“Justine” de Marquês de Sade e

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Punição Alegre da Mulher
Entre Justine de Marquês de Sade e L’Apollonide de Bertrand Bonello
Maria Inês Castro e Silva
Universidade do Porto
NOTA PRÉVIA E MUITO IMPORTANTE
Devo, em primeiro lugar, punir-me. A minha posição geográfica exige-me um
mea culpa por ter escolhido para esta segunda edição do Encontro de Estudos
Lusófonos um escritor como Marquês de Sade e um cineasta como Bertrand Bonello.
Pareceu-me um empreendimento difícil, no contexto da lusofonia, abordar conceitos
como punição, crime ou castigo, já que abaixo da linha do Equador não existe pecado.
Não existindo pecado para baixo deste limite, consegui eliminar imediatamente um
conjunto de pessoas, de problemas e de pessoas que são problemas para potenciais
reflexões. Não contente com esta dádiva da fronteira imaginária, decidi desviar-me de
descrições impressivas recorrentemente ligadas aos dois objectos que proponho tratar.
De qualquer forma, para não abusar demasiado da minha sorte, optei por utilizar uma
tradução de Manuel João Gomes da obra Justine ou Les Malheurs de la Vertu, bem
como decidi comunicar em português, convocando inevitavelmente o olhar
culturalmente lusófono para a mesa. De resto, não ousarei oferecer propostas de
reconhecimento ou criar linhas de decalque entre o livro e o filme propostos, já que,
para além dessa não ser a minha função, Marquês de Sade e Bertrand Bonello nunca se
conheceram pessoalmente. Hoje, a tarefa é fazer com que o livro e o filme se olhem nos
olhos.
Em suma, esta é uma forma de me castigar, mas com a consciência tranquila de
estar a respeitar uma linha que, mesmo imaginária, separa o pecado do não-pecado. O
trilho a percorrer segue em direcção ao pecado, preocupando-se com o estar em pecado
e, sobretudo tentar pela melhor via retirar benefícios felizes da experiência do pecado.
O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o
próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um
copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu,
e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano
seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi
assim.
(José Saramago, Caim)
PARTE I – O Pecado compensa
A árvore do conhecimento pode ser o ponto de partida para admitir, sob o ponto
de vista religioso, que estamos todos mortos. Todos comemos a maçã envenenada que
foi cuidadosamente colocada no jardim do Éden para que todos nós vacilássemos.
Slavoj Žižek, em A Marioneta e o Anão; O Cristianismo entre a Perversão e
Subversão, pergunta: “Isso não faria parte de uma estratégia perversa para começar por
seduzir Adão e Eva, impelindo-os para a queda, a fim de os salvar?”1. Deve o leitor
estar tranquilo porque é provável que Deus, por esta altura, esteja eternamente grato na
sua eternidade pela nossa fraqueza da mesma forma que Jesus agradece a Judas por tê-lo
traído2.
Podemos partir, não só para Justine ou os Infortúnios da Virtude, bem como para
Apollonide – Memórias de um Bordel com a certeza de que partimos encerrados na
animalidade. Pelo menos, esta é uma certeza que pode explicar alguma angústia de
viver em pecado. No «movimento deslizante da queda» e, portanto, chegados ao
pecado, Paul Valadier afirma que o ser humano “quando pretende ser como Deus, ou
seja, não ter ninguém acima de si, a sua punição consiste em cair desse meio que se
1
2
Slavoj Žižek, A Marioneta e o Anão; O Cristianismo entre a Perversão e Subversão, Lisboa, Relógio
D’Água, 2006, p. 22.
A este respeito cf. idem, ibidem: “Não será Judas, por conseguinte, o supremo herói do Novo
Testamento, aquele que está disposto a perder a sua alma e a ser eternamente danado para que o plano
divino possa realizar-se?”
encontra ele próprio no que há de mais baixo, naquilo que faz a felicidade dos
animais”3.
Justine ou Os Infortúnios da Virtude, escrito em 1787 e publicado em 1791, faz
parte de uma tradição que se alia à injúria, ao crime e à morte pela pena de um autor que
tem como objectivo principal orientar o leitor para a moralidade, Marquês de Sade.
Assim se passa com Justine, mas também com Os Cento e Vinte Dias de Sodoma (1785)
ou com A Filosofia na Alcova de 1795.
Nas palavras de um moralista como é Sade atravessamos páginas de horror,
crime, injúria, punição e técnicas mecânicas de abaixamento ou de um rebaixamento
bakhtiniano que cedo podem cansar o leitor pela aparente monotonia que acaba
inevitavelmente por se instalar. No entanto, e como ensina Roland Barthes “Sade só é
aborrecido se fixarmos o nosso olhar nos crimes relatados e não nas performances do
discurso”4. Lembremos que a obra de Sade é uma obra que vive somente através da
linguagem. As acrobacias sexuais que preenchem todos os seus livros parecem não
sobreviver no exterior daquilo que é o discurso. Portanto, o olhar moralmente
reprovador sobre Sade pode ser condenável: Sade não imita a realidade, Sade postula
uma nova realidade que se ergue por meio de uma linguagem rica em repetições.
Alinhemos, então, pela linguagem como única realidade. Na verdade, Justine continua a
ser “um livro de tentações: o justo será convidado a perder-se no mal e a resistir ao
mal”5. Justine é o símbolo da beatitude, a personagem da justiça, o rosto cristão que
tudo sofre para alcançar o céu, objectivo que parece obrigá-la a cometer as mais
extremas infâmias por amor à beatitude: “como por certo imaginais senhora, torno-me
puta por bondade e libertina por amor à virtude”6. Como todas as vítimas sadianas,
Justine é uma vítima, mas o seu sofrimento é um mal necessário para que possa pagar o
seu lugar no Céu. Se Žižek afirma que “o amor cristão é uma paixão violenta que visa
introduzir uma Diferença, uma separação na ordem do ser, que procura privilegiar e
elevar um objecto à custa dos outros”7, Sade, de outro modo, explica que “o sofrimento
dos desgraçados é essencial; a sua humilhação, as suas dores, fazem parte das leis da
natureza e a sua existência é útil no plano geral, tal como a da prosperidade que a
3
Paul Valadier, A Condição Cristã; Do Mundo sem Dele Ser, Lisboa, Instituto Piaget, 2004, p. 98.
Roland Barthes, Sade, Fourier, Loiola, Lisboa, Edições 70, 1999, p. 39.
5
Pedro Eiras, Tentações; Ensaio sobre Sade e Raul Brandão, Porto, Deriva, 2009, p. 10.
6
Marquês de Sade, Justine ou Os Infortúnios da Virtude, Lisboa, Antígona, 2001, p. 223.
7
Slavoj Žižek, A Marioneta e o Anão; O Cristianismo entre a Perversão e Subversão, Lisboa, Relógio
D’Água, 2006, p. 42.
4
esmaga”8. Sade ensina-nos que o sacríficio torna-se imprescindível para conquistar o
céu, Slavoj Žižek explica a imposição do sofrimento como meio essencial para a
glorificação da imagem de um Deus que parece prometer-nos um céu em troca da
penúria.
A vítima em questão começa por se apresentar de uma forma não muito
aconselhável ao leitor, já que desde logo se apresenta a si própria como pura e mulher
de beatitudes. Vladimir Jankélévitcth alerta “il y a bien d’autres qualités ou excellences
que le moi ne peut s’attribuer lui-même à soi-même; tels sont le charme, la modestie,
l’humour, et en général toutes les ‘natures simples’ les plus évanouissantes, toutes les
perfections qu’on fait”9. Podemos desconfiar da inocência que contorna esta
personagem. A mesma inocência que se perde através do instinto da culpa, algo que,
segundo Kierkegaard, “só aparece ao ser destruído, algo que só a partir desse momento
aparece como tendo existido antes da destruição e continuando destruído”10.
Encontramos em Justine ou Os Infortúnios da Virtude uma santa que cai
permanentemente de forma involuntária no pecado ou, pelo menos, é este o relato que
ela apresenta ao leitor, fazendo lembrar, em certas alturas, o importante papel das
historiadoras de Os Cento e Vinte Dias de Sodoma. No fundo, o instinto da culpa e o
remorso são constantes nas palavras de Justine. A Santa, “que preferia a morte à
ignomínia”11, cai em pecado e na angústia do arrependimento, sendo obrigada a penar.
Justine é somente aquilo que Slavoj Žižek diz ser a experiência da penúria, mas, em
Justine, esta é uma experiência exageradamente levada até às últimas consequências –
“De vez em quando, é bom fazer a experiência da penúria (...) se tudo estiver disponível
a qualquer momento, as pessoas consideram essa disponibilidade como um facto
consumado e deixam de apreciar a sorte que têm”12. Pode abrir-se, então, outra questão:
o que seria de Justine sem os seus infortúnios? Podemos entender que o preço a pagar
pelo primeiro pecado cometido é ser abusada até ao final do livro ou, de outro modo,
longe de estarmos perto de uma personagem ingénua, encontramos uma Justine que diz
cair no pecado, mas que cai secretamente feliz nele porque está ciente da sua
recompensa divina. Por amor e devoção a Deus, Justine, ao contrário de sua irmã, tenta
abdicar dos prazeres da carne por amor a Deus ou para sua própria glorificação como
8
Marquês de Sade, op. cit., p. 56.
Vladimir Jankélévitch, Le Pur et L’Impur, Paris, Flammarion, 1960, p. 5.
10
Sören Kierkegaard, O Conceito de Angústia, s/l, Editorial Presença, s/d, p. 56.
11
Marquês de Sade, op. cit.,p. 15.
12
Slavoj Žižek, op. cit., p. 54.
9
personagem. Não se pense, no entanto, que Julieta tenha ficado para sempre aprisinoada
na miséria. Por momentos, Julieta pode aparecer-nos como uma versão resumida,
explícita, mas às avessas de Justine, já que pelo sacríficio conquista a cama de um
princípe:
A carreira dela, como deve supor-se, teve de ser espinhosa: é na
aprendizagem do mais vergonhoso e do mais duro que tais meninas
atingem os seus objectivos e dormem hoje na cama de certos príncipes,
senhoras que conservam ainda humilhantes vestígios da brutalidade dos
libertinos em cujas mãos foram lançadas pela inexperiência da
juventude
13
.
Justine, por seu turno, receberá o prometido e conquistará o céu, tal como é explicitado
no último parágrafo do livro: “Oxalá aprendais, como ela, que a verdadeira felicidade só
se encontra no seio da virtude e que se, por razões que não nos compete aprofundar,
Deus permite que ela seja perseguida na Terra, é para a recompensar com mais
generosidade no Céu”14. De resto, Justine é a personagem principal desta obra ou não
fosse ela resistir a todas as tentações com as quais as personagens de Sade, voluntária
ou involuntariamente, acabam sempre por alinhar. Justine terá de penar no pecado para
que Deus possa talvez um dia entrar verdadeiramente em acção e dar razão a Žižek
quando este afirma “Deus começou por lançar a humanidade no pecado a fim de criar
uma oportunidade para a salvar pelo sacrifício de Cristo”15. É obrigatório que Justine
preserve sempre uma natural agonia e é também conveniente que continue a rezar por
todos os seus malfeitores, agradecendo a Deus por lhe permitir saltar de malfeitor em
malfeitor porque maior será a sua recompensa no céu. Enquanto isso não acontece,
Justine deve estar feliz do lado de todos aqueles que, quando se rebaixam estão, ao
mesmo tempo, a elevar um Deus cristão que tudo pode.
PARTE II - O pecado voluntário também compensa
Um bordel sem clientes é uma casa com senhoras que dançam, bebem e
conversam. Uma prostituta da rua sem clientes é uma senhora que passeia pelo asfalto.
13
Marquês de Sade, op. cit., p. 17.
idem, p. 336.
15
Slavoj Žižek, op. cit., p. 22.
14
Apollonide – Memórias de um Bordel (2011) conduziu, em 2011, Bertrand
Bonello ao Festival de Cannes, experiência não inédita para o cinesasta, já que em 2001
com O Pornógrafo e em 2003 com Tiresia, Bonello passa por Cannes. Além de elogiar
a banda sonora (Bad Girl, Lee Moses, The right to love you, Mighty Cannibal, Nights in
white satin, na versão do Moody Blues), a crítica chama a atenção para a agressividade
do filme que se reveste de uma elegância, conseguindo tornar-se até agradável para
aquele que vê. O espectador é convidado a observar verdadeiros quadros
impressionistas que são, agora, planos do cinema e é pelo exercício da montagem que
estes quadros adquirem o dinamismo próprio do cinema. A propósito de Apollonide,
Luís Miguel Oliveira, no «Ípsilon», refere-se oportunamente a Aleksandr Sokurov e ao
emblemático filme Arca Russa, filme que se desenrola através de um único planosequência:
Pode suscitar - daí o sentido do risco - uma ideia de nostalgia, não
muito diferente (claro que ‘mutatis mutandis’) daquela com de vez em
quando Sokurov parece filmar a Rússia imperial: um ‘paraíso perdido’,
em suma16.
Apollonide é uma casa de senhoras que são visitadas por outros senhores no
início do século XX, senhores que pagam pelos prazeres da carne, mas os encantos
exigidos atingem, não raras vezes, proporções bizarras. Apollonide, qual castelo de
Silling de Os Centos e Vinte Dias de Sodoma de Marquês de Sade, é o espaço fechado
onde todas as personagens se movimentam sem oportunidades excepcionais para
passeios pelo exterior. As mulheres que habitam este território isolado são submetidas
porque se submetem voluntariamente às mais variadas vontades de senhores, vontades
em muitos casos, bizarras. As mulheres dançam, cantam, bebem e parecem até felizes
por viver na infâmia. A banda sonora é agradável, então por que razão não dançar se
fingir o prazer sexual vai compensá-las restituindo-lhes esse estatuto de mulheres
sofridas? O céu pode ainda esperar por elas, já que são mais as vezes que dormem na
cama com estranhos do que aquelas vezes que dançam. O céu pode esperá-las porque
são também elas as vítimas de todas as doenças sexuais.
16
Luís Miguel Oliveira, “Flores do Mal”, in «Ípsilon».
O prostíbulo guarda uma mulher que alcança progressivamente um lugar de
especial importância: Madeleine. Madeleine ou, se quisermos, a mulher que ri assume
um papel praticamente maternal que, não raras vezes, se confude com servilidade
relativamente às suas companheiras. Por outro lado, Madeleine será a martir sacrificial
pela qual todos sentem pesar. A mulher que ri foi violentada por um dos seus clientes.
Na sua boca e com uma faca os lábios foram prolongados pela face, transformando esta
personagem na aberração da casa. O estatuto de aberração permitirá que, mais tarde,
seja motivo para fetichismos de senhores e de senhoras de altas camadas sociais,
seguindo de alguma forma The Elephant Man de David Lynch, L’Enfant Sauvage de
François Truffaut ou Vénus Noire de Abdellatif kechiche. Mas o que seria das
personagens principais destes filmes ultimamente citados se não fossem todos os
olhares indiscretos que as rodeiam? A desgraça de todas estas personagens é uma
obrigatoriedade que, na verdade, só lhes reconhece valor. As culpadas desta valorização
pelo sacrifício podem ser as personagens secundárias, bem como o próprio espectador, o
mesmo espectador que nada pode fazer porque não lhe é permitido passar à acção,
encontrando-se, assim, privado de participar literalmente na cena. Estas personagens
disformes agradecem as luzes sobre elas. Ainda que se compadeça com os tristes fados
de personagens sofredoras, o espectador continua a viver nesse que pode ser o pecado
do voyeurismo. O pecado que permite que continuemos a assistir à violação demorada
de Alex em Irreversible, de Gaspar Noé. O mesmo voyeurismo que nos é atirado à cara
em Salò de Pasolini quando as personagens olham o espectador que somos nós e nos
condenam por assistir e participar, ainda que de forma passiva, nos horrores infligidos
aos prisineiros do castelo. É também por permanecermos impotentes na cadeira do
cinema que é possível repugnarmo-nos com as imagens de Salò ou de Apollonide. A
este propósito, lembre-se Edgar Morin quando acerca do espectador refere:
todos nós nos tornamos sentimentais, sensíveis e lacrimejantes
logo que nos vemos privados dos nossos meios de acção. (...) Em
situação regressiva, o espectador, infatilizado como se estivesse sob o
efeito de uma neurose artificial, vê o mundo entregue a forças que lhe
17
escapam
17
.
Edgar Morin, O Cinema ou o Homem Imaginário; Ensaio de Antropologia, Lisboa, Relógio D’Água,
1997, p. 118.
É este o poder do cinema sobre o ser humano. Se por um lado, os pressupostos
morineanos defendem que o cinema é “um sistema que tende a integrar o espectador o
fluxo do filme”18, por outro lado, o cinema é “um sistema que tende a integrar o fluxo
do filme no fluxo psíquico do espectador”19. De qualquer forma, e para não esquecer, o
cinema deixa o espectador de mãos atadas sem a possibilidade para salvar as
personagens do abismo ou de represálias impostas por outras personagens. Na verdade,
o espectador pouco se importará: aquele que vê sabe que está a salvo e sairá em
segurança da sala de cinema. O pecado voluntário pode ser atribuído ao espectador que
sofre e continua a ver. O pecado das senhoras de Apollonide é voluntário, porque
embora sejam obrigadas a fingir o prazer sexual, ofereceram-se para percorrer tais
calvários.
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