A barbárie: antítese ou elemento da civilização? Do Facundo de Sarmiento a Os Sertões de Euclides da Cunha. Berthold Zilly Facundo, modelo de Os Sertões? Sob muitos aspectos, o Facundo de Sarmiento e os Os Sertões de Euclides da Cunha apresentam semelhanças e diferenças elucidativas, sobretudo em relação à dicotomia tematizada que, por ser crucial em ambos os livros, principalmente no primeiro onde já aparece no título, pode servir, de um modo geral, como chave interpretativa [1]. Ambos discutem, a partir dos problemas de uma região atrasada e de uma guerra civil, os destinos da Nação, da qual se tornam interpretações até hoje influentes e mesmo constitutivas. Embora a questão da influência do primeiro livro sobre o segundo não careça de interesse, vou me limitar a poucas observações a este respeito, não só porque os dois autores parcialmente beberam nas mesmas fontes, o que dificulta, com relação a muitas imagens e idéias, o estabelecimento de uma filiação direta, mas também porque mais significativas do que esta me parecem as próprias afinidades e divergências formais, temáticas, ideológicas entre as duas obras que se explicam e se interpretam mutuamente e, mesmo que Euclides nunca tivesse ouvido falar de Sarmiento, a comparação entre os dois autores sempre seria interessante [2]. Euclides conhecia bem o Facundo. Em seu ensaio “Viação Sul-Americana”, publicado em Á Margem da História, fala das “páginas admiráveis de um dos maiores livros sulamericanos, ressoantes ao tropear das cavallarias disparadas dos Quirogas e dos Chachos”. Analisando a relação entre estrada de ferro, progresso econômico e liberdade política, aplaude o raciocínio de Sarmiento na obra que cita como Civilización y barbarie [3]. No “Discurso de recepção” proferido na Academia Brasileira de Letras, o novo acadêmico aponta o autor argentino como historiador-escritor modelar, junto com Thierry, Macaulay, Alexandre Herculano, pois todos eles trabalhariam no “dominio commum da fantasia e da razão”, ao passo que no Brasil faria falta um autor “que nos abreviasse a distancia do passado e, num evocar surprehendente, trouxesse aos nossos dias os nossos maiores com os seus caracteres dominantes, fazendo-nos compartir um pouco as suas existencias immortaes (...)” [4]. Esse “evocar surpreendente” será realmente um dos principais recursos compositórios da historiografia euclidiana. Em Os Sertões, ainda que falte qualquer alusão direta a Sarmiento, a presença do Facundo é manifesta à primeira vista, a começar pela seqüência dos tópicos: o meio físico, a população e a cultura, a guerra. Ambos os textos transitam livremente entre os gêneros literários e modos de discurso, entre diversos tipos de pesquisa e representação da realidade, combinando geografia, antropologia e história em um texto que é crônica, ensaio e ficção ao mesmo tempo. Ambos coincidem na relevância dada ao contraste entre campo e cidade, o alheio e o próprio, o desconhecido e o conhecido, o sul-americano e o europeu, barbárie e civilização, numa visão dualista da sociedade que esboça uma teoria implícita das duas Argentinas e dos dois Brasis [5]. Quem conhece Facundo e começa a ler Os Sertões volta e meia tem a impressão do déjàvu. Não só o plano geral mas também numerosos detalhes temáticos e lexicais, alusões, metáforas, nomes são indícios de que para Euclides o famoso livro argentino foi, senão modelo, pelo menos incentivo para conceber o seu ensaio sobre a campanha de Canudos e dar-lhe a feição que tem. O personagem central de Sarmiento, o gaucho, também aparece em Euclides, em sua forma brasileira de “gaúcho”, como termo de comparação do sertanejo. Palavras-chaves como desierto, ruina, tapera, cuchillo, deguella, rudeza, civilizado, bárbaro, só para dar uns poucos exemplos, reaparecem em forma portuguesa no livro euclidiano. Os dois autores associam a crueldade das populações do interior com a dos Ashanty [6], comparam os movimentos rebeldes na América Latina com a revolta dos Chouans durante a Revolução Francesa [7], relacionam algumas serras do interior com fortalezas e castelos arruinados [8]. Já nos seus títulos os livros fazem uma referência ou pelo menos alusão a uma temática dupla ou tripla, vinculada a três espaços geográficos e culturais: a região, a nação, a história universal, sendo esta marcada pela civilização, centrada na Europa, mas conquistando o mundo. Começam por uma temática genérica, depois, no subtítulo, indicam o caso específico analisado, ou melhor, narrado [9]. Nota-se logo que, apesar desse paralelismo, tanto o título como o subtítulo são bem mais abrangentes em Sarmiento do que em Euclides onde a dicotomia sarmientina está presente mas de modo implícito. Pois Os Sertões, no plural, designação dos espaços secos, inóspitos e “incivilizados” do Norte, hoje chamado de Nordeste e, por antonomásia, de todas as regiões pouco habitadas, atrasadas e bárbaras do Brasil, senão do mundo, pressupõem a sua contrapartida, ou seja as regiões cultas, produtivas, modernas, civilizadas do litoral brasileiro e da Europa, sendo o conflito entre essas duas áreas e culturas antagônicas causa principal da guerra e fio condutor do livro. A diversidade dos títulos assinala uma diferença menos na temática geral do que no seu modo de representação: o livro sarmientino promete discutir e provar uma hipótese genérica, universal, exemplificada no caso escpecífico de uma biografia e de uma região, quase um roman à thèse. As numerosas alterações do título nas diversas edições preparadas por Sarmiento ou por editores de sua confiança mostram porém que não havia para ele uma clara prioridade entre o abstracionismo das antíteses históricas e a concretude das paisagens, personagens e eventos representados, de modo que variou de edição para edição o grau de literariedade do livro. O título de Euclides no entanto, evocando uma paisagem ou diversas paisagens, é específico, concreto, e ao mesmo tempo genérico, simbólico, polissêmico, sugestivo, ao passo que o subtítulo se refere a um determinado evento, “a campanha de Canudos”, denominada porém na “Nota preliminar” “variante de assunto geral”, ou seja do avanço da civilização no interior que implicaria no “esmagamento das raças fracas pelas raças fortes” [10]. Felizmente o autor não mantém sistematicamente essa desconcretização durante o seu relato da guerra. Terras Os dois livros começam por extensa pesquisa mesológica, histórica e sociológica, inspirando-se o primeiro na Ilustração e no Romantismo, e o segundo, embora de forma crítica, no Positivismo e no Evolucionismo, sem tampouco renegar uma boa dose de Romantismo. Os Sertões, livro um tanto disforme em muitos sentidos, como também o seu homólogo argentino, mais do que este se estrutura no plano espacial, além do cronológico, como é natural em toda obra histórica. Se na visão dos letrados do litoral as antíteses Norte-Sul, sertão-litoral, aridez-umidade, esterilidade-fertilidade estão correlacionadas com a dicotomia barbárie-civilização, na visão dos sertanejos elas se identificam, inversamente, com as antíteses terra da fé-terra do Anticristo, terra da promissão-terra da condenação. O próprio sertão tem uma estrutura concêntrica, de modo que, para quem se aproxima de Canudos, centro do sertão, aumenta o seu caráter inculto, inóspito e ao mesmo tempo místico, sagrado. Um dos perímetros mais próximos do teatro de guerra é a elipse com eixos de poucos quilômetros, “cercadura de montanhas” de que fazem parte o Cambaio e a Canabrava, cujo topo estrategicamente mais significativo e mais chegado a Canudos é o morro da Favela, a 1.800 metros das duas igrejas [11]. Estas marcam o bairro central e mais bem defendido da aldeia sagrada que, com sua mágica força centrípeta, atrai os fiéis para salvarem a alma e os soldados para perderem a vida, repelindo com força centrífuga os atacantes feridos. Esta comunidade está vinculada diretamente a Deus, fora do alcance das autoridades seculares, quase um Estado teocrático dentro da jovem República laicista. Em Facundo, a organização do espaço é menos clara, menos transparente, é cambiante e excêntrica ou policêntrica, pois não há nenhum lugar fixo ou central, de convergência ou de irradiação que dominasse os outros, capaz de atrair e de repelir grandes contingentes de atacantes. O palco das andanças do anti-herói sarmientino é muito mais extenso e menos uniforme do que o do Conselheiro durante a guerra, pois na hinterlândia argentina não há centro rebelde, não há um núcleo aglutinador das forças bárbaras, contrapartida selvagem da metrópole civilizada. Temporariamente, devido à derrota dos unitarios, o país inteiro está nas mãos da anticivilização, toda a Argentina é por assim dizer uma imensa Canudos, uma barbárie não de roupagem religiosa, mas não menos fanática e irracional, do ponto de vista esclarecido e civilizado. Há porém uma região nuclear que procria e gera de certa forma o protagonista, onde este está em casa, e que tem algumas semelhanças com a terra do Conselheiro, pois se trata de um ermo, espaço árido, curiosamente chamado de travesía no castelhano argentino, lugar de passagem, deserto onde nenhum forasteiro gosta de parar por muito tempo, nisto parecido com a vila sagrada, ainda que ali o termo “travessia” tenha um sentido predominantemente religioso, sendo ao mesmo tempo metonímia do mundo: “Canudos era o cosmos. E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal, de onde decampariam sem demora; o último pouso na travessia de um deserto - a Terra”, visão apocalíptica assumida pelo narrador através do estilo indireto livre [12]. A travesía em Facundo todavia não é um determinado lugar, e muito menos o mundo, podendo ser qualquer deserto que fique longe de um povoado, lugar abandonado e inóspito, o típico berço tanto dos profetas como dos bandidos [13]. O pampa, como região correspondente ao sertão euclidiano, diferentemente deste, não tem centro nem antítese claramente demarcada. Além de Buenos Aires, há vários outros centros irradiadores do comércio e da cultura, viveiros da civilização, entre os quais merece destaque a vila de San Juan, terra de Sarmiento, descaracterizada porém, no tempo da redação do livro, também pela ação de Facundo Quiroga, à espera de seu verdadeiro dono que é o autor [14]. Por outro lado, a Argentina civilizada, exceto alguns elementos esparsos no país inteiro, está naquele momento, em 1845, no exterior, na emigração, na memória e na projeção; já foi realidade parcial e será realidade plena. E, como dá a entender o autor, há um lugar simbólico para essa memória e projeção, antítese da Argentina barbarizada: o livro que está escrevendo ele mesmo, o mais importante antagonista de Rosas, e é assim que Euclides entende o papel histórico do escritor argentino [15]. Homens Ambos os livros apresentam visão ambivalente da “plebe rural” semi-selvagem que é tendencialmente mão-de-obra supérflua, entre submissa, vadia e revoltada, atribuindo-lhe propensão para a criminalidade e violência, mas também, diante do onipresente perigo de morte, estoicismo e até heroísmo, com façanhas lendárias e quase sobrenaturais [16]. Os dois negligenciam os aspectos socioeconômicos da condição do homem do campo e da sua inserção no clientelismo dominado pelo latifúndio, propagando ao contrário uma imagem festiva do gaucho e do gaúcho, “um vitorioso jovial e forte” para quem o rodeio é “uma festa diária” [17], um “fuerte, altivo, enérgico” [18]. Em ambos se encontra a idéia ao mesmo tempo romântica e pequeno-burguesa de que os guardadores de rebanhos no fundo não trabalhariam, pois dariam, diferentemente de suas mulheres, na maior parte do tempo, passeios a cavalo e se divertiriam em festas, o que vale principalmente para o gaucho [19], mas também, em grau menor, para “o vaqueiro preguiçoso” que “quase transforma o campião que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dous terços da existência” [20]. No entanto há também, na visão euclidiana, profundas diferenças entre os dois tipos de moradores do campo, como se pode depreender do cotejo de duas cenas que narram o confronto do homem bárbaro com as forças mais bárbaras ainda da natureza: (...) Algunos minutos después, el bramido se oyó más distinto y más cercano; el tigre venía ya sobre el rastro, y sólo a una larga distancia se divisaba un pequeño algarrobo. Era preciso apretar el paso, correr, en fin, porque los bramidos se sucedían con más frecuencia, y el último era más distinto, más vibrante que el que le precedía. Al fin, arrojando la montura a un lado del camino, dirigióse el gaucho al árbol que había divisado, y no obstante la debilidad de su tronco, felizmente bastante elevado, pudo trepar a su copa y mantenerse en una continua oscilación, medio oculto entre el ramaje. Desde allí pudo observar la escena que tenía lugar en el camino: el tigre marchaba a paso precipitado, oliendo el suelo y bramando con más frecuencia, a medida que sentía la proximidad de su presa. (...) En efecto, sus amigos habían visto el rastro del tigre y corrían sin esperanza de salvarlo. El desparramo de la montura les reveló el lugar de la escena, y volar a él, desenrollar sus lazos, echarlos sobre el tigre, empacado y ciego de furor, fue la obra de un segundo. La fiera, estirada a dos lazos, no pudo escapar a las puñaladas repetidas con que, en venganza de su prolongada agonía, le traspasó el que iba a ser su víctima. ‘Entonces supe lo que era tener miedo’ - decía el general don Juan Facundo Quiroga, contando a un grupo de oficiales este sucesso [21]. À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe [ao sertanejo] rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre. É mais um inimigo a suplantar. Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua, assalta-a. Mas não a tiro por que sabe que desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, ‘vindo em cima da fumaça’ é invencível. O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe [22]. O sertanejo, diferentemente do gaucho, não foge da “suçuarana”, que corresponde ao tigre argentino, não se esconde medroso numa árvore, como faz o herói dos pampas, ele, pelo contrário, procura, desafia e esfaqueia a fera, para proteger o lar e o gado. Difícil saber se o autor brasileiro concebeu esta cena como réplica direta à cena-chave de Facundo, da qual citamos dois trechos, episódio seminal que introduz a biografia do personagem principal, narrando o seu nascimento a partir do medo. De qualquer forma, essa façanha, apresentada como ato quase costumeiro na vida do sertanejo, unterstatement hiperbólico do escritor brasileiro, se insere na estratégia discursiva do autor de comparar dois tipos de guardadores de gado, representantes da civilização do couro, concedendo certa superioridade ao vaqueiro do sertão. A contrapartida do caudilho argentino não é determinado líder canudense e muito menos o próprio Conselheiro, cuja valentia é sublimada e transfigurada em fé e abnegação, mas o simples caboclo, quase um anti-herói, o sertanejo como tipo, porém mais brabo, mais corajoso, mais lutador do que o mais valente, o mais perigoso, o mais temível dos gauchos, que é o próprio protagonista sarmientino. O gaúcho aparece duplamente como antípoda do canudense: primeiramente como termo de comparação; em segundo lugar como inimigo, uma vez que grande parte do exército brasileiro era composto de rio-grandenses que sempre tiveram participação desproporcional na vida militar do país, até hoje em dia [23]. A freqüente caracterização do sertanejo conselheirista, na imprensa da época, como “jagunço”, ou seja, bandido, pistoleiro, capanga, aproximando-o ao significado de gaucho malo, no fundo é uma calúnia inventada por latifundiários e jornalistas, que Euclides parece não ter nenhuma hesitação em adotar, pelo menos no início da campanha. Do gaúcho Euclides tem uma imagem ambígua. Por um lado, apresenta-o como menos bárbaro, mais refinado, mais ostensivamente heróico, mais próximo da civilização do que o sertanejo visto quase como o seu primo bruto, selvagem, primitivo, inferior na escala barbárie-civilidade. A natureza do sertão, mais selvagem, mais dura e impiedosa do que a do pampa, no entanto tem vantagens, pois obriga o homem a ser exímio lutador: “O jagunço é menos teatralmente heróico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é mais duro” [24]. Por outro lado, o gaúcho se caracteriza por um modo de matar pessoas que, copiado no abate do gado, bestializa tanto o matador como a sua vítima: a degola, fio condutor da trama nos dois livros aqui contemplados. Ele pode ser mais civilizado do que o sertanejo, no entanto ou talvez por isso mesmo é mais cruel e ajuda a barbarizar ainda mais o sertão. Diferentemente das guerras civis na Argentina porém, na guerra de Canudos esse método pré-moderno de homicídio é praticado em nome da civilização, contra prisioneiros intimados cinicamente, antes de serem trucidados, a gritar um “viva à República” [25]. Facundo e Conselheiro, importantes líderes de massas rurais, têm pouco em comum. O primeiro é ambicioso, ganancioso, lúbrico, brutal, colérico, viciado em jogos de azar, porém um líder militar genial, capaz de gestos generosos, ótimo conhecedor do povo, que o teme e o admira, um Napoleão desgarrado nos llanos e nos pampas. Em outras condições, num país civilizado, poderia ter sido um estimado estrategista ou estadista, embora, pelo menos na apresentação polêmica de Sarmiento, não tivesse projeto político, faltando-lhe educação e controle social por parte de instituições que possam regulamentar o seu poder. O Conselheiro, na imagem euclidiana, é o seu antípoda em quase tudo, sendo menos herói e dominador do que representante, quase encarnação da comunidade de Canudos, da população do sertão todo, e emissário do poder divino. Se Antônio Mendes Maciel se extingue através da desgraça amorosa, “fulminado pela vergonha” do incidente “algo ridículo” [26], ele depois renasce como Antônio Conselheiro, pregador e líder popular. A sua ascendência sobre o povo é de caráter religioso e moral, mas também socioeconômico, pois atua como redistribuidor de renda para os moradores mais necessitados de Canudos, aspecto negligenciado por Euclides. Se o Conselheiro tem pouca visibilidade para o leitor e até para os soldados que podem contemplá-lo de perto só como morto, isso também vale para o autor, mas nem sempre para o narrador que se permite alguns olhares diretos para o chefe de Canudos e líder do sertão. Este exerce o seu poder de modo quase imóvel e silencioso, fugidio, e embora seja ele o personagem mais importante do livro, não é propriamente o seu protagonista como Facundo no livro que leva o seu nome no título. O Conselheiro afigura-se-nos menos como agente e herói do que como sofredor e renunciador, na definição de Roberto da Matta, encarnação da fé, abnegação e perseverança, homem de transição para um mundo melhor [27]. A motivação de Facundo não tem nada de religioso, ele parece uma força natural, sendo o seu atraso de certa forma anterior à fase religiosa da humanidade que já seria um certo progresso ético e civilizatório [28]. Se o tipo ideal, no sentido weberiano, que está por trás de Antônio Conselheiro é exatamente o conselheiro, forma superior do beato, leigo particularmente devoto e orientador do povo, aquele que está por trás de Facundo é o gaucho malo. Facundo não conhece nenhuma solidariedade, não funda nem família, nem associação, nem comunidade, nem cidade. Não cria, só destrói. Quanto ao controle dos afetos e instintos, tanto o Conselheiro quanto Rosas são bem mais civilizados do que o líder dos pampas, na acepção de Norbert Elias [29]. Rosas, sim, tem um projeto sociopolítico, é sedentário, tem uma capital, vive por uma comunidade, a nação, e por uma causa, o federalismo e o nacionalismo, embora de modo deturpado e cruel, na visão do autor. Os dois autores porém se assemelham no intuito não só memorialístico mas civilizador dos seus livros, em que se afirmam como explicadores e preceptores de suas nações, como “conselheiros” de sua gente. Lutas Os dois enredos são basicamente constituídos pela história de uma guerra civil entre as forças do atraso e as do progresso, imbricada com a biografia de importante líder de massas rurais, abominado pelos adeptos da civilização, com a vitória final destes últimos, a que pertencem os narradores, e com a morte do mau herói a que é concedida nesse momento, no entanto, uma quase apoteose, principalmente no livro euclidiano, contrariando as anteriores condenações. Só que, se em Os Sertões a morte do Conselheiro e o fim da campanha de Canudos de 1897 praticamente coincidem, o livro saindo cinco anos depois, em Facundo há uma diferença de 17 anos entre a morte do protagonista, em 1835, e o término do regime de Rosas em 1852, sendo a narração do meio, de 1845. O autor argentino, quanto à construção do enredo, portanto hesita entre dois desenlaces, um que termina com o assassinato de Facundo no passado, dez anos antes da redação do relato, e outro que narra sucintamente a historia posterior, prolongando-a em considerações políticas até o futuro, até a almejada e pressagiada queda de Rosas: “Por la puerta que deja abierta al asesinato de Barranca-Yaco, entrará el lector, conmigo, en un teatro donde todavía no se ha terminado el drama sangriento” [30]. A magnanimidade para com o inimigo sendo mais fácil depois da vitória, Euclides, principalmente como narrador, menos como autor político, pode enaltecê-lo mais do que Sarmiento, para quem o Facundo morto continua perigoso no Rosas vivo. Nos dois livros a história é encenada, mas no caso de Canudos a própria realidade vem ao encontro de sua literarização e, principalmente, de sua representação como espetáculo. Pois fica evidente que a guerra de Canudos preenche, aproximativamente, vários requisitos do drama clássico, as unidades do lugar, do tempo, do enredo. A unidade do tempo talvez seja menos patente no caso da guerra de Canudos, já que esta durou bem mais de um dia, exatamente onze meses, tendo porém início, meio, fim, diferentemente das intermináveis guerras civis da Argentina, algo informes e intransparentes, sem claros contornos cronológicos. Essa mesmice, demarcação e nitidez do lugar e do tempo ajudam a memória coletiva, ajudam a imaginação, ajudam tanto a narrativa organizadora e reflexiva do historiador assim como a narrativa evocadora do escritor. Não é exagero dizer que o livro euclidiano é, não obstante os seus fortes traços épicos, construído como um drama em cinco atos [31]. A intenção de aproximar o Facundo da tradição épica fica assinalada logo no início pela típica invocação, desta vez porém não de uma musa, de algum deus ou herói, como reza a tradição, mas de um defunto que conhece por dentro a paisagem e o povo dos pampas: ¡Sombra terrible de Facundo, voy a evocarte, para que, sacudiendo el ensangrentado polvo que cubre tus cenizas, te levantes a explicarnos la vida secreta y las convulsiones internas que desgarran las entrañas de un noble pueblo! Tú posees el secreto: ¡revélanoslo! [32] O autor esconjura um demônio, o seu arquiinimigo que curiosamente se torna um aliado na busca da verdade histórica e como fonte de inspiração narrativa. O autor o obriga a servi-lo na obra de evocação e interpretação da alma do povo argentino, das guerras civis e da política nacional, dando-lhe em troco aquilo que o povo já lhe concedeu: a imortalidade [33]. Trata o antagonista vencido como este tratou o tigre apunhalado, apoderando-se de suas forças, como também se apodera da tradição oral popular. O autor aparece, aqui já, como líder, pois dialoga com Facundo morto em nome da sua platéia, da Argentina antirosista, congregada no pronome da primeira pessoa do plural. Escusado dizer que Euclides, apesar de toda a pretensão literária, começa o seu livro, à primeira vista pelo menos, como autor puramente científico e historiográfico, sem apóstrofes e invocações, sem dialogar diretamente com vivos e muito menos com mortos. As duas quase-epopéias nacionais se complementam de modo singular, pois pertencem, ao nível do enredo e dos deslocamentos no espaço, a modelos diferentes, arquetípicos, ambos prefigurados em Homero. Pois Facundo, construído no seu núcleo narrativo como um romance de aventuras, tem alguma analogia com a trama da Odisséia, sendo o seu herói ao mesmo tempo um Ulisses, astuto e forte, embora também covarde e sanguinolento, que vagueia pelos pampas, e pretendente ilegítimo de uma Penélope coletiva, ou seja da Nação argentina. O verdadeiro Ulisses entretanto, o próprio Sarmiento, banido da pátria, com algumas interrupções, durante mais de duas décadas, parecido ao herói homérico, erra pelo mundo, lutando para sobreviver e para reconquistar sua pátria-esposa mais ou menos fiel, lutando principalmente mediante o livro que estamos analisando. Depois de muitas aventuras e percalços, narrados também em outros livros - por exemplo em Viajes, de 1849, e Campaña del Ejército Grande, de 1852 - ele consegue voltar. Facundo é um episódio da odisséia do autor que começou com o seu primeiro exílio no Chile, em 1831, e que só terminará em 1852, com a queda de Rosas, e de certa forma em 1855, quando o autor se instala em Buenos Aires, no seio da Nação com a qual renova e consuma o himeneu. Essa união com a pátria se manifesta numa carreira política brilhante, em que vai galgando os mais altos cargos, chegando em 1868 à presidência, impensável sem o Facundo e o caudilho homônimo ao qual por outro lado confere imortalidade, quase uma relação de troca de favores entre personagem e autor. Os Sertões pelo contrário segue a certa distância o esquema da Ilíada, os conselheiristas desempenhando o papel dos troianos e os soldados o dos gregos, uma guerra de sítio de meses, mas com antecedentes de décadas, entre os quais o rapto de uma Helena sertaneja, a esposa do Conselheiro, seduzida por um soldado, ato ilegítimo que desencadeou, ao nível da narrativa, as peregrinações de Antônio Mendes Maciel e sua transfiguração em Antônio Conselheiro, líder espiritual da população sertaneja. O adultério é importante mola do enredo, constituindo um dos principais pressupostos da guerra que se trava entre a comunidade fundada pelo marido traído e os “colegas” do sedutor, só que, diferentemente da epopéia grega, a posse da raptada não é motivo da guerra, já que são os raptores que atacam a comunidade chefiada pelo ex-marido da raptada, juntando um segundo crime ao primeiro. Os raptores ganham a guerra e nunca devolvem a raptada cujo destino fica desconhecido, não interessando mais aos dois partidos beligerantes. Se a violação dos direitos por agentes do aparelho do Estado levou os vitimados a sua auto-organização, nem essa saída é permitida [34]. Não falta a intervenção de poderes olímpicos, em Os Sertões quase só do lado do exército: grupos e partidos políticos, a imprensa nacional e internacional, os intelectuais, a indústria bélica européia, os bancos ingleses, ainda que estes últimos não apareçam no livro. A “Tróia de taipa”, como a chama o próprio Euclides, só tem Deus como aliado de fora, e alguns deuses pré-olímpicos, principalmente a Terra e as serras ciclópicas, o que pelo visto não é suficiente. Em Facundo, a Civilização, como instância superior, está teoricamente do lado de Sarmiento e dos unitários, mas na prática as potências européias fazem uma espécie de Realpolitik, colaborando com Rosas, o que o autor explica como falta de informação da parte daquelas. Estilos e públicos Já vimos que os estilos dos dois livros têm muito em comum: a presentificação sensorial, com ênfase na descrição de painéis e narração de cenas que se gravam facilmente na memória do leitor, a referência à história européia como padrão comparativo, expressão da tendência de explicar a realidade incógnita da América Latina através de comparações e analogias com a história e literatura do Velho Mundo que fornece os parâmetros interpretativos, por exemplo, através de metáforas como “Tebas del Plata” ou “Tróia de taipa” [35]. No uso da erudição e dos recursos poéticos porém Sarmiento é menos radical, menos transgressivo e exacerbado, mais contido, sóbrio e moderado do que o escritor brasileiro, o que se explica em parte pela diferença do momento literário, bem antes dos exageros do cientificismo e do parnasianismo, como também pela finalidade mais pragmática do seu texto. Euclides às vezes pouco se preocupa com a inteligibilidade dos seus relatos, observações e reflexões, porque a função estética nele ganha autonomia bem maior do que no autor argentino, embora a crescente distância da posteridade em relação aos fatos relatados tenda a relativizar esses diferentes graus de literariedade entre as duas obras. Para evidenciar diferenças estilísticas e compositórias, nada melhor do que exemplificá-las em trechos comparáveis: Al sur, y a larga distancia, limitan esta llanura arenisca los Colorados, montes de greda petrificada, cuyos cortes regulares asumen las formas más pintorescas y fantásticas: a veces es una muralla lisa con bastiones avanzados, a veces, créese ver torreones y castillos almenados en ruinas [36]. A Serra do Cambaio é um desses monumentos rudes. Certo ninguém lhe pode enxergar geométricas linhas de cortinas ou parapeitos bojando em redentes circuitados de fossos. Eram piores aqueles redutos bárbaros. Erigiam-se à têmpera dos que os guarneciam. E a distância, indistintos os ressaltos das pedras e desfeitos os vincos das quebradas, o conjunto da serra incute, de fato, no observador, a impressão de topar, de súbito, fraldejando-a, subindo por elas, em patamares sucessivos e estendidas pelas vertentes, as barbacãs de velhíssimos castelos, onde houvessem embatido, outrora, assaltos sobre assaltos que os desmantelaram e aluíram, reduzindo-os a montões de silhares em desordem, mal aglomerados em enormes hemiciclos, sucedendo-se em renques de plintos, e torres, e pilastras truncadas, avultando mais ao longe no aspecto pinturesco de grandes colunatas derruídas... [37] Comparando as duas descrições de serras ao sul de importantes vilas do interior, La Rioja e Canudos, ambas associadas com Jerusalém, revelam-se afinidades e diversidades entre os estilos: a frase euclidiana pode ser lida como ampliação, gradação, intensificação e dramatização barroquizante da frase correspondente do predecessor argentino. Nos dois livros, a função informativa e referencial portanto é complementada e às vezes sobrepujada pelas funções expressiva, poética e apelativa, sendo as conotações talvez mais importantes do que as denotações. Facundo é mais panfletário, mais apelativo, mais diretamente voltado para a política, ao passo que Os Sertões lança mão, num grau muito maior do que o “modelo” argentino, do discurso erudito, acadêmico, principalmente do das ciências exatas ao qual Sarmiento, o autodidata do interior, tinha pouco acesso e para o qual esse homem impetuoso talvez nem tivesse a necessária paciência e meticulosidade, embora em princípio o apreciasse muito. O seu estilo é menos metódico, mais descontraído, embora altamente artístico, cheio de apóstrofes, interjeições, perguntas retóricas. O autor coqueteia, como Euclides também, com o caráter rude do livro, “obra tan informe” [38], conseqüência do clima de combate em que foi escrito e dos temas de que trata. Assemelha-se a um grande diálogo com um público imaginado, o que demonstram os freqüentes apelos ao leitor, que Sarmiento, sem muitos rodeios, pretende captar, agitar e empolgar, valendo-se menos da erudição acadêmica do que da cultura geral, da retórica romântica de tipo hugoano, amalgamada com a fala cotidiana de intelectuais e populares, citadinos e gauchos, pondo em segundo plano a factualidade histórica.39 Beira o perigo, sem incorrê-lo realmente, de aborrecer o leitor com a repetitividade de sua argumentação e sua falta de humor, ou de cair até no ridículo com seu hiperbolismo, seu ergotismo, sua vaidade desenfreada. Euclides da Cunha, no seu requisitório, seu discurso de defesa e acusação, necessariamente persuasório, lança mão de uma retórica mais sofisticada, embora também de aparência rude, motivo de certa coqueteria do próprio autor que chama o seu estilo de “algo bárbaro” [40]. A ênfase dada à função poética, mesmo nos trechos científicos da primeira parte, intitulada “A Terra”, tende a fazer dos meios retóricos uma finalidade em si e compromete volta e meia a sua comunicabilidade, ao pôr no segundo plano as funções referenciais e apelativas [41]. A pompa estilística e “opulência retórica” [42] contrastam curiosamente com a secura do meio descrito, muito diferente, por exemplo, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, em que a aridez da terra e do povo sertanejo corresponde ao caráter árido e lapidar do estilo. Tudo isso aumenta, naturalmente, as tensões entre a vertente referencial e a vertente poética dentro de Os Sertões, que portanto se apresenta, em comparação com seu homólogo argentino, mais metódico e ao mesmo tempo mais fantasioso, mais controlado e mais apaixonado, mais científico e porém mais marcado esteticamente. Seu livro está sob alta tensão, podendo fracassar a todo momento, ser pulverizado pela comicidade involuntária do pathos, pela aspiração à grandiosidade, ao sublime, pelos exageros desmedidos, pelo pedantismo acadêmico, pelas incoerências compositórias e ideológicas, pela grandiloqüência, pelas citações ou alusões erradas, ou simplesmente pela sua incompreensibilidade. Tensão que se traduz por inúmeras metáforas e antonomásias arrojadas [43], tomadas não raras vezes das ciências exatas, uma enxurrada de oxímoros e antíteses, de repetições e sinônimos. Como o seu “colega” argentino, também Euclides soube, excetuando-se poucas frases mal-sucedidas, contornar aqueles perigos. Cabe para eles uma frase de Theodor W. Adorno: “Grandes obras são aquelas que têm sorte em seus pontos mais duvidosos” [44]. Monumentalizando o sertão e o sertanejo num memorável conjunto de painéis dramáticos o próprio texto euclidiano vira monumento, imponente, heróico e intocável, como constatou Gilberto Freyre [45]. Esses dois textos fundamentais e fundacionais, visando o autodescobrimento nacional, híbridos, violentos, opõem-se a uma classificação fácil, transgredindo os limites entre gêneros literários e áreas do saber, podendo ser provisoriamente considerados ensaios geográficos, antropológicos e sobretudo historiográficos parcialmente romanceados, dramatizados, poetizados e sobretudo altamente retóricos [46]. Há elementos de discursos solenes e teatrais de rememoração e acusação em ambos os livros que pedem não só para ser lidos mas para ser ouvidos, ou pelo menos para ser imaginados acusticamente com toda a sua faustosa eloqüência e sonoridade, oralidade em que ecoa a retórica clássica e barroca, bastante presente no ensino e na vida pública do século XIX [47]. Dirigem-se não apenas ao público letrado de seus países, no caso de Sarmiento inclusive aos leitores dos países vizinhos de fala espanhola, nomeadamente aos argentinos exilados e aos chilenos, mas também à comunidade de homens ilustrados do mundo civilizado em geral. Talvez os dois textos aqui contemplados estejam entre os primeiros livros latinoamericanos concebidos para entrarem na literatura universal [48]. Se os escritos dos viajantes estrangeiros foram estudados avidamente como modelos de pesquisa e de representação, os autores das terras americanas escreviam também com a esperança, secreta ou não, de ajudar a Europa a entender melhor o novo mundo, sendo portanto a sua interpretação tarefa comum de letrados autóctones e europeus. Além disso, para todos os países jovens ou atrasados, a Europa, principalmente Paris, era o juiz estético e intelectual, quem era reconhecido lá, era reconhecido em toda parte, o que fazia da capital francesa um trampolim para carreiras nas Américas [49]. A poesia do espaço “incivilizado” Aproxima os dois autores também a romântica ênfase no caráter quase literário e poético da própria realidade selvagem, da natureza, da sociedade rural, atrasada, patriarcal, dramática, multicolor, violenta, o seu folclore, a singularidade e heroicidade de alguns dos seus representantes. Esse mundo bárbaro, que naquela época estava aos poucos entrando em extinção, por si só já seria poético, teatral, trágico, até musical; ou pelo menos se prestava para a representação artística, exige-a de certa forma, convida e quase obriga os autores a descobrirem a sua poeticidade, a descrevê-la e a enaltecê-la. Pois ambos recorrem à velha metáfora do mundo como livro, como escrita a ser lida ou decifrada pelos escritores [50]. A História é um livro científico, principalmente para Euclides e, mais ainda, um livro poético, exigindo dupla leitura portanto. Por outro lado, essa realidade não é apenas poesia, ela também produz poesia, através dos seus cantadores populares que a tematizam e interpretam, sendo ela duplamente poética, como sujeito e como objeto. Existe, pues, un fondo de poesía que nace de los accidentes naturales del país y de las costumbres excepcionales que engendra. La poesía, para despertarse, (...) necesita el espectáculo de lo bello, del poder terrible, de la inmensidad, de la extensión, de lo vago, de lo incomprensible (...). A selvageria é uma das suas condições: La soledad, el peligro, el salvaje, la muerte! He aquí ya la poesía (...). De aquí resulta que el pueblo argentino es poeta por carácter, por naturaleza” [51]. Se todo argentino é poeta, é porque todo argentino é gaucho, poderia ter dito Sarmiento, do mesmo modo que Euclides declarava todo sertanejo vaqueiro e dava a entender que o sertanejo era, no fundo, o brasileiro por excelência [52]. Esses tipos étnicos e sociais a serem superados, transformados ou até eliminados na realidade social, foram estilizados como protótipos de suas nações no plano simbólico. Euclides concordaria, embora menos enfaticamente, no que se refere à idoneidade do sertanejo para entrar na literatura. Cita longamente a poesia dos cantadores do sertão, assim como as lendas sugeridas pela própria conformação do terreno, por exemplo quando descreve as “cidades encantadas” que teriam impressionado “frios observadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. Atribui ao assalto do filho de Macambira à matadeira “delineamentos épicos” [53]. E depois de narrar aquele episódio, o autor o apresenta como adaptação de uma narração oral do povo, dentro e fora de Canudos, incluindo o próprio exército: Estes e outros casos - exagerado romancear dos mais triviais sucessos - dando à campanha um tom impressionante e lendário, abalavam a opinião pública da velha capital e por fim a de todo o país [54]. Os dois escritores cultos registram, comentam e continuam portanto a produção dos seus “colegas” rústicos, os poetas e cantadores populares, condenados ao desaparecimento junto com a cultura a que pertencem. Não houvesse os autores eruditos da cidade, a bronca cultura rural seria esquecida, de modo que tanto Sarmiento como Euclides, entoando-lhe um canto de cisne, asseguram-lhe a sobrevivência no imaginário nacional. Pois se o progresso com a comercialização e a burocratização da sociedade promovem a urbanização, a educação, o bem-estar, a segurança, a moda, se acabam com dureza das condições de vida e a rudeza do trato, com a dependência do homem em relação aos poderes naturais e ao seu culto cheio de superstições, também acabam com a poeticidade do mundo, acabam com o seu mistério e o seu encanto. O fim da violência como praxe “normal” nas relações sociais é uma faca de dois gumes, pois o estado de guerra faz parte da poeticidade dos espaços “incivilizados” e, nos últimos cem anos também, da sua filmicidade. É sobretudo na guerra, elo entre a civilização e a barbárie, que esta subsiste dentro da civilização, já que um exército sem traços bárbaros seria condenado à derrota, e até a guerra mais civilizada nunca deixa de ser profundamente bárbara, não havendo guerra sem crime de guerra. Para Hegel, a guerra é o evento por excelência que mobiliza intelectual e emocionalmente uma nação, sendo portanto matéria bruta e força motriz da criação de epopéias, gênero privilegiado em que se articulam as aspirações de uma coletividade, idéia que nos parece estranha hoje em dia, depois de um século cruento e eivado de guerras [55]. Os nossos autores enquanto pensadores sociais e políticos naturalmente encaram essa ausência prática da lei, da ordem e do bem-estar - essa enxurrada de desmandos dos poderosos, rebeliões, repressões, crimes, guerras civis, massacres, catástrofes naturais como males a serem superados, provas do atraso, motivos de vergonha. Mas enquanto escritores épicos pensam ou, antes, sentem de modo diferente, pois adivinham ou consideram que as deficiências na dominação da natureza, na administração e no policiamento de regiões selvagens ou campestres, verdadeiros “homizios” [56], evitam a rotina, a regularidade, a monotonia do cotidiano. A falta de justiça e segurança dá ampla margem de manobra aos chamados homens fortes, aos caudilhos e tiranos, mas também aos heróis e profetas, uma fauna de heróis inviáveis e supérfluos em áreas civilizadas: prato feito para os literatos. Assim como a agricultura com suas plantas cultivadas precisa da biodiversidade de áreas selvagens, parece que a cultura letrada também precisa da reciclagem com sociedades e manifestações culturais pré-modernas, “incivilizadas”. O Estado de direito com seu monopólio da violência e a sociedade do bem-estar dispensam o heroísmo, cujo desaparecimento assinala geralmente um progresso civilizatório. Ai daquela sociedade que precisa de heróis, dizia Bertolt Brecht. Onde há policiamento e segurança, não há grandes homens, onde há bombeiros, serviço de saúde, seguro social, lanternas nas ruas, correio, sistema de transporte, hospitais, escolas e centros de lazer, paz interna e externa, onde as necessidades básicas são satisfeitas, onde tudo é previsto e onde se remedeia logo o imprevisto, os heróis são dispensáveis, os santos e profetas também, e os poetas épicos, preocupados com o grandioso, o memorável e o sublime, se não desaparecem, só podem falar de culturas passadas ou “primitivas”. Uma das mais elucidativas reflexões sobre a relação entre a história social e gêneros épicos se encontra em Hegel, num trecho da Estética em que distingue as épocas heróicas ou pelo menos aristocráticas, o contexto social e cultural das epopéias, da “atual situação prosaica”, referindo-se assim à sociedade civil burguesa do seu tempo que se oporia a uma representação ou transfiguração poética em tom elevado, épico ou sublime. Na moderna sociedade organizada pelo Estado e outras instituições, cada indivíduo, mesmo um príncipe, está preso por uma correlação de forças, está submisso a uma ordem econômica e política, cujas instituições limitam a sua liberdade de ação. “A acidentalidade da existência exterior se transformou numa ordem firme e segura da sociedade civil e do Estado, de modo que agora a polícia, os tribunais, o exército, o governo do Estado assumem o lugar das metas quiméricas que se propunha o cavaleiro”. A epopéia tornando-se inviável, surge o romance moderno a que faltaria “a situação originalmente poética do mundo da qual surge a autêntica epopéia” [57]. Como a epopéia e, ainda que em grau menor, a tragédia entram em declínio na modernidade, que não abre espaço para heróis, a prosa de ficção, ou seja o romance, passa a ser a expressão mais adequada da emergente sociedade burguesa, embora, conforme os cânones vigentes até quase meados do século XIX, ele seja considerado, oficialmente, quase gênero menor [58]. Nas margens do mundo civilizado porém ainda existem elementos tanto dos períodos heróicos da Antigüidade como da Idade Média, principalmente em tempos de guerra, quando se abrem espaços para o surgimento de indivíduos fortes, com ampla margem de ação, que conseguem marcar e moldar a realidade ainda não inteiramente prosaica, organizada de modo que os seus protagonistas, desbravadores, guerreiros, pregadores possam reassumir algumas atitudes dos antigos heróis, cavaleiros e santos. Nessas áreas distantes em relação à civilidade urbana os nossos dois autores acreditam poder satisfazer a sua romântica saudade pelo antigo e pelo autêntico, pelas origens, pelo primordial, pelo não-moderno, pelo singelo, pelo idílico, pelo maravilhoso, pelo patriarcal. O fascínio europeu pela América Latina se deve também à imagem de desmesura, grandiosidade, hiperbolismo, incomensurabilidade e sublime que ela desperta nos forasteiros desde os descobrimentos. O homem civilizado às vezes se cansa de sê-lo, de ter que domar os seus instintos, de ter que aceitar toda uma complicada aparelhagem de regras e normas objetivas, de se comportar de modo sensato e racional, jugos para as paixões, para a subjetividade e a espontaneidade, para os egoísmos e a solidariedade, para os afetos de um modo geral. Essa insatisfação, fortalecida por leituras rousseauianas e românticas, talvez seja expressão da desconfiança, nos dois autores, de que nesses valores pré-burgueses e pré-modernos existe algo cuja perda iminente será lamentada e que vale a pena preservar na memória coletiva. Parecem sentir ou pressentir o mal-estar na civilização de que fala Freud, e a decepção com o desencantamento com a fria objetividade do mundo moderno de que fala Max Weber, mal-estar esse que é mais implícito no autor argentino, mais explícito no brasileiro. O choque entre dois mundos e dois graus de civilização, um legitimado pela razão tendencialmente determinista e o outro pela emoção meio romântica do autor e dos seus leitores, gera uma visão trágica da história nos dois autores aqui contemplados, tragicidade implícita em Sarmiento, manifesta e nítida em Euclides, visto que ele é bem mais cético em relação ao progresso e à civilização. Uma colisão trágica só é possível quando entre os campos opostos há certa igualdade de legitimação e dignidade moral [59]. Conceder tragicidade às personificações da barbárie equivale a elevar, dignificar, transfigurar os heróis vencidos, condenados pelo discurso ilustrado dos mesmos autores, e constitui uma crítica implícita à civilização. O cronista Machado de Assis assinalou claramente, no seu tom semi-irônico, a idoneidade do movimento de Canudos como assunto literário: Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pode sair de cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros eleitorais e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século [60]. E mais adiante caracteriza a modernidade, a sociedade baseada no lucro e na troca, como antipoética, já que os escritores são os aliados naturais dos inconformados com a sociedade administrada e compartimentada: Os direitos da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa. Em nome deles protesto contra a perseguição que se está fazendo à gente de Antônio Conselheiro. Este homem fundou uma seita a que se não sabe o nome nem a doutrina. Já este mistério é poesia [61]. Construção do Estado nacional Nota-se em ambas as obras um projeto historiográfico ambicioso, visando a um retrato abrangente, cientificamente fundamentado, da natureza e da sociedade de uma região periférica e, a partir dela, de todo um país em formação. Em ambos os casos esse remoto espaço rural e semi-selvagem estava ou parecia em descompasso com a missão civilizatória do país, rebelando-se contra ela. Os dois livros tendem a ser uma espécie de súmula, enciclopédia e quintessência dos traços característicos de seus países, seus problemas e possíveis soluções, na sua aspiração por se tornarem nações civilizadas, homogêneas, abastadas, desenvolvendo amplamente o seu potencial econômico e humano. Nas duas obras, o grande tema subjacente é, portanto, a construção de um Estado nacional moderno, impossível sem a incorporação dos incultos espaços interioranos, tão típicos quanto problemáticos para a definição daquilo que é nacional. Pois, o interior pode ser incivilizado, mas ele é típico e autêntico, mais nacional do que as cidades e o litoral, que são civilizadas, porém demasiado internacionalizadas. Se as duas obras aqui contempladas são livros fundadores, isso se deve em parte a essa incorporação do desconhecido e inculto interior e, por outro lado ao fato de satisfazerem a “demanda” de nações em formação por uma epopéia que possam reconhecer como a sua “bíblia” cultural e política [62]. A transformação do passado da nação em memória esteticamente elaborada é fundamental para evitar a sua descaracterização e, não é de se espantar que ambos os livros se tenham tornado lugares de memória de suas respectivas nações [63]. Os dois autores apostaram alto e ganharam. A publicação de suas “epopéias nacionais” celebrizou-os imediatamente [64]. Embora oriundos da baixa classe média do interior, longe dos setores urbanos letrados do litoral, foram logo saudados não apenas como grandes literatos, mas como porta-vozes e intérpretes máximos de uma região e da própria nação, como preceptores da pátria [65]. Se a glória de Euclides paira acima das lutas partidárias, se todas as tendências ideológicas se reportam a ele, da extrema direita até a extrema esquerda, Sarmiento, autor mais diretamente engajado e posteriormente político atuante, é mais controvertido; sendo tendencialmente identificado com o ideário da burguesia liberal que volta e meia mudou suas posições e alianças, de maneira que a sua recepção sempre dependeu até certo ponto das vicissitudes da política nacional [66]. Seja como for, os dois livros em questão entraram nos cânones literários das suas nações, como também da América Latina e do mundo inteiro. Há toda uma linhagem de escritores preocupados com a construção da nacionalidade, de José de Alencar e José Hernández a Guimarães Rosa e Antonio Callado, que tenderam a mediar essa oposição ao conceber a sua pátria basicamente a partir do interior, valorizando as populações mestiças, suas formas de convívio e organização social, procurando nelas suas inspirações literárias e combinando-as com a vertente humanista da civilização. Tanto Euclides como Sarmiento se integram nessas tradições e de certa forma as constituem ou pelo menos as enriquecem; eles sentem e adivinham que o rude conterrâneo interiorano é um tipo condenado à extinção, destino que lamentam, por mais necessário ou, no caso de Sarmiento, até desejável que seja. Vale a pena fixar essa cultura bárbara, porém autóctone, importante para a construção da nacionalidade, erguer-lhe um monumento, antes que desapareça. Algo dela deve ser preservado, tanto é que o título do livro sarmientino usa a conjunção “y” (na grafia sarmientina “i”), em vez de uma possível “o” entre os dois conceitos-chave; ou seja que não se trata de substituir simplesmente a barbárie pela civilização mas de valorizar e fundir as duas, pelo menos no plano simbólico, criando uma cultura e, eventualmente, uma sociedade nova, nem exclusivamente civilizada no sentido europeu, nem americanamente selvagem como foi o Novo Mundo antes da vinda dos europeus e, até certo ponto, nos tempos coloniais que perduram em caudilhos como Facundo. A diferença entre os dois autores, a este respeito, é gradual, pois Euclides gostaria, numa futura civilização nacional, de manter mais traços sertanejos do que Sarmiento em relação aos traços gauchos. Ao povo mestiço do campo, não-aculturado se nega o direito de existir, o que prefigura a futura política de extermínio promovida pelo próprio Sarmiento como homem político; porém o sertanejo de Euclides, embora condenado à extinção pela luta das raças, da qual faz parte a guerra de Canudos, paradoxalmente tem uma grande vocação virtual, pois ele seria a “rocha viva” sobre a qual se poderia construir a nação, sendo ele quase um salvador da Pátria que porém o mata tragicamente. Em Sarmiento ideólogo a salvação vem basicamente do exterior, em Euclides ideólogo ela vem do exterior mas também do interior, isto é, poderia ou deveria vir de lá. Todavia, nos dois, enquanto escritores, o homem simples do interior é personagem fascinante e indispensável, portador da especificidade nacional. Cabe ao sertanejo, na formação étnica e civilizatória do Brasil, papel importante, pois prefigura uma raça mestiça, possível base da nação nascente, autêntica, autóctone e civilizada ao mesmo tempo. É que um Brasil puramente branco e europeu não só é impossível, é até impensável. Ou se concebe um Brasil mestiço ou não se concebe o Brasil, como já viu Martius, nos anos quarenta do século XIX. Na Argentina, porém, a idéia de país branco, não mestiço, basicamente europeu sempre foi e continua sendo miragem difundida e influente, devido à clara predominância da população de origem européia. Sarmiento, diferentemente do seu admirador brasileiro, não considera a mestiçagem um grande problema, e muito menos a solução da formação nacional. Dialética da civilização Qual é o rumo da História? Como representá-la? Como explicar a barbárie? A principal característica da história é a marcha inexorável da civilização na sua luta contra o seu contrário. A barbárie, por mais fecunda que seja poeticamente e, por mais necessária que seja militarmente [67], não deixa de ser preocupante, podendo ser, quando não controlada, um empecilho para o progresso. Euclides assume, à primeira vista pelo menos, a atitude isenta e objetiva do cientista à procura da verdade, pesquisando a essência por trás das aparências, as causas profundas por baixo das causas imediatas, as leis naturais e sociais por trás dos fenômenos, para organizar e classificar as suas inúmeras e meio caóticas impressões. Em última análise, assume a atitude de um historiador, “um narrador sincero” que escreve para aquela divindade secularizada que é a História, prefigurando o juízo da posteridade, representada por futuros historiadores, de maneira que escreve quase sub specie aeternitatis. O leitor vai percebendo que as ciências exatas e a historiografia não se contradizem, mas que estão intimamente ligadas, não apenas devido à doutrina da influência do meio sobre a sociedade e do condicionamento da evolução cultural pela evolução genética, da história humana pela história natural. As duas vinculam-se por analogia e correspondência, graças à poetização da linguagem, servindo a natureza como prefiguração da história, entremeada de catástrofes, e sendo a vida social caracterizada por metáforas naturalistas, de modo que não é de maneira nenhuma supérflua a primeira parte do livro intitulada “A Terra”. Por outro lado, como cronista e historiador, Euclides é, dir-se-ia algumas décadas depois nas ciências sociais, uma espécie de “observador participante”, de caráter predominantemente empírico no meio dos soldados e oficiais, seus companheiros desde a Escola Militar, e de modo antes imaginário entre os sertanejos que quase só conheceu indiretamente, através de textos ou relatos orais de outras testemunhas, ou observando-os de longe, entrevistando-os como prisioneiros condenados à morte, vendo-os mortos. Essa empatia não é apenas uma questão de temperamento, mas também programa, porque aparece no mote, tomado em Hippolyte Taine no fim da “Nota Preliminar” de Os Sertões, o que modifica de certa forma sua atitude olímpica de autor que escreve para futuros historiadores e para o juízo da posteridade [68]. Euclides sofre e se alegra e se irrita com seus personagens, menos ostensivamente e menos unilateralmente do que o seu predecessor do Rio da Prata cuja estética da empatia também se apóia em autoridade francesa, com posição mais romântica, mas não diferente na substância. Esse envolvimento emocional com os personagens permeia, relativiza e até domina o discurso lógico-histórico, a começar pela nota prelinimar, até o fim do livro; ele não impede a busca da verdade mas a favorece. A crítica à civilização como progresso instrumental que homogeneiza o mundo, atropelando todas as alteridades, se esbarra volta e meia na afirmação da necessidade dessa mesma civilização do ponto de vista científico sem que haja qualquer mediação ou ponderação entre as dicotomias do dilema. Manter as peculiaridades regionais e nacionais significaria dificultar ou impedir a adoção da civilização: “Velar pela originalidade ainda vacillante de um povo (...) equivale quase a impropriar-nos ao rythmo acelerado da civilização geral” [69]. Note-se, por outro lado, que a crítica euclidiana à civilização como progresso instrumental não invalida ou denuncia a civilização tout court, ela se baseia ao contrário na civilização entendida como progresso humanitário, na vaga esperança de que os sacrifícios exigidos pela primeira beneficiem algum dia a segunda. Assim ele pode legitimar por exemplo o colonialismo francês na África, visto como modelo para missão civilizadora que o Brasil litorâneo exerce no sertão, à qual esta comparação confere um estatuto colonial [70]. Sarmiento, por sua vez, concentra todo o mal, ou seja, a barbárie em uma pessoa, Facundo, o caudilho do interior, e no tipo humano representado por ele, o gaucho; porém, como deixa claro na introdução, ele visa no fundo outra pessoa, o ditador Rosas, que ainda detém o poder na hora em que o livro está sendo escrito. Por isso o autor argentino não vê motivos para criticar a ferocidade da luta contra o líder do atraso, o inimigo da civilização. O bem e o mal estão claramente delimitados e distribuídos, pois o exilado argentino no Chile tem uma boa consciência na sua campanha jornalística e literária contra os gauchos, dos quais ele se considera vítima, e sabemos que as vítimas sempre têm razão. Em 1845, Sarmiento não pode ter certeza ainda de que pertencerá aos vencedores da História, embora Facundo já tenha morrido, por traição, por culpa de Rosas, como sugere o autor, num trecho altamente dramático que é quase uma crônica de uma morte anunciada, no capítulo XIII, o último do livro em algumas edições, de qualquer forma o ponto alto do ponto de vista épico: “¡¡¡Barranca-Yaco!!!” Esse desenlace, talvez o único lance verdadeiramente heróico do protagonista, o transfigura num ser imortal, demonizado e glorificado pelo relato do autor inimigo, de modo que o leitor, em vez de execrar esse facínora, finalmente passa a se preocupar com a sua vida e a temer a sua morte, desejando que escape à tocaia armada. A heroicidade do inimigo derrotado é velho lugar comum de toda literatura de guerra, pois a admiração pelo vencido enaltece também o vencedor ao passo que o triunfo sobre um inimigo fraco e covarde ou o menosprezo pelo inimigo morto acarretariam pouca honra. Já em Homero, os Troianos, depois de vencidos, são apresentados quase como vencedores morais e, os principais artífices da vitória grega, Agamenon e Ulisses, têm que pagar caro por ela, Aquiles já tendo morrido antes. A situação de Euclides é moralmente mais incômoda e intrigante do que a de Sarmiento no seu exílio. O autor brasileiro, mais de meio século depois, como oficial reformado e membro da comitiva do ministro da guerra, esteve do lado dos poderosos, dos vencedores, dos autores de um crime não justificável com os alegados crimes anteriormente cometidos pelas vítimas. Embora, ainda vários anos depois da luta, tome repetidas vezes o partido da civilização [71], por outro lado denuncia o exército como “multidão criminosa e paga para matar”, cujas atrocidades não sabe explicar satisfatoriamente [72]. Se lhe parecia viável interpretar os crimes dos sertanejos através do darwinismo social e do evolucionismo da época, os crimes da oficialidade branca, do governo vencedor, da civilização européia que mandou os seus canhões Whitworth, Canet e Krupp e da qual os soldados brasileiros foram “mercenários inconscientes”, não podiam ser imputados à mestiçagem, mas à própria Civilização. Esta, já no começo do livro, na “Nota preliminar”, aparece como sujeito histórico, impelido, por sua vez, pela luta de raças, aquela “força motriz da História” [73], nas palavras do sociólogo polonês-austríaco Ludwig Gumplowicz, decifrável como expressão mistificada da concorrência capitalista em escala mundial. A “animalidade primitiva” [74], na cada vez mais pessimista visão euclidiana, é atributo do gênero humano e não apenas do homem pré-moderno, não-europeu ou mestiço; o homem faz parte da natureza vista numa perspectiva darwinista, ele é feroz seja troglodita, seja moderno. O caráter desumano do gênero humano instrumentaliza a civilização e é instrumentalizado por ela no combate ao suposto não-civilizado, expulso da nação. A idéia do progresso tende a inverter-se, pois em Canudos os bárbaros se verificam menos bárbaros do que os civilizados com sua barbaridade apoiada pela tecnologia moderna. O centro da barbárie parece identificar-se cada vez mais com a capital do país: A rua do Ouvidor valia por um desvio das caatingas (...). E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha parceiros porventura mais perigosos [75]. Pode-se vislumbrar nos dois autores uma implícita dialética da civilização, como geradora dos seus próprios opostos, muito embrionária em Sarmiento em que se desenrola ao nível literário, no sentido de um desencanto, bastante nítida em Euclides que a vê também ao nível social e político, pois para ele a civilização engendra a sua própria antítese: uma barbárie moderna, mais perigosa e desumana do que a barbárie pré-moderna, e que só pode ser superada por meio da própria civilização que deve incorporar elementos das combatidas culturas tradicionais. Por outro lado, estas românticas contrapartidas só têm valor, só podem sobreviver como parte da própria civilização, pois para esta não existe alternativa, dela não se escapa, tampouco como da “armação de ferro” de Max Weber à qual no fundo é idêntica [76]. Só é possível, eventualmente, humanizá-la, através dos seus próprios elementos humanistas que prometem justiça, Estado de direito e bem-estar e através de elementos das culturas subjugadas do interior da América Latina. Mas mesmo em Euclides, essa almejada conciliação entre Civilização e Barbárie no sertão é mais ficção do que realidade, pois a oposição não se resolve ao nível da realidade, a tese e a antítese não levam a nenhuma síntese, a não ser ao nível da representação estética. A conciliação acontece no livro, ela é o livro [77]. A indignação e o protesto de Euclides permanecem ateóricos, acientíficos, inoperantes, são puramente éticos e poéticos. Nutrem-se da intuição de que toda essa visão determinista da história não é a última verdade, pelo que protesta com ironia sarcástica contra a nação que procura levar o sertanejo “para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas” [78]. O que objetivamente vale é a eficiência na matança, a “produtividade” do material bélico, ou seja, a sua destrutividade. O progresso técnico-militar é um retrocesso humano, porque a carabina, a metralhadora e o canhão são facas potenciadas, cujo efeito atroz às vezes não se vê de perto, principalmente no caso da artilharia, quando a distância entre os campos beligerantes e a assimetria do armamento geram a possibilidade de os atiradores assistirem à batalha como a um drama, um espetáculo ficcional, esteticamente desfrutável, livre de detalhes cruentos e desagradáveis, numa guerra limpa, ilusão evocada criticamente em Os Sertões. O engenheiro, personagem emblemático da Civilização industrial, se torna espectador que contempla a partir do quartel-general a eficácia mortal da sua engenhosidade. Se a faca representa um estágio artesanal de matança, os canhões marcam o seu estágio industrial, numa guerra em que a barbárie pré-histórica se funde com a barbárie moderna. Se nem aos mortos se concede dignidade, sendo até o Conselheiro morto degolado, uma profanação de sepulcro, embora com fins científicos, isto é, para estudos de cranologia, é lógico o teatro da guerra ser caracterizado como “matadouro” [79], metáfora mas também metonímia que lembra a famosa frase de Hegel sobre a História como matadouro e sobre a escassez de felicidade nela existente [80]. Se Euclides parece mais velho do que o seu colega argentino, embora os dois tivessem a mesma idade ao escreverem os livros aqui confrontados, é porque reflete experiências de mais de meio século que se desenrolou depois do aparecimento do livro argentino. A civilização já teve tempo de revelar alguns dos seus reversos, principalmente na sua periferia, o que permitiu ao autor brasileiro vislumbrar elementos de uma “dialética do iluminismo”, na acepção de Adorno e Horkheimer. Em Sarmiento, o interior dominado por Facundo também é caracterizado pelo terror cruento, do qual é emblemática a degola que tem seu domínio generalizado na capital e no país inteiro pela ditadura de Rosas, permeando o livro todo [81]. Mas o autor argentino não problematiza realmente a gênese da violência, simplificando-a como conseqüência do atraso, falta de educação, falta de comunicação, falta de progresso. Em momento nenhum ele considera a própria civilização como geradora de violência e selvageria, pois ignora, de propósito ou não, as monstruosidades cometidas em seu nome. De certa forma a sua fé no progresso é tão ingênua quanto a de Candide no conto de Voltaire que acredita viver no melhor dos mundos possíveis [82]. Se Sarmiento também pressente traços bárbaros dentro da civilização, as atribui à predominância do interior atrasado, do campo bárbaro, de formas de organização primitivas sobre a sociedade urbana. O que fustiga, porém, no regime de Rosas são, sem que tenha consciência disso, aspectos, embora embrionários, do Estado ditatorial moderno, com terror sistematizado e culto da personalidade, fenômenos bem conhecidos do século XX. Ele denuncia Rosas, o antigo estancieiro e caudilho rural, como bárbaro, para não ser obrigado a criticar a própria civilização, sobre a qual alimenta muitas ilusões. Considera o ditador homem do campo, para não ter que criticar o Estado autoritário, centralizado, racional, assim como a problemática hegemonia da capital sobre o país inteiro, prolongação da dependência do país em relação à economia mundial dominada pela Inglaterra. Não viu o caráter classista do Estado, nem o caráter limitado, racista e dependente do seu projeto republicano. Se o Estado nacional civilizado é por vezes incivilizado e até anticivilizatório, esse defeito não é extrínseco, como pensava Sarmiento, é intrínseco como intuía Euclides. No fundo, Rosas, o ditador, era homem da cidade, da modernidade, da civilização, e poderia ter dado ao escritor argentino a oportunidade de vislumbrar a barbárie dentro da própria civilização. O que lhe turvou a perspicácia foi a falta de informações e sobretudo a teimosia em equiparar o político urbano ao caudilho campestre, sob o signo comum da barbárie gauchesca. Por outro lado, Rosas como personagem principal teria sido bem menos romântico e épico do que Facundo. Borges tinha toda razão em acentuar a distância entre os dois líderes do Federalismo, só aparentemente da mesma estirpe, ao desruralizar Rosas, apresentando-o como homem da cidade e da civilização. Também imaginou, com igual razão, que o bárbaro Facundo teria apreciado muito o seu retrato no livro que leva seu nome e que se tornou o seu monumento, ainda que escrito por seu inimigo político e ideológico. Em "Diálogo de muertos", uma miniatura em prosa, o caudilho dos pampas diz postumamente ao seu aliado e rival: Rosas, usted no me entendió nunca. (...) A usted le tocó mandar en una ciudad, que mira a Europa y que será de las más famosas del mundo; a mí, guerrear por las soledades de América, en una tierra pobre, de gauchos pobres. (...) A usted le debo este regalo de una muerte bizarra, que no supe apreciar en aquella hora, pero que las siguientes generaciones no han querido olvidar. No le serán desconocidas a usted unas litografías muy primoroas y la obra interesante que ha redactado un sanjuanino de valía [83]. _______________ Berthold Zilly é professor do Instituto América Latina da Universidade Livre de Berlim. Originalmente publicado em De sertões, desertos e espaços incivilizados (Rio de Janeiro, Faperj, Ed. Mauad, 2001), este ensaio está aqui reproduzido por expressa autorização do autor __________ Notas [1] Usei as seguintes edições: Domingo F. Sarmiento, Facundo: Civilización y barbarie. Barcelona, Biblioteca Ayacucho, 1985 (1a ed. Santiago de Chile, 1845); Euclides da Cunha, Os Sertões (Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão). São Paulo, Brasiliense 1985 (1a ed. Rio de Janeiro, 1902). Sarmiento viveu de 1811 a 1888, Euclides da Cunha de 1866 a 1909. Sobre a história e a função ideológica dos conceitos de “civilização” e “barbárie” ver Roberto Fernández Retamar, “Algunos usos de civilización y barbarie”, Casa de las Américas, año XVII, nº 102, 1977; Norbert Elias, Über den Prozess der Zivilisation: Soziogenetische und psychogenetische Untersuchungen, 2 v. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1997 (Ed. bras. O processo civilizador - Uma história dos costumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990); e especificamente sobre “barbárie” na história colonial Ronald Raminelli, Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro/São Paulo, Jorge Zahar/Edusp, 1996. [2] Há quem negue que Euclides se tenha inspirado em Facundo, como Adelino Brandão que explica as numerosas semelhanças entre os dois livros com leituras e preocupações idênticas ou afins, o que em princípio é plausível, embora em certos detalhes talvez exagerado (A Sociologia d’Os Sertões. Rio de Janeiro, Artium, 1996, p. 167); por exemplo, o romance 1793, de Victor Hugo, não pode ter inspirado Sarmiento, visto que só foi publicado em 1874. Sobre a leitura desse romance por Euclides ver Leopoldo M. Bernucci (A imitação dos sentidos: prógonos, contemporâneos e epígonos de Euclides da Cunha. São Paulo, Edusp, 1995, p. 25-38) que também faz um confronto entre Euclides e Sarmiento, atendo-se a semelhanças estruturais e ideológicas (ibid., p. 39-50). [3] Euclydes da Cunha, Á Margem da História. Porto, Chardron, 1909, p. 168 (a grafia, inclusive dos nomes próprios, desta e das outras citações, é a das edições consultadas). [4] Euclydes da Cunha, “Academia Brasileira de Letras: Discurso de recepção”, in: Contrastes e Confrontos. Porto, Emprêsa litteraria e typographica, 1907, p. 347-8. Em Á Margem da História, no ensaio “Martin Garcia”, nome de uma ilha no Rio da Prata, em que Sarmiento localizou sua utopia, Argirópolis, Euclides também menciona Facundo, elogiando o “espirito glorioso do pensador de Civilización y barbarie”, ainda que vislumbre nele uma certa tendência hegemônica para com os países vizinhos, semelhante até “ao imperialismo raso de Manuel Rozas”. Isso não o impede de dedicar ao escritor argentino frases de grande admiração: “Nos ultimos tempos da ditadura de Rozas todos os alentos da nacionalidade desangrada pela Mashorca parecia concentrarem-se na fortaleza moral de um homem. Domingos Sarmiento sobresaía nas crizes da sua terra despedindo os clarões de suas grandes esperanças, presagos de um proximo amanhecer depois de uma noite nacional de vinte anos” (E. da Cunha, op. cit., 1909, p. 214-5). Ver também o capítulo “Entre utopias e pesadelos: Argirópolis, Canudos e as favelas”, Miriam Viviana Gárate, “Leituras cruzadas: entre Sarmiento e Euclides da Cunha”, Tese de Doutorado, Campinas, Unicamp, 1995. [5] A idéia é antiga, mas a fórmula dos “dois Brasis” é dos anos 50 (ver Jacques Lambert, Os dois Brasis. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976). [6] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 68; e Cunha, op. cit., 1985, p. 201, onde esse nome aparece com a grafia “Achanti”. [7] Tanto Sarmiento como Euclides mencionam Charette de la Contrie (1763-1796), um líder aristocrático e monarquista da Vendéia (Vendée), sublevação contra-revolucionária que os dois autores confundem com a dos Chouans, numa região vizinha, na Bretanha, como termo de comparação para caracterizar rebeldes latinoamericanos antieuropeus; porém, ao passo que Sarmiento pretende caracterizar com essa comparação Bolívar, pondo este militarmente acima de Charette (ibid., p. 17), Euclides a usa de modo semi-irônico e auto-irônico, para caracterizar a imagem dos conselheiristas na imprensa brasileira da época, que via neles um bando de aliados do partido monarquista. O autor brasileiro se serve ambiguamente da metáfora da Vendéia como designação do movimento de Canudos, adotando-a e rejeitando-a ao mesmo tempo (ver ibid., p. 461, 249, 282). Mas Sarmiento também está cheio de ambigüidades ao equiparar implicitamente Bolívar e Facundo, por intermédio da comparação de ambos com Charette, como chefes militares e como expressões das terras americanas. Se o elemento autóctone e mestiço, base de uma guerrilha eficiente, é tão positivo em Bolívar, evidentemente por ser anti-espanhol, não pode ser tão negativo em Facundo, só por ser antiunitário, antiliberal, antieuropeu. Por outro lado, essa contradição é atenuada um pouco pela hipótese de que o antiespanholismo de Bolívar é visto como atitude esclarecida, civilizada, moderna, pois a Espanha da época passava por clerical, monarquista e reacionária. [8] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 91. O interesse pelas ruínas se deve em parte ao escritor francês Constantin de Volney (1757-1820), viajante pelo oriente próximo, arabista, historiador meio romântico, meio iluminista e quase materialista, político ligado aos girondinos na Revolução Francesa, autor de Les ruines ou méditations sur les révolutions des empires (1791), muito lido na América Latina na primeira metade do século XIX, sob o título Las ruinas de Palmira, livro citado também por Sarmiento (ver ibid., p. 26). A idéia, já existente no autor argentino, de que o interior bárbaro é ao mesmo tempo velho e novíssimo, caduco e embrionário, vetusto e jovem, ruína e início permeia mais acentuamente ainda todo o livro de Euclides, sem que ele cite Volney expressamente. Sobre a presença deste na obra euclidiana ver Francisco Foot Hardman, “Brutalidade antiga: sobre história e ruína em Euclides”, Estudos Avançados, São Paulo, USP, janeiro/abril 1996, v. 10, n° 26, p. 293-310. [9] Estou me referindo às duas primeiras edições de Facundo, de 1845 e de 1851, publicadas em Santiago de Chile. O título da primeira é: Civilización i barbarie. Vida de Juan Facundo Quiroga i aspecto físico, costumbres i ábitos de la República Arjentina, Santiago de Chile, 1845, sendo o da segunda edição quase idêntico. Sabe-se que Sarmiento pretendeu americanizar, argentinizar e popularizar o castelhano também através de uma reforma ortográfica que aplicou nos seus primeiros livros, mas que não vingou. O livro euclidiano, nas três edições que saíram durante a vida do autor, em 1902, 1903, 1905, sempre manteve o mesmo título: Os Sertões (Campanha de Canudos) , embora alguns raros editores tenham posteriormente omitido o subtítulo. [10] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 86. [11] Depois de voltarem ao Rio, alguns soldados se estabeleceram num morro com o nome sugestivo da Providência, ao lado da estação ferroviária Central do Brasil, denominando-o Morro da Favela, de onde o nome se espalhou virando termo genérico, de modo que aquela favela específica readotou mais tarde o antigo nome de Morro da Providência. [12] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 237. [13] Se há uma cidade no Facundo comparável, pelo menos minimamente, com Canudos e talvez ainda mais com Monte Santo, é La Rioja, situada no deserto, ou na sua margem, comparada pelo autor com Jerusalém, igual Canudos: “Más hacia el oriente, se extiende una llanura arenisca, desierta y agostada por los ardores del sol, en cuya extremidad norte, y a las inmediaciones de una montaña cubierta hasta su cima de lozana y alta vegetación, yace el esqueleto de La Rioja, ciudad solitaria, sin arrabales y marchita como Jerusalén, al pie del Monte de los Olivos” (Sarmiento, op. cit., 1985, p. 91). Essas llanuras lembram a Palestina mas também o sertão de Canudos: “El aspecto del país es, por lo general, desolado; el clima, abrasador; la tierra, seca y sin aguas corrientes. El campesino hace represas para recoger el agua de las lluvias y dar de beber a sus ganados” (ibid., p. 91). E, como no sertão, há nos arredores uma alternância de terras áridas e terras férteis, principalmente no plano espacial, menos no plano temporal das estações do ano: “Hay una extraña combinación de montañas y llanuras, de fertilidad y aridez, de montes adustos y erizados, y colinas verdinegras tapizadas de vegetación como los cedros del Líbano” (ibid., p. 92). Sobre o caráter mítico e metafísico do sertão ver Fernando Cristóvão, “A transfiguração da realidade sertaneja e a sua passagem a mito (A Divina Comédia do Sertão)”, Revista da USP, nº 20, dez./jan./fev. 1993-1994. [14] Em muitos países de colonização espanhola, devido à predominância da mineração como principal fonte da riqueza e da exportação, os centros irradiadores da civilização se estabeleceram no interior: Cidade do México, Bogotá, Quito, Cuzco, Santiago de Chile, Córdoba, o que ocorreu no Brasil tardia e reduzidamente em Minas Gerais a partir do século XVIII, e no século XX em Brasília. Por isso, na América hispânica, a dicotomia civilização-barbárie não corresponde necessariamente àquela entre litoral-interior. [15] Ver acima a citação do ensaio “Martín García”, in: E. da Cunha, op. cit., 1909, p. 221. Quanto às cidades em Facundo, especialmente a relação entre a iluminista Buenos Aires e a clerical Córdoba, ver Maria Ligia Coelho Prado, “Prefácio à edição brasileira”, em Domingo F. Sarmiento, Facundo: civilização e barbárie (Trad. de Jaime A. Clasen). Petrópolis, Vozes, 1997, p. 32-3. [16] Ver Walnice Nogueira Galvão, As formas do falso: Um estudo sobre a ambigüidade no “Grande Sertão: Veredas”, (São Paulo, Perspectiva, 1986), sobretudo a 1ª parte: “A condição jagunça”. [17] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 182 e 185. [18] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 34. [19] Ibid., p. 34 e 57. [20] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 180. [21] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 80. [22] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 196. [23] Lembremo-nos de que o termo brasileiro “gaúcho” pode designar não apenas o guardador de gado, montado a cavalo, nos pampas, mas também o habitante do Rio Grande do Sul. Entre os dois significados, Euclides não faz uma clara distinção, dando a entender que, em Canudos, todos os soldados provenientes daquele Estado eram cavaleiros cuidando do gado, “monarcas das coxilhas” (ibid., p. 408), o que provavelmente corresponde tão pouco à realidade histórica quanto a apresentação genérica do sertanejo como vaqueiro, também montado a cavalo. São pelo menos exageros, estilizações enobrecedoras da plebe rural semibárbara, para aproximá-la à figura do escudeiro medieval. Na verdade, em Canudos havia poucos cavalos e poucas vacas, visto que a economia da população pobre do sertão se baseava e se baseia até hoje principalmente na cabra, genericamente chamada de “bode”. [24] Ibid., p. 184. [25] Ibid., p. 535. [26] Ibid., p. 215. [27] “Malandros e caxias prometem carnavais e paradas. O renunciador promete um mundo novo, um universo social alternativo, como o fez Antônio Conselheiro e, em escala menor, todos os nossos cangaceiros ou bandidos sociais, como foi o caso de Lampião e outros. Ousaria, então, dizer que tudo indica ser o renunciador o verdadeiro revolucionário num universo social hierarquizante, como é o caso do sistema brasileiro” (Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 206). [28] Se falta religiosidade explícita em Sarmiento, não falta certa predisposição para tal no meio social e no próprio autor, o que mostram as numerosas alusões a paisagens bíblicas, ou a antonomásia surpreendente segundo a qual o “caudillo argentino es un Mahoma, que pudiera, a su antojo, cambiar la religión dominante y forjar una nueva”, graças ao seu poder discricionário (Sarmiento, op. cit., 1985, p. 60), e que o protagonista, depois de morto, é esperado de volta pelo povo como se fosse um ser sobrenatural, quase como um messias (ibid., p. 8). Mais tarde, viajando pelo norte da África, o autor até ficará surpreso com “la semejanza de fisionomía del gaucho argentino y del árabe, y mi ‘chauss’ me lisonjeaba diciéndo-me que, al verme, todos me tomarían por un creyente”, e até gosta da idéia de ser “presunto deudo de Mahoma” (Domingo F. Sarmiento, Recuerdos de Provincia. Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1991, p. 36). Em terras estrangeiras, Sarmiento curiosamente se identifica com o conterrâneo semibárbaro, associado a outro semibárbaro, o árabe muçulmano. A primeira educação do autor foi toda religiosa; seus primeiros e quase seus únicos professores foram sacerdotes, com os quais certamente também aprendeu a predileção pela oratória (ver principalmente o capítulo “Mi educación”, in: ibid., p. 172 s.). [29] Ver N. Elias, op. cit., especialmente no v. II, p. 323 s. [30] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 203. O autor argentino, depois do fim do mau herói, depois do fim da parte descritiva e narrativa que constitui a essência do livro, acrescenta dois capítulos (XIV e XV), em que tece, à diferença de Euclides da Cunha que termina o livro com o fim do inimigo principal, considerações políticas, apresentando mais uma caracterização do ditador Rosas, um balanço do presente e um projeto para o futuro. Futuro do país e, nas entrelinhas, futuro do autor que, sem modéstia nenhuma, vê o seu destino intimamente ligado ao destino da nação. Esses últimos dois capítulos, literariamente talvez os menos bem sucedidos, pouco narrativos, pouco dramáticos e pouco poéticos, destoam do livro como um todo, sendo-lhe esteticamente alheios. Assim, as opinões e intenções políticas do autor constituem uma espécie de epílogo ou até apêndice, impressão fortalecida pelo fato de não constarem na primeira versão publicada em forma de folhetim no Progreso, jornal editado pelo autor no Chile, nem na segunda e terceira edição do livro (ver ibid., p. LVIII; e Elizabeth Garrels, “El ‘Facundo’ como folletín”, Revista Iberoamericana, nº 143, 1988). [31] Ver a relação das dramatis personae, em Euclides da Cunha, Obra Completa (org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro, Aguilar, 1966, v. II, p. 77-87. A questão da literariedade foi discutida, entre outros, por Luiz Costa Lima (Terra ignota: a construção de ‘Os Sertões’. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997) que no entanto, à procura de uma definição clara, distinta, racionalista de um livro extremamente multidimensional e de alta carga emocional, contesta, em última análise, o caráter literário de Os Sertões, ou o reduz aos aspectos ornamentais. Sobre a teatralidade de Os Sertões ver Berthold Zilly, “A guerra como painel e espetáculo: a história encenada em ”Os Sertões”, História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, Fiocruz, v. V, suplemento, jul. 1998. [32] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 7. [33] Ibid., p. 8. Sobre a invocação das musas na literatura ocidental ver Ernst Robert Curtius, Literatura Européia e Idade Média Latina (Trad. Paulo Rónai e Teodoro Cabral). São Paulo, Edusp/Hucitec, 1996, p. 291-311. Em Curtius não há nenhum exemplo de invocação de um ser negativo, inimigo, nefasto, seja imaginário, seja real. Ver também a interpretação em Jens Andermann, Mapas de poder: una arqueología literaria del espacio argentino. Rosario, Beatriz Viterbo Editora, 2000, p. 85-6. [34] Tanto Os Sertões como Facundo são livros sem amor e quase sem mulheres, a não ser como personagens coletivas ou como vítimas. Se há um amor nos dois livros, é o dos autores pela pátria. Sobre as mulheres em Os Sertões, ver José Calasans, “As Mulheres de ‘Os Sertões’ ”, in: José Calasans, No tempo de Antônio Conselheiro: figuras e fatos da Campanha de Canudos. Salvador, Aguiar & Souza/Progresso, s.d. [1959], p. 7-23. [35] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 9; e E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 169 e 231. [36] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 91. [37] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 300. [38] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 19. [39] Ver as “Notas de Valentín Alsina al libro”, in: Sarmiento, op. cit., 1985, p. 255-304, especialmente nota 2. [40] Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti (orgs.), Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo, Edusp, 1997, p. 119. [41] As presentes reflexões sobre as diversas funções do texto literário e de qualquer ato comunicativo devem muito a Roman Jakobson, “Lingüística e poética”, in: R. Jakobson, Lingüística e comunicação. São Paulo, Cultrix, 1969, p. 118-62. [42] Walnice Nogueira Galvão, “Uma ausência“, in: Roberto Schwarz (org.), Os pobres na literatura brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 51. [43] Um exemplo famoso é “centauro apeado”, no sentido de “centauro bípede”, para caracterizar a impetuosidade da infantaria do Sul, ou seja, de gaúchos que lutam sem cavalos na caatinga (E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 417). Vale a pena citar a frase toda: “Mas nos encontros a arma branca aqueles centauros apeados arremetem com os contrários, como se copiassem a carreira dos ginetes ensofregados das pampas”. Aliás, quanto ao gênero gramatical da paisagem gaúcha, Euclides vacila entre o pampa e a pampa, talvez por influência do espanhol (ver ibid., p. 417 e 685). A imagem do gaúcho como centauro era corriqueira no tempo do Facundo, de modo que Alberdi, correligionário e rival de Sarmiento, a usou para sugerir a afinidade temperamental deste último com os cavaleiros do pampa: “Lo presenta como como un caso típico de inadaptación al orden posterior a la caída de Rosas. A fuerza de pelear contra la tiranía, no sabe hacer otra cosa. Es un caudillo de la pluma, ‘producto natural de la América despoblada’ (...). Libre como el centauro de nuestros campos, embiste a la Academia española con tanto denuedo como a las primeras autoridades de la República” (Alberto Palcos, “Sarmiento”, in: Sarmiento, op. cit., 1985, p. 342). [44] Citado por Roberto Schwarz, “Sobre o amanuense Belmiro”, in: R. Schwarz, O Pai de família e outros estudos. São Paulo, Paz e Terra, 1992, p. 11. [45] Gilberto Freyre, Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro, Record, 1987, p. 234. [46] Sobre o conceito de livro fundacional ver Doris Sommer (Foundational Fictions: The National Romances of Latin America. Berkeley/Los Angeles, Oxford/University of California Press, 1994), que inclui na sua pesquisa o Facundo, porém não Os Sertões. [47] Ver Roberto de Oliveira Brandão, “Presença da oratória no Brasil do século XIX”, in: Leyla Perrone Moisés, O Ateneu: Retórica e Paixão. São Paulo, Brasiliense/Edusp, 1988. Sarmiento, que diferentemente de Euclides nunca teve a chance de concluir uma formação formal, escolar ou superior, pode ter conhecido essa retórica não só através da leitura de modelos literários latinoamericanos e europeus mas também através da oratória eclesiástica (Sarmiento, op. cit., 1985, p. 318 e 320; e Sarmiento, op. cit., 1991, p. 187 s.). [48] Os dois autores se empenharam por terem seus livros traduzidos, Sarmiento com êxito rápido, pois dentro de poucos anos saíram traduções do Facundo em francês, inglês e italiano (Sarmiento, op. cit., 1985, p. LIV), ao passo que o livro de Euclides só foi publicado em outra língua depois de sua morte, pela primeira vez na Argentina, em 1938 (Marcia Japor de Oliveira Garcia e Vera Maria Fürstenau (coords.), O Acervo de Euclydes da Cunha na Biblioteca Nacional. Campinas/Rio de Janeiro, Editora da Unicamp/Fundação Biblioteca Nacional, 1995, p. 17-8). Hoje em dia, a situação parece invertida, sendo o livro de Euclides mundialmente mais lido do que o de Sarmiento, cujas traduções estão em grande parte esgotadas. É de 1923 a primeira tradução para o português (ver M. L. C. Prado, op. cit., p. 19). Sobre a rápida recepção de Facundo nas Américas e na Europa ver também Sarmiento, op. cit., 1991, p. 256 e 260-1. O próprio Sarmiento considerava a tradução uma atividade central na transferência e apropriação da civilização, de modo que a praticava ele mesmo, embora de modo bastante subjetivo (ver ibid., p. 264-5; e Florian Nelle, Atlantische Passagen: Paris am Schnittpunkt südamerikanischer Lebensläufe zwischen Unabhängikeit und kubanischer Revolution (Travessias atlânticas: Paris no cruzamento de biografias entre a Independência e a Revolução Cubana). Berlin, Tranvía, 1996, p. 156-66). [49] Sarmiento reivindica um livro sobre a Argentina escrito por um autor científico do porte de Tocqueville, mas dá a entender que ele mesmo tem muito a dizer sobre o seu país e a América do Sul aos europeus. “A la América del Sur en general, y a la República Argentina sobre todo, le ha hecho falta un Tocqueville, que, premunido del conocimiento de las teorías sociales, como el viajero científico de barómetros, octantes y brújulas, viniera a penetrar en el interior de nuestra vida política, como en un mapa vastísimo y aún no explorado ni descrito por la ciencia, y revelase a la Europa, a la Francia, tan ávida de fases nuevas en la vida de las diversas porciones de la humanidad, este nuevo modo de ser, que no tiene antecedentes bien marcados y conocidos” (Sarmiento, op. cit., 1985, p. 9), sendo interessante a reivindicação de uma ciência social tão metódica quanto as ciências naturais; ver também as páginas subseqüentes. Euclides cumpre de certa forma a reivindicação de um estudo científico do país, pois não só lança mão das teorias sociais vigentes na Europa, aparentemente com o rigor das ciências naturais, mas também se serve destas mesmas, como viajante e como autor científico, fundindo-as com a representação poética e retórica do tipo ensaiado pelo próprio Sarmiento naquelas páginas. Mas além disso, Euclides também afirma a necessidade de algum sábio europeu um dia explicar eventos como a guerra de Canudos, no plano psicossocial, dando a entender que, quem sabe, ele mesmo, Euclides, já cumpriu parte dessa tarefa, só que em vez da ciência política ele invoca a psiquiatria social: “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...” são as últimas palavras de Os Sertões (E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 573). Sobre a importância da literatura de viagem para a constituição da ficção brasileira ver Flora Süssekind, O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. [50] “Sejamos simples copistas”, diz Euclides, o que pode ser entendido de maneira tríplice: primeiramente “decifrar” e “transcrever” o “livro” da História; em segundo lugar registrar situações e acontecimentos como uma espécie de escrevente, secretário, cronista do real; em terceiro lugar reproduzir, ou seja desenhar, pintar, esculpir verbalmente quadros e cenas que a própria realidade oferece ao observador e espectador. De qualquer forma a atividade do autor “copista” está oposta à teorização e à especulação, já que as teorias da época se verificaram pouco idôneas para captar e analisar os processos sociais no sertão (ver E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 178). Sobre a metáfora da natureza ou da história como livro que o teólogo, o sábio ou o poeta teriam que decifrar, ver Ernst Robert Curtius, Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter (1ª ed. 1948). Bern und München, Francke, 1969, p. 306-52; e E. R. Curtius, op. cit., 1996, p. 375-429. No Renascimento e no Barroco estava muito em voga essa metáfora. [51] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 40-1. [52] Ver Berthold Zilly, “Sertão e nacionalidade: formação étnica e civilizatória do Brasil segundo Euclides da Cunha”, Estudos - Sociedade e Agricultura, nº 12, abril 1999, Rio de Janeiro, UFRRJ/CPDA. [53] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 299 e 476. [54] Ibid., p. 477. [55] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Ästhetik (org. Friedrich Bassenge). Berlin und Weimar, Aufbau, 1965, v. II, p. 420 s.; e G. W. F. Hegel, Curso de estética: O sistema das artes (trad. Álvaro Ribeiro). São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 458 s. A violência e principalmente a guerra como fonte de inspiração poética e de sonhos de salvação numa civilização supostamente decadente é um dos fios condutores no livro de Schneider, por exemplo, no capítulo sobre Nietzsche (Manfred Schneider, Der Barbar: Endzeitstimmung und Kulturrecycling (O bárbaro: ambiente de fim de época e reciclagem cultural). München, Hanser, 1997, p. 201 s.). É principalmente nos espaços “incivilizados” que a fantasia dos civilizados acredita poder livrar-se das peias da moral civilizada, sendo esses espaços de suma importância para a produção poética européia. [56] “O sertão é o homizio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa” (ibid., p. 538). Sobre massacres como método de “resolver” conflitos sociais, ver Roberto Pompeu de Toledo, “A teimosa mania de cortar cabeças”, Veja, 8/5/1996, p. 154. Sobre a violência na literatura latino-americana ver Ariel Dorfman, Imaginación y violencia en América. Barcelona, Anagrama, 1972. [57] Ibid., p. 567 e 452. [58] “O romance no sentido moderno pressupõe uma realidade ordenada prosaicamente, e baseando-se nela - tanto com respeito à vivacidade dos acontecimentos quanto em relação aos indivíduos e ao seu destino - ele recupera, na medida em que isto é possível nessas condições, para a poesia o seu direito de existência perdido. Uma das colisões mais comuns e mais apropriadas ao romance é por isso o conflito entre a poesia do coração e a prosa adversa das circunstâncias assim como entre aquela e as contingências acidentais” (Hegel, op. cit., 1965, v. II, p. 452. A tradução das citações é minha). [59] Ibid., p. 549. [60] Machado de Assis, A Semana, crônica de 22/7/1894. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre, Jackson, 1937, v. II, p. 134. [61] Machado de Assis, A Semana (org. John Gledson), crônica de 31/1/97. São Paulo, Hucitec, 1992, p. 401. [62] É um chavão chamar Os Sertões de “bíblia da nação”, o que coincide com a definição da epopéia por Hegel: “Enquanto tal totalidade original, a obra épica é a lenda [Sage], o livro, a bíblia de um povo, e toda grande e importante nação tem livros assim absolutamente primordiais, nos quais lhe é enunciado aquilo que é o seu espírito original” (Hegel, op. cit., 1965, v. II, p. 407). [63] Ver Pierre Nora, “Entre mémoire et histoire”, in: P. Nora (org.), Les Lieux de Mémoire, v. I, La République. Paris, Gallimard, 1984; e Regina Abreu, O Enigma de ‘Os Sertões’. Rio de Janeiro, Funarte/Rocco, 1998. [64] Ver por exemplo Afrânio Coutinho, “Os Sertões, obra de ficção”, in: Euclides da Cunha, op. cit., 1966. [65] Esta representatividade nacional se reflete, por exemplo, no título do livro de Tulio Halperín Donghi e outros (orgs.), Sarmiento: Author of a Nation. (Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 1994). Ver também Ezequiel Martínez Estrada, Radiografía de la pampa (ed. crítica de Leo Pollmann). Paris/São Paulo, ALLCA XX-Ediciones Unesco/Edusp, 1996, p. 253-6. [66] Sobre a recepção e funcionalização de Sarmiento pelas correntes ideológicas na história argentina ver Dieter Reichardt, “Sarmiento’s Essay ‘Facundo - Civilización y barbarie’ in der politischen Auseinandersetzung Argentiniens” (O ensaio de Sarmiento ‘Facundo - Civilización y barbarie’ nas lutas políticas da Argentina), in: Rolf Klöpfer e outros (orgs.), Bildung und Ausbildung in der Romania, v. III. München, Fink, 1979. [67] A história de algumas palavras derivadas do étimo latino e grego de “bárbaro“ elucida as ambivalências que sempre acompanharam a atitude dos civilizados em relação à barbárie: pertencem a elas, entre muitas outras, as palavras bravio e brabo, o que não pode surpreender, mas também bravo e bravura, prova de que pelo menos no plano militar a barbaridade é indispensável (ver Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, verbete “bravo”). [68] “Estimem o historiador que trate a história como ela o merece, isto é, como ciência (...). Pois ele só aprecia o verdadeiro absoluto, ele se irrita contra as semi-verdades que são semi-falsidades, contra os autores que guardam o desenho dos acontecimentos e modificam a sua cor, que copiam os fatos e desfiguram a sua alma: ele quer se sentir como bárbaro entre os bárbaros, e entre os antigos como antigo”. (H. Taine, Essai sur Tite-Live. Paris, Hachette, 1888, p. 30; a tradução é minha). É significativo a citação de Euclides só começar com as palavras “il s’irrite”, ficando portanto fora a reivindicação de que história seja uma “science” e uma busca do “vrai absolu”. Em vez disso, Euclides acentua a necessidade da empatia que em Taine está mais bem ao serviço da neutralidade, da proximidade sempre igual do historiador com todos os seus protagonistas e portanto da imparcialidade. Não surpreende Sarmiento começar o seu livro, na introdução, com um mote que vai na direção euclidiana, encontrado em outro autor francês, Abel François Villemain, historiador da literatura, pouco conhecido hoje em dia: “Peço ao historiador o amor pela humanidade ou pela liberdade; a sua justiça imparcial não deve ser impassível. É preciso, pelo contrário, que ele espere, que sofra, ou que esteja feliz com aquilo que narra” (Sarmiento, op. cit.,1985, p. 7; a tradução é minha). A empatia, uma certa pluriparcialidade é programática nos dois autores, mas em Sarmiento ela fica, principalmente em relação ao povo e aos inimigos, bastante subliminar, devido ao seu temperamento egocêntrico, partidário, pragmático. Em Euclides ela é mais generalizada, justa, equitativa, menos partidária, pois a sua compaixão é suprapartidária, estendendo-se a homens de todas as condições, plantas, animais, pedras, a todos os seres sofridos e martirizados. [69] E. da Cunha, op. cit., 1907, p. 297. [70] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 135. [71] E. da Cunha, op. cit., 1907, p. 141-68. A “cruzada” é a da civilização contra a barbárie. A última frase reza: “(...) o unico significado verdadeiramente civilizador do movimento expansionista das raças vigorosas sobre a terra, está todo em affeiçoar os novos scenarios naturaes a uma vida maior e mais alta - compensando-se o duro esmagamento das raças incompetentes com a redempção maravilhosa dos territorios...” Sarmiento não pensaria diferentemente, só que teria menos problemas morais com esse “esmagamento”. Não é a primeira nem a última vez que se veicula a idéia do desenvolvimento de um território aceitando-se a eliminação da sua população primitiva, considerada empecilho. [72] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 538. [73] Ibid., p. 86. [74] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 538. [75] Ibid., p. 373. [76] No original alemão a famosa fórmula reza: “stahlhartes Gehäuse”, que significa literalmente “armação, cápsula, carcaça dura como aço”, um invólucro, portanto, em que o homem está inexoravelmente preso, metáfora da coerção que a economia capitalista exerce sobre os indivíduos, independentemente de sua aceitação ou não (M. Weber, Die protestantische Ethik. München/Hamburg, Siebenstern, 1969, v. I, p. 188). [77] B. Zilly, op. cit., 1999, p. 37-40. [78] E. da Cunha, op. cit., 1985, p. 374. [79] Ibid., p. 538. [80] Esteban Echeverría, amigo de Sarmiento e unitário como ele, usa esse símbolo para caracterizar o regime de Rosas, no seu conto-novela El matadero, provavelmente escrito em 1839, publicado só em 1871, onde “se ilumina la figura del joven vejado (...) por los esbirros del tirano, como la proyección simbólica en que avanza el cuadro de costumbres nacionales, diseñando una interpretación de la lucha entre civilización y barbarie” (Juan Carlos Ghiano, “ ‘El Matadero’ de Echeverría”, in: Esteban Echeverría, El Matadero. Buenos Aires/Barcelona, Emecé, 1967, p. 13). Há quem estabeleça uma filiação entre El Matadero e o Facundo (ver Roberto González Echeverría, “Redescubrimiento del mundo perdido: El Facundo de Sarmiento”, Revista Iberoamericana, nº 143, 1988, p. 385-406). [81] Sarmiento, op. cit., 1985, p. 27 e outros trechos. [82] É curioso essa ingenuidade também se encontrar em Martínez Estrada, em pleno século XX, que atribui a barbárie debaixo dos fraques ao caráter americano (E. Martínez Estrada, op. cit., p. 253). [83] Jorge Luis Borges, “Diálogo de muertos”, in: El Hacedor, in: Obras Completas: 19231972. Buenos Aires, Emecé, 1989, v. 1, p. 791. O “sanjuanino”, naturalmente, é Sarmiento.