as condições necessárias para o desenvolvimento de um novo design sobre a sexualidade nos dias atuais, um design amplo, libertário, aberto e não binário. Contudo não se quer com tal novo design aprisionar aquilo que é o cerne de toda a questão aqui proposta, a liberdade, pois, ao tentar estratificar, classificar ou conceituar também se aprisiona. O processo de construção da(s) identidade(s) acontece no interior do movimento histórico, social, cultural, nos quais as diferenças produzidas são as características centrais pelas quais as diferentes identidades são produzidas. Nos primórdios do século XVII, vinculando a construção das identidades e a questão da sexualidade, temos esse período onde as manifestações sexuais são compelidas somente a fator de reprodução, e toda prática contrária, deveria ser controlada e punida, a partir de então criou-se uma gama de justificativas morais, acadêmicas, científicas e religiosas para condenar essas manifestações. Entendemos também que esse controle dos corpos, dos indivíduos e da sexualidade, responde às necessidades de produção e reprodução de uma sociedade capitalista, tais como mão de obra e a divisão sexual do trabalho. Para tal surge a necessidade de dispositivos disciplinares, dispositivos de controle, dispositivos de poder, para Foucault A ideia de um dispositivo de poder, pode ser descrito como um conjunto de linhas que atravessam o sujeito e a sociedade, linhas de visibilidade, de enunciação, de força, de subjetivação, de ruptura que se enlaçam, se misturam e transformam o dispositivo. Que não é estável e está em constante transformação. (Cardoso, p.325, 2019) Quanto aos dispositivos de controle sobre a sexualidade, estes surgem e se transfiguram como instrumentos que possibilitarão às classes sociais privilegiadas não só autoafirmação enquanto detentoras do poder, mas tornar-se prescritora de 336 | Gênero, violência e estruturas de poder diversas verdades sobre o sexo que posteriormente seriam difundidas por todo o corpo social, visando o controle da natalidade e moralização das camadas subalternas. Estes dispositivos vão ganhando força ao longo dos séculos XVII e XVIII com o desenvolvimento, na sociedade ocidental, das relações de poder, em seus diversos níveis (Cardoso, 2019), este fenômeno do biopoder adentra nas mais variadas instâncias da vida individual e coletiva da sociedade, inclusive na anatomia e psique humana através de padronizações comportamentais e de conduta. Logo os dispositivos da sexualidade humana são uma, das principais instancias a ser colonizada por esta nova forma de poder exercida sobre a vida, estando estritamente ligado ao gerenciamento do sangue, ou linhagem, atrelada a ideia da transmissão dos bons genes e manutenção da força de trabalho Nesta lógica se instauram hierarquias sobre a temática da sexualidade, que privilegiam e delegam poder à figura masculina à revelia da submissão e subalternidade da figura feminina. Estando os sujeitos sociais imersos nesta estrutura social falocêntrica e em virtude de estarem a ela condicionados os sujeitos regulados por tais estruturas são formados, definidos e reproduzidos de acordo com estas exigências (Butler, p. 8. 2003). Assim o preconceito de gênero encontra o solo fecundo para fincar suas raízes e legitimar-se enquanto prática de dominação frente a figura feminina. Mas tal fenômeno não se manifesta única e exclusivamente sobre a figura da mulher, apresentando-se em certos casos com ainda maior fúria contra homossexuais, a homofobia. Ao analisar a homofobia e possível questionar quais seriam suas origens fundamentais que impigem, ainda nos dias de hoje, tal aversão? Ao recorrer a alguns relatos históricos, percebe-se que tal incompreensão e aversão a cerca deste tema tem sua origem no próprio preconceito com o mundo feminino Nos textos do século XIX existe um perfil/tipo do homossexual ou do invertido, seus gestos, sua postura, a maneira pela qual ele se enfeita, seu coquetismo, como também a forma e as expressões do seu rosto, sua anatomia, a morfologia feminina de todo seu Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 337 corpo, fazem, regularmente, parte desta descrição desqualificadora (Foucault, p.21. 1988). Frente a isto pode-se inferir que a possível feminilização da figura masculina demandou o nascimento de uma cultura valorativa que exaltasse a masculinidade e virilidade do homem. Em diferentes graus, esta espécie de medo acerca da feminilização do homem também ocorre com a mulher, em sentido inverso, pois ainda nos dias de hoje homens e mulheres são compelidos a manterem-se estratificados a sua identidade biológica, desempenhando seu papel social de macho ou fêmea dentro de uma economia heterossexual e reprodutiva. Para tal é imprescindível superar a ideia, que Foucault (1988) classificou como sexualidades periféricas, tais práticas que destoam das ditas normais. Mas qual seria a nascente deste fenômeno que prontamente se coloca contra a qualquer pretensa “ameaça” ao muno da heteronormatividade, qual seriam suas origens fundamentais que impigem, ainda nos dias de hoje, tal aversão (como ocorre por exemplo frente a homoafetividade)? Ao recorrer a alguns relatos históricos, percebese que tal incompreensão e aversão a cerca deste tema tem sua origem no próprio preconceito com o mundo feminino Nos textos do século XIX existe um perfil/tipo do homossexual ou do invertido, seus gestos, sua postura, a maneira pela qual ele se enfeita, seu coquetismo, como também a forma e as expressões do seu rosto, sua anatomia, a morfologia feminina de todo seu corpo, fazem, regularmente, parte desta descrição desqualificadora (FOUCAULT, p.21. 1988) Qualquer conduta sexual que não estiver em consonância com os critérios elencados anteriormente ainda é (em maior ou menor escala) tida como anormal ou desviante segundo resquícios de preceitos sociais fundamentados em uma matriz religiosa (Wolf 2014). Contudo inegavelmente é cada vez mais presente nos dias atuais o movimento que busca se desvencilhar destes padrões morais de comportamento, no que tange a sexualidade. Logo, frente às mudanças e transformações do mundo, principalmente a partir da organização coletiva dos movimentos sociais, há uma reivindicação pelo respeito 338 | Gênero, violência e estruturas de poder e reconhecimento à diversidade de identidades, que deve ser considerada como um conceito de representações que os sujeitos sociais fazem a respeito de si. Com base nas produções analisadas, identificamos que o conceito de cuidado de si tem sua origem na antiga civilização grega, sendo compreendido nesse período enquanto um privilégio, um poder ou direito estatutário. Sobre a prática do cuidado em si, entendemos que este pode envolver diversos aspectos, tais como: regimes de saúde, o cuidar do corpo, a satisfação das necessidades, bem como a prática da meditação, o exercício da leitura, e a conversa com amigos, um mestre ou guia. A partir dessa compreensão, podemos afirmar que a prática do cuidado de si pode ser um fazer individual e solitário, mas que se configura também como algo coletivo e social, pois envolve atividades de si sobre si, e também com o outro, estabelecendo uma comunicação com esse outro. Seguindo na abordagem do trabalho de si sobre si, temos o entendimento de que esse conceito apresenta o indivíduo como uma obra que encontra-se aberta, ainda não concluída. A esse indivíduo inconcluso é concedido autonomia e liberdade, pois somente através do cuidado e conhecimento de si, que se tem a possibilidade de uma existência ética e verdadeiramente livre. II. A atualidade da discussão na obra de Judith Butler Estando os sujeitos sociais imersos nesta estrutura social falocêntrica e em virtude de estarem a ela condicionados os sujeitos regulados por tais estruturas são, formados, definidos e reproduzidos de acordo com estas exigências (Butler, p. 8. 2003). Dentro desta lógica hegemônica a categoria de gênero necessita de identidades estanques para passarem a ter significado, ou seja, o masculino necessariamente tem que expressar o macho e o feminino tem que expressar a fêmea. Esta lógica determinista parece não mais encontrar terreno para expandir suas raízes, pois Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 339 em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem resultado causal do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. (Butler, p. 13. 2003). Com esta concepção em tela, amplia-se o escopo do debate e lança-se um feixe de luz sobre a questão da autodenominação dos sujeitos sociais que a rigor não se reconhecem naquele sexo biológico observado fisicamente. Assumindo que sexo e gênero são distintos, pode-se considerar que O gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele ocorra de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos [...] não há razão para supor que gêneros também devam permanecer em número de dois. A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito. (Butler, p. 13. 2003). Este descolamento do sexo/gênero funciona como uma espécie de pilar fundacional da política feminista de Butler, partindo da ideia de que o sexo é natural e o gênero é socialmente construído, essa era a premissa que tal autora problematizava no início dos anos de 1990. Discutir tal dualidade foi o ponto de partida para que a pensadora questionasse o conceito de mulher como sujeito dentro do próprio feminismo. O conceito de gênero como culturalmente construído, distinto do de sexo, como naturalmente adquirido, formaram o par sobre o qual as teorias feministas inicialmente se basearam para defender perspectivas “desnaturalizadoras” sob as quais se dava, no senso comum, a associação do feminino com fragilidade ou submissão, e que até hoje servem para justificar preconceitos. O principal embate de Butler foi com a premissa na qual se origina a distinção sexo/gênero: sexo é natural e gênero é construído. Para Butler, “nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino”. No livro intitulado O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir exprime a idéia que não se nasce mulher, mas sim torna-se uma. Para Beauvoir, a questão do gênero é 340 | Gênero, violência e estruturas de poder resultado de uma construção advinda da cultura, porém Judith Butler nos diz, ao esmiuçar tal afirmação, que há aí uma controvérsia que a rigor se basearia na dicotomia entre o livre-arbítrio e o determinismo. Em sua maneira de ver, Butler considera que não há em Beauvoir, nada que garanta que o ser que se torna mulher seja necessariamente fêmea (Butler, 2003). Ainda em Beauvoir, é possível encontrar a ideia de que as mulheres são o negativo dos homens, a falta em confronto com a qual a identidade masculina se diferencia. Tal assertiva sugere que a diferença entre os gêneros/sexos só é possível dentro de uma relação com o outro que é o oposto. Dentro de um monismo ideológico conceitual isto equivaleria dizer que a mulher é o inverso do homem, mas em situação de inferioridade, dada a configuração anatômica e física. Esta explicação por si exclui o que Lucy Irigaray considera como uma economia inteiramente significante, para ela é um equívoco tentar explicar o feminino através da ausência ou da negação das características masculinas. Assim este modo falocêntrico de dar significado ao sexo/gênero feminino oferece apenas uma forma de cooptação e controle (Irigaray 1985). Em última instância cria-se uma gama de valores ideológicos que justificam as diferenças comportamentais entre o masculino e o feminino. Para Butler, uma teoria ou política que defende uma identidade criada pelo gênero e não pelo sexo mascara a aproximação entre gênero e essência, entre gênero e substância. Segundo Butler, aceitar o sexo como um dado natural e o gênero como algo construído culturalmente, seria aceitar também que o gênero expressaria uma essência do sujeito. Ao estabelecer um diálogo com Beauvoir, Butler parece querer “desnaturalizar” tal ideia de gênero de um sujeito uno, onde a categoria sexo é aceita como substância, como aquilo que é idêntico a si mesmo, em uma proporções quase metafísicas. Para ela, tal posição observaria o gênero como uma “atributo do sujeito, caracterizada essencialmente como uma substância ou um ‘núcleo’ de um gênero estabelecido a priori”. Butler pega o ideário de Foucault e o reformula de uma forma muito original ao afirmar que as estruturas que regem a moral da sexualidade se estabelecem através de ciclos de interdição, onde as relações estabelecidas entre o poder e o sexo só são possíveis através de proibições, interdições, o sexo não deve Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 341 aparecer caso não queira desaparecer definitivamente, a existência do sexo deve se dar nas sombras. A sobrevivência social de um corpo sexualizado só seria possível frente a um processo de anulação das pulsões e em última instância de negação da sua existência, esta tentativa reducionista e punitiva tenta a todo custo criar uma regra universal para gerir a sexualidade. Neste sentido, práticas sociais e discursivas servem tanto para Disseminar o poder, como também pode miná-lo. Por exemplo, os textos antigos sobre sodomia produziram duas reações: as penas severas de fogueira no século XVIII, sem protestos e, por outro lado uma tolerância de certos testemunhos nas sociedades masculinas no exército e na corte. Mais tarde, no séc. XIX, com o aparecimento da homossexualidade nos tratados psiquiátricos, no direito e na literatura, possibilitou o surgimento de um discurso de reação. Ou seja, não existe um discurso de poder de um lado e um que se contrapõe de outro, assim podem existir discursos diferentes dentro de uma mesma estratégia de poder ou podem circular em estratégias opostas, discursos semelhantes. (Cardoso, p.324, 2019) No cenário atual, são vistas mudanças, que nascem de reivindicações e movimentos sociais, que expressam críticas aos modelos clássicos de análise dos fenômenos da sexualidade contrariando o universalismo hegemônico sobre a temática. Tais transformações demandam um novo conceito da identidade dos sujeitos sociais, reunindo uma gama de multiplicidade de representações acerca do “eu” agregando assim (ou não) valores morais. Surge daí uma possível forma de se tratar a questão da sexualidade, que sob o prisma do conceito de respeito à diversidade, adquire um novo viés teórico que engloba a pluralidade da vida social, seja nas instâncias culturais, afetivas ou de identidade. A diversidade de identidades hoje deve ser considerada como um conceito de representações que os sujeitos sociais fazem a respeito de si. Estas identidades, sejam individuais ou coletivas, são construídas na relação com o outro e na alteridade (Hall, 2005). Mas esta construção não se dá de forma tranquila, pois a hierarquização concernente a tal processo acaba por criar critérios de verdade que fundamentam relações de poder. 342 | Gênero, violência e estruturas de poder Esse poder tem suas especificidades, destinado ao controle dos corpos dos indivíduos, por meio de mecanismos de controle, chamado poder disciplinar por Foucault. É uma modalidade de poder que não atua do exterior, mas no corpo dos indivíduos, manipulando seus elementos, produzindo seus comportamentos, ou seja, fabricando um tipo de homem para o bom funcionamento da sociedade industrial capitalista. (Cardoso, 2019) Assim sendo, Butler avança na construção de um novo ideário realizando a Inserção da concepção foucaultiana de poder produtivo em suas teorizações acerca dos gêneros e das sexualidades, destacando o caráter performativo de seu funcionamento, bem como propondo que a ela se acrescente uma preocupação maior com os aspectos da formação psíquica. (Paiva, p.515, 2022) Todavia o referido autor se contrapõe à ideia de haver uma política que exige a constituição de uma identidade fixa, de um sujeito a ser representado, para que essa política se legitime. Ao passo que propõe repensar tais restrições que a própria teoria da diversidade enfrenta quando tenta representar/explicar o mundo da sexualidade, mantendo uma crítica ao que ela considera uma exigência da política: a presença de um sujeito estável. Butler entende o ideário da diversidade como uma prática política que que rompe o conceito de sujeito como uma identidade fixa, levando a uma concepção de identidade em aberto, não meramente como algo que não englobe/organize a pluralidade, mas que a mantenha em aberto sob permanente cuidado (de si). Nas palavras de Butler: “A desconstrução da identidade não é a desconstrução da política; ao invés disso, ela estabelece como políticos os próprios termos pelos quais a identidade é articulada”. Desta maneira o gênero seria um fenômeno inconstante e contextual, que não denotaria um ser substantivo, “mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes Com esta concepção em tela, temos que as manifestações da sexualidade não são meramente imputs da natureza ou sociais, mas também dispositivos históricos, expressos em uma rede constituída de práticas, discursos, métodos de estimulação Alan Silva Carvalho; Alene Silva da Rosa | 343 dos corpos e dos prazeres. Os dispositivos de sexualidade surgiram como maneiras de afirmação da burguesia que não anulou nem desqualificou seu corpo, posto que sua supremacia dependia não só da exploração econômica, mas também da dominação física das classes subalternas, visto que uma das formas de consciência de classe é a afirmação do corpo. Assim, em se tratando da contemporaneidade, o conceito proposto por Foucault e atualizado por Butler é que o surgimento da ciência do sujeito é parte integrante do dispositivo de sexualidade, que abriu possibilidade de infiltração do poder em aspectos particulares e íntimos da vida. CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo frente a todos os avanços e conquistas no campo da sexualidade, é perceptível à existência de uma clara tentativa reguladora acerca da moral sexual coletiva. Tal tentativa não só procura estabelecer um processo normativo sobre as relações entre os indivíduos uns para com os outros, mas também acerca do indivíduo para consigo mesmo adentrando assim na esfera individual da sexualidade. Assim pode-se inferir que esta tentativa de (re) normatizar a atividade sexual humana tende a se caracterizar por um rol taxativo de proibições, em uma tentativa de resgatar o conservadorismo moral. Posto isto, não seria um equívoco afirmar que este processo visaria o renascimento da função puramente reprodutiva, heterossexual e matrimonial das manifestações da sexualidade. O horizonte para tal discussão ainda se mostra nebuloso, embora se tenha avançado na problematização da questão, ainda existem importantes lacunas a serem preenchidas. As conquistas fomentadas pelo desejo de liberdade proporcionaram significativos avanços, mas não foram capazes de eliminar por completo os preconceitos, as dúvidas, os medos e incompreensões concernentes ao fenômeno da sexualidade. Este panorama apenas demonstra a necessidade e a importância de um continuado esforço reflexivo acerca destas questões na tentativa, não de esgotá-las, 344 | Gênero, violência e estruturas de poder mas de possibilitar a construção de subsídios para um debate verdadeiramente democrático. REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: Fatos e mitos. Nova York: Vintage, 1973. Tradução de E. M. Parshley. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003 – 1ª edição. Tradução de Renato Aguiar. CARDOSO, Helma de Melo. Gênero, sexualidade e escola: contribuições da teorização de Foucault. Revista Tempos e Espaços em Educação, São Cristóvão, v. 11, n. 01, p. 319–332, 2019. DOI: 10.20952/revtee.v11i01.9652. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/revtee/article/view/965. Acesso em: 3 mar. 2024. CARVALHO, Alan Silva. A ética do cuidado de si na construção da identidade de gênero. Dissertação de Mestrado. Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul (UCS), 2017. FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: A vontade do saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FLUSSER, Vilém. O mundo Codificado: Por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosacnaify, 2007. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. IRIGARAY, Lucy. The sex which is not one.Cornell University Press, 1985.Tradução de Catherine Porter e Carolyn Burke. PAIVA, André Luiz dos Santos. Poder, norma, corpo e gênero: reflexões a partir de Michel Foucault e Judith Butler. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, [S. l.], v. 10, n. 1, p. 505–527, 2022. DOI: 10.26512/rfmc.v10i1.39186. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/39186. Acesso em: 3 mar. 2024. WOLF, Eduardo. Ética e sexualidade: normatividades em perspectiva histórica. In: Manual de ética: questões de ética teórica e aplicada / João Carlos Brum Torres (org.). – Petropolis, RJ: Vozes, Caxias do Sul, RS: Universidade de Caxias do Sul, Rio de Janeiro: BNDES, 2014. 18. MAPEAMENTO DAS DENÚNCIAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ASSOCIADAS AO CIÚME EM 2016 (DEAM-VITÓRIA) https://doi.org/10.36592/9786554601566-18 Dionatan Miranda de Almeida1 Resumo A presente pesquisa trata da violência de gênero associada ao ciúme e emergiu a partir do relato de 35 mulheres que denunciaram as agressões cometidas por homens na Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) de Vitória, Espírito Santo, no ano de 2016. Nesse sentido, ressaltou-se a importância de fazer um mapeamento dessa violência utilizando as informações que são fornecidas nos boletins, traçando o perfil sociodemográfico dos agressores e das vítimas, como a questão da cor, da escolaridade, da profissão, do estado civil e do vínculo entre os dois. Palavras-chave: Gênero; violência; ciúme; mulher; patriarcado. 1. INTRODUÇÃO No Espírito Santo, os números da violência de gênero são alarmantes, tanto em âmbito estadual quanto municipal, já que o estado e a sua capital, Vitória, aparecem nos primeiros lugares nos rankings nacionais desse tipo de violência, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada2. Em seus estudos, Nader3 evidenciou que o crescimento demográfico acelerado e desordenado foi, em parte, responsável pelo aumento da violência de modo geral. Essa explosão demográfica teve sua origem na política de erradicação dos cafezais, resultando na deslocação de uma massa de trabalhadores agrícolas do interior do estado para a capital e para as cidades vizinhas, atrás de novas oportunidades. Os amplos projetos industriais que foram instalados na região atraíram não somente esse contingente de trabalhadores rurais, como até pessoas de estados vizinhos que viam uma oportunidade de emprego e melhoria de vida na cidade. 1 Mestrando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), orientado pela Profa. Dra. Maria Beatriz Nader. E-mail: dionatan-almeida@hotmail.com 2 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. Brasília, 2013. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-efontes/pesquisa/violencia-contra-a-mulher-feminicidios-no-brasil-ipea-2013/. Acesso em: 15 dez. 2023. 3 NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 16 dez. 2023. 346 | Gênero, violência e estruturas de poder Notou-se ainda, além do crescimento demográfico desordenado, a falta de estrutura da região para acomodar as massas de migrantes como uma das razões para o aumento da violência em Vitória na segunda metade do século XX. Um outro aspecto que pode ser considerado como causador no que diz respeito às grandes taxas do indicador de violência, além da explosão populacional e da falta de estrutura para alocar quem chegava à cidade a partir da década de 1960, que é a cultura patriarcal que já estava presente na formação da sociedade capixaba a partir do período colonial e que se desenvolveu com a migração de italianos, alemães e árabes no final do século XIX e início do século XX, povos que também trouxeram consigo uma cultura machista.4 O processo de migração e favelização que ocorreu no estado fez pessoas se concentrarem nas mesmas condições de miséria dos desassistidos, analfabetos e desempregados, originando as graves problemáticas sociais estigmatizadas por doenças, promiscuidade e criminalidade. A marginalização espacial e social da maioria da população aconteceu nesse momento de industrialização e urbanização da Grande Vitória e teve colaboração para a promoção e reprodução da violência metropolitana.5 Portanto, o processo de urbanização de Vitória foi marcado tanto pelo crescimento desordenado da população em seu espaço físico quanto pelo crescimento das desigualdades sociais. Nader 6 e Siqueira 7 explicam que essa explosão demográfica na cidade de Vitória foi assistida junto do crescimento da concentração de renda por um grupo menor de pessoas, expandindo as diferenças sociais e contribuindo para o aumento da violência. Ao analisar a relação entre esses dois fatores, percebe-se que as intensas correntes imigratórias e aglomeração de grandes massas populacionais em centros urbanos favorecem, potencialmente, a 4 NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 18 dez. 2023. 5 NADER, Maria Beatriz. Paradoxos do Progresso: a dialética da relação mulher, casamento e trabalho. Vitória: EDUFES, 2008. 6 NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 20 dez. 2023. 7 SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. Industrialização e empobrecimento urbano: o caso da Grande Vitória 1950- 1980. Vitória: EDUFES, 2001. Dionatan Miranda de Almeida | 347 incidência criminal que concentra agressões individuais que transcendem o nível social refletindo, sem dúvida, a dominação de um grupo e a subordinação do outro. Nader 8 chama atenção para estudos feitos por Barata, Drumond Junior e Freitas, que constatam que as maiores incidências de violência são de regiões periféricas concentradoras de pobreza. Reitera ainda que, segundo Minayo, a violência pode ter associação com as condições da vida metropolitana, que se caracteriza por uma grande concentração populacional, desigualdades de riquezas, impessoalidades das relações, fácil acesso a armas de fogo, abuso de álcool e tráfico de drogas, bem como a baixa renda familiar e violência policial. Desse modo, a grande corrente migratória que se direcionou para a capital do estado, e o inchaço demográfico nesta principal zona urbana, daí decorrente, juntamente à falta de estrutura econômica, social e de habitação para receber esse contingente migratório, colaboraram para o aumento da violência na metrópole capixaba. As taxas de homicídio do estado no final da década de 1980 subiram 180,7%, ou seja, 9% ao ano, de acordo com dados divulgados pelo Mapa da Violência. Este aumento ocorreu principalmente devido ao crescimento substancial dos homicídios na Região Metropolitana de Vitória, que mostraram uma alta de 379%, isto é, 13,9% ao ano. No ano 2000, o Espírito Santo estava posicionado em terceiro lugar entre os estados onde mais houveram homicídios, enquanto em 2010 ele passou a ocupar a segunda posição. Vitória, por seu turno, passou da segunda posição entre as capitais que mais mataram no ano 2000, para a terceira posição em 2010. De qualquer maneira, ambos, estado e capital, permaneceram entre as três primeiras posições que indicam as regiões mais violentas em termos de homicídios do Brasil.9 Juntamente com o aumento da violência de maneira geral, o número de violência cometida contra as mulheres também teve um aumento, a ponto de, no final da década de 2000, o estado do Espírito Santo figurar na primeira posição entre os 8 NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 22 dez. 2023. 9 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012: atualização: homicídios de mulheres no Brasil. Cebela, p. 1-27, 2012. Disponível em: http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf. Acesso em: 22 dez. 2023. 348 | Gênero, violência e estruturas de poder estados da federação em homicídios femininos e de Vitória estar no topo do ranking entre as capitais do país em feminicídios. 10 Enquanto no ano de 2010, o estado ocupava na segunda posição e a capital ocupava a terceira em termos de homicídios de maneira geral, os feminicídios ocorridos nas respectivas regiões estão em primeiro lugar no ranking em homicídios de mulheres. Desse período até o ano do recorte temporal dessa pesquisa, o número de mortes femininas por razão de gênero no estado diminuiu, mas a quantidade ainda é muito preocupante. Em 2016, foram registrados 35 casos de feminicídios em terra capixaba. Em outras palavras, é alarmante o número de mulheres que são mortas todos os dias no Espírito Santo e em Vitória, isso sem mencionar a violência física, psicológica, patrimonial e sexual de que elas são alvos cotidianamente. A primeira Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (DEAM) no estado, em Vitória, foi instalada exatamente no momento histórico de crescimento demográfico desenfreado na Região Metropolitana de Vitória e de empobrecimento da população capixaba, no ano de 1985. No contexto nacional, as denúncias de crimes cometidos contra as mulheres estavam a todo vapor. As DEAMs passaram a ser instituídas em todos os estados da federação, incluindo o Espírito Santo, que vivenciava um período crítico no que diz respeito à violência metropolitana. A delegacia especializada da capital do estado do Espírito Santo tem o papel de receber denúncias e investigar casos de violência contra as mulheres, exercendo uma tarefa de suma importância para esse que é um problema social de destaque no Espírito Santo. 2. DELEGACIA ESPECIALIZADA EM ATENDIMENTO Á MULHER (DEAM) Na segunda metade do século XX foi visível a intensificação no combate à violência contra as mulheres. Nessa mesma época, particularmente no ano de 1985, como dito, foi instituída a primeira unidade de delegacia especializada, focada somente para o atendimento de mulheres em situação de violência, fazendo parte de 10 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012: atualização: homicídios de mulheres no Brasil. Cebela, p. 1-27, 2012. Disponível em: http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf. Acesso em: 22 dez. 2023. Dionatan Miranda de Almeida | 349 uma política nacional para atender às reivindicações feministas de políticas públicas que identificasse a violência contra as mulheres como um problema social, e bem como um problema político. O surgimento de uma unidade de polícia civil destinada à denúncia desses casos marca a atuação governamental na busca do combate e erradicação da violência doméstica de gênero.11 Contudo, essas unidades focaram somente na punibilidade do agressor, se afastando de qualquer ideal feminista de combate à violência contra as mulheres e negligenciando o atendimento distinto à vítima. Por muito tempo, não houve, nessas unidades, a preocupação social de responsabilizar os denunciados ou de conscientizar as denunciantes sobre as questões de gênero e de poder envolvidas nas relações de violência estabelecidas entre as partes. Não existiu a preocupação de formação de equipes treinadas para atender as especificidades que envolvem esses casos. Não havia, por exemplo, fornecimento de auxilio social e psicológico para as mulheres que procuravam essas unidades para fazerem a denúncia da violência.12 Porém, anteriormente à criação das Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher (DEAMs), foi instituído o SOS-Mulher em várias regiões do Brasil em finais da década de 1970 e no início dos anos de 1980. A instituição foi um marco no que diz respeito ao atendimento às vítimas de violência de gênero, pois foi a primeira experiência de contato direto com estas mulheres, e dava visibilidade a acontecimentos e consequentemente desafios, que até então eram imperceptíveis para o conjunto do movimento e para a sociedade em geral. O trabalho era realizado por feministas e militantes voluntárias, que colaboravam com uma quota mensal para custear algumas despesas, como o aluguel, telefone, enfim, para garantir o funcionamento do estabelecimento. Esse recurso financeiro era, também, usado para auxiliar com o custo de transporte das vítimas que chegavam sem dinheiro para o retorno a casa, pois estas mulheres, na maior parte dos casos, eram pobres, com muitos filhos, negras, com baixa escolaridade, sem qualificação profissional, 11 NADER, Maria Beatriz. Cidades, o aumento demográfico e violência contra a mulher: o ilustrativo caso de Vitória – ES. Dimensões Revista de História da Ufes, Vitória, v. 23, p. 156-171, 2009. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2515/2011. Acesso em: 23 dez. 2023. 12 BOSELLI, Giane Cristini. Instituições, gênero e violência: um estudo da Delegacia da Mulher e do Juizado Criminal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2003. 350 | Gênero, violência e estruturas de poder desempregadas, residentes, no caso do Rio de Janeiro, por exemplo, das partes menos favorecidas do estado, como as favelas, ou das regiões periféricas, como a Baixada Fluminense, que chegavam ao SOS para atendimento, muitas vezes, sem ter qualquer recurso para voltar para casa e apresentavam, para além da agressão sofrida, um conjunto de situações de ordem social, econômica e cultural que, em última instância, constituíam fatores de risco para a violência praticada pelo marido.13 Apesar de todo o trabalho realizado, os SOS-Mulher não vingaram e acabaram sendo extintos em 1983. Maria Amélia Azevedo (1985) 14 explica que a organização não pôde dar continuidade devido aos problemas financeiros. No decorrer da década de 1980, várias Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher (DEAMs), ou Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), conforme foi chamada a primeira delegacia voltada para o atendimento específico das mulheres vítimas de violência, de São Paulo, implantada no dia 05/08/1985. 15 Heleieth Saffioti 16 salienta que as denominações dadas a essas Delegacias são diversificadas, e que prefere chamar de DDM, nome dado à primeira delegacia de defesa da mulher brasileira. Entretanto, na presente pesquisa, denominaremos de DEAM, nome dado à primeira delegacia da mulher instituída no Espírito Santo, no ano de 1985. Ao revisitar a história da DEAM/Vitória, destaca-se também que no ano de sua inauguração, em 1985, quando ainda se chamava Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher do Espírito Santo (DEAM/ES), a delegacia especializada de Vitória funcionou numa sala da superintendência da Polícia Civil do estado, onde não só era de difícil acesso para as vítimas, mas também a execução das atividades 13 MEDEIROS, Luciene Alcinda de. “Quem Ama Não Mata”: a atuação do movimento feminista fluminense no enfrentamento da violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo parceiro íntimo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História (ANPUH), São Paulo, p. 1-16, 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300848995_ARQUIVO_ArtigoAnpuhNacional.2 011.pdf. Acesso em: 27 dez. 2023. 14 AZEVEDO, Maria Amélia. Mulheres espancadas: a violência denunciada. São Paulo: Cortez, 1985. 15 COSTA, Jurandir. Apoio às vítimas: SOS-Mulher e Delegacias. In: MOREIRA, Maria Ignez Costa; RIBEIRO, Sônia Fonseca; COSTA, Karine Ferreira. Violência contra a mulher na esfera conjugal: jogo de espelhos. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (orgs). Entre a virtude e o pecado. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992. 16 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Violência doméstica: questão de polícia e da sociedade. Gênero e cidadania, Campinas, vol. 1, p. 59-70, 2014. Disponível em: http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2015/05/22/17_29_35_372_Viol%C3%AAncia_dom%C3%A9 stica_quest%C3%A3o_de_pol%C3%ADcia_e_da_sociedade.pdf. Acesso em: 28 dez. 2023. Dionatan Miranda de Almeida | 351 judiciais era feita dentro de condições mínimas. Esse quadro só mudou no ano de 2003, a partir do momento em que a unidade foi transferida para um espaço físico próprio e independente, que abrange uma casa residencial adequada para atuar como delegacia.17 Nos dias atuais, a delegacia fica situada no bairro Santa Luíza, na região da Grande Maruípe, e registra denúncias de violência (doméstica ou não) sofridas por mulheres do município de Vitória e com idade a partir de 18 anos. Por meio de um trabalho extremamente árduo, foram coletados todos os dados contidos nos boletins do ano 2016, que totalizam 1385 casos. Naquela época, a cidade de Vitória tinha pouco menos de 363 mil habitantes. 18 Todas as informações foram transcritas manualmente para o banco de dados do programa Microsoft Excel, formulado especificamente para esse fim, ficando mais acessível e prático o trabalho com os boletins e facilitando a seleção e o cruzamento de dados. Vale destacar que o nome, tanto da vítima quanto do agressor, bem como qualquer outra informação que concede a identificação deles nas ocorrências, não compõe os arquivos que foram confeccionados para a pesquisa. Não foi permitido a transcrição de informações que identificasse os envolvidos nas fichas, isto é, não se poderia copiar os dados de identificação das vítimas e dos agressores, tais como o nome, o número do documento de identidade e do CPF, o endereço de residência e o telefone. Ao analisar os 35 casos de violência de gênero registrados na DEAM-Vitória, em 2016, cuja motivação tenha sido o ciúme, percebeu-se que um mapeamento dessas denúncias poderia ser realizado, haja vista que nos dados dos boletins foi possível encontrar informações referentes à vítima e ao agressor, e que foram informadas pelas vítimas aos escrivães da delegacia no momento de registro da ocorrência. Mas é importante destacar que alguns aspectos não foram fornecidos das duas partes igualmente, logo, o que possuímos em relação aos autores são: 17 NADER, Maria Beatriz. Mapeamento e perfil sócio-demográfico dos agressores e das mulheres que procuram a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher Vitória (ES) 2003-2005. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, Santa Catarina, p. 1-8, 2010. Disponível em: http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278008189_ARQUIVO_Trabalh oprontoparapublicacaoFG9.pdf. Acesso em: 29 dez. 2023. 18 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estimativa da população brasileira por munícipio, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2017/estimativa_dou.shtml. Acesso em: 29 dez. 2023. 352 | Gênero, violência e estruturas de poder informações sobre escolaridade e profissão; e das vítimas: a questão da cor e do estado civil. No entanto, tal acontecimento não impede o cruzamento de dados e apresentação de estatísticas, que podem dizer muito sobre as fontes, mesmo considerando as suas limitações. Além dessas informações básicas, a vítima costumava relatar para aos escrivães fatos como a convivência do casal e dos filhos, a condição econômica da família e o ocorrido no momento da agressão, expondo as motivações que elas acreditavam terem levado à violência por parte de seus companheiros. Há um espaço nos boletins intitulado “relato da vítima” onde os escrivães transcreviam tais narrativas das mulheres vítimas de violência. Esses relatos também serão analisados ao decorrer da pesquisa. 3. MAPEAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER MOTIVADA PELO CIÚME EM VITÓRIA NO ANO DE 2016 No contexto dessa pesquisa, a violência associada ao ciúme emergiu a partir do relato de 35 mulheres que denunciaram as agressões cometidas por homens na Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM), de Vitória, Espírito Santo, no ano de 2016. Alfred Adler19 explica que o ciúme é uma maneira de lutar pela dominação sob um indivíduo, restringindo a sua liberdade. Pode-se entender que esse ciúme é uma consequência da cultura patriarcal, no qual o homem enxerga a mulher como sua propriedade, dominando-a e controlando-a. Assim, o ciúme tem a finalidade da dominação do homem em desfavor da mulher, fazendo-a andar em determinado caminho ou mantê-la acorrentada. Por isso ressaltou-se a importância de fazer um mapeamento dessa violência, traçando o perfil sociodemográfico dos agressores e das vítimas, de acordo com o que é fornecido nos boletins. Primeiramente, é necessário discutir as formas como as questões de raça/cor se entrecruzam nos discursos sobre a violência de gênero, uma vez que a maneira como as vulnerabilidades são vividas pelas mulheres variam fortemente de acordo com suas experiências singulares de vida e seus marcadores sociais. Rocha e 19 ADLER, Alfred. A ciência da natureza humana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. Dionatan Miranda de Almeida | 353 Rosemberg20 ressaltam a especificidade da classificação racial no Brasil, bem como na maioria dos países latino-americanos, que resulta na aparência e não na ascendência, diferentemente dos Estados Unidos, que após a abolição da escravidão, adotou leis segregacionistas e criou uma classificação racial legal baseada na origem do indivíduo. Por esse motivo, alguns autores consideram que no Brasil não se pode falar em grupos raciais, mas sim em “grupos de cor”. Os autores explicam que existem três tipos de classificação racial: o modo oficial, que é do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o modo popular múltiplo e o modo binário. O modo oficial, usado pelo IBGE, contempla cinco categorias: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. O modo popular múltiplo é relacionado à ampla quantidade de termos que descrevem de raças e cores. O modo binário é o que tem sido usado pelos Movimentos Negros, com somente dois termos: negro e branco. 16 14 12 10 8 15 12 6 4 5 3 2 0 Pardas Negras Brancas Não informado GRÁFICO – COR DAS VÍTIMAS QUE REGISTRARAM DENÚNCIA NA DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016 20 ROCHA, Edmar José; ROSEMBERG, Fúlvia. Auto declaração de cor e/ou raça entre escolares paulistanos(as). Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 759-799, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/5NbCwJ6ShDZ6sq9FPgpBRxc/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 30 dez. 2023. 354 | Gênero, violência e estruturas de poder Percebe-se que a maior parte das mulheres se autodeclarou como parda (42,86%), seguida por aquelas que se consideravam brancas (34,29%), negras (14,29%) e três delas (8,57%) não informaram. De acordo com o Dossiê Mulheres Negras 21 , a população negra compreende aos negros e pardos. No entanto, a DEAM/Vitória cometeu um equívoco nesse sentido, haja vista que, se a classificação era por cores, deveriam constar as cores parda, branca e preta, conforme a classificação do IBGE, pois quando se fala em negro, está se falando de pardos e pretos. Apesar desse engano cometido pela DEAM/Vitória, somando as mulheres que se autodeclararam pardas e as mulheres que se consideraram negras, concluise que 58% das mulheres vítimas de violência por ciúme em 2016 eram negras. 20 18 16 14 12 10 20 8 12 6 4 3 2 0 Negras Brancas Não informado GRÁFICO – RAÇA DAS VÍTIMAS QUE REGISTRARAM DENÚNCIA NA DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016 O Dossiê Mulheres Negras através da Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílio (PNAD) demonstra a desigualdade de gênero e raça ainda bastante persistente no Brasil no final da década de 2010. Afim de definir a situação de pobreza da população, o Dossiê evidencia, utilizando o Programa Brasil sem Miséria, que os negros, mulheres e homens estão entre os mais pobres do país. No entanto, 21 MARCONDES, Mariana Mazzini. et al. (Org.). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013. Dionatan Miranda de Almeida | 355 as mulheres são as maiores vítimas da pobreza e da miséria, mesmo dentre a população negra. Por exemplo, o Dossiê faz um levantamento do ano de 2009 em relação à população extremamente pobre, em que 7,4% são mulheres negras e 7% são homens negros, enquanto 3,1% são mulheres brancas e 2,9% são homens brancos. Percebe-se que as mulheres negras tem sido a maioria entre os extremamente pobres, seguidas pelos homens negros, sendo que as mulheres brancas e os homens brancos são o menor número entre os extremamente pobres. Já entre os pobres, 13,4% são mulheres negras, 12,9% são homens negros, 5,5% são mulheres brancas e 5,6% são homens brancos. Entre os vulneráveis, 53% são mulheres negras, 52,2% são homens negros, 38,9% são mulheres brancas e 38,7% são homens brancos. Por último, entre a população não pobre, 26,3% são mulheres negras, 27,9% são homens negros, 52,5% são mulheres brancas e 52,8% são homens brancos. Enxerga-se que a proporção se inverte ao passo que aumenta a renda dos negros e brancos, com os primeiros se tornando minoria e os segundos a maioria da população do Brasil. Os homens brancos estão no topo da hierarquia ao mesmo tempo em que as mulheres negras estão na base da pirâmide social e econômica, podendo se falar em feminização e negritude da pobreza.22 Esse exemplo posto, trata-se aqui da violência de gênero que foi denunciada e perpetrada no interior de grupo social vulnerável em todos os sentidos, não somente em termos de renda, como também de acesso às condições básicas de existência, como saúde, educação, moradia e cultura, além da desigualdade de gênero e racial persistente na nossa cultura que implica em representações e símbolos da negritude, principalmente feminina, extremamente desvalorizados. A escolaridade das mulheres vítimas de violência e dos homens agressores também diz muito sobre a condição de vida e a situação sociocultural dos envolvidos nas agressões de gênero registradas na DEAM/Vitória. Infelizmente nos boletins não constam essa informação em relação às mulheres, o que seria igualmente interessante de analisar, pois conseguiríamos discutir se as que não tem instrução estão mais vulneráveis à violência de gênero, bem como relacionar com o grau de 22 MARCONDES, Mariana Mazzini. et al. (Org.). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: Ipea, 2013. 356 | Gênero, violência e estruturas de poder escolaridade dos seus algozes, descobrindo qual deles são mais escolarizados. O gráfico abaixo demonstra a escolaridade apenas dos autores da violência. 12 10 8 12 6 9 4 6 2 0 1 3 2 1 1 GRÁFICO – ESCOLARIDADE DOS AGRESSORES DENUNCIADOS NOS BOLETINS NA DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016 O número de boletins em que não é informado acerca da escolaridade dos autores é grande, representando 17,14% dos casos. Mas pode-se compreender que a maioria dos agressores têm o segundo grau completo (34,29%) e o primeiro grau incompleto (25,71%). Segundo grau incompleto e o terceiro grau incompleto refletem 8,57% e 5,71%, respectivamente. Já com ensino fundamental incompleto, terceiro grau completo e ensino superior, os agressores são minoria, com 2,86% em cada caso. Portanto, a violência de gênero é cometida, na maioria das vezes, por homens que não concluíram o ensino médio. Ou seja, a escolaridade tem implicações, em especial, no sentido de que os autores possuem um baixo grau de escolaridade. Outro dado que consta nos boletins é acerca da profissão dos agressores, que também pode desvendar muito sobre o assunto. O gráfico foi elaborado com base nas profissões mais comuns entre os agressores nos registros da DEAM/Vitória no ano de 2016. Na categoria “não informado” também estão inclusos os autores que não possuem nenhuma atividade remunerada, isto é, que estão desempregados. Dionatan Miranda de Almeida | 357 25 20 15 23 10 5 0 3 1 1 1 1 1 1 1 1 1 GRÁFICO – PROFISSÃO DOS AGRESSORES DENUNCIADOS NOS BOLETINS NA DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016 A profissão mais comum entre os autores é operador de caixa, somando 8,57%. Os demais tipos de serviços remunerados, como técnico de manutenção eletrônica, pedreiro, atendente de lanchonete, técnico de laboratório industrial, cobrador, empregado doméstico, auxiliar de escritório em geral, administrador e comerciante varejista representam 2,86% dos agressores. O número de não informado é grande: 65,71%. Isso porque nessa categoria, como dito, também estão inclusos os desempregados, o que significa que na maior parte dos casos, o indivíduo não possui vínculo empregatício. O aspecto do desemprego merece ser destacado, pois está relacionado diretamente à questão de o indivíduo do sexo masculino não conseguir continuar a desempenhar o seu papel de provedor da família, na medida em que a identidade do homem não tolera esse golpe, pois ele passa a ser visto socialmente como inferior, incapaz por não se inserir no que seria tido como normal em seu grupo de convivência. Uma vez desempregado, o indivíduo do sexo masculino sente-se fracassado, e exposto ao julgamento da falha pela sociedade, e isso porque o homem deve sempre buscar ser o melhor, ter mais. A situação de desemprego, por outro lado, impossibilita que esse quadro ideal da masculinidade contemporânea aconteça, a competitividade masculina é impossibilitada pelo não exercício de uma atividade remunerada, o 358 | Gênero, violência e estruturas de poder homem desempregado sente-se um pária diante do seu grupo de convivência, um estigmatizado, uma parte fundamental de seu papel social é posta em xeque.23 Alex Silva Ferrari24 realizou uma pesquisa utilizando registros do ano de 2002 a 2010, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Vitória/ES, acerca do desemprego como um agravante da violência contra a mulher, concluindo que em algum momento essa questão foi parte de um conflito entre a vítima e o denunciado, seja numa relação familiar durante a juventude, seja nas relações afetivas, seja nas relações conjugais, sendo que nessa última, se a vítima possui vínculo empregatício, subverte os tradicionais papéis sociais de gênero. Nesse quadro, o conflito pessoal do autor de violência chega ao seu nível mais elevado. O desemprego afeta sua identidade masculina: ele sofre com o estigma de não cumprir com suas funções sociais, é castrado de sua posição de poder e, por fim, seu maior medo transforma-se em realidade, que é o de ser “dominado” por sua parceira. Dessa maneira, a violência contra a mulher pode ser uma das alternativas optadas pelo homem para lidar com a situação, pois pode recorrer ao uso da força com o intuito de demonstrar que mesmo destituído de sua posição de poder ele ainda exerce a dominação sobre a mulher e os filhos, ou pode obrigar que esses informados contribuam para o encobrimento de seu estigma. Assim, vê-se que a relação entre o desemprego e a violência doméstica fica ainda mais aparente. Utilizando uma pesquisa realizada por Ligia Maria Soufen Tumolo e Paulo Sergio Tumolo, que tem o intuito de entender mais sobre o impacto do desemprego no indivíduo do sexo masculino, Ferrari 25 escreve que por meio de entrevistas, os 23 FERRARI, Alex Silva; NADER; Maria Beatriz. Conflito de identidade: a relação entre o desemprego masculino e a violência contra a mulher em Vitória – ES (2002-2010). XXVIII Simpósio Nacional de História, Santa Catarina, p. 1-16, 2015. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439792598_ARQUIVO_AlexeBeatrizANPUH20 15.pdf. Acesso em: 03 jan. 2024. 24 FERRARI, Alex Silva. Patriarcado e violência: desemprego masculino e reviravolta feminina nos papéis sociais de gênero. Vitória-ES (2002-2010). Orientador: Profª Drª Maria Beatriz Nader. 2016. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, 2016. Disponível em: http://repositorio.ufes.br/handle/10/9252. Acesso em: 10 jan. 2024. 25 FERRARI, Alex Silva. Patriarcado e violência: desemprego masculino e reviravolta feminina nos papéis sociais de gênero. Vitória-ES (2002-2010). Orientador: Profª Drª Maria Beatriz Nader. 2016. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, 2016. Disponível em: http://repositorio.ufes.br/handle/10/9252. Acesso em: 12 jan. 2024. Dionatan Miranda de Almeida | 359 autores sintetizaram a vivência de indivíduos desempregados, revelando alguns aspectos que, se associados a um contexto patriarcal contemporâneo, apresentamse bastante nocivos à estabilidade psicológica de homens desempregado, haja vista que a condição de desemprego intercede na vida do desempregado como um todo, sendo o setor familiar o primeiro por eles apresentado. Os interrogados declararam que os cônjuges eram a principal fonte de suporte, no entanto, reiteraram ocorrer o desgaste da relação por conta do desemprego. Outro ponto que interfere na vida do desempregado é o distanciamento social que sua condição o impõe. É válido destacar que os participantes na pesquisa salientam que, devido à perda da atividade fonte de renda, eles não se sentiam mais como tendo o controle sobre suas vidas. A autora e o autor apontam que na maior parte dos casos, essa circunstância de dependência tem uma conotação de submissão, em que os participantes sem atividade remunerada sentem que deve se sujeitar às regras e decisões daqueles que os sustentam. Acerca do estado civil dos agressores, vê-se que na maior parte dos casos analisados, ele permanece solteiro, mesmo quando possui um relacionamento de muitos anos com a companheira, que pode ser sua amásia e/ou convivente. Assim, 57,14% dos autores são solteiros. Em seguida, estão os casados, representados por 14,29%, e os divorciados, que são cerca de 11,43%. É digno de ser citado o valor de indivíduos conviventes: 8,57% dos autores. Os casos que não possuem essa informação acerca dos autores também são de 8,57%. 360 | Gênero, violência e estruturas de poder 20 18 16 14 12 20 10 8 6 4 5 2 4 3 3 0 Solteiros Casados Divorciados Conviventes Não informado GRÁFICO – ESTADO CIVIL DOS AGRESSORES COM A VÍTIMA QUE REGISTROU DENÚNCIA NA DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016 Outro aspecto que merece atenção de ser relatado na pesquisa acerca da violência de gênero associada ao ciúme é justamente a proporção de agressores que eram companheiros das mulheres agredidas quando cometeram o ato violento, e dos que já não eram mais companheiros, em que o vínculo afetivo estava desfeito no momento da agressão. O gráfico abaixo demonstra a proporção. 12 10 8 6 4 11 7 5 5 5 2 0 Cônjuge Ex-cônjuge Convivente Ex-namorado Não informado GRÁFICO – VÍNCULO DOS AGRESSORES COM A VÍTIMA QUE REGISTROU DENÚNCIA NA DEAM/VITÓRIA, DE JANEIRO A DEZEMBRO DE 2016 Dionatan Miranda de Almeida | 361 Conforme visto, em 31,43% das ocorrências, o autor é convivente da vítima, ou seja, é um indivíduo que não é casado em papel, mas convive (ou é “amigado”) com a companheira. Em segundo lugar, está o cônjuge da vítima, com 20%. Em terceiro e quarto lugar, o ex-cônjuge e o ex-namorado, representando 14,29% cada categoria. Importante destacar que o conjunto ex-cônjuge engloba outros, como ex- noivo. O percentual dos casos que não possuem a informação sobre o vínculo dos agressores com a vítima também é de 14,29%. Nos casos de violência doméstica, sabe-se que a agressão parte de pessoas próximas à vítima e que por essa razão, há uma dificuldade maior em procurar a Delegacia da Mulher para registrar uma denúncia, pois há diversos fatores envolvidos nas relações entre as vítimas e os agressores, tais como as dependências afetivas e financeiras, o receio de perder a guarda dos filhos, a preocupação com a opinião de amigos e familiares quanto ao término da relação e a falta de poder e independência, comum a muitas mulheres. Há também a questão do medo, quando o agressor faz ameaças a vítima, que se estendem aos seus amigos, familiares ou colegas de trabalho. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda que alguns aspectos das vítimas e dos autores não tenham sido fornecidos de ambas partes igualmente, tal acontecimento, conforme observado, não impediu o cruzamento de dados e apresentação de estatísticas, podendo-se concluir que a maioria das mulheres vítimas de violência de gênero associada ao ciúme em Vitória, no ano de 2016, são negras e foram agredidas pelos seus conviventes. A maior parte dos homens denunciados não possuíam ensino médio completo e o estado civil deles era solteiro, mesmo quando possuíam um relacionamento de muitos anos com a companheira, que poderia ser sua convivente. Tais informações são importantes para ter uma melhor compreensão da violência contra as mulheres que são registradas na DEAM-Vitória. 362 | Gênero, violência e estruturas de poder REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADLER, Alfred. A ciência da natureza humana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. AZEVEDO, Maria Amélia. Mulheres espancadas: a violência denunciada. 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O mesmo inicia-se com uma discussão acerca dos desafios enfrentados pelas mulheres na política em âmbito nacional, posteriormente; é apresentada de forma breve alguns aspectos da história política da Baixada Fluminense, território onde o município de Duque de Caxias, encontra-se localizado; e por fim, apresenta-se a análise acerca da presença de vereadores eleitos e vereadoras eleitas, em cada uma das legislaturas, aliada a um estudo comparativo acerca do número de eleitoras e eleitores do municípios, em cada uma daqueles período históricos. Fica evidente através dos dados apresentados, o quanto a política no referido município é misógina e machista, e esta corroborada, inclusive, pelas eleitas. 1. Introdução O presente artigo encontra-se organizado em três partes, a primeira, onde abordaremos o cenário da participação da mulher na política brasileira e suas complexidades; o segundo, onde apresentaremos características históricas e políticas e da Baixada Fluminense, território onde está localizado o município de Duque de Caxias, nosso campo de pesquisa; e a terceira onde apresentaremos a realidade sobre a presença das mulheres como vereadoras do legislativo de Duque de Caxias / RJ e ao mesmo tempo faremos uma comparação com o número de eleitoras, no mesmo período histórico. 1 Pós Doutoranda em Educação, Cultura e Comunicação pela Faculdade de Educação da Baixada Fluminense / UERJ. 366 | Gênero, violência e estruturas de poder 2. A hostilidade do ambiente da política brasileira para mulheres, ainda hoje Ainda hoje falar de mulheres na política brasileira é falar da ausência, melhor dizendo é a falar de sub-representação, já que embora sejamos 51,1% da população brasileira, dentre os cinco Presidentes da República, eleitos após a Ditadura Militar, somente uma era mulher, Dilma Rousseff, a única Presidenta em toda a história política do Brasil. Com base na eleição de 2022, a presença feminina é de 17,74% na Câmara de Deputados, de 18,52% no Senado; e de 20% na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Embora o voto feminino seja permitido desde 1932, tais dados deixam explícito o quanto quase 100 anos de depois, as mulheres ainda são subrepresentadas2. As chances das mulheres serem eleitas tornam-se menores porque historicamente elas não fizeram parte do cenário político brasileiro, a elas foi destinado durante muito tempo, somente o espaço privado. Dessa forma, ainda causa estranheza a candidatura de mulheres a cargos do alto escalão. Sendo raras as candidaturas de mulheres a cargos políticos, mas raras, ainda, são as eleições dessas mulheres. É como se não fizesse parte do hábito da população brasileira, a eleição de mulheres, mesmo sendo significativo o número de eleitoras. A política é um dos universos onde fica evidente, ainda hoje, a dominação masculina. Algumas iniciativas se deram ao longo do tempo visando diminuir essa subrepresentação, a primeira delas foi a Lei 9.100/1995, que tratou em seu artigo 11, da obrigatoriedade de 20% dos candidatos aos cargos municipais, de cada partido político, pertencerem ao do sexo feminino, tal legislação também é chamada de Lei das Cotas, constitui-se uma das conquistas do movimento feminista brasileiro. Sendo que verificou-se que a mesma apresentava lacunas, já que se o partido não preenchesse todas as suas vagas, a política de cotas não teria então nenhuma eficácia, primeiro porque a legislação criada não instituiu nenhuma sanção e 2 Sacchet, T. et al. Dinheiro e sexo na política brasileira: financiamento de campanha e desempenho eleitoral em cargos legislativos. In: Alves, J. E. D. Mulheres nas Eleições de 2010, 2012. Liandra Lima Carvalho | 367 também porque os partidos passaram a utilizar do argumento de que as vagas foram sim “reservadas” para as mulheres, mas que seriam as próprias mulheres as responsáveis pelo não preenchimento de tais vagas por não se candidataram.3 Visando uma ratificação da legislatura anterior, bem como um ampliação da política de cotas para mulheres, foi promulgada a Lei n° 9.504/97, que pontou que cada partido político poderia registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, desde que apresentasse uma lista de candidatos composta por no mínimo 30% e no máximo 70% para cada sexo (Brasil, 2010). Em 2009, mais uma iniciativa em prol do aumento do número de mulheres na política se deu, a promulgação da Lei n° 12.034/1999, na qual foi estabelecido que os partidos políticos são obrigados a destinar 5% do Fundo Partidário à criação e à manutenção de programas de promoção e difusão da participação política de mulheres. Uma novidade trazida por essa lei é a sanção aos partidos políticos que não cumprirem tal determinação, com a multa de aumento de 2,5% do Fundo Partidário, no valor de 5%. Tal legislação também estabelece que 10% do tempo de propaganda deve ser usado para promover e difundir a participação política feminina4. O principal objetivo do sistema de cotas, voltado para as mulheres na política, como uma ação afirmativa é “... criar condições para o estabelecimento de um maior equilíbrio entre homens e mulheres no plano da representatividade política”5. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tais legislações fizeram com houvesse um aumento de candidatas e também de eleitas em 2022, em comparação aos anos anteriores. Sendo que o órgão pontuou o papel dos partidos políticos, para o êxito de tal iniciativa, com o “o apoio necessário, legal e judicial às candidaturas das mulheres para que se possa ter um equilíbrio maior na participação de gênero em todos os segmentos da política nacional”6. 3 Brasil. Mais Mulheres no Poder – Contribuição à Formação Política das Mulheres, 2010, p. 23. Brasil. Mais Mulheres no Poder – Contribuição à Formação Política das Mulheres, 2010. 5 Grossi, Miriam P. et al. Transformando a diferença: as mulheres na política, 2001, p. 169. Araújo, Clara. As Cotas por Sexo para a Competição Legislativa: O Caso Brasileiro em Comparação com Experiências Internacionais, 2001, p. 258 6 TSE. Mulheres e política: decisões do TSE combatem fraude à cota de gênero, 2023. 4 368 | Gênero, violência e estruturas de poder Antes mesmo da eleição de 2022, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 117, a qual obrigou dos partidos políticos a destinar 30% dos recursos públicos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, mais conhecido como Fundo Eleitoral, como também o Fundo Partidário para campanha eleitoral de candidatas, distribuindo os mesmos de forma proporcional considerando o número de candidatas. Tal reserva também se aplicou ao mínimo de 30% do tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão às mulheres7. O Supremo Tribunal Federal (STF) já havia decidido desde 2018 sobre a questão da distribuição do financiamento para campanhas de mulheres, considerando a proporcionalidade apontada nas legislações anteriores de 30% das candidaturas serem de mulheres. Sendo que o mesmo órgão havia anistiado os partidos que não havia cumprido tal determinação8. Segundo ainda o TSE, nas eleições ocorridas em 2022, 40% dos partidos políticos não cumpriram a determinação do tocante à divisão de recursos e de tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão às mulheres e pela primeira vez os mesmos foram punidos9 (Brígido, 2023). Com base no exposto fica evidente a complexidade que ronda a presença da mulher na política brasileira, fenômeno que autoras, recentemente nomearam de Violência política de gênero, fato que acomete mulheres de todas as posições no espectro político ideológico. (...) Tem a ver com toda e qualquer ação para cercear ou impedir mulheres de se manifestarem e fazerem valer os seus direitos nos espaços de poder", conforme explica a cientista política Mônica Sodré10. A violência política de gênero não é algo novo, embora seu nome seja novo, na verdade desde que as mulheres, passaram a não se contentar com os bastidores da 7 Câmara dos Deputados. Congresso promulga cota de 30% do Fundo Eleitoral para candidaturas femininas, 2022. 8 Câmara dos Deputados. Congresso promulga cota de 30% do Fundo Eleitoral para candidaturas femininas, 2022. 9 BRIGIDO, Carolina. 40% dos partidos descumpriram cota de recursos para candidaturas femininas, 2023. 10 G1. Mulheres na política: os obstáculos e as violências que dificultam a representatividade feminina - e prejudicam a democracia, 2023. Liandra Lima Carvalho | 369 política, sim, porque as mulheres participam da política, neste país, desde o BrasilColônia, organizando e construindo estratégias para o sucesso político de seus maridos, filhos, afilhados 11 . Ela pode ser definida como “a agressão física, psicológica, econômica, simbólica ou sexual contra a mulher, com a finalidade de impedir ou restringir o acesso e exercício de funções públicas e/ou induzi-la a tomar decisões contrárias à sua vontade” 12 . Tal tipo de violência tem como base o machismo e patriarcalismo, tão ainda presentes em nossa sociedade, Araújo, elenca casos recentes de violência política de gênero, a qual pode de demonstrar de diferentes formas: “o tratamento misógino dado, com o apoio da imprensa, à única mulher a presidir o Brasil, impedida de cumprir até o fim o seu segundo mandato, Dilma Rousseff” 13 ; os ataques com incitação ao crime de estupro, realizado pelo deputado federal, na época, Jair Bolsonaro à deputada federal Maria do Rosário (PT/RS), ao dizer em diferentes ocasiões, em 2003 e 2014 “que não a estupraria porque “ela não merecia” e porque “era muito feia””14; “a importunação sexual sofrida pela deputada Isa Penna (PSOL/SP), que teve seus seios tocados por um colega deputado em meio a uma sessão legislativa na ALESP, em 2020”15 e o mais grave de todos, o “o feminicídio político da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ) em pleno centro do Rio de Janeiro, em 2018”16, o qual ainda hoje, mesmo tendo se decorrido 5 anos, criminalmente não foi elucidado. A violência política de gênero se mostra presente antes mesmo das mulheres formalizarem suas candidaturas, através da resistência dos partidos em aceitarem mulheres como candidatas -, assim como durante a campanha – com a falta de recursos, além de perseguições e ameaças -, e com ainda 11 Rocha-Coutinho, M. L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares, 1994. 12 Simeira, Carolina et al. O que é violência política de gênero?, 2023. 13 Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina, Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 592. 14 Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina, Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 592. 15 Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina, Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591. 16 Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina, Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591. 370 | Gênero, violência e estruturas de poder maior gravidade sobre as poucas mulheres que sucedem em se eleger, mesmo com tantos obstáculos e violências a elas impostos no decorrer de toda a corrida eleitoral. 17 Pesquisa realizada pelo Instituto Marielle Franco sobre a Violência Política contra As Mulheres Negras nas Eleições de 2020, com 142 entrevistadas, verificou que 78% declararam ter sofrido violência virtual durante a campanha, 62% declararam ter sofrido violência moral e psicológica, 55% sofreram violência institucional, 44% foram vítimas de violência racial, 42% sofreram violência física, alarmantes 32% das candidatas negras entrevistadas sofreram violência sexual durante a campanha e 28% declararam terem sido vítimas de violência de gênero e/ou LGBTQIA+. 18 Inclusive me questiono quantas outras mulheres candidatas já sofreram violência política de gênero, sem se darem conta, ou seja, naturalizando-a. Como pesquisadora da política em Duque de Caxias, objeto de minha tese de doutorado (Carvalho, 2015), com base na fala das minhas entrevistadas, afirmo, todas foram vítimas de violência política de gênero, mais de uma vez, em diferentes ocasiões. Dentre outros exemplos da violência política de gênero, vivenciada pelas mulheres eleitas pode-se elencar: serem constantemente interrompidas em suas falas, impedidas de participar de comissões parlamentares importantes, agredidas no exercício de suas funções (verbalmente, sexualmente e fisicamente), julgadas por estigmas de gênero, inclusive pelos próprios colegas agentes políticos, entre outras formas de violência. 19 Visando o combate à violência política contra a mulher em 2021, foi promulgada a Lei 14.192, que “dispõem sobre a prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher, nos espaços e atividades relacionados ao exercício 17 Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina, Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591. 18 Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina, Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591. 19 Araújo, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: Ramina, Larissa. Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida, 2022. p. 591. Liandra Lima Carvalho | 371 de seus direitos políticos e de suas funções públicas”20. Tal legislação também a define: “Considera-se violência política contra a mulher toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher”21. E traz como penalidade de 1 a 4 anos de prisão e multa. Embora considere um avanço a criação da referida legislação, me questiono o quanto ela vem sendo divulgada nos espaços políticos, e consequentemente quais as penalizações que vem produzindo. Também reflito acerca das duas faces da mesma moeda, uma dela é todo o avanço dos movimentos feministas que desde a década de 1990, vem avançando na busca da participação política das mesmas, através de uma série de iniciativas, dentre elas diferentes legislações e de outro, o quanto foi necessário todo esse posicionamento do referido movimento social frente ao machismo e ao patriarcalismo tão presentes em nossa sociedade. Vivemos, hoje, uma realidade, em que é feio, desagradável e antiquado ter falas e posicionamentos machistas em público; mas na qual um mulher a qualquer momento pode ser vítima de violência, somente pelo fato de ser mulher; ou seja, uma realidade bem paradoxal. Ressalto que embora reconheçamos a incidência da violência política de gênero, almejamos destacar o movimento de enfrentamento o qual as mulheres brasileira vem fazendo ao longo da história, especialmente junto à política, ou seja, “estratégias utilizadas pelas mulheres para resistir a esta autoridade e ao poder socialmente legitimados do homem na família e na sociedade”22. Tal movimento que move as pesquisas realizadas pela autora ao longo de sua trajetória acadêmica23. 3. Características históricas, políticas e econômicas da Baixada Fluminense A região da Baixada Fluminense habitualmente é destacada por seus índices de criminalidade, inclusive ligados à política. Mas, considero importante apontar, 20 BRASIL. Lei nº 14.192, de 04 de agosto de 2021. Brasil. Lei nº 14.192, de 04 de agosto de 2021. Artigo 3º. 22 Rocha-Coutinho, M. L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares, 1994, p. 20. 23 Carvalho, L. L. A influência do “Lobby do Batom” na construção da Constituição Federativa de 1988, 2017, p. 136-150, Duque de Caxias, 2017. Carvalho, L. L. Trajetórias de mulheres na política da baixada fluminense: relações entre o público e o privado e o processo de empoderamento. Município de Duque de Caxias, RJ: a partir de 1980, 2015. 21 372 | Gênero, violência e estruturas de poder também que, geograficamente, essa região é constituída, por uma “área de planícies baixas e constantemente alagadas entre o litoral e a Serra do Mar, atualmente estendendo-se por aproximadamente 80 km a partir da cidade do Rio de Janeiro”24. Essa região começou a ser ocupada de forma lenta, a partir do século XVI, como fornecedora de cana de açúcar, café e carne à capital. Para facilitar o transporte de tais gêneros alimentícios, no século XIX, inicia-se a construção da Estrada de Ferro D. Pedro II. A chegada de trens à Baixada Fluminense possibilitou sua crescente ocupação e conectou, entre si, suas muitas partes25. Na década de 1930, esta vivenciou um significativo aumento populacional com a chegada de imigrantes, especialmente do Nordeste. Eles vinham trabalhar na capital do país, então, a cidade do Rio de Janeiro, mas também trazendo o sonho de um “pedaço de terra”, realizado, muitas vezes, na oferta feita por vários loteamentos espalhados pela região. Assim, a Baixada Fluminense cresceria quanto ao número de moradores, perdendo, pouco a pouco, as características rurais26. Seus primeiros municípios foram criados na década de 1950: Nova Iguaçu e Duque de Caxias. A oferta de recursos como saúde, educação, saneamento e segurança pública não cresceu na mesma proporção do número de habitantes, hoje representando 25% do Estado do Rio de Janeiro. Um número crescente de moradores da região estarão sempre conectados a uma vasta região onde se inscreve uma das maiores cidades do país: o Rio de Janeiro27. A historiografia sobre a região indica ainda que, desde o final do século XIX, a Baixada Fluminense, apresenta, como sua marca, a violência, inicialmente difundida por “grupos de justiceiros”. Na década de 1940, serão chamados de “matadores”, grupos teriam por objetivo promover o desaparecimento de ladrões e desordeiros, 24 Geiger et al., 1956 apud Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense, 2006. 25 Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense, 2006. Simões, M. R. A Cidade Estilhaçada: Reestruturação Econômica e Emancipações Municipais na Baixada Fluminense, 2006. 26 Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense, 2006. Simões, M. R. A Cidade Estilhaçada: Reestruturação Econômica e Emancipações Municipais na Baixada Fluminense, 2006. 27 Simões, M. R. A Cidade Estilhaçada: Reestruturação Econômica e Emancipações Municipais na Baixada Fluminense, 2006. Liandra Lima Carvalho | 373 expondo, assim, a aplicação de uma “ordem local” (Almeida, 1998; Alves, 2003; Baía, 2006; Barreto, 2006; Paulo, 2006). Essa iniciativa ocorria sob o incentivo de comerciantes locais e políticos, lembrando, entre estes, Tenório Cavalcanti, mais conhecido como “o homem da capa preta‟. Sua atuação como vereador, deputado estadual por três mandatos consecutivos e deputado federal, também por três mandatos consecutivos, vai implementar o que Beloch 28 chama de coronelismo urbano: A trajetória de Tenório e a construção de sua persona pública nos permite pensar na possibilidade de utilização da violência e da coerção como expedientes políticos legítimos. Nesse sentido, o homem do “corpo fechado”, o “corajoso que tinha a gratidão “do povo” de Caxias, encerrava um paradoxo ético, como ressaltou Beloch (1986) era aquele que “mata mas faz” ou ainda “faz porque mata (aos maus). 29 Nas décadas de 1960 e 1970, desenvolveu-se na Baixada Fluminense, uma estratégia de controle e subordinação da população através do “Esquadrão da Morte” [...] cujas execuções eram operacionalizadas a partir do aparato policial, do financiamento dos grupos dominantes locais, sobretudo, de comerciantes e do respaldo encontrado nos setores públicos, que utilizavam desse serviço como uma forma de demarcar seus territórios e resolver seus problemas políticos.30 Tal período seria avaliado, porém, por muitos, como extremamente profícuo para a Baixada Fluminense em outros aspectos. Na década de 1970, o município de Duque de Caxias é considerado pelo governo militar como Área de Segurança Nacional: interventores indicados pelos militares substituem os prefeitos eleitos pelo voto direto31. A região atingiria visibilidade internacional quando um estudo realizado pela UNESCO, em 95 países, entre eles, o Brasil, entre 1971 e 1976, vai indicar a Baixada 28 1986 apud Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense, 2006. 29 Barreto, A. S. Cartografia política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense, 2006, p. 33. 30 Alves, 1998 apud Alves, J. C. S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense, 2003. 31 Cantalejo, M. H. de S. O município de Duque de Caxias e a Ditadura Militar: 1964 – 1985, 2008. 374 | Gênero, violência e estruturas de poder Fluminense como o lugar mais violento do mundo. Tratava-se mais especificamente do então distrito de Belford Roxo32. Já no final da década de 1970, assiste-se a uma significativa mobilização por parte dos moradores da Baixada Fluminense, especialmente, das localidades mais pobres, que passam a reivindicar uma maior atuação do poder público no fornecimento de luz elétrica, de água e esgoto canalizados, de equipamentos de saúde, de construção de passarelas em vias urbanas etc. Tal mobilização popular tem grande incentivo da Igreja Católica. As iniciativas populares formalizam-se através das associações de moradores, que, posteriormente, se aglutinam no Movimento de Amigos do Bairro (MAB)33. O processo de redemocratização, vivenciado, nacionalmente, na década de 1980, trouxe mudanças à realidade sociopolítica dessa região. A atuação do MAB, em conjunto com a Igreja Católica, foi tão eficaz que resulta na criação do Partido dos Trabalhadores, no município de Nova Iguaçu, no início da década de 1980 34. Os “Esquadrões da Morte” que, décadas antes, eram compostos somente por policiais, têm sua estrutura modificada. Passaram a ser chamados de “Grupos de Extermínio”, compostos também por não-policiais. Cada bairro passou a ter o seu Grupo de Extermínio, cuja função era a “limpeza social”35. A atuação de tais organizações foi tão significativa que, no final dessa década, assiste-se ao surgimento de candidaturas às eleições de alguns de seus membros para Câmaras de Vereadores36. Ex-integrantes de Grupos de Extermínio, inclusive membros de suas famílias, desenvolvem carreiras políticas. Dessa forma, na década de 1990, alguns deles chegariam às prefeituras locais. É interessante perceber que, embora a Baixada Fluminense, historicamente, tenha contado com “políticos estrangeiros”, ou seja, de fora da região, no período que antecedia às eleições: eles criavam iniciativas de atendimento à população, 32 Souza, P. de. A maior violência do mundo: Baixada Fluminense, 1980. Pinheiro Júnior, J. da M. A formação do PT na Baixada Fluminense: Um estudo sobre Nova Iguaçu e Duque de Caxias, 2007. 34 Pinheiro Júnior, J. da M. A formação do PT na Baixada Fluminense: Um estudo sobre Nova Iguaçu e Duque de Caxias, 2007. 35 Almeida, M. F. de. Extermínio seletivo e limpeza social em Duque de Caxias: a sociedade brasileira e os indesejáveis, 1998. 36 Alves, J. C. S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense, 2003. 33 Liandra Lima Carvalho | 375 chamadas muitas vezes de “serviços sociais” 37 . Ao mesmo tempo, tornavam perceptível, nesse momento histórico, sua emergência política como líderes comunitários da localidade, vistos como “[...] pessoas necessariamente integradas à comunidade em que vivem”. Para que se possa compreender as estratégias criadas pela população da Baixada Fluminense para solução de seus desafios diários, há quem considere “necessário perceber que os habitantes de tal localidade possuem vidas marcadas” pela ausência “de qualquer presença do Estado”38. Assim, entre os problemas práticos a serem resolvidos, também estava a segurança da população. Considerando a ausência do Estado no tocante às políticas públicas nesses lugares, cabia a líderes comunitários a busca de soluções que, muitas vezes, era o assassinato de bandidos e de quaisquer pessoas que pudessem oferecer riscos para a população. A partir do final da década de 1980 e início da década de 1990, passa a eleger possíveis integrantes de grupos de extermínio como vereadores e prefeitos. Nos últimos 30 anos, a Baixada Fluminense cresceu, especialmente, economicamente, passando a ter mega galpões, que funcionam como depósitos de grandes empresas multinacionais, possui shoppings, condomínios residenciais e empresariais, apart-hotéis, mas, esta ainda se manteve presente na lista dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, bem como dentre os locais com maiores índices de criminalidade e violência. 4. A misoginia da política de Duque de Caxias O município de Duque de Caxias foi emancipado em 1951 e ao longo desse tempo teve 33 prefeitos, todos do sexo masculino e somente uma única, viceprefeita, Estela Alves de Vasconcelos, uma das entrevistadas para a pesquisa de minha tese de doutorado39. 37 Monteiro, L. A. Retratos em movimento: Vida política, dinamismo popular e cidadania na Baixada Fluminense, 2007. 38 Monteiro, L. A. Retratos em movimento: Vida política, dinamismo popular e cidadania na Baixada Fluminense, 2007. 39 Carvalho, L. L. A influência do “Lobby do Batom” na construção da Constituição Federativa de 1988, 2017. Carvalho, L. L. Trajetórias de mulheres na política da baixada fluminense: relações entre o 376 | Gênero, violência e estruturas de poder A Câmara de Vereadores do município, embora tenha a sua 1ª legislatura iniciada em 1947, mas somente em 1989, elegeu a primeira vereadora, na 11ª legislatura, que se iniciou 1989 e se findou em 1992. Dalva Lazaroni de Moraes, somente 41 anos após a criação e funcionamento deste órgão político democrático, se tornou a primeira vereadora do município. Optamos por analisar a presença das vereadoras na Câmara Municipal de Duque de Caxias, nas últimas 5 legislaturas, ou seja, nos últimos 20 anos, inclusive porque ao longo desse período histórico, tivemos a implementação de algumas legislações voltadas para o aumento do número de mulheres na política. Dessa forma, poderemos observar se essas legislações causaram impactos na quantidade de vereadores nesse espaço legislativo. Tabela 1 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 15ª Legislatura (2005 - 2008) Número de Número de Número de Número de Vereadores Vereadoras Eleitores Eleitoras 19 02 252.158 275.050 Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara Municipal de Duque de Caxias e pelo TSE. Na primeira legislatura examinada que foi a 15a que se iniciou em 2005 e se findou em 2008, foram eleitos 21 vereadores, sendo 19 do sexo masculino e 02 do sexo feminino. As vereadoras eleitas foram Margarete Correia de Souza, mais conhecida como Gaete; e Maria Landerleide de Assis Duarte, mais conhecida como Leide, amiga de Caxias. Enquanto somente 10,53% dos representantes da referida casa legislativa eram do sexo feminino, ao comparar com o número de eleitores do município, percebemos que mais da metade dos mesmos, 52,32% eram dos sexo feminino, contra 47,68% do sexo masculino. público e o privado e o processo de empoderamento. Município de Duque de Caxias, RJ: a partir de 1980, 2015. Liandra Lima Carvalho | 377 Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias. Fonte: TSE. 378 | Gênero, violência e estruturas de poder Tabela 2 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 16ª Legislatura (2009 - 2012) Número de Número de Vereadores Vereadoras 19 04 Número de Eleitores Número de Eleitoras 252.643 278.220 Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara Municipal de Duque de Caxias e pelo TSE. Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias. Fonte: TSE. Liandra Lima Carvalho | 379 Na segunda legislatura examinada, a 16a que se iniciou em 2009 e se findou em 2012, houve um aumento do número total de vereadores na Câmara de Duque de Caxias, passando de 21 para 23, sendo que novamente 19 do sexo masculino e o número de mulheres eleitas, duplicou em comparação com a legislatura anterior, sendo 4 vereadoras. As vereadoras eleitas foram Juliana Fant Alves, mais conhecida como Juliana do Táxi; Maria de Fátima Pereira de Oliveira, mais conhecida como Fatinha; Margarete Correia de Souza, mais conhecida como Gaete; e Maria Landerleide de Assis Duarte, mais conhecida como Leide, amiga de Caxias. Embora o número de vereadoras pela duplicado, o número total de vereadores aumentou e mesmo assim estão mantém somente 21,05% dos assentos desse espaço de poder com a presença feminina. E mais uma vez o número de eleitoras do município, ultrapassa o de eleitores, sendo essas, 52,46%. Tabela 3 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 17ª Legislatura (2013 - 2016) Número de Número de Vereadores Vereadoras 25 04 Número de Eleitores Número de Eleitoras 282.951 322.856 Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara Municipal de Duque de Caxias e pelo TSE. Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias. 380 | Gênero, violência e estruturas de poder Fonte: TSE. Na terceira legislatura examinada, a 17a, que se deu de 2013 a 2016, observamos que houve o aumento do número total de vereadores da Câmara Municipal de Duque de Caxias, estes eram 23 na legislatura anterior, e nesta são 29, mas o número de vereadoras não aumentou, percebe-se de forma evidente que mais vereadores foram eleitos em detrimento de vereadoras. As quatro vereadoras eleitas foram Juliana Fant Alves, mais conhecida como Juliana do Táxi; Maria de Fátima Pereira de Oliveira, mais conhecida como Fatinha; Margarete Correia de Souza, mais conhecida como Gaete; e Maria Landerleide de Assis Duarte, mais conhecida como Leide, amiga de Caxias, na verdade, as quatro foram reeleitas. Comparada com a eleição anterior tivemos uma diminuição do percentual de vereadoras de 21,05% para 16%. Contraditoriamente temos no ano da eleição, um aumento do número de eleitoras para 53,29% em comparação com o número de eleitores que passou a responder por 46,71%. Tabela 4 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 18ª Legislatura (2017-2020) Número de Número de Vereadores Vereadoras 25 04 Número de Eleitores Número de Eleitoras 291.956 335.142 Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara Municipal de Duque de Caxias e pelo TSE. Liandra Lima Carvalho | 381 Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias. Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias. Já a quarta legislatura examinada, a 18a, que se iniciou em 2017 e se findou em 2020, também manteve o mesmo número de vereadoras, não houve qualquer aumento, dessa forma, as vereadoras continuaram representando 16% dos assentos. Já o número de eleitoras como nas legislaturas anteriores manteve-se acima da metade, inclusive tendo um leve aumento para 53,35%. As vereadoras eleitas foram: Deisimar Quaresma Ribeiro, mais conhecida como Deisi do Seu Dino; Delza Oliveira Sant’Anna de Oliveira, mais conhecida como Delza de Oliveira; Juliana Fant Alves, mais conhecida como Juliana do Táxi; e Maria Landerleide de Assis Duarte, mais conhecida como Leide, amiga de Caxias. 382 | Gênero, violência e estruturas de poder Tabela 4 – Vereadores e vereadoras de Duque de Caxias / RJ, da 19ª Legislatura (2021-2024) Número de Número de Vereadores Vereadoras 25 04 Número de Eleitores Número de Eleitoras 292.277 337.491 Fonte: Material organizado pela autora com base nos dados disponibilizados pela Câmara Municipal de Duque de Caxias e pelo TSE. Fonte: Câmara Municipal de Duque de Caxias. Fonte: TSE. Liandra Lima Carvalho | 383 Tal como nas legislaturas 16a, 17a e 18a, o número de vereadoras se manteve o mesmo, dessa forma, essas representam 16% dos assentos desse espaço democrático; sendo elas: Deisimar Quaresma Ribeiro, mais conhecida como Deisi do Seu Dino; Delza Oliveira Sant’Anna de Oliveira, mais conhecida como Delza de Oliveira; Fernanda Izabel da Costa, mais conhecida como Fernanda Costa; e Maria Landerleide de Assis Duarte, mais conhecida como Leide, amiga de Caxias. E também, mais uma vez, tivemos um aumento do número de eleitoras, estas representavam nos ano da eleição, 53,51% do eleitorado do município. Os dados por nós levantados e apresentados apontam: 1) Que o hoje um aumento do número de vereadoras da 15a para a 16a legislatura, mas que há 14 anos não há qualquer aumento do número de vereadoras de Duque de Caxias, diferentemente do número de eleitoras que eram 52,16% na 16a legislatura e na 19a legislatura eram 53,51%, reconheço o quanto o aumento do número de eleitoras é pequeno, mas é abissal a comparação do número de eleitoras e o número de eleitas; 2) Interessante salientar que temos uma renovação no quadro das vereadoras ao longo do período examinado, mas, como apontado anteriormente não temos um aumento no número das mesmas; 3) Mesmo a legislação apontando que as listas dos candidatos, organizadas pelos partidos políticos, devem ter a presença mínima de 30% de mulheres, não houve aumento do número de vereadoras eleitas; ou seja, houve uma aumento do número de candidaturas mas não um aumento do número de vencedoras. Questionamentos surgem ao examinar tais dados: Por que um município com um número alto de eleitoras possui um número tão baixo de vereadoras? Ressalto que tal problemática não se restringe ao município de Duque de Caxias, mas ao Brasil, num todo. O machismo estrutural é tão profundo que possibilita que mulheres não escolham, de forma democrática, outras mulheres para serem suas representantes. Até que ponto as eleitoras, também acreditam que política não é um lugar para mulheres, mesmo estas, também sendo mulheres? Embora esse não seja esse o foco do presente artigo, considero importante sinalizara que das sete vereadoras as quais foram eleitas ao longo das cinco legislaturas analisadas, três tiveram suas trajetórias políticas apoiadas por figuras 384 | Gênero, violência e estruturas de poder masculinas, como pais, maridos e sogros, conhecidas no município, dentro da política e fora dela. Dessa forma, percebe-se que grande parte das mulheres que alcançam cargos de poder possuem um capital político delegado por uma autoridade masculina: o pai, o marido, o avô. Ou seja, é através das relações familiares que essas mulheres chegam à política. Alguns são os motivos que fazem com que a plataforma política dessas mulheres seja a família, lembrando que, historicamente, administração do espaço doméstico coube, sobretudo, às mulheres. Nesses usos e costumes, Rocha-Coutinho aponta: “[...] sua posição na sociedade levou as mulheres a fazer uso de estratégias mais sutis, indiretas, manipulativas para influenciar e gerir a vida daqueles que estão a sua volta, no domínio que sempre foi o seu, o da família”. (1994, p. 142) (Carvalho, 2015, p. 34) Até quando as mulheres permanecerão nesse lugar de subalternidade na política brasileira? Será que as legislações que foram criadas ao longo dos últimos 30 anos, visando um aumento do número de mulheres nos cargos da democracia brasileira estão sendo capazes de vencer o machismo, ainda tão presente em nossa sociedade? Enfim, muitos são os questionamentos. Considerações Finais Reconheço a complexidade da temática e que não temos como abordá-la de forma mais complexa neste ensaio. Através da exposição proposta pode ser percebido, as dificuldades do município de Duque de Caxias, localizado na Baixada Fluminense, no tocante a eleição de mulheres para o cargo de vereadora, tais dificuldade também se refletem nos cargos de prefeita e vice-prefeita. Observamos que ainda há um número escasso de produções acadêmicas sobre mulheres na política brasileira, especialmente produções que analisem a realidade local, como buscamos fazer neste ensaio. Almejamos que as novas gerações de eleitoras não reproduzam esse padrão patriarcal do voto, expresso pelos Liandra Lima Carvalho | 385 resultados das eleições apresentados, bem como que esse estudo contribua para tais discussões e estimulem novas produções sobre o tema. Referências Bibliográficas ALVES, J. C. S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: APPH/CLIO, 2003. ALMEIDA, M. F. de. Extermínio seletivo e limpeza social em Duque de Caxias: a sociedade brasileira e os indesejáveis. 1998. 226 f. Dissertação (Mestrado de Antropologia Social) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998. ARAÚJO, Clara. As Cotas por Sexo para a Competição Legislativa: O Caso Brasileiro em Comparação com Experiências Internacionais. Revista Dados, Rio de Janeiro, v. 44. n. 1, 2001. ARAÚJO, Gabriela Shizue Soares de. Violência política de gênero e lawfare no Brasil. In: RAMINA, Larissa. 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Também reflete sobre os impactos da pandemia na vida das juventudes, especialmente as do gênero feminino, que enfrentaram sentimentos de ansiedade, medo, insegurança e isolamento, além de terem que se adaptar às atividades remotas de estudo e trabalho. O artigo se baseia em dados de pesquisas sobre a vitimização de mulheres na pandemia e sobre as condições de vida das juventudes, além de uma entrevista qualitativa do tipo compreensiva, onde a jovem relatou suas experiências de violência e resistência. Introdução A violência contra as mulheres, nas diferentes formas em que se apresenta, foi um dos problemas sociais que se intensificaram no contexto de Pandemia da Covid 19. A necessidade de medidas como distanciamento social para prevenção ao contágio agravou o problema, seja por colocar abusador e vítima em convívio diário e no mesmo espaço, seja pelos obstáculos ao acesso à rede formal de apoio ou ao contato com a rede informal, formada por familiares e/ou amigas (os). Ainda que a adesão às medidas como o distanciamento social não tenha sido possível ou mesmo interessante para partes população, trouxe como consequência o sentimento de isolamento, especialmente para jovens do gênero feminino. A insegurança quanto a continuidade do emprego, dos estudos, das condições de vida, foi também marcante desse período. Na vida dos e das jovens, os impactos da pandemia também foram (e ainda estão sendo, em alguma medida) sentidos, 1 Doutoranda no PPGS (UFRGS). Licenciada e mestra em Ciências Sociais (Unisinos). Professora de Sociologia no Ensino Médio. Contato: suelenpfacosta@gmail.com 390 | Gênero, violência e estruturas de poder vivenciados de formas diversas e desiguais. A adaptação as atividades remotas, nos estudos e trabalho, o distanciamento com relação as amizades e aos relacionamentos amorosos, mudaram significativamente seus sonhos e planos de futuro (Conjuve, 20202, 20213). Os sentimentos de isolamento, nervosismo e medo, especialmente para jovens do gênero feminino, também foram significativos, intensificados pela pandemia (Fiocruz, 20204). A carga de trabalho do cuidado para meninas e mulheres aumentou, prejudicando a adaptação de suas rotinas pessoais, de estudo ou de trabalho ao novo contexto, e reforçando lugares de gênero (Plan International, 2021 5 ). Para muitas famílias, as tentativas de reestruturação das rotinas foram marcadas por aumento nos conflitos familiares. Como não poderia ser diferente, as e os jovens também sofreram com o agravamento nas situações de violência de gênero. Conforme relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021) sobre a vitimização de mulheres no Brasil, quanto mais jovens, maiores os níveis de violência relatados. Na faixa de 16 a 24 anos, 35,2% afirmaram ter sofrido algum tipo de violência ou agressão. Nesse sentido, no presente texto, buscamos refletir sobre a violência de gênero no contexto pandêmico e sobre como o distanciamento social foi um dificultador para a autoidentificação da vítima enquanto inserida em um relacionamento abusivo. Metodologicamente, na conexão entre as categorias gênero, juventude e violência, partimos da análise de dados sobre a vitimização de mulheres na pandemia e sobre os impactos da pandemia na vida das juventudes. Utilizamos também trechos de entrevista realizada com Bianca6 uma jovem branca, gaúcha, doutoranda na área de Ciências Humanas, que enfrentou um relacionamento abusivo durante a pandemia. Verificamos que, para a jovem, o isolamento em seu quarto na maior parte do tempo 2 CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE. Juventudes e a pandemia do coronavírus - Relatório de resultados, Junho de 2020. Disponível em: https://atlasdasjuventudes.com.br/juventudes-e-apandemia-do-coronavirus/ Acesso em: Julho de 2020. 3 CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE. Juventudes e a pandemia do coronavírus - 2ª edição Relatório nacional, maio de 2021. Disponível em: https://atlasdasjuventudes.com.br/wpcontent/uploads/2021/08/JuventudesEPandemia2_Relatorio _Nacional_20210702.pdf Acesso em: junho de 2021. 4 CONVID Adolescentes - Pesquisa de comportamentos. Disponível em: https://convid.fiocruz.br/index.php?pag=apresentacao_resultado_adolescentes Acesso em: Julho de 2021. 5 PLAN INTERNATIONAL, Por ser menina – resumo executivo. Novembro de 2021. 6 Na reprodução dos relatos de entrevista, utilizamos nomes fictícios e buscamos suprimir informações que expusessem sua identidade. Suélen Pinheiro Freire Acosta | 391 (como espaço de trabalho, lazer e descanso), a falta de contato para conversas íntimas com suas amigas (rede informal) e as divergências quanto a percepção do abuso entre ela e sua mãe (possível conflito geracional) agravaram sua identificação como vítima e, consequentemente, ação contra as violências sofridas. A pesquisa apresentada aqui compõe o projeto de tese em Sociologia, intitulado “Jovens e pandemia: estratégias desenvolvidas por jovens para construção de sentidos de ‘normalidade’ em meio ao contexto social pandêmico”, que tem como pergunta: Como os jovens porto-alegrenses, nos diferentes arranjos de classe, raça e gênero, desenvolveram estratégias para construir sentidos de normalidade no contexto social pandêmico? O objetivo é construir respostas com jovens de 18 a 25 anos, com identidades diversas e diferentes percepções quanto ao contexto pandêmico. Para tanto, realizaremos encontros de grupos focais e entrevistas individuais. Percursos metodológicos A pesquisa apresentada neste texto compõe projeto de tese em Sociologia que tem como objetivo compreender as estratégias construídas por jovens para dar sentido de “normalidade” à suas trajetórias em meio a pandemia de Covid 19. Para tanto, optamos com percorrer técnicas de pesquisa qualitativa (Flick, 2004 7). Para identificar a diversidade de experiências e condições conforme o contexto de cada jovem e os diferentes arranjos entre marcadores de gênero, raça e classe (dentre outros), utilizamos de roteiro flexível, orientado pelos temas: Pandemia, educação, trabalho, lazer, relacionamentos e emoções. Bianca foi a primeira entrevistada, com exercício da abordagem compreensiva (Ferreira, 20148), a qual visa o estímulo para a fala dos entrevistados e se orienta pelo fluxo da conversa. Nosso primeiro contato ocorreu por proximidade entre nossos cursos e interesses de pesquisa. Embora esse contato e a realização da entrevista tenham ocorrido em tempos em que as atividades presenciais haviam retornado e a 7 FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2004. FERREIRA, Vítor Sérgio. Artes e manhas da entrevista compreensiva. Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.3, p.979-992, 2014 8 392 | Gênero, violência e estruturas de poder pandemia já não era uma emergência sanitária, optamos por encontro virtual. O período de fortes chuvas, em outubro de 2023, com consequentes enchentes em algumas regiões, foi principal motivo, característica de uma conjuntura de crise climática9. Distanciamento social na vida das juventudes Quando a pandemia de Covid 19 teve início no Brasil, teve como efeito a exposição das desigualdades sociais e dos distanciamentos que o país já enfrentava. Inicialmente apresentado como quarentena, teve a longa duração de março de 2020 a maio de 202310, sendo período de agravamento nas condições de vida da população. Uma primeira medida de prevenção ao contágio foi o isolamento social, onde cada indivíduo ou família foi orientado a ficar em casa e sair somente para atividades essenciais (como fazer compras de alimentos e medicamentos, fazer exames médicos etc.). As escolas e universidades foram fechadas, assim como diversos outros estabelecimentos, em muitos casos com tentativas de adaptação destes ao modelo online. O período foi chamado, inicialmente, de quarentena, e marcado por campanhas nos meios de comunicação (redes sociais, televisão, rádios e outdoors), em defesa do “fica em casa”, uma forma de incentivar a população a evitar sair de casa e ter contato com pessoas contaminadas, contribuindo assim para a propagação do vírus. De fato, conforme Bezerra et al. (2020)11, em pesquisa realizada no primeiro mês da pandemia, a maioria dos entrevistados apoiava e afirmava que iriam aderir ao isolamento social como medida de prevenção ao contágio da COVID-19, mesmo entre aqueles que não puderam se isolar por falta de condições. Além disso, 9 Conforme relatório da Unicef, 40 milhões de meninas e meninos brasileiros já estão expostos a mais de um risco climático ou ambiental, o que já tem demonstrado impactos na garantia de direitos das futuras gerações. Disponível em: Crianças e adolescentes são os que mais sofrem com as mudanças climáticas e precisam ser prioridade, alerta UNICEF Acesso em: Fev-2024. 10 Ver: OMS declara fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional referente à COVID-19. Disponível em: OMS declara fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional referente à COVID-19 - OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde (paho.org) 11 BEZERRA, Anselmo César Vasconcelos, SILVA, Carlos Eduardo Menezes da, SOARES, Fernando Ramalho Gameleira, SILVA, José Alexandre Menezes da. Fatores associados ao comportamento da população durante o isolamento social na pandemia de COVID-19. Ciência & Saúde Coletiva, 25, 2020 Suélen Pinheiro Freire Acosta | 393 conforme destacam os autores, a medida de isolamento foi avaliada por especialistas como “uma das principais medidas não farmacológicas para o enfrentamento da pandemia da COVID 19” (Bezerra et al., 2020, p. 2413). Contudo, cumprir o isolamento não foi possível para boa parte da população, que precisou continuar suas atividades presencialmente (Augustin e Soares, 2021; Goés, Martins, Nascimento, 2021)12. O “fiquem em casa” e outras medidas de distanciamento foram sendo ressignificados com o decorrer da pandemia, e vivenciadas de modos desiguais conforme os arranjos entre marcadores sociais de classe, gênero e raça. Se, por um lado, ficar em casa pôde ser “reinventar a rotina, se descobrir como uma pessoa estrangeira” (Schwartz, 2020, p. 3)13, vivenciar novas experiências e aprendizagens, por outro, também se refletiu no acúmulo de tarefas, em dificuldades para continuar estudando, além de uma série de sentimentos relacionados à preocupação com a saúde, com o futuro, com a renda da família etc. A divisão das tarefas domésticas e a constituição de uma “rotina precária” em meio à pandemia ampliaram o sentimento de ansiedade, como observou Koury (2020)14. O autor destacou outros fatores para os conflitos familiares, como a insegurança “sobre a manutenção do emprego, com as exigências de continuidade do trabalho por meios virtuais, sem o aparato técnico necessário” (Koury, 2020, p. 20). A pesquisa de Bezerra et al. (2020, p. 2414) também demonstrou o “estresse no ambiente doméstico”. Na vida das juventudes, os impactos foram sentidos também nos campos da educação, trabalho, relacionamentos, com a persistência de sentimento de insegurança, medo e isolamento, além da perda de pessoas queridas para o vírus. (Conjuve, 2020, 2021; Fiocruz, 2020). Soma-se ainda as ações de um governo dedicado a disseminação do vírus e a fragilização de laços de afetividade por conta de divergências políticas. 12 AUGUSTIN, André Coutinho, SOARES, Paulo Roberto Rodrigues. Desigualdades intraurbanas e a Covid-19: uma análise do isolamento social no município de Porto Alegre. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 23, n. 52, set/dez 2021 13 SCHWARCTZ, Lilia M. Quando acaba o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 14 KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. As emoções em tempo de isolamento social. In.: KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (org.). Tempos de pandemia: Reflexões sobre o caso do Brasil. 1. ed. – João Pessoa: Grem-Grei; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020. 394 | Gênero, violência e estruturas de poder Na vida de Bianca, jovem de 24 anos, branca, gaúcha e doutoranda em curso da área de Ciências Humanas, alguns destes efeitos foram sentidos. Ela se descreve enquanto privilegiada, por não ter enfrentado consequências materiais no período pandêmico. Na época, Bianca morava com seus pais, em uma cidade pequena, próxima a Novo Hamburgo, e namorava Marcelo, morador da mesma cidade. A rotina da família de Bianca sofreu mudanças, com a necessidade de que ela e sua irmã mais nova (na época com 13 anos) realizassem suas atividades de estudo em casa. Ela e sua irmã mais nova continuaram estudando, seu pai continuou na empresa em que trabalhava, cumprindo as devidas medidas de prevenção, e sua mãe continuou responsável pelo trabalho do cuidado da casa (como já fazia desde o nascimento de Bianca). No mesmo terreno da família, morava o avô de Bianca, com 90 anos, e alvo de maior preocupação da família por compor o chamado “grupo de risco15”. Conforme a entrevistada, “Os dois anos da pandemia foram os anos de mestrado, assim, né?”. Com a bolsa de mestrado, Bianca teve sua primeira renda própria permitida pelos pais. Para dar sequência aos estudos, transformou o quarto em uma espécie de escritório e se dedicou a variedade de eventos acadêmicos online e as possibilidade de ampliar contatos e produtividade, o que logo lhe trouxe cansaço. Também no quarto, Bianca realizava atividades físicas orientadas virtualmente por sua personal trainner. Aos poucos, foi se isolando em seu quarto, onde buscava se distanciar das notícias sobre a pandemia que sua mãe ouvia diariamente no rádio e na televisão. Saia do quarto somente para as refeições. Com o tempo em que passava dentro de seu quarto, Bianca acabou se isolando. No seu dia a dia, passou a sair do quarto somente para as refeições, o que também era uma alternativa para se distanciar das notícias sobre a pandemia, que a 15 O “grupo de risco” em relação à Covid 19 foi formado por pessoas que tivessem condições de saúde que tornasse mais propício à contaminação de coronavírus em sua forma mais grave, tais como: idosos, pessoas com doença cardíaca; pessoas com doença pulmonar; pessoas com doenças renais; pessoas com doenças do fígado; pessoas com problemas de baixa imunidade; pessoas em gravidez de risco; puérperas; crianças de até 5 anos; pessoas com obesidade. (Conforme Biblioteca Virtual em Saúde. Disponível em: Quais são os grupos de risco para agravamento da COVID-19? – BVS Atenção Primária em Saúde Suélen Pinheiro Freire Acosta | 395 mãe passava o dia ouvindo pelo rádio ou pela TV. Também no quarto, Bianca treinava com aparelhos de musculação que comprou pela internet e com a orientação de uma personal trainner, a qual contatava via Google Meet. A minha vida era no quarto de casa, eu só não comia no quarto, eu ia para sala, mas daí eu tenho uma parte, tinha, né, na parte lá no quarto que era tipo escrivaninha, assim não era a cama, era um pouquinho mais separada assim. Daí eu fazia ali, tipo minhas aulas e tal, como se fosse um escritoriozinho e meu estudo ali, mas também fazia minha parte de academia ali na casa, né? No quarto, quer dizer, dormia no quarto. Era basicamente minha vida toda no quarto, menos comer. Tem dia que eu mal saía do quarto. (Bianca, 2023) Embora tenha tido condições seguir seus estudos, se proteger do contágio do vírus e cuidar da saúde do corpo, o isolamento do contato pessoal com outras pessoas foram lhe fazendo mal. De diferentes formas, a permanência de Bianca no quarto se relaciona ao medo e a um desejo de se proteger, seja do vírus ou das notícias sobre a pandemia e do governo da época. A estratégia para cuidar de sua saúde, porém, acabou tendo consequências negativas, próximas à depressão, e se encaixa na metáfora da “geração do quarto 16 ” elaborada por Ferreira (2020 17 ) em referência a jovens que estão mais conectados do que nunca com o mundo via redes sociais, e mais desconectados e solitários dentro de casa. Ao mesmo tempo, o medo sentido por Bianca era um sentimento compartilhado com sua família, que continuava tentando seguir à risca as medidas de prevenção. Nessa perspectiva, Pereira (202018), analisou “cenários do medo” que se produziram em meio à pandemia, identificando a emergência de uma “sociabilidade pandêmica” onde o medo “pode ser a matriz estruturante de todas as ações e sentimentos vividos”. 16 Ferreira (2020) pesquisou com crianças e adolescentes, de 11 a 18 anos, antes da pandemia de Covid 19, porém sua metáfora é interessante para o contexto em análise, especialmente por apontar hipóteses para a opção de muitas crianças, adolescentes e jovens pelo isolamento em seus “quartos”. “O quarto é o cômodo da casa escolhido para ficar, para não enfrentar as questões problemáticas.” 17 FERREIRA, Hugo Monteiro. A geração do Quarto: Quando Crianças e Adolescentes nos ensinam a amar. Brasil: Record, 2022. 18 PEREIRA, Jesus Marmanillo. Cenários de medo e as sociabilidades pandêmicas no Maranhão. . In.: KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (org.). Tempos de pandemia: Reflexões sobre o caso do Brasil. 1. ed. – João Pessoa: Grem-Grei; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020 396 | Gênero, violência e estruturas de poder O isolamento orientado pelo medo afastou Bianca das amizades, com quem manteve contato somente via redes sociais. Ela identificou que, aos poucos, esses contatos foram se tornando superficiais, com pouca abertura para conversas íntimas. Assim, seu namorado, na época, se tornou seu único contato com o mundo fora de seu quarto e de sua casa. Embora tenha conseguido encontrar formas de dar continuidade a atividades como a pesquisa acadêmica e as atividades físicas, Bianca não conseguiu manter contato com as amigas, ao menos não quanto a conversas intimas e pessoais. Seu maior sofrimento, porém, foi ter vivenciado um relacionamento abusivo, solitariamente, sem rede apoio. As experiências de Bianca foram permeadas por marcadores sociais de gênero e geração, agravada pelo contexto pandêmico, demonstrando a importância em compreender a pluralidade em torno das identidades e vivências de jovens (Groppo, 201519). Partimos então da compreensão da articulação entre as categorias sociais de juventude (Groppo, 2015) e gênero (Scott, 2017 20), construções sociais situadas no tempo e espaço e que se interseccionam na trajetória de Bianca em meio a pandemia. Isolamento social em um relacionamento abusivo Ao mesmo tempo, o isolamento social necessário como medida de prevenção a contaminação e propagação da Covid 19, enfraqueceu mecanismos de prevenção e ação contrárias a violência (redes de apoio formal e informal) (Marques et al., 202021). Discutindo a redução de registros de boletins de ocorrência por violência contra mulher, em contraposição ao aumento de casos de feminicídio, na pandemia, 19 GROPPO, Luis Antonio. Teorias pós-críticas da juventude: juvenilização, tribalismo e socialização ativa. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, vol. 13, núm. 2, julio diciembre, 2015, pp. 567-579 20 SCOTT, Joan. (2017). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2). Recuperado de https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721 21 MARQUES, Emanueleza Sou. et al. Violence against women, children, and adolescents during the COVID-19 pandemic: overview, contributing factors, and mitigating measures. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 4, 2020. Suélen Pinheiro Freire Acosta | 397 Lobo (202022) refere-se a “pandemia de violência doméstica, um surto longevo”. A autora destaca os obstáculos para que mulheres vítimas de violência acessassem serviços de acolhimento e denúncia em meio a pandemia, assim como a problemática de estar isolada no mesmo espaço que o agressor. Em situações de violência de gênero, o isolamento das vítimas já era praticado anteriormente ao contexto pandêmico, como estratégia de enfraquecimento e silenciamento destas. Assim, a residência se mostrou como espaço de maior risco para as mulheres (FBSP, 202123, 202324). Como Bianca descreveu em seus relatos, e citamos anteriormente, ela e sua família aderiram as medidas de isolamento e distanciamento social. Ela, sobretudo, dedicou-se de forma central ao mestrado e as atividades físicas, em seu quarto, reduzindo o contato com suas amigas e até mesmo com seus familiares. Embora Bianca estivesse em contato com colegas de aula, professores e professoras, participasse de diversos eventos acadêmicos online e conversasse com sua personal trainer, o então namorado era a única pessoa de fora de sua casa que ela encontrava. Conforme relatou: Ele era meu namorado, e ele era a única pessoa que vinha de fora e me trazia um pouco do mundo exterior. Ele também trabalhava fora, na empresa que ele trabalhava em (...) uma cidadezinha vizinha. Daí ele era a única pessoa que a gente recebia em casa, assim eu me lembro de ter um ou outro parente que a gente recebeu, mas daí a minha mãe ficou super noiada de receber eles e a gente recebeu no quintal de casa e tal, no ar livre e tal. Minha mãe super, mega ultra noiada, assim sabe de receber. E daí era a única pessoa que vinha, era esse meu ex, daí tipo as minhas amigas nem chamavam para a festa assim e tal, essas coisas, porque elas também eram muito contra. (Bianca, 2023, grifos nossos) 22 LOBO, Janaina Campos. Uma outra pandemia no Brasil: as vítimas da violência doméstica no isolamento social e a “incomunicabilidade da dor”. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, v. 8, n. 1, p. 20–26, 30 maio 2020. 23 BUENO, Samira. et al. Visível e invisível : a vitimização de mulheres no Brasil. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/108 Acesso em: Dezembro, 2023. 24 BUENO, Samira. et al. Visível e invisível : a vitimização de mulheres no Brasil. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/224 Acesso em: Dezembro, 2023. 398 | Gênero, violência e estruturas de poder O namorado de Bianca também tinha o privilégio de ser uma das poucas pessoas selecionadas para compartilhar o convívio da família, mesmo com as noias e preocupações da mãe dela, que optava por receber parentes no quintal de casa. O acolhimento que a família demonstra com seu namorado, dando-lhe tratamento semelhante ao direcionado às pessoas da casa (a “família”), foi um fator que também se apresentou como obstáculo para Bianca frente as situações de violência sofridas. No caso de Bianca, ainda que não morasse com o namorado, seu isolamento ficou evidente e se mostrou como agravante nas situações vividas com o namorado. (...) durante assim, a pandemia, esse início da pandemia, o meu ex-namorado começou a apresentar vários comportamentos assim bem complicados que eu não me dava conta porque eu não falava com ninguém sobre, sabe? (Bianca, 2023, grifos nossos) Bianca relatou que somente em 2021, após ter tomado primeira dose de vacina contra Covid 19, começou a sair esporadicamente e com cuidado, para tomar café com amigas e frequentar o serviço público que era seu objeto de estudo no mestrado. Seu então namorado, porém, sem que ela soubesse, não deixou de sair durante a pandemia, como ela foi descobrir tempos depois. Bianca descreve como uma quebra de combinado, uma espécie de traição, pois o namorado reunia amigos para resenhas em sua chácara, ao mesmo tempo que frequentava a casa de Bianca e ficava próximo do avô dela, contrariando totalmente o que ela pedia. O desrespeito de Marcelo aos combinados com Bianca sobre os cuidados para prevenção ao Covid 19 compõe seus comportamentos abusivos. A mentira colocava a saúde de Bianca e de sua família em risco, pois acabava por lhes expor ao possível contato com o vírus. Ao longo da conversa, Bianca relata que embora tenha sentido muita raiva não se sentiu tão surpresa com as saídas do então namorado em meio a pandemia, dadas suas orientações políticas a favor do governo da época. Porém, essa não era a única manifestação do abuso, como ela relatou: Ele gritava muito comigo, assim, sempre que ele tinha chance, ele estava gritando comigo. Ele já jogou coisa na minha cara assim já me pegou de me segurar assim de me sacudir. Tipo, reclamava da roupa que eu estava usando. Me chamava desleixada disso, daquilo... Se eu não queria transar ele ficava muito puto, sabe, essas coisas assim, que, Suélen Pinheiro Freire Acosta | 399 tipo, eu não eu via como violência, assim, tipo nem as físicas que ele fazia que seria mais perceptível assim, eu não percebi a violência, porque eu acho que eu nunca falava para ninguém. Foi algo muito silencioso assim. Eu conversava muito com as minhas amigas, mas aí a gente parou de se ver e esse também não é o tipo de conversa que vai surgir assim no WhatsApp da vida. Daí eu me lembro que foi no final de 2021... deixa eu pensar, é... foi no final de 2021 que eu encontrei um grupo de amigas que jogava vôlei comigo na universidade, que eu não via há tempos que foi quando eu voltei a reencontrar as pessoas, porque 2020 não vi quase ninguém, 2021 eu reencontrei elas. Eu falei aí da vez que ele jogou coisa na minha cara, de quando ele gritava coisa que estava bravo comigo. Tudo isso, daí elas pararam e me olharam: “Bianca, tu ta te ouvindo? Algum vez tu já tinha falado sobre isso?” Daí eu, eu pensei, “nossa, eu não tinha externalizado isso para ninguém”. Então comecei a pensar, “Deus, realmente né”. E daí elas “nossa, e tu super feminista com todos esses discursos, e não sei o que lá... Vivendo todas essas violências, que a gente tá super percebendo que são, e tal...” E eu, nossa realmente, quando eu comecei a ouvir, sabe, e daí ele tinha muita atitude assim. Ah, uma das piores vezes, assim... Eu não conseguia terminar com ele também, porque ele era a única pessoa que vinha de fora, sabe? (...), mas eu fiquei com essa dependência também de que era a única pessoa que vinha e trazia algo diferente, algo do mundo fora e tal. (...) E também somando a não conversar com ninguém mais, tipo, ele tinha muitos comportamentos assim, abusivos, e tudo mais. (Bianca, 2023, grifos nossos) A categoria “comportamentos abusivos”, utilizada por Bianca se relaciona à de “relacionamentos abusivos” e é relativamente nova, própria do léxico do feminismo brasileiro contemporâneo (Sousa, 2017 25) frequente nas redes sociais. Inserido no campo da violência de gênero, guarda algumas conexões com este tipo de violência, como a possibilidade de ser praticado por pessoas de qualquer identidade de gênero e orientação sexual. Nesses relacionamentos, a violência pode ser tanto física quanto psicológica, e tem como característica a manipulação das vítimas e a dissimulação da violência em ações naturalizadas dentro dos relacionamentos afetivos, como os ciúmes e o controle sobre o outro (Barreto, 201826). Tanto a violência de gênero quanto os relacionamentos abusivos, enquanto 25 SOUSA, Fernanda Kalianny Martins. Narrativas sobre relacionamentos abusivos e mudança de sensibilidades do que é violência. In: Seminário FESPSP Incertezas do Trabalho, 2017, São Paulo. Seminário FESPSP Incertezas do Trabalho. São Paulo, 2017. 26 BARRETTO, Raquel Silva. Relacionamentos abusivos: uma discussão dos entraves ao ponto final. Revista Gênero, v. 18, n. 2, 7 nov. 2018. 400 | Gênero, violência e estruturas de poder categorias, deslocam a violência do âmbito doméstico e comumente associado as relações conjugais e de família. Assim, possibilitam analisar relacionamentos como namoros e outras configurações. Uma característica marcante deste tipo de relacionamento são os ciclos de violência e manipulação, por onde abusadores, após agressões físicas ou verbais ficarem evidentes, se mostram arrependidos e utilizam estratégias “românticas” para reconquistar a vítima. Esse padrão é perceptível no caso de Bianca, com o pedido de desculpa e os presentes costumeiros. O retorno dos encontros com as amigas foi essencial para a percepção de Bianca quanto as violências sofridas. Em seu relato há também um tom de culpa, como se, por sua formação acadêmica e por ser feminista, devesse ter identificado e agido anteriormente. Ainda assim, ela vê nas amigas o suporte para encerrar o relacionamento. Este suporte, porém, não demonstra incentivo para Bianca denunciar as ações do namorado nas instâncias legais. A entrevista realizada não nos trouxe elementos suficientes para aprofundar a análise sobre Marcelo. Contudo, suas ações ao reproduzir os ciclos de abuso remontam padrões de masculinidade estereotipados, que entendem as identidades e performances feminina e masculina como dois polos naturalmente opostos, como quer certa “ideologia de gênero” (Connel, 2016 27 ). Os elementos que temos demonstram a naturalização da violência por palavras e ações que impõe que Bianca atue servindo aos desejos dele Refletindo sobre aumento da violência contra mulher em meio a pandemia, tendo a noção de masculinidade como elemento central, Santos et al (202128, p. 11) identificam este fenômeno como reflexo da redução do poder do homem, isolado na esfera privada, e ao questionamento de seu poder na esfera privada. Assim, (...) as práticas tóxicas e violentas aparecem na tentativa de estabilizar o modelo de masculinidade definido pelo poder patriarcal, ou de tentar reconstituí-lo em novas configurações. 27 CONNEL, Raewyn. Gênero em termos reais. São Paulo: InVersos, 2016. SANTOS, Dherik Fraga. et al. Masculinidade em tempos de pandemia: onde o poder encolhe, a violência se instala. Saúde e Sociedade, v. 30, 23 ago. 2021. 28 Suélen Pinheiro Freire Acosta | 401 Simbolicamente, Bianca termina a relação com Marcelo paralelamente ao período de retomada das atividades presenciais. O fim do relacionamento é acompanhado da mudança de Bianca para Porto Alegre, quando inicia o doutorado, assim realizando um dos desejos anteriores ao início da pandemia (sair da casa dos pais). Sua mudança logo após o término teve repercussões com a circulação de boatos na pequena cidade. Sair de casa também foi importante para se distanciar das reações de sua mãe ao término. Daí minha mãe, quando eu terminei assim, minha mãe, nossa se jogava no chão, chorava, esperneava, chorava, chorava... Dizendo “não, vocês não podem terminar, tu está me fazendo perder um filho.”. E chorava, chorava, chorava... E daí, tá. Daí eu falei para ela né o que ele tinha feito e ela “ai, mas o amor tudo supera, sabe?” Tá bom então, então tá. Então foi muito importante eu ter conseguido vir para Porto Alegre, sabe? Porque senão, minha mãe, ela ia me pressionar tanto que daqui a pouco ou eu ia enlouquecer ou eu ia voltar com ele ou alguma coisa assim, sabe. Foi muito bom poder ter voltado e de começar a viver aqui, me afastar daquelas pessoas de lá, daquela mentalidade de lá e tal. (Bianca, 2023.) Assim, ao se distanciar de sua família e de sua cidade, fazendo o caminho inverso ao do início da pandemia, Bianca encontra meios de terminar o namoro e iniciar novas experiências em sua vida. Este é um ponto abordado pelo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), em reflexão sobre maior número de relatos de violência por mulheres jovens, afirmando que estas possuem uma maior percepção do que é a violência, sobretudo quanto maior o nível de estudo. A diferença de reação das amigas de Bianca e de sua mãe é interessante para pensar sobre possíveis mudanças geracionais na leitura sobre violência de gênero e sobre o amor. As transformações sociais e históricas com relação ao gênero são demonstradas na reação das jovens, na percepção sobre a violência e no acolhimento entre elas. Contudo, ainda fica notável a permanência da violência de gênero como meio para manter o desequilíbrio de poder. A visão da mãe tende a reproduzir a naturalização da violência e romantizar a permanência de mulheres em relacionamentos abusivos. Seu cotidiano também é marcado por práticas tradicionalmente postas as mulheres, como o trabalho doméstico e a preocupação 402 | Gênero, violência e estruturas de poder com a família. As amigas compartilham de uma leitura contemporânea sobre violência de gênero, parte de uma experiência compartilhada das formas como os debates sobre essa temática tem se dado. A aprendizagem necessária para Bianca sair daquela relação se deu por meio do diálogo com seus pares, em termos de gênero e geração, e pelos laços afetivos partilhados. Considerações finais Ao longo do texto, tivemos o objetivo de refletir sobre o contexto pandêmico, articulando categorias de gênero e juventude, e analisar como o distanciamento social se apresentou como dificultador para a identificação de situações de violência de gênero na pandemia. Tendo conseguido dar continuidade a sua rotina de estudos e sem ter sofrido impactos econômicos da pandemia, a jovem entrevistada reflete sobre seu contexto e se identifica como privilegiada. Contudo, o isolamento social seguido por ela e sua família em meio a pandemia agravaram a qualidade de sua saúde mental e as condições para enfrentar um relacionamento abusivo. O papel das amigas no caso em análise evidenciou a importância do contato e do diálogo para que vítimas consigam verbalizar e perceber as violências sofridas. Referências AUGUSTIN, André Coutinho, SOARES, Paulo Roberto Rodrigues. Desigualdades intraurbanas e a Covid-19: uma análise do isolamento social no município de Porto Alegre. Cadernos Metropole. São Paulo, v. 23, n. 52, pp. 971-991, set/dez 2021 BARRETTO, Raquel Silva. Relacionamentos abusivos: uma discussão dos entraves ao ponto final. Revista Gênero, v. 18, n. 2, 7 nov. 2018. BEZERRA, Anselmo César Vasconcelos, SILVA, Carlos Eduardo Menezes da, SOARES, Fernando Ramalho Gameleira, SILVA, José Alexandre Menezes da. Fatores associados ao comportamento da população durante o isolamento social na pandemia de COVID-19. Ciência & Saúde Coletiva, 25, 2020 BUENO, Samira. et al. Visível e invisível : a vitimização de mulheres no Brasil. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021. Disponível em: Suélen Pinheiro Freire Acosta | 403 https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/108 Acesso em: Dezembro, 2023. BUENO, Samira. et al. Visível e invisível : a vitimização de mulheres no Brasil. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/224 Acesso em: Dezembro, 2023. CONNEL, Raewyn. Gênero em termos reais. São Paulo: InVersos, 2016. CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE. Juventudes e a pandemia do coronavírus 2º edição - Relatório nacional, Maio de 2021. Disponível em: https://atlasdasjuventudes.com.br/wpcontent/uploads/2021/08/JuventudesEPandemia2_Relatorio_Nacional_20210702.p df Acesso em: Junho de 2021. CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE. Juventudes e a pandemia do coronavírus Relatório de resultados, Junho de 2020. Disponível em: https://atlasdasjuventudes.com.br/juventudes-e-a-pandemia-do-coronavirus/ Acesso em: julho de 2020. CONVID Adolescentes - Pesquisa de comportamentos. Disponível em: https://convid.fiocruz.br/index.php?pag=apresentacao_resultado_adolescentes Acesso em: julho de 2020. Crianças e adolescentes são os que mais sofrem com as mudanças climáticas e precisam ser prioridade, alerta UNICEF. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/criancas-eadolescentes-sao-os-que-mais-sofrem-com-mudancas-climaticas-e-precisamser-prioridade. Acesso em: fevereiro de 2024. FERREIRA, Hugo Monteiro. A geração do Quarto: Quando Crianças e Adolescentes nos ensinam a amar. Brasil: Record, 2022. FERREIRA, Vítor Sérgio. Artes e manhas da entrevista compreensiva. Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.3, p.979-992, 2014 FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2004. GROPPO, Luis Antonio. Teorias pós-críticas da juventude: juvenilização, tribalismo e socialização ativa. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, vol. 13, núm. 2, julio diciembre, 2015, pp. 567-579. LOBO, Janaina Campos. Uma outra pandemia no Brasil: as vítimas da violência doméstica no isolamento social e a “incomunicabilidade da dor”. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, v. 8, n. 1, p. 20–26, 30 maio 2020. 404 | Gênero, violência e estruturas de poder MARQUES, Emanuele Souza. et al. Violence against women, children, and adolescents during the COVID-19 pandemic: overview, contributing factors, and mitigating measures. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 4, 2020. OMS declara fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional referente à COVID-19. Disponível em: OMS declara fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional referente à COVID-19 - OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde (paho.org) PEREIRA, Jesus Marmanillo. Cenários de medo e as sociabilidades pandêmicas no Maranhão. . In.: KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (org.). Tempos de pandemia: Reflexões sobre o caso do Brasil. 1. ed. – João Pessoa: Grem-Grei; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020 PLAN INTERNATIONAL, Por ser menina – resumo executivo. Novembro de 2021. 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DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES E MENINAS BRASILEIRAS: A UTILIZAÇÃO DA CATEGORIA DA INTERSECCIONALIDADE PELA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO “EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E OUTROS VERSUS BRASIL” https://doi.org/10.36592/9786554601566-21 Adriana Biller Aparicio1 Letícia Albuquerque2 RESUMO O presente trabalho aborda a utilização categoria interseccionalidade na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil, no caso Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus e outros, considerando a particular situação de mulheres e meninas, vítimas deste evento. O trabalho apresenta, em primeiro lugar, o sistema interamericano de direitos humanos e a historicidade da atuação da Corte Interamericana com relação ao Brasil. Em seguida, trata do direito internacional do reconhecimento e as suas implicações na construção e efetivação dos direitos das mulheres. Por meio do método dedutivo, delineia o caso em análise e a categoria da interseccionalidade para ao final concluir que a utilização desta ferramenta de análise é fundamental para avançar nos intitulados direitos econômicos e sociais das mulheres e meninas. 1 INTRODUÇÃO O Direito Internacional dos Direitos Humanos é um campo do Direito Internacional que se desenvolveu em função das consequências devastadoras da Segunda Guerra Mundial. A partir da década de 1970 têm-se observado a construção 1 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha (UPO). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Fundadora do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica (GPAJU/UFSC). Membro dos grupos de pesquisa Observatório de Justiça Ecológica (OJE/USFC) e Política e Estado: o Poder e o Direito (UEM). Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Orientadora Jurídica do Núcleo Maria da Penha da Universidade da Universidade Estadual de Maringá (NUMAPE/UEM) e do Observatório de violência de gênero da UEM: Direitos, Subjetividades, Políticas e Intersecções E-mail: adrianainvestiga@gmail.com 2 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Líder do grupo de pesquisa Observatório de Justiça Ecológica (OJE/USFC), cadastrado no CNPq. Professora dos cursos de graduação e pósgraduação em Direito da UFSC. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail: Laetitia.ufsc@gmail.com 406 | Gênero, violência e estruturas de poder dos direitos humanos das mulheres, em especial a partir de tratados internacionais e regionais, reconhecendo as especificidades do gênero na realização dos direitos humanos no que tange à igualdade, no enfrentamento às violências e nos direitos sexuais e reprodutivos. Neste percurso da construção dos direitos humanos o caso Maria da Penha, examinado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ganhou grande notoriedade com repercussões no plano nacional e regional. Apesar de tratar-se de um campo próprio, a temática de gênero tem atravessado outras análises de violações por direito por meio da categoria da interseccionalidade. O presente trabalho aborda a utilização desta categoria na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil, no caso Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus e outros, considerando a particular situação de mulheres e meninas, vítimas deste evento. Em síntese, o caso versou sobre explosão ocorrida na Fábrica “Vardo dos Fogos” no município de Santo Antônio de Jesus, em 1998, que tem baixíssimo IDH, no qual das 60 pessoas trabalhadoras mortas em decorrência do evento, 40 eram mulheres e 19, meninas. No âmbito regional, os diferentes sistemas de direitos humanos têm desenvolvido seus próprios instrumentos no que diz respeito aos direitos das mulheres e a não discriminação de gênero. Os tratados regionais de direitos humanos também contam com mecanismos de supervisão para avaliar o cumprimento de suas disposições pelos Estados que os ratificaram. Estes incluem a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Conselho da Europa e a Corte Europeia de Direitos Humanos. Assim, este trabalho apresenta, em primeiro lugar, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) e a historicidade da atuação da Corte Interamericana com relação ao Brasil. Em seguida, trata do direito internacional do reconhecimento e as suas implicações na construção e efetivação dos direitos das mulheres. Por meio do método dedutivo, delineia o caso em análise e a categoria da interseccionalidade para ao final concluir que a utilização desta ferramenta de análise é fundamental para avançar nos intitulados direitos econômicos e sociais das mulheres e meninas. Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 407 2 O BRASIL NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é um dos sistemas regionais de proteção aos Direitos Humanos, instaurados após a Segunda Guerra Mundial, quando da instituição da Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU foi a impulsionadora de um conjunto de instrumentos de proteção aos Direitos Humanos, que ao longo da sua existência, passaram a constituir um complexo corpo jurídico e institucional. A constatação da inação da comunidade internacional frente às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial é uma das razões da proeminência do debate acerca dos Direitos Humanos no cenário internacional. De uma certa forma, os Direitos Humanos são colocados no centro das preocupações da recém instituída ONU. Esta generalização da proteção internacional dos Direitos Humanos e a sua consequente regionalização, com a criação de sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, inicia com a Adoção da Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948, seguida pela adoção do Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais e, do Pacto de Direitos Civis e Políticos, em 1966, ambos pela Assembleia Geral da ONU. A Declaração Universal aparece como um compromisso moral, mas que vai ganhando força com o passar dos anos, em razão dos inúmeros instrumentos internacionais que irão segui-la. Em 1948, é adotada a Declaração Americana de Direitos Humanos3, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) e mais tarde, em 1969, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos ou Pacto de São José4, como é mais conhecida, dando origem assim, ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). Os principais órgãos do SIDH são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão é considerada 3 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Bogotá, 1948. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.declaracao_americana.htm . Acesso em: 7 set. 2021. 4 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San José, Costa Rica, 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm . Acesso em: 7 set. 2021. 408 | Gênero, violência e estruturas de poder a porta de entrada do SIDH, tem sede em Washington, EUA e a Corte é o seu órgão judicial, com sede em São José, na Costa Rica. Para além da função jurisdicional, ou seja, competência para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação do Pacto de São José, a Corte, exerce também a função consultiva, conforme dispõe o art. 64 do referido Pacto: ART. 64.1. Os Estados-Partes da Organização poderão consultar a Corte sobre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. Também poderão consultá-la, no que lhes compete, os órgãos enumerados no capítulo X da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo da Buenos Aires 5. A Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), tratado base do SIDH, entrou em vigor internacional em 18 de julho de 1978, após alcançar o número mínimo de ratificações exigidos. O Brasil, no entanto, tardou 23 anos para aderir completamente ao tratado, através do Decreto n. 678 de 6 de novembro de 1992 6, que promulgou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) no país. Como parte do SIDH, o Brasil, participou ativamente da sua consolidação, apesar da demora em ratificar a Convenção, bem como em reconhecer a jurisdição da CIDH, o que aconteceu apenas em 10 de dezembro de 1998, quando do depósito da declaração junto à Secretaria Geral da OEA7. A demora da ratificação da Convenção Americana pelo Brasil pode ser entendida em razão do contexto da ditadura militar iniciada com o golpe de 1964. O período de abertura política e democratização, iniciado na década de 1980, consolidado com a adoção da Constituição Federal de 1988, acarreta uma série de transformações institucionais que levam finalmente o país a aderir não só a 5 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San José, Costa Rica, 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm . Acesso em: 7 set. 2021. 6 BRASIL. Decreto n. 678 de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm . Acesso em: 7 set. 2021. 7 BRASIL. Decreto n. 4463 de 8 de novembro de 2002. Promulga a Declaração de reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4463.htm . Acesso em: 7 set. 2021. Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 409 Convenção Americana de Direitos Humanos e consequentemente a aceitar a jurisdição da Corte Interamericana, como também a atuar de forma mais ativa nos fóruns internacionais de direitos humanos. O contexto internacional pós-Guerra Fria favoreceu a construção e ampliação destes espaços de diálogo e consequentemente de uma ordem internacional homogênea, onde os conflitos em relação a legitimidade política desaparecem, como salienta REIS8: Na década de 1990, essa homogeneidade alimentou a expectativa de que as questões de segurança passariam para o segundo plano da agenda política internacional e de que o mundo enfim poderia dedicar- se, por meio de organizações multilaterais como a própria ONU, à solução de graves problemas sociais que afetavam a humanidade. Essa esperança manifestou-se na organização de grandes conferências internacionais a respeito de temas sociais sob os auspícios das Nações Unidas. A primeira condenação do Brasil junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos aconteceu em 2006 no caso Ximenes Lopes 9 . Originalmente o caso foi encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1999 pela organização Justiça Global em nome dos familiares de Damião Ximenes Lopes, portador de deficiência mental que faleceu quando estava internado na casa de repouso Guararapes, em Sobral, no estado do Ceará, em 1999. O caso foi enviado pela Comissão à Corte em 2004, após o informe conclusivo da Comissão Interamericana não ter sido atendido pelo estado brasileiro. Na sentença, a Corte examinou as supostas condições desumanas e degradantes da hospitalização da vítima; os alegados golpes e ataques contra a integridade pessoal de que se alega ter sido vítima por parte dos funcionários da Casa de Repouso Guararapes; e a morte de Damião Ximenes Lopes enquanto se encontrava ali submetido a tratamento 8 REIS, Rossana Rocha. Os direitos humanos e a política internacional. Revista de Sociologia e Política [online]. 2006, n. 27 [Acessado 18 Setembro 2021] , pp. 33-42. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-44782006000200004>. Epub 17 Maio 2007. P.36. 9 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf Acesso em: 12 mar. 2024. 410 | Gênero, violência e estruturas de poder psiquiátrico; bem como pela suposta falta de investigação e garantias judiciais que caracterizam seu caso e o mantém na impunidade. Destaca-se da sentença10: A suposta vítima foi internada em 1o de outubro de 1999 para receber tratamento psiquiátrico na Casa de Repouso Guararapes, um centro de atendimento psiquiátrico privado, que operava no âmbito do sistema público de saúde do Brasil, chamado Sistema Único de Saúde (doravante denominado “Sistema Único de Saúde” ou “SUS”), no Município de Sobral, Estado do Ceará. O senhor Damião Ximenes Lopes faleceu em 4 de outubro de 1999 na Casa de Repouso Guararapes, após três dias de internação. A sentença do caso Damião Ximenes Lopes para além de ser a primeira condenação do Brasil no SIDH, teve uma repercussão importante nas políticas públicas de saúde mental. Em 2023, o Brasil concluiu o cumprimento da sentença e a Corte determinou o arquivamento do caso. O último ponto que faltava para o encerramento do caso era o estabelecimento de programas de capacitação relacionados à saúde mental, o que aconteceu, em abril de 2023, com a lançamento pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em conjunto com a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) do curso Direitos Humanos e Saúde Mental – Curso permanente Damião Ximenes Lopes. Outro ponto de destaque do caso diz respeito ao judiciário11: O impacto do caso também pode ser observado no âmbito do Poder Judiciário. Após a audiência pública de Supervisão de Cumprimento da sentença realizada em 2021, o Conselho Nacional de Justiça criou um Grupo de Trabalho “Damião Ximenes Lopes”, que estruturou uma minuta de resolução para instituir uma política judiciária com uma perspectiva antimanicomial. Em 2023, a referida proposta foi aprovada pelo plenário, dando origem à Resolução CNJ n. 487/2023, que é um marco paradigmático para a incorporação dos parâmetros internacionais na política judiciária sobre saúde mental. 10 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf Acesso em: 12 mar. 2024. 11 BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Brasil conclui cumprimento de sentença da Corte IDH sobre o caso Damião Ximenes Lopes. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/ptbr/assuntos/noticias/2023/outubro/brasil-conclui-cumprimento-de-sentenca-da-corte-idh-sobreo-caso-damiao-ximenes-lopes . Acesso em: 12 mar. 2024. Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 411 Outro caso de repercussão envolvendo o Brasil no SIDH foi o caso Maria da Penha 12 . Este é um caso que não chegou até a Corte Interamericana, pois foi encerrado no âmbito da Comissão Interamericana. O caso teve origem num ato de violência sofrido por Maria da Penha Fernandes por parte do seu então marido na época dos fatos. O caso foi encaminhado por entidades de defesa dos direitos das mulheres à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1988 e em 2001 a Comissão concluiu que o Brasil foi responsável pela violação aos direitos e garantias judiciais e à proteção judicial, assegurados pelos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, devido ao processo judicial ineficaz e negligente no caso Maria da Penha, de violência doméstica contra a mulher. Destacou-se a falta de efetividade da ação policial e judicial no Brasil com respeito à violência contra a mulher, o que gera a falha das medidas destinadas a redução desse tipo de violência e da tolerância estatal com relação ao tema. A partir do parecer da Comissão foi recomendado que o Brasil desenvolvesse uma legislação específica sobre a violência doméstica e familiar, dando origem a Lei Maria da Penha 13. Outros casos envolvendo o Brasil dizem respeito as violações de direitos humanos cometidas no período da ditadura militar como: o Caso Vladimir Herzog 14 e o Caso Guerrilha do Araguaia15. Em 2018, o Brasil foi condenado por violações de direitos humanos envolvendo povos indígenas no Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros versus Brasil16. 12 Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso 12051 Maria da Penha Maia Fernandes. Disponível em: https://assets-compromissoeatitudeipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2012/08/OEA_CIDH_relatorio54_2001_casoMariadaPenha.pdf . Acesso em: 12 mar. 2024. 13 BRASIL. Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm . Acesso em: 12 mar. 2024. 14 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Herzog e outros Vs. Brasil. Sentença de 15 de março de 2018. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_por.pdf. Acesso em: 14 de mar. 2024. 15 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. BRASIL. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em: 14 de mar. 2024. 16 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso do Povo Xucuru e seus membros versus Brasil. Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf . Acesso em: 12 mar. 2024. 412 | Gênero, violência e estruturas de poder Os casos citados são apenas ilustrativos da situação do Brasil junto ao SIDH e não exaustivos, pois ainda temos casos envolvendo situações de violência policial, trabalho análogo a escravidão, entre outros temas. Importante mencionar o Caso Barbosa e outros vs. Brasil17, condenação recente envolvendo Direito das Mulheres. Nesse caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelo assassinato de Márcia Barbosa de Souza, em sentença condenatória prolatada em 7 de setembro de 2021. A origem do caso foi a situação de impunidade frente ao assassinato de Márcia Barbosa de Souza, ocorrido em junho de 1998, cometido, segundo a decisão do Tribunal do Júri, pelo então deputado estadual da Paraíba, Aércio Pereira de Lima, em João Pessoa. O ineditismo desta decisão reside no fato de ser a primeira condenação por um crime de feminicídio junto ao SIDH, bem como por abordar a questão da imunidade parlamentar frente aos crimes contra os direitos humanos. 3 O DIREITO AO RECONHECIMENTO E O DIREITO DAS MULHERES Albuquerque e Gonçalves18 destacam que a construção dos Direitos Humanos das mulheres é protagonizada pelos movimentos feministas na arena internacional e constituiu um campo nas relações internacionais por meio das lutas e reivindicações que resultaram em mudanças paulatinas na condição das mulheres. Estas mudanças vão desde a construção de um corpo normativo até mudanças estruturais na sociedade. O Caso Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus e seus Familiares Vs. Brasil, ilustra não apenas a fragilidade e situação de vulnerabilidade de mulheres e meninas, mas também a evolução do SIDH e dos sistemas de justiça com relação ao tema: 17 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza vs. Brasil. Sentença de 7 de setembro de 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf Acesso em: 14 mar. 2024. 18 ALBUQUERQUE, L.; GONÇALVES, V. C., Os desafios do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e os estereótipos de gênero em casos de violência contra as mulheres: o caso Barbosa de Souza.p.195-212. In: Direito internacional dos direitos humanos [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI Coordenadores: Ana Paula Martins Amaral; Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini; Vladmir Oliveira da Silveira – Florianópolis: CONPEDI, 2022. Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 413 Em 15 de julho de 2020, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “Corte” ou “Tribunal”) proferiu sentença mediante a qual declarou a responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil pelas violações a diversos direitos, em prejuízo a 60 pessoas falecidas e seis sobreviventes da explosão de uma fábrica de fogos de artifícios, no município de Santo Antônio de Jesus, Estado da Bahia, assim como a 100 familiares das pessoas falecidas e sobreviventes da explosão. A Corte constatou que, como consequência da explosão, foram violados os direitos à vida, à integridade pessoal, ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias, direitos da criança, à igualdade e não discriminação, à proteção judicial e às garantias judiciais. Por conseguinte, a Corte declarou que o Estado é responsável pela violação dos artigos 4.1, 5.1, 19, 24 y 26, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.19 O caso teve origem em uma explosão ocorrida na Fábrica “Vardo dos Fogos” no município de Santo Antônio de Jesus, em 1998, que tem baixíssimo IDH, no qual das 60 pessoas trabalhadoras mortas em decorrência do evento, 40 eram mulheres e 19, meninas. Foi constatado que grande parte das trabalhadoras eram mulheres afrodescendentes com baixo nível de escolaridade e em condições de pobreza extrema. O trabalho era executado sem equipamentos de proteção, com salários baixos e na informalidade. Além disso, várias crianças trabalhavam na fábrica, a despeito da proibição do trabalho infantil pela legislação brasileira.20 Na sentença, a Corte Interamericana, identificou padrões de discriminação estrutural e interseccional com relação as vítimas do caso: Em relação ao direito à igualdade e à proibição de discriminação, a Corte estabeleceu que as vítimas deste caso estavam imersas em padrões de discriminação estrutural e interseccional, pois se encontravam em uma situação de pobreza estrutural e eram, em uma amplíssima maioria, mulheres e meninas afrodescendentes, algumas gestantes, que não contavam com nenhuma outra alternativa econômica. A Corte concluiu que a confluência desses fatores facilitou a instalação e funcionamento de uma fábrica dedicada a uma atividade especialmente perigosa, sem fiscalização nem da atividade 19 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.1. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024. 20 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.1. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024. 414 | Gênero, violência e estruturas de poder perigosa, nem das condições de higiene e segurança no trabalho por parte do Estado, e levou as vítimas a aceitar um trabalho que colocava em risco sua vida e integridade e a de seus filhos e filhas menores de idade. Ademais, a Corte concluiu que o Estado não adotou medidas destinadas a garantir a igualdade material no direito ao trabalho a respeito dessas pessoas. Em razão do exposto, a Corte constatou que o Estado violou os artigos 24 e 26, em relação ao artigo 1.1 da Convenção Americana, em prejuízo a 60 pessoas falecidas e seis sobreviventes da explosão da fábrica de fogos.21 No âmbito interno, o caso, deu origem a um processo administrativo, um processo penal e inúmeros processos cíveis e trabalhistas. Destes, apenas o processo administrativo havia sido concluído quando da emissão da sentença pela Corte Interamericana. Os processos na esfera cível e trabalhista, embora alguns tenham sido concluídos, a execução completa da reparação ainda não havia ocorrido quando da emissão da sentença. Passados mais de 18 anos da explosão, a maioria dos processos encontravam-se pendentes, em diferentes fases. Os juízes da Corte Interamericana destacaram que a demora de quase 22 anos sem uma decisão definitiva no âmbito do processo penal caracterizou falta de razoabilidade, bem como apontaram a falta de diligência das autoridades judiciais para que se chegasse a uma decisão.22 No âmbito cível e trabalhista, a Corte também, identificou falta de diligência por parte das autoridades e falta de razoabilidade para conclusão dos processos. Em suma, o Estado brasileiro falhou para assegurar o direito às garantias judiciais e à proteção judicial das vítimas: (...) a Corte concluiu que, neste caso, não se garantiu uma proteção judicial efetiva às trabalhadoras da fábrica de fogos porque, ainda que se lhes tenha permitido fazer uso dos recursos judiciais previstos legalmente, tais recursos ou não tiveram uma solução definitiva depois de mais de 18 anos do início de sua tramitação, ou contaram com uma 21 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.3. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024. 22 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.3. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024. Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 415 decisão favorável às vítimas, mas esta não pôde ser executada por atrasos injustificados por parte do Estado.23 A Corte Interamericana afirmou que a própria sentença constitui uma forma de reparação, mas determinou ainda as seguintes medidas de reparação integral: A) Obrigação de investigar: 1) continuar com a devida diligência e em um prazo razoável o processo penal, as ações cíveis de indenização por danos morais y materiais e os processos trabalhistas; B) Reabilitação: 1) oferecer o tratamento médico, psicológico e psiquiátrico que requeiram as vítimas; C) Satisfação: 1) publicar o resumo oficial da Sentença no diário oficial e em um jornal de grande circulação nacional, e a sentença, na íntegra, em uma página web oficial do Estado da Bahia e do Governo Federal, e produzir um material para rádio e televisão no qual apresente o resumo da sentença; e 2) realizar um ato de reconhecimento de responsabilidade internacional; D) Garantias de não repetição: 1) Implementar uma política sistemática de inspeções periódicas nos locais de produção de fogos de artificio; y 2) Desenhar e executar um programa de desenvolvimento socioeconômico destinado à população de Santo Antônio de Jesus; E) Indenizações Compensatórias: 1) pagar os valores fixados na Sentença em função dos danos materiais e imateriais, e 2) o reembolso das custas e gastos. 24 O caso dos Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus é apenas uma amostra da situação de vulnerabilidade a que estão sujeitas mulheres e meninas no Brasil. Em 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou um aumento do trabalho infantil no país: Em 2022, o país tinha 756 mil crianças e adolescentes com 5 a 17 anos de idade nas piores formas de trabalho, que envolviam risco de acidentes ou eram prejudiciais à saúde. Isso equivale a 46,2% do 1,6 milhão de crianças e adolescentes que realizavam atividades econômicas. Essa proporção caiu de 51,3% em 2016, para 45,8%, em 2019, mas subiu para 46,2% em 2022.25 23 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.3. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024. 24 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. P.4. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024 25 NERY, Carmen; CABRAL, Umberlândia. De 2019 para 2002 trabalho infantil aumentou no Brasil. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. 20 de dez. de 2023. Disponível em: 416 | Gênero, violência e estruturas de poder Sendo que as meninas recebem menos pelo trabalho do que os meninos e quando se considera o fator racial, as crianças e adolescentes pretas ou pardas recebem ainda menos pelo trabalho: Entre as crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, os meninos tinham rendimento de R$ 757, enquanto as meninas recebiam 84,4% desse valor (R$ 639). Entre as crianças e adolescentes em trabalho infantil com remuneração, as pretas ou pardas recebiam, em média, R$ 660 e as brancas, R$ 817.26 Tais dados são um reflexo da vulnerabilidade geral a que estão sujeitas as pessoas pretas e pardas no Brasil. Os índices do IBGE demonstram que pessoas pretas e pardas continuam com menor acesso à emprego, segurança, educação e saneamento: Uma análise das linhas de pobreza propostas pelo Banco Mundial atesta a maior vulnerabilidade das populações preta e parda. Em 2021, considerando a linha de U$$5,50 diários (ou R$ 486 mensais per capita), a taxa de pobreza dos brancos era de 18,6%. Já entre pretos o percentual foi de 34,5% e entre os pardos, 38,4%. Na linha da extrema pobreza, (US$1,90 diários ou R$ 168 mensais per capita), as taxas foram 5,0% para brancos, contra 9,0% dos pretos e 11,4% dos pardos. 27 https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38700de-2019-para-2022-trabalho-infantil-aumentou-nopais#:~:text=Duas%20em%20cada%20cinco%20(40,por%2040%20horas%20ou%20mais. Disponível em: 14 mar.2024. 26 NERY, Carmen; CABRAL, Umberlândia. De 2019 para 2002 trabalho infantil aumentou no Brasil. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. 20 de dez. de 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38700de-2019-para-2022-trabalho-infantil-aumentou-nopais#:~:text=Duas%20em%20cada%20cinco%20(40,por%2040%20horas%20ou%20mais. Disponível em: 14 mar.2024. 27 CABRAL, Umberlândia. Pessoas pretas e pardas continuam com menor acesso a emprego, educação, segurança e saneamento. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. 11 de nov. de 2022. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35467pessoas-pretas-e-pardas-continuam-com-menor-acesso-a-emprego-educacao-seguranca-esaneamento Acesso em: 14 mar/ 2024. Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 417 Com relação as mulheres, no estudo intitulado “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil” 28 , o IBGE aponta que: embora as mulheres apresentem grau de instrução maior, recebem menos do que os homens quando ocupam cargos gerenciais; as mulheres estão subrepresentadas na política, sendo que o Brasil apresenta a menor proporção de deputadas federais da América Latina; as mulheres estão sujeitas violência em seu próprio domicílio muito mais do que os homens; as mulheres dedicam o dobro do tempo que os homens nos cuidados com pessoas ou afazeres domésticos, entre tantos outros exemplos de vulnerabilidades e desigualdades. Quanto às mulheres pretas e pardas o estudo afirma que: As mulheres pretas ou pardas com crianças de até 3 anos de idade no domicílio apresentaram os menores níveis de ocupação: 49,7% em 2019. Entre as mulheres brancas, a proporção foi de 62,6%. Para aquelas sem a presença de crianças nesta faixa etária, os percentuais foram 63,0%, entre mulheres pretas e pardas, e 72,8% entre brancas.29 A interseccionalidade é um conceito elaborado pela ativista de direitos civis Kimberlé Crenshaw, no contexto do movimento de mulheres negras nos Estados Unidos, sistematizado em um texto, publicado em 1989, intitulado “Desmarginalizando a intersecção de raça e sexo: uma crítica feminista negra da doutrina antidiscriminação, teoria feminista e políticas antirracistas”30. Através da teoria crítica racial, que vê o racismo como algo naturalizado pelas instituições e pelas leis e não apenas como um comportamento individual, Kimberlé 28 Estatísticas de Gênero: ocupação das mulheres é menos em lares com crianças de até três anos. 04 de março de 2021. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-denoticias/releases/30172-estatisticas-de-genero-ocupacao-das-mulheres-e-menor-em-lares-comcriancas-de-ate-tres-anos Acesso em: 14 mar. 2024. 29 Estatísticas de Gênero: ocupação das mulheres é menos em lares com crianças de até três anos. 04 de março de 2021. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-denoticias/releases/30172-estatisticas-de-genero-ocupacao-das-mulheres-e-menor-em-lares-comcriancas-de-ate-tres-anos Acesso em: 14 mar. 2024. 30 No original Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. Disponível em: https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1052&context=uclf. Acesso em: 14 mar. 2024. 418 | Gênero, violência e estruturas de poder Crenshaw chamou atenção para o fato de que, para as mulheres negras, as opressões se articulam: elas enfrentam não só questões ligadas ao gênero, mas também à raça. Isso vale também para outros casos, como mulheres com deficiência ou então de diferentes classes sociais, ou até mulheres mais velhas.31 Os dados do IBGE descritos no texto sobre as condições sociais de meninas e mulheres no Brasil e, em especial, sobre mulheres e meninas pretas e pardas, demonstram a atualidade do conceito de interseccionalidade e a importância da luta antirracista dos feminismos negros: Os feminismos negros, enquanto movimentos sociais, começam por questionar justamente a categoria mulher como uma unicidade. E fazem isso, principalmente, destacando a categoria raça para demonstrar as diferenças em ser lida como mulher negra em uma sociedade que, para além de ser sexista, é também racista. Os feminismos negros, portanto, denunciam que assim como, de maneira estrutural, o sexismo posiciona a mulher de forma subordinada na sociedade, o racismo também ocupa esse lugar quando interseccionado com demais marcadores sociais. Esses tensionamentos propostos pelas mulheres negras, a princípio, causaram grande desconforto tanto nos movimentos de mulheres feministas brancas quanto nos movimentos negros e nas instituições mistas nas quais essas mulheres integravam; isso porque o atravessamento das categorias gênero e raça colocava essas mulheres em sub-representação nos dois casos.32 Importante destacar que: a) interseccionalidade é uma das ferramentas teórico-metodológicas possíveis para entender as múltiplas opressões; b) a interseccionalidade não estabelece uma hierarquia ou somatória de opressões; c) o lugar de fala de cada indivíduo é multirreferenciado a partir de suas experiências.33 31 NÓR, Bárbara. Você sabe o que é interseccionalidade? Entenda por que isso é importante. 17 de julho de 2022. INSPER. Disponível em: https://www.insper.edu.br/noticias/voce-sabe-o-que-einterseccionalidade-entenda-por-que-isso-e-importante/ Acesso em: 14 mar. 2024. 32 ASSIS, Dayane N. Conceição de. Interseccionalidades. Salvador: UFBA, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências; Superintendência de Educação a Distância, 2019. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/554207/2/eBook%20-%20Interseccionalidades.pdf. Acesso em: 14 mar. 2024. 33 ASSIS, Dayane N. Conceição de. Interseccionalidades. Salvador: UFBA, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências; Superintendência de Educação a Distância, 2019. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/554207/2/eBook%20-%20Interseccionalidades.pdf. Acesso em: 14 mar. 2024. Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 419 Ao aplicar o conceito de interseccionalidade, no caso da Fábrica de Fogos, a Corte Interamericana evidencia as múltiplas opressões a que estavam sujeitas as vítimas: mulheres e crianças, negras e em situação de extrema pobreza. O direito internacional do reconhecimento é um campo de estudos que tenta considerar as novas reivindicações de sujeitos de direitos no pós-guerra fria. A partir das reivindicações de Estados desfavorecidos, minorias estigmatizadas, como grupos étnicos marginalizados, povos autóctones e mulheres, por exemplo, os atores da sociedade internacional desenvolveram este campo de estudo.34 Como destaca Tourme-Jouannet: O fim da Guerra Fria testemunhou o surgimento de um novo fenômeno que tem sido muito estudado nas ciências sociais. O despertar das identidades e as muitas aspirações contemporâneas ao reconhecimento chegaram a tal ponto depois de 1989 que se pode falar do surgimento de um verdadeiro paradigma do reconhecimento, ou seja, um novo sistema de representação que influencia e condiciona como os atores internos e internacionais agem e reagem nessa temática.35 O direito internacional do reconhecimento tem sido mobilizado em alguns casos específicos como resposta às questões identitárias e culturais e suas aspirações por reconhecimento em pelo menos três frentes: a primeira, diz respeito ao reconhecimento da diversidade cultural que visa combater os fenômenos de denominação cultural associados à globalização; a segunda se relaciona à concessão de direitos específicos pelos quais se busca preservar a identidade de grupos e indivíduos; e, a terceira, diz respeito ao reconhecimento dos danos cometidos no passado e a reparação dos crimes históricos.36 A construção dos direitos das mulheres faz parte do movimento do direito internacional do reconhecimento. Tourme-Jouannet 37 afirma que podemos 34 TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.403-422, 2020. 35 TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.406, 2020. 36 TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.409, 2020. 37 TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.412, 2020. 420 | Gênero, violência e estruturas de poder identificar os direitos concedidos aos indivíduos, independente de pertencerem ou não a um grupo, mas segundo hipóteses muito distintas: são os direitos culturais, os direitos humanos e os direitos das mulheres, segundo a autora: Todas essas categorias de direitos fornecem uma imagem vívida da diversidade de práticas relacionadas ao reconhecimento e de modo como os instrumentos jurídicos respondem às suas aspirações, alternando constantemente entre a preocupação em respeitar as diferenças entre indivíduos e grupos e a preocupação em respeitar a sua igual dignidade.38 Nancy Fraser 39 reaproxima a questão da política do reconhecimento das diferenças à discussão acerca das injustiças econômicas geradas em função da estrutura econômica e política. Assim, as questões de exploração trabalho, marginalização econômica e privação das mulheres e meninas demandam além do reconhecimento, o acesso à justiça distributiva. Desta forma, Fraser defende uma transformação política, cultural e econômica para que exista a igualdade de gênero, que é justamente o que se visibiliza a partir do perfil das vítimas no Caso Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus e outros vs. Brasil. A Organização dos Estados Americanos (OEA) contribuiu para a construção de um conjunto normativo regional em prol dos direitos das mulheres: a Carta da Organização dos Estados Americanos40 inclui uma disposição de não discriminação 38 TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.412, 2020. 39 FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: Cadernos de Campo, São Paulo, n.15, p.1-382, 2006.Disponível em http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/viewFile/50109/54229. Acesso em julho 2022. P.231—236. 40 A Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) foi aprovada pela Nona Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá́ no início de 1948. Ela foi reformada em 1967 pela Terceira Conferência Interamericana Extraordinária, realizada em Buenos Aires e em 1985, mediante o "Protocolo de Cartagena das Índias", assinado no Décimo Quarto Período Extraordinário de Sessões da Assembleia Geral. O Protocolo de Washington (1992) introduziu modificações adicionais, que dispõem que um dos propósitos fundamentais da OEA é promover, mediante a ação cooperativa, o desenvolvimento econômico, social e cultural dos Estados membros e ajudar a erradicar a pobreza extrema no Hemisfério. Além disso, mediante o Protocolo de Manágua (1993), que entrou em vigor em janeiro de 1996, com a ratificação de dois terços dos Estados membros, foi estabelecido o Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Disponível em: http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organização_dos_Estados_Americanos.htm . Acesso em: 14 mar. 2024. Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 421 em seu capítulo II, artigo 3 (l), e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos41 em seu artigo 1. Além disso, em 1994, a Organização adotou a Convenção Interamericana sobre a Prevenção, Punição e Erradicação da Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará)42, reforçando assim, os direitos das mulheres junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. A sentença da Corte Interamericana, no caso da Fábrica de Fogos, ao usar a categoria de interseccionalidade com relação às vítimas, para além de evidenciar as diferentes opressões a que estavam sujeitas, é mais um instrumento que contribui para o reconhecimento dos direitos das mulheres. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O Caso Empregados da Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus e seus Familiares Vs. Brasil, levou a condenação do Brasil junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 15 de julho de 2020. O caso teve origem em uma explosão ocorrida na Fábrica “Vardo dos Fogos” no município de Santo Antônio de Jesus, em 1998, que tem baixíssimo IDH, no qual das 60 pessoas trabalhadoras mortas em decorrência do evento, 40 eram mulheres e 19, meninas. Foi constatado que grande parte das trabalhadoras eram mulheres afrodescendentes com baixo nível de escolaridade e em condições de pobreza extrema. Na sentença, a Corte determinou medidas de reparação integral a serem adotadas pelo Estado brasileiro, bem como identificou padrões de discriminação estrutural e interseccional com relação as vítimas do caso. Tais padrões de discriminação estrutural e interseccional com relação as vítimas, na sua maioria mulheres e crianças pretas, são um reflexo do que acontece na sociedade brasileira cotidianamente. Os dados do IBGE trazidos ao texto sobre 41 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) foi promulgada no Brasil através do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm . Acesso em: 14 mar. 2024. 42 A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher foi promulgada no Brasil através do Decreto n. 1973 de 1 de agosto de 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm . Acesso em: 14 mar. 2024. 422 | Gênero, violência e estruturas de poder questões de gênero e raça no acesso à educação, emprego, renda, saneamento entre outros, mostram como a desigualdade ainda é algo presente no cotidiano de mulheres e meninas. Quando considerados aspectos raciais, principalmente em relação as mulheres e meninas pretas e pardas, as vulnerabilidades e desigualdades são ainda maiores. O direito internacional do reconhecimento contribui para a luta em prol dos direitos das mulheres, mas o Sistema Interamericano de Direitos Humanos ainda caminha a passos lentos nas questões de gênero. As decisões tanto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos como da Corte Interamericana de Direitos Humanos são relevantes para dar espaço ao debate, mas não são suficientes frente aos desafios do continente. No que diz respeito ao Brasil, o SIDH proferiu decisões com ampla repercussão nas políticas públicas e legislação brasileira com relação aos direitos das mulheres, como destacado no trabalho: o Caso Maria da Penha, no âmbito da Comissão, que contribuiu para adoção da Lei Maria da Penha; o Caso Barbosa de Souza, no âmbito da Corte Interamericana, que examinou a questão do feminicídio. O Caso da Fábrica de Fogos, ao reconhecer a questões estruturais e interseccionais a que estavam sujeitas as vítimas, vem reforçar esse importante conjunto de decisões do SIDH e auxiliar no debate e efetivação dos direitos das mulheres. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, L.; GONÇALVES, V. C., Os desafios do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e os estereótipos de gênero em casos de violência contra as mulheres: o caso Barbosa de Souza.p.195-212. In: Direito internacional dos direitos humanos [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI Coordenadores: Ana Paula Martins Amaral; Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini; Vladmir Oliveira da Silveira – Florianópolis: CONPEDI, 2022. ASSIS, Dayane N. Conceição de. Interseccionalidades. Salvador: UFBA, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências; Superintendência de Educação a Distância, 2019. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/554207/2/eBook%20%20Interseccionalidades.pdf. Acesso em: 14 mar. 2024. Adriana Biller Aparicio; Letícia Albuquerque | 423 CABRAL, Umberlândia. Pessoas pretas e pardas continuam com menor acesso a emprego, educação, segurança e saneamento. AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. 11 de nov. de 2022. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencianoticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/35467-pessoas-pretas-e-pardascontinuam-com-menor-acesso-a-emprego-educacao-seguranca-e-saneamento Acesso em: 14 mar/ 2024. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO EMPREGADOS DA FÁBRICA DE FOGOS SANTO ANTÔNIO DE JESUS E SEUS FAMILIARES vs. BRASIL. RESUMO OFICIAL. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_407_por.pdf Acesso em: 14 de mar.2024. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Herzog e outros Vs. Brasil. Sentença de 15 de março de 2018. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_por.pdf. Acesso em: 14 de mar. 2024. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. BRASIL. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso em: 14 de mar. 2024. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso do Povo Xucuru e seus membros vs. Brasil. Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf . Acesso em: 12 mar. 2024. 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AGÊNCIA IBGE DE NOTÍCIAS. 20 de dez. de 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-denoticias/noticias/38700-de-2019-para-2022-trabalho-infantil-aumentou-nopais#:~:text=Duas%20em%20cada%20cinco%20(40,por%2040%20horas%20ou%20 mais. Disponível em: 14 mar.2024. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Bogotá, 1948. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.declaracao_americana.htm Acesso em: 7 set. 2021. REIS, Rossana Rocha. Os direitos humanos e a política internacional. Revista de Sociologia e Política [online]. 2006, n. 27 [Acessado 18 Setembro 2021] , pp. 33-42. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-44782006000200004>. Epub 17 Maio 2007. ISSN 1678-9873. https://doi.org/10.1590/S010444782006000200004. TOURME-JOUANNET, Emmanuelle. Direito Internacional do Reconhecimento. In: Revista de Direito Internacional, Brasília, v.17, n.2, p.403-422, 2020. 22. ANÁLISE SOBRE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E O EXERCÍCIO DA PARENTALIDADE ANALYSIS ABOUT GENDER-BASED VIOLENCE AND THE EXERCISE OF PARENTING https://doi.org/10.36592/9786554601566-22 Thaysa Farias Ferreira1 Antônia Rozelir da Silva Araújo2 RESUMO O artigo propõe considerações sobre como a violência de gênero e intrafamiliar praticada entre homem/pai e mulher/mãe afeta a atuação parental e o desenvolvimento da prole. Discute sobre as configurações das famílias contemporâneas e como a parentalidade se apresenta; expõe brevemente sobre o conceito de violência, com ênfase para a violência de gênero no espaço intrafamiliar; utiliza da teoria crítica das Ciências Sociais e estudos no Serviço Social, enfatizando as categorias de classe, gênero e raça. Conclui-se que a violência persiste como notória expressão da questão social que afeta as relações familiares, e as políticas de proteção social são insuficientes no seu enfrentamento, agravando o sofrimento psicossocial de crianças e adolescentes. Palavra-chave: parentalidade; violência de gênero e intrafamiliar; proteção social. ABSTRACT The article proposes considerations on how gender and intra-family violence practiced between men/fathers and women/mothers affects parental actions and the development of offspring. Discusses the configurations of contemporary families and how parenthood presents itself; briefly explains the concept of violence, with emphasis on gender violence in the intra-family space; use of critical theory from Social Sciences and studies in Social Work, emphasizing the categories of class, gender and race. It is concluded that violence persists as a notorious expression of the social issue that affects family relationships, and social protection policies are insufficient, aggravating the psychosocial suffering of children and adolescents. Keyword: parenthood; gender-based and intrafamily violence; social protection. 1. INTRODUÇÃO Na atualidade, observamos a efervescência tanto dos modos de existir das famílias contemporâneas quanto sobre o saber que estamos construindo a partir 1 Assistente Social. Analista Judiciária no Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas; e-mail: thaysa.farias@tjam.jus.br; Lattes ID http://lattes.cnpq.br/7295516536848863 2 Bacharela em Serviço Social; e-mail: ardsa1999@gmail.com; Lattes ID: http://lattes.cnpq.br/1626111333319222 426 | Gênero, violência e estruturas de poder delas; circunscrito a isto, temos que hoje a parentalidade ainda constitui um aspecto de perenidade dos laços familiares, visto que as relações conjugais são menos estáveis. (GOIS; OLIVEIRA, 2019). Segundo Adriana de Toni (2017, p. 149), a parentalidade abrange as responsabilidades e tarefas que os pais assumem em relação aos seus filhos, independentemente da origem de filiação; isso implica em proporcionar-lhes cuidados diversos: materiais, afetivos e simbólicos, incluindo a transmissão de valores, conhecimentos e habilidades necessárias para o desenvolvimento integral deles. Por isso, mesmo com as profundas transformações vividas, nas formações familiares atuais, o vínculo entre pais e filhos persiste, por ser nele onde as obrigações morais atuam de forma mais significativa. (SARTI, 2011, p. 72). No Brasil, com as mudanças pós-constituinte, observamos intenso e crescente movimento social, político e jurídico em torno das famílias. Antes sobressaia a visão de família burguesa, onde em regra, a determinação da guarda dos filhos era em favor da genitora, a fim de seguir demarcando os papéis de gênero, ou seja, a mulher doméstica e maternal, e ao homem cabia o papel de provedor. Nesse cenário, por um lado, predominava a sobrecarga da mulher no cuidado integral dos filhos, enquanto por outra via, o genitor não detentor da guarda, frequentemente tinha seu acesso limitado à prole, comprometendo a continuidade do elo sociofamiliar. Assim, a promulgação da Lei nº 11.698/2008 que instituiu e disciplinou a guarda compartilhada, representou um divisor de águas, reconhecendo a importância da participação parental equitativa na criação dos filhos, em oposição ao privilégio antes deferido ao vínculo civil e/ou afetivo existente entre os guardiões. Em seguida, a Lei nº 13.058/2014 reforçou tais avanços ao definir o conceito de guarda compartilhada e suas aplicações práticas no Código Civil, reafirmando nele o princípio da garantia do direito de convivência familiar e comunitária preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Neste compasso acelerado das questões que envolvem as famílias brasileiras, perpassam também, a lei sobre alienação parental - 12.318/2010; a lei Maria da Penha - 11.340/2006; e a recentemente sancionada, Lei nº 14.713/2023, com o objetivo de abordar a especificidade relacionada à guarda compartilhada em casos Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 427 de violência doméstica, em que a princípio, busca proteger suas vítimas, especialmente as crianças e adolescentes, garantindo que estes não sejam expostos a ambientes potencialmente prejudiciais. A partir da nossa inserção profissional em vara de família3, que nos levou a conduzir estudos sociais, discussões em grupo e pesquisa bibliográfica quanto ao tema proposto, neste artigo, buscamos lançar luz sobre como a violência de gênero e intrafamiliar interfere no exercício da parentalidade que pode resultar em evidentes prejuízos ao pleno desenvolvimento dos filhos, negando-lhes a garantia do princípio da proteção integral. 2. DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO E INTRAFAMILIAR E OS CAMINHOS DA PARENTALIDADE Em nossa cultura, a violência é aceita e perpetuada como um recurso legítimo para resolver conflitos e impor a vontade de uns sobre os outros. Em particular, temos a violência de gênero sendo uma manifestação da desigualdade entre homens e mulheres, a qual é alimentada por uma estrutura patriarcal que sustenta e legitima a subordinação de um perfil feminino sob o masculino. (SAFFIOTI, 2015). Dentro deste conceito amplo, encontra-se a violência intrafamiliar que manifesta-se nas relações hierárquicas e intergeracionais, através de modos de ser e agir no cotidiano com faces diversas da violência para fins de solução de conflito, estratégia de educação, expressão de emoções, ou mesmo, a falta de cuidados básicos entre seus pares, por exemplo. (Brasil, 2010, p. 29). Sabemos que a distinção de classe social está intrinsecamente relacionada à violência de gênero e intrafamiliar, pois existem dinâmicas de poder e desigualdade que se manifestam de maneira específica em diferentes estratos sociais. Neste mesmo entendimento, agregamos a categoria raça como uma construção social, promovida ao longo da história para perpetuar hierarquias baseadas em características identitárias e outros aspectos sociais, como o traço físico, de cor da pele, textura do cabelo, elementos faciais, etc. (PERES; PENHA, 2018). 3 A escrita deste artigo é resultado do trabalho de supervisão de estágio em Serviço Social numa vara de família do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, desenvolvido em 2023 entre a profissional e estagiária de Serviço Social, a partir da elaboração de estudos sociais em que os temas da violência doméstica e da parentalidade convergiam. 428 | Gênero, violência e estruturas de poder Cisne e Santos (2018) pontuam que nas sociedades capitalistas todo indivíduo pertence a uma classe, deve possuir um gênero e é racializado, onde essas relações sociais são estruturantes das desigualdades. Por exemplo, em sociedades marcadas por disparidades econômicas, observa-se que “famílias desfeitas são mais pobres, e num círculo vicioso, as famílias mais pobres desfazem-se mais facilmente” (SARTI, 2011, p. 66), sendo que em seus papéis sociais, essas famílias pobres complementam-se para realizar a divisão do irrisório que elas têm, visto que não contam com a efetiva participação do Estado para garantir-lhes direitos mínimos. É dessa imbricação dialética entre classe, raça e gênero que a sociedade capitalista vai operar agudas divisões no mundo do trabalho e nas próprias classes sociais, provocando uma simbiose entre exploração e opressão cada vez mais complexificada. Por isso, a violência de gênero e intrafamiliar emerge na sociedade como uma das expressões mais gritantes da questão social, pois propaga as disparidades econômicas, políticas e culturais presentes entre as classes sociais, as quais se manifestam por meio das discrepâncias nas relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, impactando diversos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens e conquistas da civilização. (IAMAMOTO, 2001). No Brasil, a história da violência remonta há séculos de opressão e desigualdade de classe, raça e gênero; assim como, o modelo de família tradicional é caracterizado pela família nuclear, composta por um pai, uma mãe e seus filhos, seguindo padrões heterossexuais e monogâmicos (GUEIROS, 2002), influenciado pela cultura europeia - capitalista, burguesa, cristã, onde idealiza-se e naturaliza-se um único formato que nega a historicidade, mutabilidade e diversidade das famílias, e até hoje perpetua desigualdades sociais, econômicas e de gênero. (ROCHA, 2001, p. 119). A naturalização desse perfil familiar burguês perpetua a violência de gênero de várias maneiras, pois, reforça estereótipos tradicionais de gênero, nos quais se espera que homens e mulheres desempenhem papéis rígidos e específicos na família (ROCHA, (2001), por isso, justifica a violência como uma forma intrínseca do agir masculino no seu indispensável papel de "controle" ou "domínio" sobre os demais, Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 429 deslegitimando o reconhecimento de relações abusivas no âmbito sociofamiliar. Aos filhos, a tendência é responder às situações vividas de acordo com ideias, conceitos, tradições, mitos e segredos que sustentam e representam padrões de repetição familiar, logo, se possuírem um modelo de interação violenta, irão aprender também a serem violentos, seguindo ao movimento transgeracional do seu grupo; e uma vez internalizados, estes aprendizados são incorporados na escala de valores do indivíduo determinando sua forma de enfrentar as expectativas sociais, sendo isto específico para cada sexo. (BARROS, 2015). Somente a partir dos anos de 1960, com as lutas dos movimentos feministas e LGBTQI+, que a violência de gênero passou a ser amplamente discutida e combatida. Entretanto, no pós-1960 colocamo-nos diante de um descompasso, onde a mudança de mentalidade cultural não acompanhou o ritmo das mudanças legais, e vice-versa; observamos que parcela significativa da sociedade ainda alicerça sua compreensão sobre o imaginário de família numa perspectiva tradicional burguesa, refutando a pluralidade de modos de formação de famílias, assim, mantendo a violência de gênero e intrafamiliar como um grave problema social e de saúde pública. Nossa Constituição Federal evoca em seu artigo 227 que: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O ECA dispõe sobre a proteção integral de crianças e adolescentes, bem como sobre a adoção de políticas públicas para seu desenvolvimento pleno e saudável. A Convenção de Belém do Pará proclama que seus Estados signatários devem criar condições objetivas para o rompimento do ciclo da violência. Dos art. 944 ao art. 954 no Código Civil brasileiro, trata-se de modo amplo sobre o direito à indenização quando direitos diversos são violados, incluindo-se o direito dos filhos à proteção devida por quem detém o poder familiar. Existe ainda, a 430 | Gênero, violência e estruturas de poder Lei nº 13.010/2014 que estabelece o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. Há a Lei nº 13.104/2015 que versa sobre a gravidade do feminicídio. A Lei 13431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, traz a tipificação das violências: física, psicológica, sexual e institucional. A Lei 13.715/2018, que trata da retirada do poder familiar de genitor que é autor de violência contra o outro genitor/cuidador. E a recente Lei 14.717/2023 que institui benefício social, no valor de um salário mínimo, a ser pago aos filhos e dependentes menores de dezoito anos de idade de mulheres vítimas de feminicídio. Ao elencarmos essas normativas que no Brasil visam garantir proteção social e reparação histórica, acentuamos que nelas perpassa o nosso vigente Estado patriarcal, conservador e punitivista, onde a intervenção com famílias se faz segmentada e focada apenas sobre o ato criminoso versus a penalidade, mas não sobre a violência estrutural. (MOURA, 2021). Ou seja, é possível presumir que para nós o acúmulo de debates sobre o tema da violência e suas leis de combate e/ou promoção da paz, por vezes, mostra-se inócuo. Para retratar de outro modo, no Sistema de Justiça, observamos as interferências da cultura patriarcal quando analisamos as incongruências na proteção ofertada à mulher vítima de violência de gênero e intrafamiliar, aos filhos e ao exercício da parentalidade. Neste caso, verificamos que as leis da alienação parental e da guarda compartilhada apresentam uma relação indissociável, pois, elas de algum modo caracterizam quem seria o homem/pai ou a mulher/mãe apto a exercer o poder familiar, assim como, revelam a disputa sociopolítica no Brasil sobre os direitos de genitores e prole à convivência familiar e comunitária e à equidade parental. Quando essas duas leis unem-se à lei Maria da Penha, temos evidente dissonância entre elas, pois muitas vezes, as primeiras são destacadas por um judiciário interessado em legitimar modelo conservador e opressor de família, privilegiando o sistema patriarcal, por isso, entendemos que o cotidiano das leis e atos jurídicos que versam sobre a proteção familiar pouco alcançam o objetivo proclamado. Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 431 3. SOBRE O CICLO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A PROTEÇÃO SOCIAL DOS FILHOS Como dito anteriormente, a leitura das leis que dialogam com o exercício da parentalidade exige compreensão teórica e crítica sobre as famílias, com as interseccionalidades de classe, raça e gênero, a fim de identificarmos suas contradições. Com este entendimento e a partir da nossa experiência no trabalho no campo sociojurídico com famílias que vivenciaram a violência de gênero, propomos uma breve análise do ciclo da violência 4 , associando como os filhos poderiam vivenciar cada fase, para assim indicar, como eles são afetados pela violência de gênero e intrafamiliar praticada pelo homem/pai contra a mulher/mãe. Na primeira fase do ciclo da violência ocorre o aumento gradual da tensão no relacionamento entre os genitores; observamos que os filhos absorvem o estresse e a instabilidade vivida no lar reagindo com ansiedade, insegurança e medo do futuro, p.ex.; os pais estão imersos no conflito da conjugalidade, muitas vezes, negligenciando5 aspectos da rotina da prole como a participação escolar, cuidados referentes à saúde, à sociabilidade, etc. comportamento que prejudicar o desenvolvimento da prole se insistido ao longo do tempo. Na segunda fase, concretiza-se a violência física e verbal, onde o autor da violência descarrega sua raiva e frustração sobre a vítima, prática que por sua própria característica doméstica, frequentemente ocorre na presença dos filhos; percebemos que essas crianças e/ou adolescentes em que os pais habitualmente discutem na frente deles, usando-os como intermediários para transmitir mensagens ou até mesmo culpabilizando-os pelo conflito, acreditam que de fato são responsáveis pelo sofrimento dos mesmos; ademais, ao testemunharem essa explosão de violência, frequentemente experimentam adoecimento psicossomático, por exemplo, dores no corpo, sono irregular, alteração do apetite, alergias, etc. 4 Teoria desenvolvida por Lenore Walker (1979), descreve a dinâmica complexa dos relacionamentos abusivos, com três fases interligadas: a fase da tensão, a fase da explosão e a fase da lua de mel. 5 O Ministério da Saúde caracteriza negligência como omissões dos adultos (pais ou outros responsáveis pela criança ou adolescente, inclusive institucionais), ao deixarem de prover as necessidades básicas para o desenvolvimento físico, emocional e social de crianças e adolescentes. Inclui, por exemplo, a privação de medicamentos; a falta de atendimento à saúde e à educação; o descuido com a higiene; a falta de estímulo, de proteção de condições climáticas (frio, calor), de condições para a frequência à escola e a falta de atenção necessária para o desenvolvimento físico, moral e espiritual (BRASIL, 2004). 432 | Gênero, violência e estruturas de poder Na última fase, descrita como lua de mel, o autor da violência indica arrepender-se das práticas e expressa intenção de mudança, a fim de manter o relacionamento com a vítima e/ou grupo familiar. Durante essa fase, a prole pode sentir alívio temporário, mas também, ficar confusa e ambivalente em relação ao autor da violência; os filhos esperam que a situação melhore, no entanto, é comum o reinício do ciclo da violência; assim, por vezes, os filhos, especialmente o mais velho, incorporam funções protetivas dos adultos, além de suportarem pressões sociais para alcançar a estabilidade do grupo familiar, a fim de mantê-lo unido. Diversos e complexos motivos fazem com que o ciclo da violência não seja rompido facilmente. No geral, mesmo após o término do relacionamento conjugal é comum nos discursos das mulheres e filhos a tolerância à violência sofrida; eles amenizam a gravidade ao justificarem a figura social e moral do autor da violência como o “provedor da família”, um “bom pai” ou alguém “doente/fragilizado,” p.ex. É comum o homem/pai buscar a manutenção do controle e o poder sobre sua excompanheira e seus filhos, utilizando-se do vínculo parental; e que a mulher/mãe, por sua vez, é única responsabilizada caso o filho não se desenvolva como o socialmente esperado. Também, alguns desses filhos encaram o casamento na adolescência como estratégia para desvincular-se da família de origem, onde o pretenso parceiro e a relação são idealizados, perpetuando muitas vezes, o ciclo da violência. Pontuamos que os filhos que mantêm vínculos com um genitor autor de violência muitas vezes desejam preservar essa relação sem perceberem que estão sendo vítimas de violência. (BARROS, 2015). Tanto os filhos quanto os próprios genitores têm dificuldade em identificar as várias manifestações de violência por não serem notórias como a violência física. Entretanto, é certo que “testemunhar a violência doméstica deixa marcas na vida das crianças e dos adolescentes e, lamentavelmente, seus impactos, muitas vezes, são subestimados e até mesmo banalizados pelo Estado e pela sociedade” (Faermann; Silva, 2014, p.103), pois, para além de um aspecto individual e/ou subjetivo, a violência dita invisível, manifesta-se concretamente em dificuldades de aprendizado, participação escolar, problemas de saúde, socialização, que perduram na vida adulta. Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 433 Ainda, a jornalista e pesquisadora Renata Moura, em seu trabalho “A criança suja de sangue” 6 (2021), traz que nas ocorrências de feminicídio, os filhos desta violência não são observados em nossa sociedade na mesma lógica que a gravidade da violência praticada contra as mulheres. Não existem pesquisas ou estatísticas organizadas que mapeiem essa realidade, a fim de mensurar os impactos dessa violência nos filhos nem da resiliência deles para sobrepô-la, mesmo já constatado por outros estudos como esse aspecto segue adoecendo gerações e alimentando um ciclo sem fim da violência; e por não haver estudos sistematizados, não há políticas públicas com o olhar para esta demanda, então, esses filhos e seus pares que também precisam ser vistos pela rede de atendimento, crescem sem o efetivo suporte do Estado. Então, considerando esse cenário complexo quanto à violência invisível ou/e violência indireta sofrida por crianças e adolescentes, através da violência de gênero e intrafamiliar praticada por homem/pai contra mulher/mãe, pontuamos a imprescindível ação de examinar e mapear os pontos de trânsito dessa criança e adolescente para considerar as possibilidades de identificação dessa violência. Por isso, ressaltamos que para além da família, as instituições que atuam com as políticas públicas são potenciais espaços de prevenção, detecção e proteção contra violência, com destaque para os serviços de saúde por meio das unidade básica de saúde – UBS; a assistência social em seus centro de referências CRAS e CREAS; e a educação em toda sua rede de ensino básico e fundamental. No entanto, a eficácia dessas instâncias é comprometida por uma série de desafios. Um deles é que, por vezes, há falhas em reconhecer os sinais de violência indireta contra crianças e adolescentes tanto por a equipe técnica não dispor de qualificação adequada para isso quanto pela ausência de sistematização no atendimento e de serviço especializado que resulta em análises superficiais ou negligência desses casos. O Ministério da Saúde, através da Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas, lista algumas atitudes 6 Reportagem especial da Tribuna do Norte, disponível no site www.acriancasujadesangue.com.br, trabalho que é fruto da dissertação de mestrado da jornalista potiguar Renata Moura. 434 | Gênero, violência e estruturas de poder preventivas que devem ser adotadas por profissionais de saúde diante de situações de violência no contexto familiar, a saber: Orientar as famílias sobre a ressignificação das relações familiares em prol da tolerância e da formação de vínculos protetores; Acompanhar e apoiar as famílias no processo de construção de novos modos de agir e de educar as crianças e adolescentes; Buscar apoio de outros profissionais, quando julgar pertinente, e articular as ações desenvolvidas no serviço com a rede de cuidados e de proteção social no território. (Ministério da Saúde, p.19, 2010) A intervenção eficaz exige uma abordagem interdisciplinar, envolvendo a colaboração entre profissionais das várias políticas públicas, além do reconhecimento de outros setores relevantes na sociedade civil que atuam como espaços de contenção pontual da violência, por exemplo, organizações esportivas, religiosas e sociais. A criação de redes de apoio e o fortalecimento das instituições que desempenham um papel protetivo na vida de crianças e adolescentes são passos essenciais para romper o ciclo da violência dita invisível. Ademais, a sociedade precisa ser informada sobre a existência dessa forma de violência, compreender seus impactos e saber como agir diante de situações suspeitas. Etayo (2011, p. 16 apud BARROS, 2015) traz que “homens que agridem as suas parceiras sentimentais estão normatizados por um padrão de educação que, inclusive hoje, é exigido socialmente”; ou seja, para além de um análise maniqueísta sobre esses homens autores de violência que, conforme cada ponto de vista, os determinam como anjos ou demônios, constatamos que simplesmente a maioria deles reproduzem os modelos culturais instituídos sem ressignificá-los, por isso, o diálogo e a conscientização sobre masculinidades desempenham hoje papel fundamental para romper o ciclo da violência. Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 435 4. SERVIÇO SOCIAL, TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS E VIOLÊNCIA DE GÊNERO Sobre o que discorremos, o Serviço Social como profissão imbricada na mediação do capital versus trabalho, está inserido nos diversos espaços sócio ocupacionais, sendo privilegiado pela sua atuação no trabalho social com famílias. Como área de conhecimento e profissão, o Serviço Social analisa as transformações societárias para intervir diretamente nas múltiplas expressões da questão social manifestas no complexo processo de desigualdade social. Assim, oferece respostas imediatas às demandas objetivas dos usuários, viabilizando-lhes o acesso a direitos materializados em políticas públicas diversas, além de, orientação social, encaminhamento aos serviços da rede de proteção, além de conectá-los aos mecanismos democráticos de controle social e da sociedade civil organizada (AMORIM, 2009). Para a/o assistente social é fundamental uma análise das famílias que supere a fragmentação do ser social, exigindo para isto, uma perspectiva abrangente que considere o contexto da violência, os aspectos socioeconômicos, culturais e subjetivos envolvidos. É essencial desvelar e mediar as expressões da questão social, sob o risco de subestimar a complexidade e os impactos da violência nas relações familiares entre pais/mães e filhos, colocando em risco o bem-estar da prole e desprotegendo a vítima de violência. Além de uma avaliação criteriosa, a/o assistente social deve mobilizar a articulação com outros profissionais e instituições, como a rede de proteção à mulher e/ou à criança e ao adolescente, para ampliar o acesso aos direitos. Ademais, entendemos que diante das nuances que envolve o exercício da parentalidade em ambientes onde há violência doméstica e intrafamiliar, ao avaliar os elementos que dizem sobre os filhos manterem o não o convívio com o genitor agressor, a/o assistente social depara-se com um enredo desafiador. Assim, Gois e Oliveira (2019, p. 69) ponderam que: Via de regra, as situações que chegam à Justiça exigem, do ponto de vista social, a análise de um conjunto de fatores que não se restringe ao momento atual daquela família. A investigação da realidade social de indivíduos e famílias indica, geralmente, um 436 | Gênero, violência e estruturas de poder nível de complexidade não abrangido na legislação e transcendente à aparência dos fatos ou das narrativas que são inicialmente dadas a conhecer. Nesse sentido, os profissionais têm o desafio de contextualizar a situação apresentada, em busca do desenvolvimento de como aquelas pessoas estão singularizando questões que são fruto desse momento histórico e das determinações sociais dele decorrentes, além das relações intergeracionais e de gênero estabelecidas nas famílias. Não raro, as situações vividas pela família no momento presente resultam de questões que vêm se adensando há duas ou três gerações. Em vara de família é evidente a judicialização da questão social; ainda assim, vale ressaltar que a vida das pessoas não está circunscrita apenas ao que as leis e políticas ofertadas dizem; ademais, o tempo das famílias não é o tempo do processo judicial. Por fim, é necessário um olhar sensível e individualizado para compreender as particularidades de cada intervenção e caso estudado, buscando equilibrar a proteção dos filhos com o respeito aos direitos familiares, podendo assim, a/o assistente social expressar em sua prática a defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo como um dos princípios fundamentais determinados em seu Código de Ética profissional. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em nosso estudo, consideramos a violência doméstica como fator de risco para todos que estão inseridos nesse contexto, pois mesmo que não seja identificada uma violência direta contra um de seus membros, há evidente violação de direitos. A literatura revela que os filhos que vivenciam violência de gênero e intrafamiliar de forma aguda e/ou crônica apresentam privação no desenvolvimento psicossocial, por vezes, expressa em sofrimento psíquico (transtornos de depressão e/ou ansiedade), uso de psicoativos, enurese, limitações cognitivas e dificuldade no aprendizado, tentativa de suicídio, medo da referência masculina, escolarização interrompida, casamento infantojuvenil, etc. Muitos desses filhos não conseguem compreender que sofrem a violência devido aos vínculos de afetos e intergeracionalidade que envolvem o grupo familiar; assim, a violência de gênero e Thaysa Farias Ferreira; Antônia Rozelir da Silva Araújo | 437 intrafamiliar adoece gerações, retroalimenta um ciclo de violência sem fim, e solidifica a medicalização da vida. No Brasil não há uma estrutura efetiva de combate à violência estrutural expressa na violência de gênero e intrafamiliar e os danos causados por ela. Quando tramita no Sistema de Justiça, o Poder Público atua somente até o término do processo com a condenação ou absorção penal ou cívil do autor da violência; assim, constatamos uma rede de garantia de direitos fragmentada, que não abarca a devida proteção à família nem atua de fato sobre a violência estrutural. Não existem estatísticas e políticas públicas que atendam essa demanda, assim como, a violência contra os filhos não é observada na mesma lógica que a violência contra a mulher. Diante deste quadro, pontuamos que a/o assistente social deve realizar uma avaliação criteriosa, considerando o contexto da violência, os aspectos socioeconômicos, culturais e subjetivos envolvidos. Para isso, exige-se uma intervenção interdisciplinar, articulando com outros profissionais e instituições, como a rede de proteção à mulher e aos direitos da criança e do adolescente, que atuem com perspectiva de gênero e alternativas não-violentas para resolução de conflitos, buscando a superação das várias expressões de violência historicamente instituídas. Por último, entendemos que as importantes transformações nas famílias ocorridas no último século, ainda não foram consolidadas em nossa cultura, visto que não temos efetividade de políticas sociais de apoio às famílias em suas funções de cuidado, proteção e convivência social. Por isso, a prevenção da violência de gênero e intrafamiliar deve fazer-se presente em várias frentes de ações culturais, sociais e econômicas, que fomente uma consciência coletiva comprometida com o enfrentamento à discriminação e desigualdades de gênero, com destaque para práticas educativas de ressignificação de masculinidade e superação do patriarcado. REFERÊNCIAS AMORIM, Darcy Ramos de. O trabalho profissional do assistente social no poder judiciário em Manaus. 2009. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Manaus, 2009. 438 | Gênero, violência e estruturas de poder BARROS, Larissa Silva. Quem bate na mulher machuca a família inteira: violência de gênero a partir de narrativas de uma família. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2015. Disponível em: <https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/16222> Acesso em: 19/10/2023 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2016. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 03/12/2023 ______. Instituto Maria da Penha. Fortaleza: IMP, 2018. Disponível em: <https://www.institutomariadapenha.org.br/quem-somos.html>. 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MÃES NO CÁRCERE: A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO SERVIÇO SOCIAL https://doi.org/10.36592/9786554601566-23 Aline Santos Pereira1 Camila Maximiano Miranda Silva 2 RESUMO O artigo tem o objetivo de analisar o que está sendo produzido no âmbito do Serviço Social sobre o encarceramento feminino, enfatizando a maternidade no cárcere. Para alcançar o objetivo foi analisado as revistas: Katálysis; Serviço Social e Sociedade; a Revista Em Pauta: Teoria Social e Realidade Contemporânea; Textos & Contextos (Porto Alegre); Ser Social. No atual panorama da produção científica no campo do Serviço Social, com foco nessa temática específica, observou-se uma escassez de produção. Palavras chave: Sistema prisional; Mães no cárcere; Serviço Social. ABSTRACT: The aim of this article is to analyze what is being produced in the field of Social Work about women's incarceration, with an emphasis on motherhood in prison. In order to achieve this goal, the following journals were analyzed: Katálysis, Serviço Social e Sociedade, Em Pauta; Teoria social e realidade contemporânea, Textos & Contextos (Porto Alegre), Ser Social. In the current panorama of scientific production in the field of Social Work, with a focus on this specific theme, a scarcity of production was observed. Keywords: Prison system; Mothers in prison; Social service. Introdução O referido artigo tem a finalidade apresentar o resultado parcial da pesquisa de iniciação científica realizada por meio do Programa de Educação Tutorial (PET), denominada “Mães no Cárcere: A produção do conhecimento no Serviço Social”. O objetivo geral desta pesquisa é conhecer o que tem sido produzido de conhecimento no âmbito do Serviço Social sobre o encarceramento feminino, enfatizando a maternidade no cárcere. Para atingir o objetivo da pesquisa foi realizado uma 1 Discente de graduação em Serviço social na Faculdade de Administração, Ciências Contábeis, Engenharia de Produção e Serviço Social da Universidade Federal de Uberlândia, e-mail: aline.pereira2@ufu.br 2 Docente da Universidade Federal de Uberlândia, e-mail: camilamaximiano@ufu.br 442 | Gênero, violência e estruturas de poder pesquisa bibliográfica utilizando as revistas: Katálysis, Serviço Social e Sociedade, a Revista Em Pauta: Teoria social e Realidade Contemporânea, Textos & Contextos (Porto Alegre), Ser Social. Diante do exposto, a questão das mulheres presidiárias é um tema complexo e multifacetado que suscita discussões sobre gênero, justiça criminal e direitos humanos. Ao longo das últimas décadas, o número de mulheres encarceradas tem crescido significativamente em todo o mundo, desafiando concepções tradicionais sobre crime e punição. É importante ressaltar que a situação das mulheres presidiárias não deve ser abordada apenas como uma questão de segurança pública, inclui também a inviabilização, a proteção e garantia de seus direitos e de seus filhos. De acordo com os dados da Secretaria Nacional de Informações Penitenciárias (SENAPPEN)3, a maioria das mulheres presas apresenta as seguintes características: 62% são negras, 66% têm ensino fundamental incompleto, 59% têm até 29 anos e 74% são mães. Segundo dado levantado pelo Departamento penitenciário de Minas Gerais (DEPEN, 2021) mais da metade (56%) das mulheres privadas de liberdade cometeram crimes relacionados ao tráfico de drogas, sem violência ou grave ameaças Segundo uma pesquisa realizada pelo Grupo Globo juntamente com o IBGE, atualmente no Brasil 48% das famílias são chefiadas por mulheres, ou seja, como as principais responsáveis pelo o sustento da casa e dos filhos. Neste cenário, têm-se verificado o lugar da mulher na sociedade, em que ela se encontra em um espaço desigual, por muitas vezes com disparidades salariais e segregação ocupacional; carga de trabalho não remunerada; acesso limitado à educação e oportunidades; falta de acesso a recursos e serviços; violência de gênero; monoparentalidade feminina; acesso limitado a direitos a propriedade. E diante dessa necessidade econômica, assim como os homens, algumas mulheres podem se envolver em atividades criminosas devido à pobreza e à falta de oportunidades econômicas. Para 3 SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS (SENAPPEN). Aprisionamento feminino e faixa etária dos filhos que estão nos estabelecimentos. Resultados da amostra. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen. Acesso em 08 jul.2023 SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS (SENAPPEN). População por Cor/Raça no Sistema Prisional. Resultados da amostra. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/ptbr/servicos/sisdepen. Acesso em 08 jul.2023 Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 443 muitas delas, o crime pode parecer a única maneira de sustentar a si mesmas ou às suas famílias, outro fator é a pressão de um relacionamento em alguns casos, mulheres podem ser influenciadas por seus parceiros envolvidos em atividades criminosas. Elas podem se envolver no crime para ganhar aceitação, proteção ou por pressão de pares. Conforme o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)4 de 2019, a cada 7 de 10 mulheres encarceradas afirmaram que entraram no crime por influência dos parceiros. E diante desse número massivo de mulheres encarceradas, há necessidade de despertar sobre as condições de encarceramento feminino, levando em consideração que o sistema prisional foi constituído com base nas necessidades e características masculinas. A diferença de tratamento e sistema prisional entre homens e mulheres é um reflexo das desigualdades profundamente enraizadas em nossas sociedades. Essas disparidades refletem os preconceitos entre gêneros, como cita Angela Davis no livro “Estarão as prisões obsoletas?” (1944, p. 86)5: “No caso das mulheres, a continuidade de tratamento que recebem no mundo livre para o universo da prisão é ainda mais complicada, já que elas também enfrentam nas prisões formam de violência que enfrentam em casa e nos relacionamentos íntimos.” No sistema prisional, as disparidades de gênero são evidentes em vários aspectos, desde as condições de detenção até as oportunidades de reabilitação. Em muitos lugares, as instalações prisionais para mulheres tendem a ser menores e menos equipadas do que aquelas para homens. Isso pode resultar em superlotação e condições insalubres, essas situações agrava os desafios enfrentados pelas mulheres encarceradas, exigindo um tratamento diferenciado para atender às suas necessidades específicas, como a custódia dos filhos, a manutenção dos laços familiares e os cuidados com a saúde reprodutiva. O ambiente prisional apresenta uma série de desafios e déficits que impactam diretamente a saúde das mulheres no 4 MÃES SEM PRISÕES: ENFRENTANDO A (IN)VISILIBILIDADE DAS MULHERES SUBMETIDAS À JUSTIÇA CRIMINA. [recurso eletrônico] / Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. – São Paulo: ITTC, 2019. Disponível em: https://ittc.org.br/wp-content/uploads/2019/05/mulheresemprisaoenfrentando-invisibilidade-mulheres-submetidas-a-justica-criminal.pdf Acesso em: 8 jul. 2023 5 DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018. 144 p. 444 | Gênero, violência e estruturas de poder sistema prisional, o acesso aos cuidados de saúde adequados é muitas vezes limitado, isso pode resultar em uma falta de serviços básicos de saúde reprodutiva, como exames ginecológicos regulares, consultas pré-natais e acesso a contraceptivos. Outra questão importante é a violência sexual e o abuso que muitas mulheres enfrentam enquanto estão sob custódia do Estado. Isso pode resultar em gravidezes indesejadas, infecções sexualmente transmissíveis e traumas psicológicos duradouros. Oliveira, G. R. de, Nascimento, R. G. do, & Araújo, A. dos R. (2023)6. A falta de políticas eficazes para prevenir e responder a essas formas de violência agrava ainda mais a situação, Angela Davis discursa sobre o abuso enfrentado pelas mulheres quando essas se encontram no sistema prisional, (1944, p. 84): “O abuso sexual -que, como a violência doméstica, é a mais uma dimensão da punição privativa das mulheres- tornou-se um componente institucionalizado da punição por trás dos muros da prisão” Em uma última análise, a igualdade de gênero no sistema prisional não é apenas uma questão de justiça, mas também de eficácia, que requer uma abordagem holística que leve em consideração as necessidades específicas das mulheres encarceradas e trabalhe para garantir que tenham acesso a serviços de saúde de qualidade, apoio emocional e recursos para tomar decisões informadas sobre sua própria saúde e bem-estar. Á frente do objetivo desta pesquisa, percebeu-se que no atual panorama de produção científica no campo do Serviço Social, com o foco nesta temática em específica, pouco se tem de produção. 6 OLIVEIRA, G. R. de; NASCIMENTO, R. G. do; ARAÚJO, A. dos R. Saúde no cárcere: Uma revisão integrativa da literatura. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 22, n. 1, p. e42961, 2023. DOI: 10.15448/1677-9509.2023.1.42961. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/42961. Acesso em: 9 ago. 2023. Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 445 A Produção de conhecimento no âmbito do Serviço Social O presente estudo trata-se de um rastreamento bibliográfico utilizando as revistas: Katálysis, Serviço Social e Sociedade, a Revista Em Pauta: Teoria social e realidade contemporânea, Textos & Contextos (Porto Alegre), Ser Social. Entendida como uma abordagem metodológica para revisar a literatura, possibilitando a construção de discussões sobre os métodos e resultados dos estudos científicos disponíveis. Ao fazer o rastreamento do tema, foram analisados no total 2.414 artigos das revistas selecionadas para compor o estudo, mas somente foram selecionados 21 artigos das revistas e desses 21 artigos, somente 3 abordavam a temática da mulher encarcerada e nenhuma enfatizava a maternidade no cárcere. Katálysis: A Revista Katálysis, criada em 1997, é editada pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e pelo Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. A Revista Katálysis tem o objetivo de publicar produções científicas atuais e relevantes relacionadas ao Serviço Social, abrangendo temáticas das Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas, política social, trabalho, questão social e saúde pública. Na revista foi analisado do ano de 2006 até 2023, contando com 27 volumes publicados, totalizando 708 artigos em periódicos. Dos 708 artigos foi somente encontrado um artigo semelhante a temática. O artigo intitulado como “O encarceramento de mulheres no capitalismo dependente e periférico brasileiro.” 7 Publicado em 2023, realizado pelas autoras Rosilene Marques Sobrinho de França e Beatriz Gershenson, Textos & Contextos (Porto Alegre): é um periódico que tem na questão social, enquanto expressões de desigualdades e resistências, seu eixo articulador, sendo seu objetivo o de contribuir para a construção de conhecimentos em Serviço Social, e em campos correlatos do saber, com ênfase nos eixos relativos às políticas sociais, direitos humanos e processos sociais, bem como o trabalho e formação em Serviço Social. Direciona-se, portanto, a pesquisadores, docentes, discentes e profissionais da área do Serviço Social e áreas afins. Totaliza 37 volumes, de 2002 até 2023, 7 FRANÇA, Rosilene Marques Sobrinho de; GERSHENSON, Beatriz. O encarceramento de mulheres no capitalismo dependente e periférico brasileiro. Revista Katálysis, [S.L.], v. 26, n. 2, p. 222-231, ago. 2023. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1982-0259.2023.e90729. 446 | Gênero, violência e estruturas de poder contabiliza 618 artigos publicados. Dos 618 artigos foi somente encontrado 2 artigos que fala sobre o encarceramento e a saúde das mulheres no sistema prisional. Publicado em 2020 e realizado pelas autoras Águida Luana Veriato Schultz, Miriam Thais Guterres Dias e Renata Maria Dotta, o artigo intitulado como “Mulheres Privadas de liberdade no sistema prisional: Interface entre saúde mental, serviços sociais e vulnerabilidade.” 8 e o artigo intitulado como “Saúde no cárcere: Uma revisão integrativa da literatura”9, publicado em 2023 pelos autores Gilberto Reinaldo de Oliveira, Rodolfo Gomes do Nascimento, Adrilayne dos Reis Araújo. Serviço Social & Sociedade: sua criação, em setembro de 1979, a revista, apresenta uma política editorial pautada pela diretriz de dar voz a essa valiosa produção acadêmica e profissional dos assistentes sociais e de pesquisadores de áreas afins, repercutindo também o desenvolvimento sociopolítico do Serviço Social e o pensamento de suas entidades representativas, Foi esse o contexto que marcou o processo de rearticulação das forças político profissionais na sociedade brasileira e no Serviço Social, promovendo uma diversificação e democratização das formas de expressão e das linhas de pesquisa dos assistentes sociais. Neste sentido, a revista Serviço Social & Sociedade foi, em sua gênese, contemporânea do importante movimento de renovação do Serviço Social e continua contribuindo com o desenvolvimento acadêmico e profissional dessa área de conhecimento e intervenção na realidade, bem como de áreas afins. Foi analisado as datas de publicações de 2010 até 2023, totalizando 482 artigos publicados. Não foi encontrado nada relacionada a mulheres no cárcere, mas foi encontrado um artigo intitulado como “Entre paredes e redes- O lugar da mulher nas famílias pobres”10, que usamos para entender o papel da mulher quando ela se torna chefe de família. 8 LUANA VERIATO SCHULTZ, Águida.; GUTERRES DIAS, M. T..; DOTTA, R. M. Mulheres privadas de liberdade no sistema prisional: Interface entre saúde mental, serviços sociais e vulnerabilidade. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 19, n. 2, p. e36887, 2020. DOI: 10.15448/1677-9509.2020.2.36887. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/fass/article/view/36887. Acesso em: 6 mar. 2024. 9 OLIVEIRA, G. R. de; NASCIMENTO, R. G. do; ARAÚJO, A. dos R. Saúde no cárcere: Uma revisão integrativa da literatura. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 22, n. 1, p. e42961, 2023. DOI: 10.15448/1677-9509.2023.1.42961. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/42961. Acesso em: 9 ago. 2023. 10 AZEREDO, Verônica Gonçalves. Entre paredes e redes: o lugar da mulher nas famílias pobres. Serviço Social & Sociedade, [S.L.], n. 103, p. 576-590, set. 2010. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0101-66282010000300009. Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 447 Em Pauta; Teoria social e realidade contemporânea: Criada em 1993, é um veículo de divulgação científica da Faculdade de Serviço Social da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Seu foco está voltado para a compreensão de determinações e contradições sócio-históricas que envolvem a esfera da política e o mundo do trabalho, com destaque para as lutas sociais no Brasil e nos países hispano-americanos. A revista Em Pauta é um espaço de troca de ideias e críticas produzidas em diversos contextos e continentes, além de ser canal de debate e interlocução sobre os fundamentos e experiências da profissão. Totaliza 18 volume e 606 artigos publicados. Dos 606 periódicos publicados não foi encontrado nenhum artigo sobre a temática ou semelhante. Organizamos em tabelas e gráficos para facilitar a visualização das revistas e dos artigos encontrados na produção científica no campo do Serviço Social. Análise Quantitativa das Publicações nas revistas. 25% 29% 20% 26% Katálysis 2006 - 2023 Textos & Contextos (Porto Alegre) 2002-2023 Serviço Social & Sociedade 2010-2023 Em Pauta; Teoria social e realidade contemporânea 2007-2024 Conseguinte, trouxemos uma tabela e gráfico filtrados dos 21 artigos selecionados, nesta visualizamos somente os artigos semelhantes a temática. 448 | Gênero, violência e estruturas de poder Revista Artigos Autores Ano Serviço Social & Entre paredes e Sociedade redes- O lugar da mulher nas famílias pobres. Verônica Gonçalves Azeredo 2010 Textos & Mulheres Privadas Contextos (Porto de liberdade no Alegre) sistema prisional: Interface entre saúde mental, serviços sociais e vulnerabilidade. Águida Luana 2020 Veriato Schultz Miriam Thais Guterres Dias Renata Maria Texto e contexto Saúde no cárcere (Porto Alegre) Uma revisão integrativa da literatura 2023 Dotta Gilberto Reinaldo de Oliveira Rodolfo Gomes do Nascimento Adrilayne dos Reis Araújo Katálysis O encarceramento Rosilene de mulheres no Marques capitalismo Sobrinho de dependente e França periférico brasileiro. Beatriz Gershenson Tabela: Artigos selecionados acerca da temática. 2023 Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 449 Publicações sobre Maternidade no Cárcere: Total e Específicas 800 700 600 500 400 300 200 100 0 Katálysis 2006 2023 Textos & Contextos (Porto Alegre) 20022023 Períodicos Publicados Serviço Social & Em Pauta; Teoria Sociedade 2010- social e realidade 2023 contemporânea 2007-2024 Períodicos acerca da temática Essa tabela e gráficos nos faz refletir os seguintes pontos: A escassez na produção no âmbito do serviço social; E o período em que a produção científica sobre mulheres encarceradas teve início. Em relação à escassez, encontrou-se poucos artigos sobre o tema, e ainda menos com foco na maternidade no cárcere. Quanto à aparente demora na abordagem da questão surge então um questionamento sobre a demora do Serviço Social em pautar a questão do encarceramento feminino com ênfase na maternidade. Com relação aos anos que começaram a surgir os periódicos, foi muito tardio, o encarceramento feminino vem crescendo exponencialmente faz duas décadas, dos anos 2000 até o primeiro semestre de 2022 esse crescimento chegou a 512% no Brasil. Podemos observar na tabela que somente em 2020 surgi na revista Textos & Contextos (Porto Alegre) a questão da mulher encarcerada, lembrando que os assistentes sociais tem um compromisso com a sociedade com a promoção da justiça social e a defesa dos direitos humanos. A situação de mulheres encarceradas muitas vezes está associada a questões 450 | Gênero, violência e estruturas de poder estruturais e sistêmicas que envolvem desigualdades econômicas, raciais e de gênero. Análise de Artigos em Periódicos Científicos O artigo intitulado como “O encarceramento de mulheres no capitalismo dependente e periférico brasileiro.”11, tem como objetivo o artigo analisar o papel do cárcere e do encarceramento de mulheres dentro do sistema hetero-patriarcalracista-capitalista do Brasil. A metodologia usada consistiu em estudo bibliográfico e documental, sendo que os resultados mostraram que os estabelecimentos prisionais se constituíram em tecnologias repressivas utilizadas para a formação e a consolidação do projeto de nação branca, classista, racista e sexista, como forma de atendimento às demandas de estruturação e desenvolvimento do capitalismo. As principais conclusões e descobertas apresentadas neste estudo sobre o encarceramento de mulheres incluem: O encarceramento de mulheres está intrinsecamente ligado às estruturas de poder do sistema hetero-patriarcal-racistacapitalista presente no Brasil A acumulação capitalista, aliada aos processos de seletividade penal, tem gerado um cenário de profundos riscos para as mulheres, influenciado pelo racismo estrutural, patriarcado, sexismo e misoginia .O Estado Penal, como resultado de acúmulos históricos e sociais, exerce um papel de controle social, especialmente sobre mulheres pobres, negras e moradoras das periferias urbanas, como forma de reprodução do capital .O perfil das mulheres encarceradas no Brasil é majoritariamente composto por jovens, pobres e negras residentes nas periferias urbanas, refletindo a interseccionalidade de gênero, raça e classe social .O cárcere tem assumido um papel proeminente na gestão da pobreza, por meio da violência, repressão e segregação, aprofundando as expressões da questão social decorrentes do desemprego, pobreza e insegurança alimentar, afetando especialmente famílias monoparentais chefiadas por mulheres, principalmente mulheres negras. 11 FRANÇA, Rosilene Marques Sobrinho de; GERSHENSON, Beatriz. O encarceramento de mulheres no capitalismo dependente e periférico brasileiro. Revista Katálysis, [S.L.], v. 26, n. 2, p. 222-231, ago. 2023. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1982-0259.2023.e90729. Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 451 O artigo intitulado como “Mulheres Privadas de liberdade no sistema prisional: Interface entre saúde mental, serviços sociais e vulnerabilidade.” 12 , tem como objetivo a partir da perspectiva de uma Equipe de Atenção Básica prisional (EABp), como o ambiente prisional afeta a saúde da população feminina privada de liberdade e quais as principais necessidades em saúde identificadas a partir do cotidiano de trabalho desta equipe. Através de uma pesquisa qualitativa, realizaram-se reuniões de grupo focal com a participação de 10 profissionais de uma EABp implantada em um presido feminino no Sul do Brasil. O artigo concluiu que o ambiente prisional pode tanto produzir quanto desencadear ou agravar os problemas de saúde dessa população. A escassa oferta de serviços sociais voltados à educação, ao desporto, ao lazer e à área ocupacional afetam as condições de vida nesse local. São atividades primordiais para a redução dos danos decorrentes do confinamento, pois funcionam como protetoras e promotoras da saúde no cárcere. Tal condição denuncia a fragilidade organizacional e o pouco envolvimento dos órgãos gestores na defesa e garantia dos direitos de cidadania das mulheres presas. O artigo intitulado como “Saúde no cárcere: Uma revisão integrativa da literatura” 13 , teve como objetivo do presente estudo foi realizar uma revisão integrativa de literatura, a fim m de conhecer o que tem sido pesquisado sobre o direito e a assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade. A metodologia usada foi realizar buscas na Biblioteca Virtual em Saúde, por meio dos descritores: “prisão”, “assistência à saúde” e “direitos à saúde”. Obteve-se uma amostra composta por 14 artigos, cuja análise foi expressa em três categorias: contexto da atenção à saúde das pessoas privadas de liberdade, saúde da população prisional feminina e acesso aos serviços de saúde no cárcere. O texto aborda a questão crucial: a saúde no sistema prisional brasileiro. Ele destaca a importância histórica da garantia dos direitos à saúde para a população carcerária, desde a Constituição 12 LUANA VERIATO SCHULTZ, Águida.; GUTERRES DIAS, M. T..; DOTTA, R. M. Mulheres privadas de liberdade no sistema prisional: Interface entre saúde mental, serviços sociais e vulnerabilidade. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 19, n. 2, p. e36887, 2020. DOI: 10.15448/1677-9509.2020.2.36887. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/fass/article/view/36887. Acesso em: 6 mar. 2024. 13 OLIVEIRA, G. R. de; NASCIMENTO, R. G. do; ARAÚJO, A. dos R. Saúde no cárcere: Uma revisão integrativa da literatura. Textos & Contextos (Porto Alegre), [S. l.], v. 22, n. 1, p. e42961, 2023. DOI: 10.15448/1677-9509.2023.1.42961. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/42961. Acesso em: 9 ago. 2023. 452 | Gênero, violência e estruturas de poder Federal de 1988 até as legislações mais recentes, como a Lei de Execução Penal e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). O texto também aborda desafios enfrentados, como a superlotação, a insalubridade e a violência dentro das prisões, que impactam negativamente na saúde física e psicológica dos detentos. Além disso, destaca-se a importância da atenção à saúde como determinante para o bem-estar da população carcerária, ressaltando a necessidade de políticas mais efetivas e intervenções que garantam o acesso universal aos cuidados de saúde. Em seus resultados, concluiu que via de regra o sistema prisional se caracteriza como um local de violação dos direitos humanos, em face dos diversos obstáculos enfrentados pelas pessoas privadas de liberdade para acesso aos serviços de saúde. Artigo intitulado como “Entre paredes e redes- O lugar da mulher nas famílias pobres”14, tem como objetivo resumir e examinar o papel da mulher na estrutura familiar e nas dinâmicas de proteção social em contextos de pobreza. Como figura central na esfera doméstica, as mulheres são frequentemente identificadas como os principais beneficiários de programas sociais devido à sua habilidade em administrar os recursos familiares de forma eficaz. No entanto, apesar do reconhecimento de seu papel crucial na manutenção da família e da comunidade, as políticas sociais muitas vezes negligenciam a perspectiva de gênero, resultando na persistência de desigualdades e discriminações que afetam injustamente as oportunidades das mulheres. A metodologia utilizada no estudo não foi explicitamente mencionada no resumo fornecido. No entanto, é possível inferir que o texto se baseia em uma abordagem qualitativa, considerando a análise das experiências e vivências das mulheres em famílias pobres, bem como a discussão teórica sobre gênero, pobreza e políticas sociais. A pesquisa destaca a importância de reconhecer o papel central das mulheres nas famílias pobres, tanto na provisão quanto no cuidado familiar, e como elas enfrentam as desigualdades de gênero e sociais por meio da criação de redes de apoio. Além disso, a discussão sobre a necessidade de políticas públicas que considerem a perspectiva de gênero e promovam a igualdade de oportunidades 14 AZEREDO, Verônica Gonçalves. Entre paredes e redes: o lugar da mulher nas famílias pobres. Serviço Social & Sociedade, [S.L.], n. 103, p. 576-590, set. 2010. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0101-66282010000300009. Aline Santos Pereira; Camila Maximiano Miranda Silva | 453 para as mulheres em situação de vulnerabilidade econômica parece ser um ponto relevante abordado no estudo. Trazer esse contexto da mulher como fonte de renda no contexto capitalista, entendemos uma das fontes do crescimento de mulheres no sistema prisional aumentou. Considerações Finais Diante disto, do atual panorama de produção científica no campo do Serviço Social, com o foco nesta temática específica, houve uma percepção que pouco se é falado do assunto. Embora existam discussões acerca do encarceramento feminino, mas pouco se enfatiza a maternidade no cárcere. Ao analisar os artigos selecionados para compor esse estudo concluiu-se que os artigos selecionados não se aprofundam na questão da situação vivenciada e além de não traçar os perfis dessas mulheres encarceradas, é importante oferecer uma visão aprofundada das experiências das mulheres que enfrentam a maternidade enquanto estão encarceradas incluindo entender os desafios específicos que elas enfrentam. Também é importante considerar o impacto do encarceramento materno nos filhos das mulheres encarceradas. Nas etapas para realização desta pesquisa, emergiram diversas questões cruciais que merecem uma atenção contínua e uma abordagem sensível por parte dos profissionais do Serviço Social, das políticas públicas, da sociedade e das instituições jurídicas. 24. ENCARCERAMENTO FEMININO: ANÁLISE DA CAUTELAR DA PRISÃO PREVENTIVA EM CRIMES PRATICADOS SEM VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA WOMEN’S INCARCERATION: ANALYSIS OF PREVENTIVE PRISON IN CRIMES PERMITTED WITHOUT VIOLENCE OR SERIOUS THREAT https://doi.org/10.36592/9786554601566-24 Joanna Smiderle1 Fábio Agne Fayet2 RESUMO A presente pesquisa tem como tema a cautelar da prisão preventiva, delimitando-se na sua aplicação às mulheres acusadas de crimes sem emprego de violência ou grave ameaça. Assim propõe-se responder o seguinte questionamento de pesquisa: em quais aspectos é importante que se comuniquem os fundamentos, requisitos e as consequências da prisão preventiva, em regime fechado, de mulheres acusadas de crimes sem violência ou grave ameaça? Criou-se duas hipóteses referentes à garantia da ordem pública e ao perigo gerado pelo estado de liberdade das imputadas. Objetiva-se o estudo acerca do impacto da cautelar às mulheres e seus núcleos sociais e familiares, bem como a sua análise jurídica. A metodologia empregada é a exploratória bibliográfica. As conclusões vão de encontro com a viabilidade de flexibilização, bem como a necessidade de comunicação entre os requisitos, fundamentos e consequências da aplicação da prisão preventiva. Palavras-chave: Aprisionamento feminino. Prisão preventiva. Sistema penitenciário. ABSTRACT This research has as its theme the precautionary measure of preventive detention, limiting its application to women accused of crimes without the use of violence or serious threat. Therefore, we propose to answer the following research question: in what aspects is it important to communicate the foundations, requirements and consequences of preventive detention, in a closed regime, of women accused of crimes without violence or serious threat? Two hypotheses were created regarding the guarantee of public order and the danger generated by the state of freedom of the accused. The objective is to study the impact of the precautionary measure on women and their social and family nuclei, as well as its legal analysis. The methodology used is bibliographic exploratory. The conclusions are in line with the 1 Estudante do 4º semestre do Curso de Direito do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG. Contato: joannasmiderle@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8016764913477041. 2 Orientador. Doutor em Ciências Criminais. Professor de Direito Penal e Processo Penal do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG. Advogado Criminalista. Contato: fabio.fayet@fsg.edu.br. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1361242497259188. 456 | Gênero, violência e estruturas de poder feasibility of flexibility, as well as the need for communication between the requirements, grounds and consequences of applying preventive detention. Keywords: Female imprisonment. Pre-trial detention. Penitentiary system. INTRODUÇÃO/CONSIDERAÇÕES INICIAIS O tema da presente pesquisa é o instituto da prisão preventiva, seus requisitos, fundamentações e aplicações de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, delimitando-se aos crimes cometidos por mulheres, sem emprego de violência ou grave ameaça. Busca-se encontrar a relação entre as condições para o decreto e manutenção da prisão preventiva e os seus reais impactos sobre o círculo social das presas. Diante da temática exposta, formulou-se o seguinte problema de pesquisa a ser respondido no decorrer deste trabalho: em quais aspectos é importante que se comuniquem os fundamentos, requisitos e as consequências da prisão preventiva, em regime fechado, de mulheres acusadas de crimes sem violência ou grave ameaça? A fim de responder a pergunta, foram estipuladas duas hipóteses, a partir da redação do artigo 312 do Código de Processo Penal. A primeira se refere ao requisito da garantia da ordem pública. Esta pesquisa propõe o pensamento e a análise desta condição em esfera sazonal, dentro da pessoalidade e particularidades das mulheres presas preventivamente por crimes sem violência ou grave ameaça. A segunda diz respeito ao perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado, tido como um vago fundamento legal para o decreto da prisão preventiva, a ser estudado com o mesmo olhar adotado na primeira hipótese. A pesquisa objetiva observar os impactos da cautelar em questão às mulheres encarceradas, bem como aos seus núcleos familiares e sociais, em casos em que os crimes pelos quais estão sendo acusadas foram, em tese, cometidos sem o uso de violência ou grave ameaça. A busca pela resposta ao questionamento proposto volta-se para a análise da comunicação e relação entre o ônus à sociedade sustentado na fundamentação legal da prisão preventiva e as suas efetivas consequências e impactos sobre o que se deseja proteger com tal privação de liberdade, no contexto feminino. Ademais, a temática escolhida se justifica pela baixa Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 457 visibilidade feminina diante do sistema penitenciário brasileiro, majoritariamente ocupado por homens. Expressiva quantidade e porcentagem de mulheres privadas de liberdade no Brasil, são acusadas da prática de crimes não violentos, como o tráfico de drogas e associação para o tráfico. Expor-se-á questões relativas às condições nas quais o público feminino se encontra, bem como os padrões de seletividade penal, a fim demonstrar a amplitude da temática escolhida e a necessidade de evitar decisões de caráter generalista e potencialmente danosas às pessoas que por elas são impactadas. O método empregado para o desenvolvimento desta pesquisa é o exploratório bibliográfico, com referência em fontes primárias, tais quais, livros e artigos científicos relacionados ao tema. A técnica de pesquisa utilizada é hipotéticodedutiva, com análise de doutrina e legislação. Quanto à estruturação do artigo, este divide-se em 2 capítulos, denominados, “O artigo 321 do Código de Processo Penal no contexto das mulheres encarceradas” e “Seletividade penal e condições do cárcere feminino”, respectivamente. O segundo capítulo dá origem a um subcapítulo denominado “A prisão domiciliar como alternativa”, objetivando uma abordagem dinâmica, coesa e didática. 1 O ARTIGO 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NO CONTEXTO DAS MULHERES ENCARCERADAS Preliminarmente, esclarece-se que o contexto citado no título deste capítulo diz respeito aos delitos cometidos sem emprego de violência ou grave ameaça. O objeto deste tópico é o artigo legal que regulamenta a prisão preventiva no Brasil, com foco na análise de específicos requisitos e fundamentos. O artigo 312 do Código de Processo Penal estabelece o instituto da prisão preventiva3, trazendo em sua redação, os moldes nos quais fundamentar-se-ão as decisões referentes ao decreto da cautelar, conforme o que segue: 3 A prisão preventiva, de natureza cautelar, se trata de prisão processual e pode ser decretada pelo juiz, por requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial, em qualquer fase da investigação policial ou do processo criminal, antes do trânsito em julgado da sentença, desde que presentes os requisitos legais e ocorridos os motivos autorizadores (LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019). 458 | Gênero, violência e estruturas de poder “Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” (BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941, Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 03 out. 1941). A garantia da ordem pública, além de ser um fundamento de conceito vago, é de fácil manipulação para prover legalidade à prisão em larga escala, aplicando-se a cautelar como um instrumento de controle4. Nota-se que esse fundamento afronta o princípio da lei estrita, viabilizando a banalização da prisão preventiva, diante de uma justiça criminal autoritária e seletiva5. Tamanha maleabilidade do conceito permite que, por vezes, relacione-se com o clamor público provocado pela gravidade e brutalidade do delito, além do apelo à credibilidade das instituições, mostrando à população que o aparelho estatal é efetivo na repressão à criminalidade e garantia da segurança6. O periculum libertatis7, um dos requisitos para a prisão preventiva, citado na segunda hipótese desta pesquisa, é definido como o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado e trata-se do risco da frustração da função punitiva, como a possibilidade de fuga ou ausência do acusado, gerando graves prejuízos ao processo, ou em relação à coleta de provas em decorrência da sua conduta8. Em caso de prisão preventiva sem verdadeira necessidade juridicamente comprovada, tal cautelar passa a ser uma antecipação da execução da pena, sem julgamento, afrontando o devido processo legal e a presunção de inocência9. A desvirtuação da prisão preventiva, oriunda da prática de decisões com fundamentações genéricas com aplicação de medidas desnecessariamente 4 SILVEIRA, Felipe Lazzari. A Banalização da Prisão Preventiva para a Garantia da Ordem Pública. Revista da Faculdade de Direito - UFMG. Belo Horizonte, n. 67, pp. 213 - 244. 2015. P. 225. 5 SILVEIRA, Felipe Lazzari. A Banalização da Prisão Preventiva para a Garantia da Ordem Pública. Revista da Faculdade de Direito - UFMG. Belo Horizonte, n. 67, pp. 213 - 244. 2015. P. 2019. 6 LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019. Pp. 763-764. 7 O periculum libertatis se configura quando a liberdade do suspeito gera um risco para o processo, podendo ser traduzido como um perigo que decorre do estado de liberdade do imputado (LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019). 8 LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019. P. 830. 9 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2016. P. 369. Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 459 gravosas, prejudica a segurança e efetividade da cautelar10. A constante demanda social de respostas do Poder Judiciário para a criminalidade no país, proporciona a imposição de prisões preventivas de maneira usual no processo penal11. Empregar a prisão preventiva apenas em casos de extrema e real necessidade é um indicativo de respeito aos direitos fundamentais, sem abusos estatais e com intervenção mínima, quando presente o risco ocasionado pela liberdade da acusada, garantindo-se a efetividade do Poder Público12. Neste sentido, muito se questiona os riscos da liberdade das mulheres acusadas de crimes sem violência ou grave ameaça. Apesar da obviedade dos prejuízos causados pelo encarceramento em massa, um levantamento realizado pelo INFOPEN13 no ano de 2014 apontou que 30,1% das mulheres privadas de liberdade, em regime fechado, não possuíam condenação. A mesma pesquisa foi repetida em 2016 e a quantidade aumentou para alarmantes 45%14. Tal porcentagem nos intriga a saber quem são as mulheres encarceradas no Brasil, o que será abordado no próximo capítulo. 2 SELETIVIDADE PENAL E CONDIÇÕES DO CÁRCERE FEMININO Quando volta-se o olhar às mulheres no sistema penitenciário, pode-se observar padrões de seletividade penal, evidenciados pela preponderância do enquadramento criminal das apenadas em crimes praticados sem o emprego de violência ou grave ameaça a pessoa, em destaque o tráfico de drogas e crimes 10 REBELO, Melissa. A falta de fundamentação idônea da prisão preventiva acerca do periculum libertatis e o consequente distanciamento do seu caráter instrumental. Rio de Janeiro. 2017. P. 13. 11 REBELO, Melissa. A falta de fundamentação idônea da prisão preventiva acerca do periculum libertatis e o consequente distanciamento do seu caráter instrumental. Rio de Janeiro. 2017. P. 15. 12 SILVEIRA, Felipe Lazzari. A Banalização da Prisão Preventiva para a Garantia da Ordem Pública. Revista da Faculdade de Direito - UFMG. Belo Horizonte, n. 67, pp. 213 - 244. 2015. P. 218. 13 Sistema de Informações Penitenciárias. 14 INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018. 460 | Gênero, violência e estruturas de poder patrimoniais15. Ainda, grande parcela das presas brasileiras são preventivas, detidas sem que haja uma sentença condenatória transitada em julgado16. O problema desta pesquisa se refere à necessidade de comunicação entre tais fundamentos e as reais consequências da aplicação da cautelar à realidade na qual cada mulher está inserida e, para isso, deve-se considerar que o Departamento Penitenciário Nacional possibilitou a criação de um perfil das mulheres detidas no sistema prisional, e demonstrou que a maioria delas são jovens, que possuem filhos e frequentemente são mantenedoras de suas famílias 17 . As mães encarceradas geralmente são as principais responsáveis pelos seus filhos, de forma que, com a sua reclusão, essas crianças tenham que transitar entre casas de amigos, familiares ou abrigos, gerando uma desestruturação dos núcleos familiares, danosa para o desenvolvimento dos infantes18. Quando detidas as mães, são poucas as vezes que os pais dos infantes assumem a guarda das crianças19. O ingresso dessas mulheres no sistema carcerário gera rupturas nos meios sociais e familiares nas quais estavam inseridas, afetando, além das própria apenadas, o desenvolvimento das crianças dependentes das quais são responsáveis, deixando-as, por vezes, sem sua única referência familiar20. Diversas mulheres optam por não receber visitas de seus filhos, familiares e amigos próximos, na tentativa de afastar tais pessoas do ambiente hostil e prejudicial do cárcere, favorecendo a quebra do vínculo entre as mulheres que estão encarceradas e seus relacionados 21 . Constantemente, a distância entre a Casa Prisional e as residências das famílias dificultam o deslocamento dos familiares para prestação de assistência às mulheres, ao passo 15 INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018. 16 CAMARGO, Mariana Martins. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres, 2ª edição. Brasília. 2018. P. 19. 17 INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018. 18 SUSEPE. POLLACCHINNI, Rafaela. Maioria das mulheres privadas de liberdade no Rio Grande do Sul é mãe e não possui ensino médio completo. 2023. Disponível em: http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_conteudo=7506&cod_menu=4. Acesso em 12/out/2023. 19 STELLA, Claudia. Filhos de mulheres presas: o papel materno na socialização dos indivíduos. Estudos e Pesquisa em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, set. 2009. P. 294. 20 FLORES, Nelia Maria Portugal. SMEH, Luciane Najar. Mães presas, filhos desamparados: maternidade e relações interpessoais na prisão. Rio de Janeiro: Physis. 2018. P. 02. 21 STELLA, Claudia. Filhos de mulheres presas: o papel materno na socialização dos indivíduos. Estudos e Pesquisa em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, set. 2009. P. 302. Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 461 que muitas penitenciárias não recebem pessoas do sexo feminino, inacessibilizando o apoio às encarceradas22. Além disso, importa falar acerca do abandono familiar ao qual as presas são submetidas, por vezes não havendo pessoas disponíveis para levar as crianças para visitar a mãe, entre outras circunstâncias diversas23 Historicamente estigmatizadas, as mulheres que são presas são vistas como pessoas que carregam muita maldade24, más esposas, más mães, más mulheres e, ao ingressarem no caminho da criminalidade e da prisão, tendem a ser excluídas e vista de maneira pior que os homens que cometem os mesmos delitos, uma vez que suas condutas não condizem com a ideia de natureza feminina25 No decorrer dos anos, foram estabelecidas diversas casas prisionais mistas, que abrigavam homens e mulheres, no entanto, foi somente no ano de 1984 que o Código Penal Brasileiro, por meio do seu artigo 37, dispôs acerca do local de cumprimento de pena para mulheres, conforme a seguinte redação: “Art. 37 - As mulheres cumprem pena em estabelecimento próprio, observando-se os deveres e direitos inerentes à sua condição pessoal, bem como, no que couber, o disposto neste Capítulo” (Brasil. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940). Passou-se a exigir que as pessoas do sexo feminino tivesse um local exclusivo para o cumprimento de sua pena, aduado às suas específicas 22 FLORES, Nelia Maria Portugal. SMEH, Luciane Najar. Mães presas, filhos desamparados: maternidade e relações interpessoais na prisão. Rio de Janeiro: Physis. 2018. P. 06. 23 FLORES, Nelia Maria Portugal. SMEH, Luciane Najar. Mães presas, filhos desamparados: maternidade e relações interpessoais na prisão. Rio de Janeiro: Physis. 2018. P. 07. 24 As mães no contexto prisional, além das dificuldades de reinserção social associadas à prática de conduta criminosa, enfrentam julgamentos decorrentes da drástica ruptura dos papéis sociais atribuídos à mulher. Assim, a sociedade se coloca diante de um dualismo, ao passo que, por um lado a conduta da agente era totalmente inesperada e, por conta disso, repudia-se e, por outro invés, o fato de ser mãe repõe as expectativas sociais sobre a sua pessoa, sendo considerada merecedora de uma segunda chance (BRAGA, Ana Gabriela; FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Quando a casa é a prisão: uma análise de decisões de prisão domiciliar de grávidas e mães após a Lei 12.403/2011. Quaestio Iuris. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1. P. 349 - 375. 2016. P. 351). 25 SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. PEREIRA, Ana Carolina Antunes. Gênero e Prisão: O Encarceramento de Mulheres no Sistema Penitenciário Brasileiro pelo Crime de Tráfico de Drogas. Meritum, Revista Brasileira de Direito da Universidade FUMEC. Belo Horizonte. V. 13, n. 1, p. 87-112. Jan./Jun. 2018. P. 92. 462 | Gênero, violência e estruturas de poder necessidades 26 . Apesar de tal exigência legal, diversas questões ainda são problemáticas, como a falta de itens básicos de higiene e assistência médica27. O Departamento Penitenciário, no ano de 2020, efetuou um levantamento de dados que revelam que apenas 10 prisões em todo o território nacional contam com atendimento ginecológico especializado, mesmo havendo milhares de detentas infectadas com doenças sexualmente transmissíveis, necessitando de cuidados regularmente 28 . A saúde menstrual das mulheres resta prejudicada no ambiente carcerário pois, apesar da determinação de que todos os detentos devem receber kits de higiene, muitos estabelecimentos prisionais não oferecem absorventes apropriados para as presas e, quando fornecem, frequentemente as quantidades são inferiores às necessidades do ciclo menstrual, levando as apenadas a utilizarem objetos danosos à saúde como substitutos do item de higiene29. É evidente a inadequação das prisionais às necessidades femininas. O subcapítulo a seguir explana uma alternativa à situação exibida. 1.1 A prisão domiciliar como alternativa A prisão domiciliar é uma alternativa que pode substituir a prisão em regime fechado, na qual a pessoa apenada passa a cumprir sua pena privativa de liberdade em sua residência, fiscalizada por tornozeleira eletrônica ou demais artifícios disponíveis30. O Código de Processo Penal prevê a possibilidade de substituição da prisão preventiva por domiciliar em seu artigo 318: 26 BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. 27 INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018. 28 INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018. 29 QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015. P. 74. 30 REIS JR, Almir Santos; COHN, Ana Clara da Silva Cohn; BARETTA, Gilciane Allen. Maternidade no cárcere: a prisão domiciliar como substitutiva à prisão preventiva. Revista das Faculdades Integradas Vianna Junior. V. 12. N. 1. Juíz de Fora. 2021. P. 203. Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 463 “Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: I - maior de 80 (oitenta) anos; I - extremamente debilitado por motivo de doença grave; III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV - gestante; V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo” (BRASIL, Decreto-Lei Nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 03 out. 1941). Trazendo a informação contida na legislação para o contexto desta pesquisa, importa observar os incisos IV e V que tratam da possibilidade de prisão preventiva para gestantes e mães. Todavia, exige-se alguns requisitos, tais quais o artigo 318A se encarrega de expor: “Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que: I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente” (BRASIL, Decreto-Lei Nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 03 out. 1941). O objeto desta pesquisa, mulheres presas acusadas de crimes sem violência ou grave ameaça, se enquadra, também, na exigência imposta pelo inciso I do artigo 318-A, sendo uma opção humanizada para o cumprimento da pena. Tal previsão legal é benéfica para as mulheres gestantes, ao passo que as afasta do ambiente prisional e dos riscos aos quais estariam submetidas, bem como, em relação às mães privadas de liberdade, reduz impactos afetivos e materiais no 464 | Gênero, violência e estruturas de poder âmbito familiar, principalmente no que diz respeito aos seus filhos, devendo ser uma alternativa juridicamente priorizada.31 Diante das evidentes condições degradantes das casas prisionais que abrigam mulheres, no ano de 2018, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em decisão histórica, concedeu às gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência, por meio de habeas corpus 32 coletivo, a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar em todo o território brasileiro, sendo julgado em 20/02/2018, nos termos do voto do relator, Ministro Ricardo Lewandowski33 Apesar do precedente e da previsão legal para a prisão domiciliar, muitos pedidos são indeferidos, diante da alegação da gravidade dos crimes relacionados ao tráfico de drogas, pelos quais a maioria das mulheres responde, além de fatores como a reincidência ou existência de outras acusações em desfavor da presa; desemprego; falta de endereço fixo; ausência de comprovação da essencialidade da mãe para os seus filhos34 Diante da existência e viabilidade de aplicação de alternativas penais legalmente cabíveis, diversas da privação de liberdade em regime fechado no contexto abordado, torna-se ainda mais necessária a busca pela resposta ao questionamento desta pesquisa. 31 REIS JR, Almir Santos; COHN, Ana Clara da Silva Cohn; BARETTA, Gilciane Allen. Maternidade no cárcere: a prisão domiciliar como substitutiva à prisão preventiva. Revista das Faculdades Integradas Vianna Junior. V. 12. N. 1. Juíz de Fora. 2021. P. 205. 32 O habeas corpus se trata de uma garantia constitucional prevista no art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal de 1988, sendo uma ação autônoma de impugnação a fim de proteger os cidadãos das coações ilegais restritivas ou ameaçadoras de sua liberdade locomotiva (GUIMARÃES, Rodrigo Machado. Papel do habeas corpus coletivo no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília. 2018). 33 FERREIRA, Carolina Costa. Encarceramento provisório de mulheres em tempos de pandemia: Análise de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre prisões preventivas e concessão de prisão domiciliar a mulheres de abril de 2020 a abril de 2021. Brasília: Instituto Brasileiro Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. 2023. P. 11. 34 COSTA, Alexandre Bernardino; CARVALHO, Claudiane Silva. SANTOS, Lorena Silva. Sistema prisional brasileiro e a seletividade no tratamento das detentas gestantes, parturientes e lactantes. Revista Direito.UnB. V. 05. N. 03. 2021. P. 145. Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 465 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS Com esta pesquisa, fez-se possível compreender as razões e justificativas legais do emprego da prisão preventiva, bem como os requisitos para tal aplicação. Entretanto, é necessário um olhar atento e prudente quanto às consequências de tal cautelar, visando efetivos benefícios à sociedade nos casos concretos e a longo prazo. Deve-se observar as especificidades e particularidades, visando o respeito ao princípio da individualização da pena e evitando danos reais à sociedade, questionando-se acerca dos prejuízos à ordem social ocasionados pela prisão e não apenas pelo estado de liberdade das acusadas. Para o decreto da prisão preventiva para mulheres acusadas do cometimento de crimes sem violência ou grave ameaça, devem se comunicar os fundamentos e consequências, conforme as hipóteses cogitadas. Tal diálogo almeja uma aplicação correta e restrita da cautelar, evitando a banalização da prisão preventiva. A realidade individual na qual cada mulher está inserta precisa ser considerada, ao passo que muitas delas possuem filhos, pelos quais são as principais responsáveis. As crianças afastadas do convívio com suas mães também são, da sua maneira, punidas, e sofrem as consequências do cárcere, mesmo em liberdade. Assim, nota-se que o perigo gerado pelo estado de liberdade destas mães, e/ou o risco à ordem pública, devem ser analisados no núcleo social de cada mulher, uma vez que a sua prisão preventiva em regime fechado pode ser mais prejudicial a todos envolvidos, do que o seu estado de liberdade. É evidente a estigmatização construída em torno das mulheres privadas de liberdade, o que dificulta seu retorno ou ingresso no mercado de trabalho, e consequentemente, corrobora para a sua permanência nas camadas mais vulneráveis da sociedade. As oportunidades retiradas das apenadas que, sem condenação transitada em julgado, são inseridas em Casas Prisionais pelo suposto cometimento de crimes, em tese, praticados sem o emprego de violência ou grave ameaça podem ser determinantes em diversos setores de suas vidas. Deve-se considerar, ainda, que, mesmo com a liberdade restabelecida, o abandono familiar pode ser uma consequência perpétua, com efeitos que não cessam com uma sentença absolutória. 466 | Gênero, violência e estruturas de poder Apesar da tendência a se pensar como um todo, a níveis mundial, nacional ou estatal, é necessário que se busque a maior individualização possível ao se aplicar uma cautelar privativa de liberdade, investigando-se as condições particulares da acusada e as efetivas repercussões causadas pela sua ausência e presença na sociedade na qual está inserida. REFERÊNCIAS BRAGA, Ana Gabriela; FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Quando a casa é a prisão: uma análise de decisões de prisão domiciliar de grávidas e mães após a Lei 12.403/2011. Quaestio Iuris. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1. P. 349 - 375. 2016. BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941, Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 03 out. 1941. CAMARGO, Mariana Martins. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres, 2ª edição. Brasília. 2018. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2016. COSTA, Alexandre Bernardino; CARVALHO, Claudiane Silva. SANTOS, Lorena Silva. Sistema prisional brasileiro e a seletividade no tratamento das detentas gestantes, parturientes e lactantes. Revista Direito.UnB. V. 05. N. 03. 2021. FERREIRA, Carolina Costa. Encarceramento provisório de mulheres em tempos de pandemia: Análise de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre prisões preventivas e concessão de prisão domiciliar a mulheres de abril de 2020 a abril de 2021. Brasília: Instituto Brasileiro Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. 2023. FLORES, Nelia Maria Portugal. SMEH, Luciane Najar. Mães presas, filhos desamparados: maternidade e relações interpessoais na prisão. Rio de Janeiro: Physis. 2018. GUIMARÃES, Rodrigo Machado. Papel do habeas corpus coletivo no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília. 2018. INFOPEN Mulheres. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2ª edição. 2018. Joanna Smiderle; Fábio Agne Fayet | 467 LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019. PERTILE, Cristiane Goulart. A Maternidade no Cárcere: Problemáticas e Possibilidades na Prisão Preventiva. Curitiba. 2020. QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015. REBELO, Melissa. A falta de fundamentação idônea da prisão preventiva acerca do periculum libertatis e o consequente distanciamento do seu caráter instrumental. Rio de Janeiro. 2017. REIS JR, Almir Santos; COHN, Ana Clara da Silva Cohn; BARETTA, Gilciane Allen. Maternidade no cárcere: a prisão domiciliar como substitutiva à prisão preventiva. Revista das Faculdades Integradas Vianna Junior. V. 12. N. 1. Juíz de Fora. 2021. SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. PEREIRA, Ana Carolina Antunes. Gênero e Prisão: O Encarceramento de Mulheres no Sistema Penitenciário Brasileiro pelo Crime de Tráfico de Drogas. Meritum, Revista Brasileira de Direito da Universidade FUMEC. Belo Horizonte. V. 13, n. 1, p. 87-112. Jan./Jun. 2018. SILVEIRA, Felipe Lazzari. A Banalização da Prisão Preventiva para a Garantia da Ordem Pública. Revista da Faculdade de Direito - UFMG. Belo Horizonte, n. 67, pp. 213 - 244. 2015. STELLA, Claudia. Filhos de mulheres presas: o papel materno na socialização dos indivíduos. Estudos e Pesquisa em Psicologia. Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, set. 2009. SUSEPE. POLLACCHINNI, Rafaela. Maioria das mulheres privadas de liberdade no Rio Grande do Sul é mãe e não possui ensino médio completo. 2023. Disponível em: http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_conteudo=7506&cod_menu=4. Acesso em 12/out/2023. 25. ENTRE TRADIÇÕES E TRANSFORMAÇÕES: GÊNERO, CONSTRUÇÕES FAMILIARES E ABORTO COMO DESAFIOS À AUTONOMIA FEMININA https://doi.org/10.36592/9786554601566-25 Carolina Cagetti1 Iara Amora dos Santos2 RESUMO: Este artigo é parte da dissertação de mestrado “Uma luta contínua feminista: o processo de legalização do aborto e de garantia de acesso no Brasil e na Itália” 3 , sendo revisitada e completamente editada para a presente publicação. Explora-se a construção social e histórica da família, focando na influência da reprodução, dos papéis de gênero e das expectativas maternas na estrutura familiar. Examina a ausência paterna e o estigma associado às mães solo, enfatizando como a moralidade social continua a impactar as escolhas reprodutivas, para então conectar essas dinâmicas ao debate sobre sexualidade e aborto. A pesquisa justifica-se pela necessidade de compreender as influências culturais e históricas nas concepções familiares, explorando escolhas individuais e projetos de superação diante das pressões familiares e sociais sobre as mulheres em relação à maternidade e as mudanças nas dinâmicas de gênero. Utilizando uma abordagem interdisciplinar e interseccional, destaca a complexidade da lógica familista centrada na reprodução e no sacrifício materno, abordando a evolução das representações da infância, da centralidade da criança e a ascensão de mulheres no mercado de trabalho assalariado como desafios ao modelo tradicional. O texto argumenta a favor do reconhecimento do direito ao aborto seguro, destacando a importância da autodeterminação feminina e criticando a persistência de normas que limitam a liberdade de escolha. Palavras-chaves: familismo; paternidades; mãe solo; autodeterminação; aborto. 1 Graduação em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio) e mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Sapienza de Roma. Pesquisa feminismos e direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e na Itália, com ênfase na questão do aborto. E-mail: carolcagetti@gmail.com. 2 Graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestrado em Políticas Públicas em Direitos Humanos na UFRJ. Trabalhou como coordenadora de projetos na CAMTRA e atualmente trabalha como assessora parlamentar da Vereadora Monica Benicio. Pesquisa feminismos, desigualdade de gênero, divisão sexual do trabalho e políticas dos cuidados. E-mail: iaraamoradossantos@gmail.com. 3 CAGETTI, Carolina. Uma luta contínua feminista: o processo de legalização do aborto e de garantia de acesso no Brasil e na Itália. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com acordo de cooperação internacional na Università degli Studi di Roma La Sapienza. Rio de Janeiro, 2023. 470 | Gênero, violência e estruturas de poder Introdução O conceito predominante de uma família ideal não se limita apenas à sua estrutura física, mas abarca também os padrões comportamentais e as expectativas associadas aos seus membros. As instituições influentes, como a Igreja Católica, o Estado e o sistema capitalista, em conjunto com a mídia, reforçam continuamente um modelo de família que pressupõe a definição de papéis e comportamentos de acordo com o gênero de cada indivíduo. Esse contexto também promove ideais específicos de maternidade e paternidade que, por sua vez, contribuem para a manutenção da divisão tradicional do trabalho com base no sexo. Nesse sentido, Silvia Federici, aponta que na divisão sexual do trabalho estabelecida durante a transição do feudalismo para o capitalismo na Europa, a família se tornou central enquanto instituição que assegura a transmissão da propriedade e da força de trabalho, sendo essencial para isto a apropriação e o ocultamento do trabalho das mulheres; e, simultaneamente, observa-se o início do registro demográfico e da intervenção do Estado na sexualidade, na procriação e na vida familiar4. Neste ponto é preciso registrar que a formação da sociedade brasileira não se constitui através do mesmo percurso - escravismo-feudalismo-capitalismo vivenciado na Europa. No entanto, este processo tem impactos diretos na formação da sociedade brasileira através da expansão capitalista e da implementação da colonização portuguesa baseada em uma estrutura de dominação patrimonialistapatriarcal-escravista.5 Com as evoluções na estrutura da família, observa-se que, em linhas gerais, o papel masculino permaneceu praticamente inalterado, ao passo que o feminino passou por mudanças significativas para abranger tanto o trabalho doméstico quanto o trabalho remunerado fora de casa. Esse conjunto de expectativas e pressões impostas pela família tende a restringir as escolhas individuais, especialmente para as mulheres, que ao longo da história têm enfrentado 4 FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. 464 p. 5 SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2013. 528 p Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 471 desigualdades significativas em termos de direitos e recursos em comparação com os homens. As famílias desempenham papéis duplos como unidades consumidoras e como responsáveis pela reprodução, tanto humana quanto da força de trabalho, muitas vezes assumindo a forma de grupos domiciliares e residenciais. A estrutura familiar é moldada por modelos culturais adaptados a contextos específicos de uma dada sociedade. Tais modelos abrangem normas e diretrizes que orientam não apenas a formação da família, mas também os comportamentos individuais dentro dela. Os padrões culturais desempenham o papel crucial de moldar comportamentos, servindo como representações que refletem construções ideológicas sobre a organização da vida social. Dessa forma, é a sociedade que define quais modelos são aceitáveis ou não, incluindo aqueles relacionados à instituição familiar6. Ao examinarmos a estrutura familiar e sua repetição ao longo da história, validada pela sociedade, torna-se evidente que esta instituição é, assim como os modelos que a cercam, flexível, sintética e capaz de se adaptar aos desafios e às mudanças temporais. Como resultado, os padrões relacionados à família, à vida sexual e à procriação são maleáveis, resultando em uma diversidade significativa de arranjos familiares que, de certa forma, se distanciam do modelo tradicional burguês. No entanto, é importante ressaltar que, apesar de muitas formas familiares se desviarem do ideal clássico, a aspiração por ele permanece forte, sendo considerado um objetivo a ser almejado e alcançado, ou ao menos se aproximando o máximo possível dele. Além do arranjo tradicional da família nuclear, há uma diversidade cada vez maior de configurações familiares, como as famílias compostas por avós e avôs com netas e netos, tias e tios com sobrinhas e sobrinhos, famílias substitutas e outras formas. Destaca-se também o surgimento crescente das famílias mosaico, que incluem membros com filha(s) e/ou filho(s) de relacionamentos anteriores e atuais, bem como famílias homossexuais, heterossexuais sem filha(s) e/ou filho(s), e também famílias monoparentais matrifocais. Estas últimas são mais prevalentes 6 GEERTZ, Clifford. Os usos da diversidade. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 10, p.13-34, 1999. 472 | Gênero, violência e estruturas de poder nas camadas populares da sociedade brasileira, caracterizadas pela presença de mães com filha(s) e/ou filho(s), em que a figura paterna pode estar ausente ou ter uma presença temporária e instável. Entretanto, é evidente uma forte corrente conservadora que tende a reprimir o reconhecimento da diversidade de formas e significados da família, resultando na desvalorização e estigmatização de formatos familiares alternativos. Esse discurso conservador, frequentemente centrado na suposta "destruição da família", surge como uma resposta à crescente variedade e amplitude das novas configurações familiares que estão emergindo7. Ressalta-se, no entanto, que essas formas familiares não representam necessariamente um declínio ou falência da instituição familiar. Pelo contrário, elas podem ser vistas como adaptações ou extensões do modelo clássico, e até mesmo como uma contestação da ordem social estabelecida e dos padrões de comportamento coletivo dentro da dinâmica familiar, desafiando os modelos tradicionais estabelecidos. O verdadeiro esgotamento e obsolescência reside na imposição inflexível da versão tradicional da família e sua constante idealização, alimentadas principalmente pelo conservadorismo presente nas instituições religiosas, estatais e familiares, bem como pela influência da indústria do entretenimento. É importante reconhecer que os meios de comunicação em massa não apenas transmitem informações, mas também moldam hábitos, reforçando e disseminando padrões, ideais e comportamentos8. As transformações familiares observadas nas últimas décadas têm suas raízes, em grande parte, nas mudanças dos papéis atribuídos aos seus membros. A entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho remunerado, juntamente com avanços no acesso à contracepção, desafiou a divisão sexual do trabalho e ordem social anteriormente estabelecida. Como resultado, a reorganização dos papéis tradicionais dentro da família teve um impacto significativo na estrutura 7 DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e Casamento. Anais do III Encontro Nacional de Estudos Populacionais (ABEP), p. 31-48, 1982. 8 VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 473 institucional, permitindo uma maior flexibilidade na composição dos arranjos familiares. É importante elucidar que ao falarmos do avanço da participação massiva das mulheres no mercado de trabalho, estamos nos referindo ao fenômeno ocorrido nas últimas décadas, que significou a normalização da presença feminina nesse campo – no entanto, muitas mulheres, em especial as mulheres negras, já ocupavam o mesmo.9 Apesar das mudanças na estrutura e organização familiar ao longo do tempo, é notável que as responsabilidades domésticas e o cuidado com filha(s) e/ou filho(s) continuam sendo majoritariamente atribuídas às mulheres. Esta responsabilização tem profundos impactos na estrutura do mercado de trabalho, influenciando salários, qualificação, formas de inserção profissional, na alocação em tempos de crise e, por conseguinte, na vivência da maternidade. A desigualdade de gênero ainda está arraigada na sociedade de forma ampla: o aumento significativo da participação feminina no mercado de trabalho não significou uma radical transformação da divisão sexual do trabalho, que apenas se adaptou. Desta forma, a despeito da consolidação da trajetória feminina no campo do trabalho produtivo, as mesmas seguem responsabilizadas e sobrecarregadas pelos trabalhos reprodutivos, diante da não correspondência da trajetória masculina na realização dos trabalhos reprodutivos10, e da insuficiência de políticas públicas na esfera da reprodução. Quando se trata do contexto brasileiro, mais uma vez, deve-se considerar o longo legado de colonização e escravidão, que deixou marcas profundas na cultura e nas estruturas sociais. Nesta aspecto, Lélia Gonzalez afirma que o racismo desempenha um papel central na formação da sociedade brasileira, sendo “um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para 9 MARCONDES, Mariana Mazzini. O dia deveria ter 48 horas: práticas sociais do cuidado e demandas das mulheres brasileiras por políticas públicas para a sua democratização. In: ÁVILA, Maria Betânia. FERREIRA, Verônica. (Orgs.). Trabalho Remunerado e trabalho doméstico no cotidiano das mulheres. Recife: SOS Corpo, 2014. p.79-104. 10 SORJ, Bila. FONTES, Adriana. MACHADO. CARUSI, Danielle. Políticas e práticas de Conciliação entre família e trabalho no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p.573-594, set/dez. 2007. Disponível em: http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/viewFile/342/347. Acesso em: 15 mar. 2019. 474 | Gênero, violência e estruturas de poder posições na estrutura de classes e regime de estratificação social” 11 . Desde os primórdios da formação do Estado brasileiro, as classes dominantes detiveram o controle do aparelho estatal, mantendo uma hegemonia política, econômica e cultural, e marginalizando grande parte da população em termos de cidadania e direitos. Até a instauração da República, a Igreja desempenhou o papel de aparelho ideológico do Estado, mediando as condutas sociais das diversas camadas da sociedade e exercendo influência na legislação relacionada à organização da vida social. Nesse contexto, a Igreja obteve sucesso considerável ao suprimir e deslegitimar práticas alternativas de costumes familiares no país12. A destruição das formas familiares próprias das culturas africanas e indígenas foi uma preocupação constante da Igreja, do Estado e das classes dominantes, impedindo a emergência de modelos de família alternativos. (...) Preservou-se uma forma que privilegia o grupo conjugal como núcleo estrutural da família e manteve-se todo o sistema de parentesco bi-lateral. (...) Esse modelo, entretanto, só conseguiu se realizar plenamente nas camadas dominantes e assim mesmo, num sentido muito específico: como forma de regulamentar a procriação (e, por isso, a sexualidade) das mulheres nessa camada social, legitimando seus filhos e assegurando uma forma específica de herança e sucessão. Esse modelo não foi utilizado no sentido de regular a sexualidade masculina e implicou que generalizassem as formas de concubinato, simples utilização sexual das mulheres sem a contrapartida de vínculos legalmente reconhecidos, eximindo os homens da responsabilidade para com a prole13. A divisão sexual do trabalho dentro da família estabelece papéis e responsabilidades para seus membros, comumente retratando o homem como figura de autoridade e provedor, tendo o controle dos bens e das riquezas. Por outro lado, a imagem da mulher muitas vezes oscila entre a submissão e a iniciativa, sendo que apenas esta última é vista como capaz de assumir o papel de provedora na ausência temporária ou permanente do homem. Ao mesmo tempo, mulheres foram 11 GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs, p.223-244, 1984 12 DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e Casamento. Anais do III Encontro Nacional de Estudos Populacionais (ABEP), p. 31-48, 1982. 13 Ibid, p. 36. Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 475 encarregadas das tarefas domésticas e do cuidado das crianças, uma responsabilidade quase exclusivamente delas. É comum que a rede de apoio familiar seja composta principalmente pela família da mulher, especialmente considerando que muitas famílias brasileiras têm uma estrutura matrifocal. No Brasil, nas famílias mais ricas, é mais comum encontrar uniões formalizadas legalmente, enquanto nas camadas mais pobres, as uniões tendem a ser mais informais. De um lado, esse tipo de união resulta do processo de dominação. A presença de contingentes indígenas escravizados e a importação de escravos africanos favoreceu o concubinato ou o puro abuso sexual das mulheres desses segmentos da população por parte dos brancos dominantes. O estabelecimento de vínculos conjugais implica num mínimo de igualdade social que não existia, nessa situação. [...] Ela caracteriza antes a existência de formas de reprodução que se dão fora da família, constituindo mães sem maridos e filhos sem pais que, além de moralmente discriminados, estão indubitavelmente numa posição de efetiva desvantagem econômica e social14. No Brasil, é bastante comum encontrar famílias que não se enquadram no padrão tradicional de conduta familiar, em grande parte devido à ausência paterna. Esse tipo de arranjo é especialmente prevalente em lares das camadas populares em áreas urbanas. Por outro lado, nas regiões rurais, a união legal e a divisão sexual do trabalho dentro da família são vistas como tradições que visam preservar a honra da mulher e desempenham um papel fundamental na reprodução do trabalho. Essa dinâmica é influenciada pela estrutura da produção agrícola familiar, na qual a família é considerada uma unidade de produção essencial e cada membro desempenha funções claramente definidas. No entanto, apesar das diferenças entre esses dois contextos, é importante destacar que as instabilidades nos relacionamentos e os casos de violência contra as mulheres estão presentes em ambas as realidades. É importante ressaltar que o custo associado à oficialização da união, seja através do casamento civil ou religioso, é um obstáculo significativo para muitas 14 DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e Casamento. Anais do III Encontro Nacional de Estudos Populacionais (ABEP), p. (31-48), p. 39, 1982. 476 | Gênero, violência e estruturas de poder pessoas. Antes mesmo do casamento civil, existiam barreiras impostas pela instituição religiosa que dificultavam a formalização da união. Posteriormente, novos obstáculos surgiram. Além da questão financeira, muitas pessoas não possuem a documentação necessária exigida pelo Estado para realizar o procedimento. Para quem reside em áreas rurais, a situação é ainda mais complexa devido à distância até o cartório mais próximo. Em um país onde tanto a Igreja quanto o Estado reconhecem o vínculo conjugal como a única forma legítima de reconhecer uma família, é evidente que essas instituições historicamente agiram para dificultar o reconhecimento da união entre indivíduos com menos recursos financeiros. Mais uma vez, observa-se uma colaboração entre ambas as instituições para preservar os privilégios da classe dominante, uma vez que a forma como uma família é constituída desempenha um papel relevante na ascensão social e na organização dos papéis na vida cotidiana. Com as mudanças ocorridas no cenário econômico durante os anos 1960 e 1970, havia a expectativa de que os laços familiares se fortalecessem, uma vez que a estabilidade financeira poderia ser mais facilmente alcançada nas relações. No entanto, à medida que as mulheres ganharam mais autonomia e deixaram de se submeter aos maridos como anteriormente, observou-se um aumento no número de uniões desfeitas e, consequentemente, o surgimento de novas relações familiares. Durante os debates em torno do divórcio, a Igreja posicionou-se contrária, argumentando que tal medida levaria à desintegração da família. De outro lado, grupos progressistas e da advocacia rebateram, defendendo que o divórcio poderia abrir espaço para a formação de novas famílias baseadas no afeto. Apesar das transformações na estrutura e organização familiar a relação de dominação masculina sobre as mulheres continua profundamente enraizada na sociedade em geral. Nas famílias das zonas rurais, as mulheres assumem responsabilidades tanto nas tarefas agrícolas, ao lado do marido e de filha(s) e/ou filho(s), quanto nas atividades domésticas. Já nas famílias das zonas urbanas, as mulheres muitas vezes enfrentam uma dupla jornada de trabalho, com empregos mal remunerados fora de casa e a responsabilidade pelas tarefas domésticas. Em ambos os contextos, as formas de organização familiar apresentam semelhanças, mesmo em segmentos Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 477 distintos da sociedade. Nas duas situações, as mulheres encontram-se, de alguma maneira, em uma posição de subordinação em relação aos homens devido ao sistema econômico de produção que molda a estrutura familiar e define as funções de cada membro nesse processo. Padrões de divisão sexual do trabalho nas classes trabalhadoras não sofreram radical transformação apesar do aumento do ingresso feminino no mercado de trabalho. Ao contrário, preserva-se a atribuição das tarefas domésticas à mulher com a consequente imposição da dupla jornada de trabalho; simultaneamente, mantém-se a dominação masculina do pai no grupo doméstico, inclusive pelo uso da violência física. Desse modo, a transformação no mercado de trabalho com a industrialização não impactou significativamente os padrões tradicionais de divisão sexual do trabalho nas famílias, embora provavelmente venha a fazê-lo no longo prazo. O que deve influir decisivamente numa transformação desse tipo é o acesso a técnicas de controle de natalidade e a consequente possibilidade de divorciar a sexualidade da reprodução como ocorre nitidamente nas classes médias urbanas15. Na camada média e alta da sociedade, além de ter mais acesso a métodos contraceptivos, a terceirização do trabalho doméstico e dos cuidados é largamente utilizada, o que contribui para maiores possibilidades de construções de autonomia financeira destas mulheres. O que por sua vez impacta em maiores possibilidades de escolha destas em relação à forma de constituição familiar - seja ela temporária ou permanente, heterossexual ou homossexual, monogâmica ou poligâmica, com ou sem descendentes, e compartilhando ou não a mesma residência. A perspectiva familista que prioriza a reprodução e valoriza o sacrifício materno O conceito de família ideal é percebido como algo intrinsecamente natural e sagrado. Considera-se natural porque se acredita que seu modelo representa a forma mais pura e primitiva de organização familiar, embora reconheça-se que, como qualquer outra instituição, pode ser sujeito a distorções ao longo do tempo. É 15 DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e Casamento. Anais do III Encontro Nacional de Estudos Populacionais (ABEP), p. (31-48), p. 45-46, 1982. 478 | Gênero, violência e estruturas de poder considerado sagrado porque se imagina que reflita a essência mais profunda da humanidade, assegurando assim a contínua reprodução e preservação da espécie. Além disso, a ideologia do amor conjugal contribui para a percepção de que o casamento não é meramente uma construção social, mas sim uma expressão genuína de afeto e compromisso entre os cônjuges. No entanto, é importante destacar que esses ideais são construídos de acordo com as crenças e os propósitos de cada sociedade, variando conforme as tradições culturais e os valores predominantes em cada contexto histórico e cultural16. A concepção moderna de família foi introduzida no contexto da reforma cultural, visando possibilitar a construção de uma nova visão da infância e servir como justificativa e instrumento de implantação para diversas iniciativas médicas, sejam elas filantrópicas, assistencialistas ou higienistas. Essas iniciativas contribuíram para o surgimento de um novo conjunto de instituições, dedicadas à promoção do indivíduo como uma entidade autônoma e individualizada17. Assim, foi somente na era da Modernidade que a figura da criança começou a ser valorizada e assumiu o papel central na estrutura familiar, refletindo uma mudança significativa nos padrões culturais e sociais da época. Na Idade Média, as famílias tinham que garantir a alimentação e a higiene das crianças, embora nem sempre esses cuidados fossem adequados à idade correspondente, sendo mais voltados para a garantia da sua sobrevivência. Nesse período, a taxa de mortalidade infantil era extremamente alta, ao passo que a natalidade também era elevada. Com a rápida passagem das crianças pela família e os constantes nascimentos, não se desenvolvia um sentimento de afeição especial à infância, que as diferenciasse claramente das pessoas adultas. Essa observação pode ser constatada pela maneira como as crianças eram representadas, muitas vezes como versões em miniatura de pessoas na fase adulta, vestindo roupas semelhantes, alterando apenas o tamanho. Assim, somente na 16 DUARTE, Luiz Fernando Dias. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In: RIBEIRO, I. E RIBEIRO, A.C.T. (Org.). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade Brasileira. SP: Loyola, 1995. 17 Ibid. Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 479 adolescência ou juventude, após sobreviverem aos perigos da infância, é que as pessoas passavam a receber valorização e reconhecimento na sociedade18. Com o advento do Renascimento no século XVII, a representação da infância passou por uma transformação significativa. As crianças começaram a ser retratadas com traços rechonchudos, e os anjos, frequentemente representados como crianças roliças. Nesse período, as concepções sobre a infância começaram a se solidificar, embora inicialmente favorecessem mais os meninos, uma vez que as meninas ainda eram relegadas aos papéis tradicionalmente atribuídos às mulheres adultas. Foi também nesse contexto que os retratos familiares começaram a destacar as crianças como foco central. Nas pesquisas realizadas por Lins de Barros sobre memória e representação de famílias no universo de camadas médias, fez-se a seguinte colocação acerca das fotos familiares das pessoas entrevistadas19: No próprio ato de fotografar já existe, implícito, um ritual, exacerbando os símbolos distintivos da família. Coloca-se em evidência, no instante fotografado, elementos considerados essenciais para a caracterização seja da família em seu conjunto, ou dos diversos papéis que nela representam a mulher, o homem ou a criança. A criança, mais que qualquer outro personagem, sintetiza na sua imagem a imagem da família. Das poses demoradas das fotos antigas (...), a criança aparece sempre como um marco de referência familiar. É ela o centro e a razão de ser da família. Através dela, fala-se de tradição e de renovação (...). A cena fotográfica expõe a criança, conferindo-lhe um lugar de absoluta centralidade. O olhar de quem segura o pequeno bebê não se dirige para o fotógrafo. Seu rosto volta-se para a criança, retirando de si toda a importância, e obrigando o olhar de quem vê a foto a focalizar sua atenção no pequeno ser suspenso em seus braços. Sentada sozinha, nos sofás e cadeiras de espaldar alto, com ares principescos, a criança tem reafirmada, mais uma vez, sua supremacia20. O modelo moderno idealizado foi concebido com base na reprodução dos sujeitos sociais, sendo essencial para assegurar a transmissão da propriedade e reprodução da força de trabalho. Assim, esperava-se que a família desempenhasse 18 ARIÈS, Philippe. A história da criança e da família. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981. LINS DE BARROS, Myriam Moraes. Memória e Família. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n. 03, p. 29-42, 1989. 20 Ibid, p. 40. 19 480 | Gênero, violência e estruturas de poder o papel de prover educação e transmitir os costumes e valores tradicionais para as gerações futuras, preservando e reforçando as normas e padrões culturais na memória coletiva. A memória é um fenômeno social que desempenha o papel de ponto de referência temporal, espacial e até mesmo lógico. A família, como responsável pela socialização primária de um indivíduo, desempenha um papel fundamental ao proporcionar lembranças e rituais que introduzem o indivíduo à vida social e adulta. Além disso, a família também transmite a importância e a permanência dos valores associados à instituição familiar e à ordem moral21. A qualidade do trabalho de “criação” empreendido sobre a criança na família é muito especial e radical, por envolver o físico e a moral, as emoções e a cognição, na versão mais integrada desse processo a que se referem P. Bourdieu sob o nome de “incorporação” e N. Elias sob o de “interiorização”. O desenvolvimento de técnicas de ajuste fino dessa “criação” (...) só serviu para realçar a complexa gravidade dos mecanismos de produção de identidade no interior da família, irreprodutíveis por qualquer das instituições “artificiais” conhecidas 22. Em uma sociedade onde a educação e os cuidados das crianças são atribuídos ao núcleo familiar, não é surpreendente que a extrema-direita adote o discurso da preservação da família tradicional como forma de garantir a continuidade dos valores conservadores para as crianças23. No entanto, quando essa concepção é desafiada pelas transformações sociais, torna-se evidente que a representação da família não é estática em nenhum momento ou contexto específico. De fato, existem diversas variações do modelo familiar que são influenciadas pela trajetória de vida e pelo espaço de atuação de cada indivíduo, sendo esses fatores determinantes na configuração dos papéis sociais familiares24. 21 Ibid. DUARTE, Luiz Fernando Dias. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In: RIBEIRO, I. E RIBEIRO, A.C.T. (Org.). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade Brasileira. SP: Loyola, p. 39, 1995. 23 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou sobre a educação. Editora Vozes, 2023. 24 LINS DE BARROS, Myriam Moraes. Memória e Família. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n. 03, p. 29-42, 1989. 22 Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 481 Na obra de Badinter, o ideal do amor materno é analisado e criticado como sendo inato e incondicional. Argumenta-se que o conceito de amor materno não é algo intrínseco, mas sim uma construção ao longo dos séculos, moldada por expectativas sociais e culturais que podem ser opressivas para as mulheres. A autora questiona a noção de que o amor materno é um instinto natural e defende a ideia de que as mulheres devem ter liberdade para tomar decisões sobre a maternidade sem serem julgadas25. A autora também aborda o tema do sacrifício materno em suas obras, criticando a ideia de que as mulheres devem sacrificar suas próprias necessidades e aspirações em prol de filha(s) e/ou filho(s). Ela argumenta que esse ideal de sacrifício pode ser limitante para as mulheres, privando-as da oportunidade de desenvolver suas próprias identidades e buscar realizações além do papel de mãe. Badinter levanta a questão de como a pressão para adotar um modelo tradicional de maternidade pode afetar negativamente a liberdade e a realização pessoal das mulheres. Na visão da autora, é fundamental permitir que as mulheres tenham liberdade de escolha e possam conciliar a maternidade com outras áreas de suas vidas, como o trabalho e seus interesses pessoais26. Aspirações individuais e a sombra da ilegitimidade: presença da paternidade que se manifesta através da ausência O ponto de vista e o modo de vida dos indivíduos são profundamente moldados pelo contato com redes de relações sociais mais amplas e pela exposição a uma variedade de experiências e ideias diversas. Essas interações desempenham um papel significativo na forma como as pessoas se compreendem, ou seja, na sua autopercepção27. 25 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, 1985. Ibid. 27 VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. 26 482 | Gênero, violência e estruturas de poder A partir dessa perspectiva, é possível que ocorra uma ruptura com o modelo familiar corporativista28 e uma superação do modelo familiar hegemônico, através da busca por uma carreira e participação em determinadas instituições. Ao valorizar essas experiências subjetivas, influenciadas por uma combinação única de fatores históricos, psicológicos e sociais, abre-se espaço para escolhas diversas. A ideia de que os indivíduos têm ou podem ter escolhas é o primeiro passo para se pensar em projetos de superação. No entanto, é importante ressaltar que a diversidade e a fragmentação de papéis podem obscurecer a visão de totalidade, tornando mais desafiador o desenvolvimento de projetos que busquem superar uma realidade opressora. Nas últimas décadas, observa-se um processo de conscientização mais pronunciado entre as mulheres. De acordo com Duarte, as mudanças no mercado de trabalho, a gradual adaptação das instituições à igualdade de gênero estipulada na legislação e o fortalecimento das organizações feministas contribuíram para abalar o principal pilar do modelo tradicional de complementaridade entre homens e mulheres: a hierarquização. Com as transformações na divisão sexual do trabalho, o sistema hierárquico fundamentado na ideia de complementaridade entre os gêneros foi desmascarado, abrindo espaço para um projeto de individualização que foi amplamente adotado por parte das mulheres. Como resultado, ocorreu um deslocamento desigual entre os gêneros29. Como já mencionado acima, principalmente nas camadas de classes mais alta e majoritariamente brancas, o homem era tradicionalmente encarregado de prover o sustento da família, enquanto a mulher cuidava do lar e dos membros familiares. Com as transformações sociais, a mulher passou a assumir tanto as responsabilidades domésticas quanto o papel de provedora, enquanto as atribuições masculinas permaneceram praticamente inalteradas. Os cuidados com a casa e com as crianças continuam sendo majoritariamente delegados às mulheres, enquanto os homens já não detêm mais o monopólio do controle financeiro do lar. 28 Modelo familiar onde os membros familiar atuam em um mesmo ramo produtivo e econômico, cadeia de produção, empresa, entre outros; 29 DUARTE, Luiz Fernando Dias. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In: RIBEIRO, I. E RIBEIRO, A.C.T. (Org.). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade Brasileira. SP: Loyola, 1995. Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 483 Consequentemente, os "papéis masculinos" foram assumidos pelas mulheres, enquanto os homens não mostraram interesse em assumir os "papéis femininos". Isso levou a uma perda de protagonismo e de definição clara de função para os homens, que agora precisam buscar novas funções, utilidade e sentidos. Diante dessa reflexão, é essencial criar novas alternativas institucionais que se adequem a essas mudanças e às diversas formas de organização familiar que surgem. Além disso, apesar dos avanços tecnológicos, a procriação humana continua intrinsecamente ligada à gestação uterina, uma tarefa que recai exclusivamente feminina e/ou pessoas com possibilidade gestacional. Isso não apenas representa uma reprodução biológica, mas também uma reprodução ideológica. Dentro do contexto do patriarcado familiar, o valor da esposa muitas vezes está intrinsecamente ligado à sua capacidade de se tornar mãe, sendo essa sua função social atribuída. Desde a infância, as meninas são socializadas com o projeto da maternidade, o que pode condicionar e restringir suas escolhas individuais no futuro. Uma mulher que não tem filhos é estigmatizada e vista como incompleta aos olhos da sociedade, pois o ideal de família baseado no casamento entre homem e mulher, com descendência, é considerado como o padrão a ser alcançado. Nesse contexto, casais que não reproduzem podem não realizar esse ideal, já que, socialmente, a principal função da família e da mulher é vista como sendo a procriação. Dessa forma, o processo de reprodução é frequentemente associado quase exclusivamente às mulheres, enquanto a figura masculina é frequentemente desassociada do processo reprodutivo e da responsabilidade pelos cuidados relacionados à criança. Assim como a maternidade, os significados atribuídos à paternidade são históricos e, portanto, sujeitos a mudanças ao longo do tempo. Na sociedade, a paternidade é vista como um mecanismo de transmissão tanto patrimonial quanto genética e moral. Além de fornecer sustento e compartilhar o nome e a história da família, filha(s) e/ou filho(s) também anseiam pelo afeto, cuidado e presença de seus pais. No entanto, no Brasil, de acordo com dados da Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), o percentual de crianças registradas como tendo "pai ausente" aumentou de 5,5% em 2018 para 6,9% em 2023 (considerando o 484 | Gênero, violência e estruturas de poder período até 6 de junho). Curiosamente, esse número tem aumentado a cada ano, apesar de uma diminuição no número absoluto de nascimentos entre 2018 e 202230. Dentro de uma sociedade em que ainda preconiza o padrão familiar tradicional, a ausência do pai pode gerar uma série de impactos, que vai desde sentimentos de incômodo, vergonha e dor pela falta de afeto até a esperança de um dia ter o reconhecimento. A falta de um pai é frequentemente associada à discriminação e à desigualdade social, uma vez que toda a responsabilidade financeira e emocional recai sobre a mãe e, quando possível, sobre sua rede de apoio familiar. De acordo com uma pesquisa sobre os significados da paternidade conduzida por Finamori, entre as pessoas entrevistadas (jovens sem reconhecimento paterno), há uma forte idealização da família nuclear tradicional, vista como a família "normal", e uma percepção de que ter um pai presente é um privilégio. No entanto, como as ações paternas muitas vezes não correspondem às expectativas dessas(es) jovens, surge um sentimento de violação que se torna parte integrante do processo de construção de suas subjetividades, pois crescem atormentados pelo fantasma discriminatório da bastardia31. O estigma associado à ilegitimidade é antigo e foi reforçado por legislações que buscavam proteger concebimentos dentro do casamento, enquanto marginalizavam nascimentos fruto de outras relações. Até certo ponto da história, não havia um reconhecimento oficial da paternidade em relações fora do casamento. Atualmente, apesar das mudanças nas leis, o comportamento dos homens no Brasil em relação ao reconhecimento de filha(s) e/ou filho(s) ainda não passou por uma transformação radical, o que explica os altos números de crianças registradas com paternidade desconhecida. Muitas vezes, a ruptura nos relacionamentos ocorre quando a gravidez é anunciada ao parceiro, mesmo após um período marcado por intensa paixão. De acordo com relatos, muitas mães consideram um erro ter mantido 30 ARPEN. Cresce o número de crianças sem pai. 2023. Disponível em: arpenpr.org.br/site/conteudonoticia/8949#:~:text=Os%20dados%20da%20Arpen%20(Associa%C3% A7%C3%A3o,rela%C3%A7%C3%A3o%20aos%2012%20meses%20anteriores. Acesso em: 25 de jun. 2023. 31 FINAMORI, Sabrina Deise. Os sentidos da paternidade: dos “pais desconhecidos” ao exame de DNA. Campinas, 2012. Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 485 a gravidez até o fim, devido à frustração das expectativas de amor e família idealizadas, que não se concretizaram, e às falsas promessas de afeto. A dor resultante desse cenário é dupla: por um lado, o sofrimento pessoal causado pela negação e rejeição do pai; por outro, o sentimento de não ser desejado e bem-vindo, de ser visto como um fardo pela mãe32. O reconhecimento da paternidade é hoje considerado um direito humano e uma questão de cidadania, visto como um direito da criança de conhecer sua origem. No entanto, surge a questão se essa norma que exige o reconhecimento paterno não acaba por reforçar o ideal tradicional de família nuclear, que postula que a identidade completa do indivíduo só é alcançada na presença de uma mãe e um pai. Além disso, é importante ressaltar que o reconhecimento legal não garante necessariamente o cuidado e o afeto desejados. Do estigma enfrentado pelas mães que criam seus filhos sozinhas até a luta pelos direitos das mulheres: abordagens sobre sexualidade e aborto No passado, quando mulheres solteiras ou em concubinato, principalmente das classes mais elevadas, recorriam ao aborto, os médicos frequentemente justificavam o procedimento como uma questão de honra. Por outro lado, quando a mulher era de classes mais populares, a vontade de realizar um aborto muitas vezes era rotulada como loucura puerperal, como se ela não estivesse consciente dos fatos, embora fosse exatamente essa consciência que a levasse a buscar o procedimento33. Até hoje, mulheres nessa situação muitas vezes optam pelo aborto, diante das condições de vida, seja pela dificuldade econômica, seja para dar continuidade a outros projetos de vida e seja pelo julgamento da sociedade. Se uma mulher decide pelo aborto em determinado contexto, é porque, dadas as circunstâncias, ela acredita que é a melhor opção disponível para ela. 32 Ibid. FINAMORI, Sabrina Deise. Os sentidos da paternidade: dos “pais desconhecidos” ao exame de DNA. Campinas, 2012. 33 486 | Gênero, violência e estruturas de poder Há um razoável consenso em torno do fato de que em toda sociedade os indivíduos procuram controlar o sofrimento físico e psicológico, ou reduzindo-o a um mínimo suportável (que obviamente variará) ou enquadrando-o dentro de modelos e paradigmas que o justifiquem ou mesmo expliquem 34. A pesquisa de Cynthia Sarti sobre a moral dos pobres da periferia de São Paulo também revela uma percepção do aborto como uma questão de vaidade em oposição à responsabilidade. Para esse grupo, o aborto é visto como uma escolha egoísta e individualista, contrária aos princípios de responsabilidade moral diante das próprias ações. No entanto, quando o aborto é percebido como uma necessidade, algumas pessoas da comunidade podem começar a aceitá-lo moralmente35. Ainda há uma visão arraigada na comunidade de que as mulheres que se relacionam sexualmente também devem estar preparadas para lidar com as consequências reprodutivas, ou seja, a gestação que pode resultar dessas relações. Essa mentalidade reflete a crença em uma ligação intrínseca entre sexualidade e reprodução, ressaltando a importância da educação sexual não sexista e da conscientização sobre métodos contraceptivos na comunidade36. A análise destaca como o trabalho remunerado das mulheres, especialmente quando são mães solo, é visto como uma forma de redenção ou "reparação" por supostos "erros" relacionados à sua vida sexual. Esse trabalho é percebido como uma prova de sua dignidade e capacidade de assumir responsabilidades. No entanto, devido à divisão sexual do trabalho, as oportunidades de trabalho para as mulheres tendem a ser mais precárias, mesmo quando elas estão empregadas. Isso pode resultar em uma dependência contínua do apoio financeiro e da assistência cotidiana da rede de parentesco, que muitas vezes se estende para além do ambiente doméstico. Essa coletivização das responsabilidades pela criança dentro da rede de parentesco e sociabilidade da mãe é especialmente evidente nos casos em que a 34 VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, p.31, 1997. 35 SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: FAPESP, 1996. 36 Ibid. Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 487 paternidade não é assumida. Nesses casos, a mãe muitas vezes depende não apenas de seu próprio trabalho, mas também do apoio financeiro e emocional de sua família ampliada para cuidar da criança. Essa dinâmica destaca não apenas as desigualdades de gênero no mercado de trabalho, mas também a importância da solidariedade familiar e comunitária para lidar com os desafios enfrentados pelas mães solo. A importância da família para os pobres está relacionada às características de nossas instituições públicas, incapazes de substituir as funções privadas da família. Num país onde os recursos de sobrevivência são privados, dada a precariedade de serviços públicos de educação, saúde, previdência, amparo à velhice e à infância, somados à fragilidade dos sindicatos e partidos políticos como instrumentos de mediação entre o indivíduo e a sociedade, enfim, diante da ausência de instituições públicas eficazes, o processo de adaptação ao meio urbano e a vida cotidiana dos pobres, inclusive dos nascidos na cidade, é estruturalmente mediado pela família. Suas relações fundam-se, portanto, num código de lealdade e de obrigações mútuas e recíprocas próprio das relações familiares, que viabilizam e moldam seu modo de vida também na cidade, fazendo da família e do código de reciprocidade nela implícito um valor para os pobres 37. A condenação moral do aborto contribui para uma pressão adicional sobre as mulheres que enfrentam gravidezes indesejadas ou não planejadas. Devido a essa condenação, muitas mulheres se veem obrigadas a levar adiante a gravidez, mesmo quando isso implica sacrificar seus próprios sonhos, projetos e aspirações individuais. A ideia de que uma gravidez indesejada deve vir antes dos projetos individuais coloca um fardo significativo sobre as mulheres, especialmente nas mães solo ou nas que enfrentam momentos desafiadores. Essa expectativa social de priorizar uma gravidez não desejada sobre os objetivos individuais pode reforçar as desigualdades de gênero, limitando as oportunidades das mulheres de buscar realização pessoal e profissional. Além disso, essa pressão pode contribuir para um ciclo de reprodução da pobreza e da exclusão social, especialmente porque a responsabilização social sobre o trabalho dos 37 SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: FAPESP, p.32, 1996. 488 | Gênero, violência e estruturas de poder cuidados segue recaindo sobre as mulheres – que sem um apoio eficaz das políticas públicas, têm impactadas as suas possibilidades de acesso a trabalhos remunerados e não precarizados.38 Como alerta Crenshaw, as mulheres são as principais afetadas pela diminuição dos serviços estatais, especialmente aqueles relacionados ao cuidado de crianças, doentes e pessoas idosas. No entanto, as disparidades de classe determinam quais mulheres serão encarregadas de realizar esses serviços de forma direta e quais serão capazes de pagar por eles, deixando para as mulheres pobres o ônus de cuidar não só de suas próprias famílias, mas muitas vezes das famílias de outros.39 Essa dinâmica ilustra como as expectativas familiares e sociais podem influenciar as escolhas pessoais, especialmente em contextos onde o trabalho é fundamental para o sustento e o progresso da família 40 . Embora haja uma valorização da liberdade de escolha, essa liberdade muitas vezes é limitada pelas normas e padrões estabelecidos pela família e pela comunidade. O conflito entre os projetos individuais e as obrigações familiares pode gerar tensões significativas para as mulheres, em particular. E “quando vai de encontro às fronteiras simbólicas de determinado universo cultural, ou as ultrapassa, terá então, provavelmente, uma situação de desvio com acusações e, em certos casos, estigmatização”41. A estigmatização e as expectativas sociais podem restringir as oportunidades das mulheres de buscar suas próprias aspirações e de se realizarem em papéis que vão além do tradicional de esposa e mãe, caso desejado. É evidente que se as mulheres fossem menos pressionadas pelos ideais e expectativas morais impostos pela família, teriam mais espaço para traçar seus 38 DOS SANTOS, Iara Amora. O filho não é só da mãe: Luta das Mulheres pelo Direito à Creche no Brasil. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2022. 39 CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, jan-jun. 2002. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104- 026X2002000100011. Acesso em: 10 jul. 2019. 40 SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: FAPESP, 1996. 41 VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: Notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, p.26, 1997. Carolina Cagetti; Iara Amora dos Santos | 489 próprios caminhos de realização pessoal. O acesso à educação sexual também desempenharia um papel importantíssimo nesse cenário, permitindo-lhes tomar decisões informadas sobre sua vida reprodutiva e ampliando suas opções para além dos papéis tradicionalmente atribuídos. Assim, poderiam de fato escolher se e quando procriar, aumentando, inclusive, as chances de sair do ciclo de pobreza feminina. A desmistificação do aborto como um tema tabu seria fundamental para assegurar que, ao descobrir uma gravidez indesejada, a mulher pudesse escolher livremente o curso de ação mais adequado às suas circunstâncias, de forma segura, sem estar sujeita a pressões externas. Esta liberdade de escolha não só respeitaria sua autonomia individual, mas também a protegeria de interferências estatais, familiares ou religiosas indesejadas. Em uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, raciais e de gênero, a negação do direito ao aborto seguro representa não apenas uma violação dos direitos das mulheres, mas também um obstáculo à sua plena realização como indivíduos autônomos. Portanto, deve-se ter em vista que “a vida não se reduz aos papéis sociais que são desempenhados no dia a dia”42. Considerações Finais É importante abordar a questão do aborto como parte integrante da luta pela igualdade de gênero e pela autonomia das mulheres. Ao entrelaçar as narrativas de paternidade ausente, estigma social em relação às mães solo e o contexto da sexualidade feminina, torna-se evidente que o acesso ao aborto seguro e legal é essencial para garantir a liberdade e o bem-estar das mulheres. O estigma associado ao aborto perpetua uma cultura de vergonha e julgamento em relação às escolhas reprodutivas das mulheres. Essa estigmatização é frequentemente exacerbada por normas culturais e religiosas que reforçam uma visão moralista e punitiva da sexualidade feminina. No entanto, negar às mulheres o 42 LINS DE BARROS, Myriam Moraes. Memória e Família. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n. 03, p. 29-42, p. 41, 1989. 490 | Gênero, violência e estruturas de poder direito ao aborto seguro não apenas as priva de um direito fundamental à autonomia corporal, mas também as expõe a riscos graves à saúde e à segurança. É fundamental reconhecer que o aborto é uma questão de saúde pública, e não apenas uma questão moral ou religiosa. A criminalização do aborto não impede sua ocorrência, mas sim empurra as mulheres para a clandestinidade, onde enfrentam condições degradantes, riscos à saúde e até mesmo a morte. Nesse sentido, defender o acesso ao aborto seguro e legal é defender a vida, a dignidade das mulheres e o poder sobre se autodeterminar. Portanto, ao considerarmos os desafios enfrentados pelas mulheres em relação à sua sexualidade e reprodução, devemos colocar o acesso ao aborto seguro e legal no centro de nossos esforços pela igualdade de gênero. Isso requer não apenas a remoção de barreiras legais e políticas, mas também uma mudança cultural profunda que desafie o estigma e a lógica familista centrada na reprodução, e que promova o respeito pelos direitos reprodutivos das mulheres. Somente através desses esforços coordenados podemos verdadeiramente garantir que todas as mulheres tenham o poder de tomar decisões autônomas sobre seus corpos, suas vidas e seu futuro. Referências Bibliográficas ARPEN. Cresce o número de crianças sem pai. 2023. Disponível em: arpenpr.org.br/site/conteudonoticia/8949#:~:text=Os%20dados%20da%20Arpen%2 0(Associa%C3%A7%C3%A3o,rela%C3%A7%C3%A3o%20aos%2012%20meses%20ant eriores. Acesso em: 25 de jun. 2023. ARIÈS, Philippe. A história da criança e da família. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981. BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, 1985. CAGETTI, Carolina. 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GESTÃO DOS PROCESSOS ENVOLVENDO MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR: O CASO DAS VARAS DE FAMÍLIA DA COMARCA DE BELO HORIZONTE https://doi.org/10.36592/9786554601566-26 Daniela Cunha Pereira Resumo O presente artigo tem como objetivo avaliar a capacitação de magistrados e magistradas que atuam nas varas de família de Belo Horizonte sobre questões de gênero, do ponto de vista da gestão processual, nas dimensões de eficácia e eficiência da prestação jurisdicional e acesso à justiça. Trabalha-se a partir do seguinte problema de pesquisa: como a falta de capacitação de magistrados e magistradas para a temática de gênero e a deficiência de comunicação entre os juízos das varas de família e dos juizados de violência doméstica pode impactar na efetivação dos direitos das mulheres em situação de violência doméstica e familiar? A hipótese a partir da qual o trabalho foi realizado e ao final confirmada indicou que a carência de instrumentos capazes de identificar e dar tratamento adequado a demandas que envolvem mulheres em situação de violência doméstica e familiar e de capacitação específica de magistrados e magistradas em questões de gênero viola as disposições das convenções internacionais de que o Brasil é signatário, e pode, ainda, contribuir para a prática de lawfare de gênero. O estudo tem como referencial teórico as concepções de acesso à justiça, eficiência e efetividade adotadas por Picorelli