Abrir documento - Universidade São Judas Tadeu

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
MESTRADO EM FILOSOFIA
A RELAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA MORAL
E DO DIREITO EM KANT
Walter Brotero de Assis Junior
SÃO PAULO
2013
WALTER BROTERO DE ASSIS JUNIOR
A RELAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA MORAL
E DO DIREITO EM KANT
Dissertação apresentada à Universidade
São Judas Tadeu, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em
Filosofia.
Área
Epistemologia.
de
Linha
Concentração:
de
Pesquisa:
Epistemologia da Política e do Direito.
Orientadora:
Hulshof.
SÃO PAULO
2013
Profa.
Dra.
Monique
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca
da Universidade São Judas Tadeu
Bibliotecário: Ricardo de Lima - CRB 8/7464
A848r
Assis Júnior, Walter Brotero de
A relação entre os princípios da moral e do direito em Kant
/ Walter Brotero de Assis Júnior. - São Paulo, 2013.
95 f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Monique Hulshof.
Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu,
A RELAÇÃO
ENTRE OS PRINCÍPIOS DA MORAL
São Paulo, 2013.
DO DIREITO
EM KANT
1. Kant, Immanuel,E 1724-1804
- Filosofia.
2. Filosofia do direito. 3.
São Paulo. I. Hulshof, Monique. II. Universidade São Judas Tadeu,
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título
CDD 22 – 340.1
WALTER BROTERO DE ASSIS JUNIOR
A RELAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA MORAL
E DO DIREITO EM KANT
Local:
Universidade
São
Judas
Campus Móoca.
Data: 07 de junho de 2013.
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Monique Hulshof
Prof. Dr. Maurício Cardoso Keinert
Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva
SÃO PAULO
2013
Tadeu,
RESUMO
A proposta desta pesquisa é o estudo da relação entre os princípios da moral e do
direito de Immanuel Kant. A problemática encontra-se em como se estabelece esta relação
entre os dois princípios: de que maneira a moral fundamenta o direito e, ao mesmo tempo,
como o direito se diferencia da moralidade (Ética). Para tal, a dissertação irá investigar os
conceitos de Moral, Ética e Direito, abordados na filosofia prática kantiana, a partir da análise
de algumas ideias principais: liberdade, lei moral, imperativo categórico e autonomia da
vontade.
Palavras-chave: Kant. Moral. Ética. Direito. Lei Moral. Liberdade. Imperativo Categórico.
ABSTRACT
The aim of this research is to study the relationship between the principles of morality
and law in Immanuel Kant. The problematic lies in how this relationship between the two
principles is established: in witch way Moral grounds the Right and, as well, how the Right
differentiates itself form morality (Ethic). To this end, the dissertation will investigate the
concepts of Morals, Ethics and Law, addressed in Kant’s practical philosophy, analyzing
some of his main ideas: freedom, moral law, the categorical imperative and autonomy of the
will.
Keywords: Immanuel Kant. Moral. Ethics. Right. Moral Law. Freedom. Categorical
Imperative.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
7
Capítulo 1 – Análise preliminar: o princípio supremo da moralidade e o conceito de
liberdade como autonomia
10
1.1. A razão prática e a noção de imperativo
10
1.2. A distinção entre imperativos hipotéticos e o imperativo categórico
15
1.3. A solução do problema da obrigação moral a partir do conceito de autonomia
da vontade
27
Capitulo 2 – Uma aproximação entre o princípio supremo da moralidade e o princípio
universal do direito.
38
2.1 O imperativo categórico da moral e a distinção entre direito e ética
38
2.2. liberdade como autonomia, direito inato e livre-arbítrio
47
2.3 O princípio universal do direito
57
Capitulo 3- A solução de Kant para o problema da coerção jurídica
64
3.1. O caráter coercitivo do direito
64
3.2. O direito público e a legitimação da coerção.
73
3.3. A ideia de uma vontade geral e o uso público da razão
83
Considerações finais
91
BIBLIOGRAFIA
94
7
INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem como objetivo apresentar a relação entre os princípios da moral e
do direito, segundo a filosofia de Immanuel Kant. Para tal, iremos analisar como Kant
defende, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a possibilidade da liberdade em
sentido estrito – como autonomia da vontade –, ao apresentar a razão prática pura, ou seja, a
capacidade racional do homem de determinar sua própria vontade a agir, de acordo com a lei
moral. Mediante esta noção de autonomia Kant explica o conceito de dever ou de obrigação
moral, que pode nos levar a agir de maneira independente de nossos desejos particulares,
inclinações sensíveis ou interesses egoístas. Procuramos mostrar, seguindo um viés de leitura
apontado por Höffe 1 e por Terra 2 , como o princípio da moral, definido por Kant como
princípio de autonomia da vontade, cumprirá um papel importante na fundamentação do
Direito. Para isso examinaremos, de um lado, essa relação entre o conceito de autonomia e a
apresentação que Kant faz do princípio supremo do direito. De outro lado, insistiremos na
distinção que Kant apresenta entre leis jurídicas e leis éticas, para mostrar que, embora o
Direito esteja vinculado à Moral em sentido amplo, ele se diferencia da Moralidade
(Sittlichkeit).
Com este intuito, dividimos nossas análises em três capítulos. O primeiro capítulo
realiza uma análise preliminar sobre o princípio supremo da moralidade e o conceito de
liberdade como autonomia. Para cumprirmos esta tarefa, tomaremos como base para nossa
investigação a obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, mais especificamente na
segunda seção, onde Kant apresenta sua análise acerca da razão prática. Distinguindo o
homem das demais coisas na natureza que são regidas por leis mecânicas deterministas, Kant
defende que o homem é capaz de agir mediante a representação de seus próprios princípios.
Examinaremos o que Kant entende por razão prática e como formula a noção de imperativo,
distinguindo entre imperativos hipotéticos e imperativos categóricos.
De acordo com Kant, não é possível encontrar, mediante a experiência, ou seja,
empiricamente, princípios que sejam válidos de maneira necessária e universal. Por isso sua
intenção, nesta seção da Fundamentação, é a de mostrar a partir da análise da estrutura da
1
2
HÖFFE, O. “O imperativo categórico do direito”. In: Studia Kantiana. Vol. I número I, 1998, p. 203-236.
TERRA, R. A política tensa. Ideia e Realidade na Filosofia da História de Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995.
8
própria razão prática, se a vontade pode se determinar a agir a partir da representação de leis
com caráter universal. Coloca-se assim a questão sobre a possibilidade de a vontade ser
determinada a priori, ou seja, de se determinar a agir independentemente de impulsos
sensíveis e interesses egoístas. Nesse sentido, Kant apresenta uma razão prática pura,que é
capaz de se autodeterminar a partir de princípios a priori, na medida em que compara sua
máxima, ou princípio subjetivo de ação, com a representação de uma lei universal válida para
todos os seres racionais em geral.
Ao introduzir essa possibilidade de determinação mediante a mera representação de
uma “lei universal”, Kant tem de explicar como a vontade humana, que é também
patologicamente determinada, ou seja, visa a realização de desejos e interesses particulares,
poderia ser obrigada a agir de acordo com essa representação puramente racional. Em suma,
Kant tem de solucionar o problema da obrigação moral. Examinaremos como Kant apresenta
essa solução a partir da articulação entre máxima e lei universal, que se torna possível
mediante o conceito de autonomia ou de auto-legislação da vontade: a vontade só se submete
à lei moral, na medida em que ela mesma se considera como universalmente legisladora.
No segundo capítulo investigaremos em que medida Kant traz para a fundamentação
do direito, na Metafísica dos Costumes, as análises realizadas ao longo da Fundamentação.
Nosso intuito é, portanto, o de aproximar o princípio supremo da moralidade ao princípio
universal do direito. Nesse sentido, será antes de tudo, necessário compreender a distinção
que Kant estabelece entre Direito e Ética, ambos fundados na ideia de uma razão prática pura,
expressa no imperativo categórico da moral.
Kant divide a Metafísica dos Costumes em duas partes: uma que versa sobre os
princípios metafísicos da doutrina do direito e outra que trata dos princípios metafísicos da
doutrina da virtude. A ótica do direito refere-se à conformidade da ação com a lei, isto é, à
legalidade, ao passo que a perspectiva da virtude é referente à consonância do móbil com a
lei, ou seja, à moralidade (Sittlichkeit). Neste ponto, mostraremos como o Direito se
diferencia da moralidade, mesmo que ambos estejam fundados no princípio da moral.
Num segundo passo, nos centraremos na questão da fundamentação do direito. Será
fundamental compreender como Kant retoma o conceito de liberdade como autonomia ao
apresentar o direito inato dos homens. Em seguida, procuraremos mostrar como Kant introduz
a liberdade como livre-arbítrio, especificando o direito em relação à moral. Essa outra
compreensão de liberdade, conduz à elaboração do princípio universal do direito como
considerando apenas a coexistência das liberdades externas. Nesses termos, será feita uma
9
abordagem sobre o conceito de direito entendido como a soma das condições sob as quais o
arbítrio de um indivíduo pode se unir ao de outro em conformidade com uma lei universal de
liberdade. Assim, a definição de princípio universal do direito considera justa toda a ação que
for apta a coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal, ou se ao menos na
sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos em
consonância com uma lei universal.
No terceiro e derradeiro capítulo exporemos como Kant introduz, no âmbito do
direito, o problema da coerção jurídica e como pretende solucioná-lo. Assim, analisaremos o
caráter coercitivo do direito. De acordo com Kant, a coerção consiste em uma autorização
para obrigar e todo direito é seguido de uma coerção. Entretanto, é preciso compreender que a
coerção não é uma barreira ou impedimento à liberdade. Pelo contrário, ela surge como
empecilho ao obstáculo da liberdade. Além disso, será importante compreender como, para
Kant, só poderá ser legitimada mediante o direito público. Assim, examinaremos como Kant
compreende a ideia de contrato originário e da formação da vontade geral que legitimará a
instituição das leis jurídicas.
10
Capítulo 1 – Análise preliminar: o princípio supremo da moralidade e o conceito de
liberdade como autonomia
Introdução
Tendo em vista o escopo deste trabalho de investigar o problema da relação entre o
princípio da moral e o princípio do direito na filosofia de Kant, será antes de tudo necessário
realizar um estudo sobre seu princípio da moral, procurando entender em que medida este
servirá de fundamento para o direito. Assim no primeiro capítulo pretendemos examinar
como Kant apresenta seu princípio supremo da moral que será formulado em um imperativo,
na Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Para tanto, será preciso reconstruir a análise que Kant faz na segunda seção da
fundamentação sobre o conceito de razão prática ou vontade. A partir dessa análise sobre a
razão prática, examinaremos a distinção que Kant apresenta entre os imperativos hipotéticos e
o imperativo categórico e como Kant argumenta que o princípio supremo da moral só pode
ser expresso em um imperativo categórico. Por fim será importante mostrar como Kant se
vale do conceito da autonomia da vontade para justificar o princípio supremo da moralidade.
1.1. A razão prática e a noção de imperativo
Na Segunda Seção da Fundamentação Kant afirma que o homem como ser racional,
possui uma vontade. Vamos antes de tudo compreender o que ele entende por vontade ou
razão prática:
Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de
agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele
tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a
vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina
infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como
objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a
vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente
11
da inclinação, // reconhece como praticamente necessário, quer dizer como
bom.3
Kant entende o conceito de vontade como a faculdade de se determinar a si mesmo a
agir em concordância com a representação de certas leis. Esta faculdade encontra-se apenas
nos seres racionais. Como a razão é imprescindível para a representação de leis, a vontade
nada mais é do que razão prática.O ponto decisivo do entendimento moral encontra-se
justamente na consciência da faculdade da razão prática pura, ou seja, na capacidade de
decidir, de escolher sua ação independentemente de fundamentos determinantes sensíveis, tais
como os impulsos, as carências, entre outros.
Desse modo, podemos compreender que uma vontade será boa quando for
determinada de modo incondicionado, ou seja, quando for determinada por princípios da
razão pura prática, válidos para todo e qualquer ser racional. De acordo com o que já havia
exposto na primeira seção da Fundamentação, Kant reitera que uma vontade boa é boa sem
limitações, pois está fundamentada no princípio da razão, que é incondicionado e, por
conseguinte, é composto apenas pela forma do querer abstraído de toda a matéria de seus
objetos. Segundo Guido Antônio de Almeida, o escopo de Kant é "...ligar o conceito da
vontade ao conceito da razão prática, na medida em que [i] entendemos por "vontade" um
poder de agir com base em princípios e [ii] é preciso da razão para derivar ações de
princípios"4.
Ante o exposto, notamos que para que a vontade seja absolutamente boa, é preciso que
a razão prática seja pura, ou seja, que ela possa fornecer o princípio universal e necessário da
conduta. Para Kant, o homem é capaz de conceber a ideia de uma razão prática pura, todavia,
as inclinações e os impulsos aparecem como um grande obstáculo no desenvolvimento dessa
ideia.
Qualificar a razão prática como pura significa dizer que se trata de faculdades da razão
cuja existência não depende de qualquer experiência, isto é, são faculdades dadas, a priori,
isentas de qualquer modo de vivência e independentes da atuação do indivíduo sobre o
mundo. A ação é considerada livre quando decorre exclusivamente da razão.
Seguindo o entendimento de Kant, chegamos então à conclusão de que o homem é um
ser composto por razão e sensibilidade, de modo que a vontade humana pode ser determinada
3
4
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, p. 47
ALMEIDA, Guido Antônio de. Immanuel Kant: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução com
introdução e notas. ed. cidade: ano. p. 32
12
ou por estímulos empíricos baseados na sensibilidade ou por um elemento puro fundado na
razão. Assim, no caso do homem que por sua constituição mista é um ser racional, mas
também é sensível, as leis da natureza não são suficientes para determinar a sua vontade.
Nesse sentido, como a vontade humana também está subordinada a certos móbiles sensíveis,
que nem sempre coincidem com as leis práticas impostas pela razão prática pura, Kant define
esta determinação da vontade mediante leis práticas como obrigação:
(...) Mas se a razão só por si não determina suficientemente a vontade, se
esta está ainda sujeita a condições subjetivas (a certos móbiles) que não
coincidem sempre com as objetivas; numa palavra, se a vontade não é em si
plenamente conforme à razão (como acontece realmente entre os homens),
então as ações, que objetivamente são reconhecidas como necessárias, são
subjetivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade, conforme
a leis objetivas, é obrigação (Nötigung); quer dizer, a relação das leis
objetivas para uma vontade não absolutamente boa representa-se como a
determinação da vontade de um ser racional por princípios da razão, sim,
princípios esses porém a que esta vontade, pela sua natureza, não obedece
necessariamente.5
Em razão da dupla possibilidade de determinação da vontade humana, Kant entende
que "a representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chamase um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo"6.
Ante os conflitos existentes entre as inclinações da sensibilidade e as leis práticas
objetivas que, no caso dos homens, se dão quando o seu querer não coincide necessariamente
com a lei objetiva, surge o comando (ou mandamento), que nada mais é do que o imperativo
ordenando o que deverá ocorrer. Nesse sentido, a lei prática objetiva será prescrita por um
imperativo que por sua vez é traduzido pelo verbo dever. Nas palavras de Kant:
Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (sollen), e mostram
assim a relação de uma lei objetiva da razão para uma vontade que segundo
a sua constituição subjetiva não é por ela necessariamente determinada (uma
obrigação). Eles dizem que seria bom praticar ou deixar de praticar qualquer
coisa, mas // dizem-no a uma vontade que nem sempre faz qualquer coisa só
porque lhe é representado que seria bom fazê-la. Praticamente bom é porém
aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão, por
conseguinte não por causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer por
princípios que são válidos para todo o ser racional como tal.(...)7
Kant entende que dever constitui a necessidade objetiva de uma ação segundo a
obrigatoriedade. Assim, dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei moral. A ideia
5
KANT, I. Fundamentação, p. 47-48
Idem, p. 48.
7
Idem, p. 48.
6
13
de dever só é possível para seres racionais sensíveis, que possuem uma vontade que não é
absolutamente boa e que, portanto, é imperfeita. Dessa maneira, apenas os seres racionais
sensíveis dotados de uma vontade imperfeita precisam agir de acordo com o dever, pois sua
ação nem sempre está em consonância com o princípio moral.
Assim, Kant argumenta que os imperativos exprimem-se pelo verbo dever e retratam a
relação que existe entre uma lei objetiva e uma vontade subjetivamente determinada. Por esse
motivo, não são válidos para uma vontade absolutamente pura ou para uma vontade santa, ou
seja, uma vontade que esteja totalmente de acordo com a lei. Eles exprimem a relação
existente entre leis objetivas e a imperfeição da vontade humana. Para Kant:
Uma vontade perfeitamente boa estaria portanto igualmente submetida a leis
objetivas (do bem), mas não se poderia representar como obrigada a ações
conformes à lei, pois que pela sua constituição subjetiva ela só pode ser
determinada pela representação do bem. Por isso os imperativos não valem
para a vontade divina nem, em geral, para uma vontade santa; o dever
(Sollen) não está aqui no seu lugar, porque o querer coincide já por si
necessariamente com a lei. Por isso os imperativos são apenas fórmulas para
exprimir a relação entre leis objetivas do querer em geral e a imperfeição
subjetiva deste ou daquele ser racional, da vontade humana por exemplo.8
Nesses termos, a vontade perfeita é aquela que não precisa da obrigação prática para
ser conforme à lei, uma vez que, seu querer já está por si só em concordância com a lei. Por
outro lado, observamos uma vontade racional capaz de determinar-se exclusivamente pela lei,
porém, concomitantemente, carrega consigo a potencialidade de ser influenciada por
inclinações e desejos, caracterizando a vontade imperfeita. Nas palavras de Guido Antônio de
Almeida:
(...) O segundo [dos três passos da análise do conceito de vontade] consiste
na distinção entre uma vontade perfeitamente racional (que faz
necessariamente tudo aquilo que lhe é representado como bom) e uma
vontade imperfeitamente racional (que não faz necessariamente o que é bom,
seja por ignorância, seja por fraqueza)...9
Diante do exposto, conclui-se que o querer da vontade perfeita será sempre um querer
moral, na medida em que a ação ligada a ela está sempre concordando com a lei moral. O
querer de uma vontade imperfeita, em contrapartida, nem sempre será um querer moral e,
consequentemente, a lei moral deve constituir, para tal vontade, uma obrigação.
8
9
Idem, p. 49.
ALMEIDA, op. cit., p. 32.
14
A distinção entre leis e imperativos exige que se diferenciem os princípios práticos
objetivos, que uma vontade imperfeita reconhece como um dever para toda vontade, dos
princípios práticos subjetivos, que traduzem o que o sujeito de fato quer e que podem estar, ou
não, de acordo com os princípios práticos objetivos. É para esses que Kant reserva a
expressão máxima, conforme veremos mais adiante.
Kant defende que a real finalidade da razão, enquanto faculdade prática é produzir
uma vontade boa em si mesma. Esta vontade, desprovida de qualquer intenção posterior, será
o bem supremo e a condição de todas as coisas. Desse modo, o homem como ser racional e
podendo agir conforme a boa vontade irá formular leis às quais todos os demais possam estar
necessariamente sujeitos. Por conseguinte, o homem poderá tornar-se um legislador universal.
Apenas o ser racional é dotado de capacidade de vincular sua vontade à lei, ou seja, de
determiná-la através da representação de leis. Tratando especificamente da vontade humana,
ela é racional e sensível, isto é, pode transgredir a lei, mesmo a concebendo como
incondicional e inviolável.
Se a ideia de dever implica, em certo sentido, a noção de vontade boa, a ideia de
imperativo é que ajuda na compreensão da própria noção de dever. Imperativo é o princípio
por meio do qual o agente racional obriga-se a agir baseado em justificativas, isto é, em
razões:
O imperativo diz-me, pois, que ação das que me são possíveis seria boa, e
representa a regra prática em relação com uma vontade, que não pratica
imediatamente uma ação só porque ela é boa, em parte porque o sujeito nem
sempre sabe que ela é boa, em parte porque, mesmo que o soubesse, as suas
máximas poderiam contudo ser contrárias aos princípios objetivos duma
razão prática.10
A função do imperativo é, necessariamente, ordenar que a vontade siga aquilo que é
“bom”. Desse modo, para Kant, os imperativos podem ser divididos em dois tipos, de acordo
com a maneira pela qual ordenam, a saber, hipoteticamente ou categoricamente, conforme
examinaremos de forma mais detalhada no próximo tópico:
Como toda a lei prática representa uma ação possível como boa e por isso
como necessária para um sujeito praticamente determinável pela razão, //
todos os imperativos são fórmulas da determinação da ação que é necessária
segundo o princípio de uma vontade boa de qualquer maneira. No caso de a
ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é
hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como
10
KANT, I. Fundamentação, p. 50
15
necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa
vontade, então o imperativo é categórico.11
1.2. A distinção entre imperativos hipotéticos e o imperativo categórico
Segundo Kant, todos os imperativos classificam-se em hipotéticos ou categóricos:
Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os
hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como
meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se
queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma
ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com
qualquer outra finalidade.12
O imperativo será hipotético quando a obrigação racional for condicionada à adoção
de um fim particular pelo agente. Dessa maneira, o agente realiza algo em função de um fim
que é determinado de modo contingente. Podemos entender então, que hipotético aponta para
o caráter relativo da ação, ou seja, indica que ela poderia ter ocorrido de modo diferente em
relação ao que ocorreu. Dito de outro modo, tanto a ação como o fim poderiam ocorrer de
forma diversa.
No caso dos imperativos hipotéticos, é necessário que, no antecedente do condicional
exista, em primeiro lugar, um fim a ser alcançado, isto é, algo almejado pelo agente.Em
segundo lugar, tem de haver conhecimento da relação casual entre a ação ordenada e o
elemento desejado, ou seja, uma ciência que a ação ordenada constitui um meio para a
realização do objeto ansiado.
Esse fim desejado pelo agente poderá ser possível ou real, definindo assim dois tipos
de imperativos hipotéticos. Segundo Kant, "o imperativo hipotético diz pois apenas que a
ação é boa em vista de qualquer intenção possível ou real. No primeiro caso é um princípio
problemático, no segundo um princípio assertórico-prático"13. No caso de um fim possível o
imperativo será também chamado de regra da habilidade e, no caso de um fim real, o
imperativo poderá também ser denominado como conselho da prudência.
Norberto Bobbio explicita essa distinção:
11
Idem, p. 50
Idem, p. 50
13
KANT, I. Fundamentação, p. 50
12
16
(...) Destes dois tipos de imperativos hipotéticos, Kant chama os primeiros
técnicos (enquanto são próprios de cada arte), os segundos pragmáticos
(enquanto se referem ao bem-estar em geral). Um exemplo dos primeiros,
pode ser o seguinte: "Se você quer aprender latim, deve fazer muitos
exercícios"; um exemplo dos segundos: "Se você quer (ou porque você quer)
ser feliz, deve evitar qualquer excesso." Os primeiros prescrevem regras de
habilidade, os segundos regras de prudência. Concluindo, segundo Kant
existem três espécies de imperativos:
1) categóricos ou morais, cuja fórmula é: "Você deve executar a ação A";
2) técnicos ou de habilidade, cuja fórmula é: "Se você quer alcançar B, deve
executar a ação A";
3) pragmáticos ou de prudência, cuja fórmula é: "Porque você deve alcançar
B, deve executar a ação A".14
Os imperativos hipotéticos problemáticos (que também podem ser chamados regras de
destreza), ordenam ações que são boas como meio para a realização de fins eventualmente
aguardados por determinados agentes. Assim, afirmar que a intenção é possível é o mesmo
que dizer que é contingente, ou seja, não consiste em uma intenção ou fim que o agente
necessariamente deva esperar. Em suma, não é sequer possível presumir que fins são esses,
por esse motivo a relação entre antecedente e consequente é problemática. Por outro lado, os
imperativos hipotéticos assertóricos (que também podem ser chamados conselhos de
prudência), ordenam ações que são boas como meio para a realização de fins
realmente/verdadeiramente aguardados pelo agente.
É fundamental, no entanto, esclarecer que, seja no imperativo hipotético problemático,
quando o fim consiste em uma intenção somente possível, seja no imperativo hipotético
assertórico, quando o fim consiste em uma intenção real, estamos diante de princípios
empíricos, isto é, que se fundamentam em um juízo empírico e num juízo analítico, ou ainda,
em princípios materiais, pois só se pode saber pela experiência quais objetos são almejados e
quais inclinações se quer atender. Entretanto, os princípios materiais não são cabíveis para
atribuição de valor moral a uma determinada ação, pois o imperativo que ordena que o sujeito
venha agir de acordo com a lei moral não pode estar fundado em princípios materiais,
devendo basear-se em algum princípio formal, que é a lei moral.
Ao inverso dos imperativos hipotéticos, o imperativo categórico é aquele que
representa uma ação como objetivamente necessária por si própria, sem relação com qualquer
outro fim. Desse modo, a ação não é utilizada como meio para a realização de alguma
finalidade, mas sim, é representada como boa em si. O imperativo categórico é independente
14
BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. Brasília: Editora
UNB, 1997, p. 65
17
da satisfação de qualquer condição e, não se relaciona com os fins que desejados, mas apenas
com o princípio do qual ela deriva. Segundo Kant:
Há por fim um imperativo que, sem se basear como condição em qualquer
outra intenção e atingir por um certo comportamento, ordena imediatamente
este comportamento. Este imperativo é categórico. Não se relaciona com a
matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o
princípio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na ação reside
na disposição (Gesinnung), seja qual for o resultado. Este imperativo podese chamar o imperativo da moralidade.15
O imperativo categórico que ordena a ação objetivamente necessária por si mesma,
isto é, independente de qualquer fim possível ou real na base da ação, é válido enquanto um
princípio prático que ordena necessariamente. Para Kant: "(...) O imperativo categórico, que
declara a ação como objetivamente necessária por si, independentemente de qualquer
intenção, quer dizer sem qualquer outra finalidade, vale como princípio apodíctico
(prático)"16.
O imperativo será categórico quando a obrigação for incondicional, o que se traduz
para Kant na expressão: quando ela é necessária e universal. Do ponto de vista da moralidade,
o agente tem que agir dessa, e não de qualquer outra maneira. Nesse sentido, a lei moral é o
princípio supremo que vale previamente para uma vontade boa. Logo, a lei moral é o
princípio da vontade perfeita que age sempre e incondicionalmente de acordo com tal
princípio. Nesse sentido, para tal vontade, a lei não precisa ser um imperativo, uma vez que
existe coincidência entre ela e a moralidade. Entretanto, para uma vontade imperfeita, assim
como a vontade humana, que nem sempre age incondicionalmente em conformidade com a lei
moral, esta última precisa valer para ele como um imperativo categórico.Vejamos Kant:
(...) se pensar um imperativo categórico, então sei imediatamente o que é
que ele contém. Porque, não contendo o imperativo, além da lei, senão a
necessidade da máxima que manda conformar-se com esta lei, e não
contendo a lei nenhuma condição que a limite, nada mais resta senão a
universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da ação deve ser
conforme, conformidade essa que só o imperativo nos representa
propriamente como necessária.17
15
KANT, I. Fundamentação, p. 52
KANT, I. Fundamentação, p. 50-51
17
KANT, I. Fundamentação, p. 58-59
16
18
Quando a vontade é imperfeita, a lei moral apresenta-se na forma de um dever ser, ou
seja, na forma de um imperativo. É a razão prática que, pela lei moral, expressa na forma do
imperativo categórico, determina a vontade imperfeita, dando-lhe competência racional.
Nessa esteira, para que o agir de uma vontade imperfeita possua valor moral, a lei tem
que se fazer valer na forma de um dever. Tal dever é expresso no imperativo categórico. A
vontade deve ser determinada pelo imperativo categórico pois, essa é a maneira como a lei
moral está aplicada a uma vontade imperfeita. O valor moral não se encontra na relação da
vontade com a matéria da ação, mas no próprio princípio, ou seja, na determinação da vontade
pelo imperativo categórico.
Partindo da premissa de que toda lei prática representa uma ação possível enquanto
boa, entendemos que no caso de uma ação ser boa apenas como meio para alguma outra coisa,
o imperativo correspondente será o hipotético; contudo, no caso de uma ação ser representada
enquanto boa em si mesma, então o imperativo correspondente será o categórico. Norberto
Bobbio explica os imperativos hipotéticos e o categórico, tornando mais fácil a compreensão
a partir de exemplos:
Uma vez dito que as leis da conduta humana são preceitos, Kant distingue o
gênero "preceito" em duas espécies: categóricos e hipotéticos. Categóricos
são os que prescrevem uma ação boa por si mesma, como por exemplo:
"Você não deve mentir", e chamam-se assim porque são declarados por meio
de um juízo categórico. Hipotéticos são aqueles que prescrevem uma ação
boa para alcançar um certo fim, como por exemplo: "Se você quer evitar ser
condenado por falsidade, você não deve mentir", e chamam-se assim porque
são declarados por meio de um juízo hipotético. Por sua vez, os imperativos
hipotéticos distinguem-se em duas subespécies, segundo o fato de que o fim
seja, como diz Kant, possível ou real, isto é, com nossas palavras, segundo o
fato que o fim seja tal que sua obtenção ou não-obtenção seja indiferente (e
portanto seja lícito buscá-lo ou não), como é, por exemplo, o fim de aprender
o latim; ou seja tal que dependa de uma necessidade natural, de modo que
seja possível afirmar que todos os homens coloquem-no de fato, como, por
exemplo, a felicidade. (...)18
Os imperativos são princípios práticos objetivos pensados em função de uma vontade
racional imperfeita. Seguindo o entendimento de Guido Antônio de Almeida, no caso do
imperativo categórico, a mesma fórmula,mas para uma vontade que não se especifica como
sensivelmente afetada, é o que Kant denomina somente como lei moral:
(...) Tendo mostrado que o princípio moral, qualquer que seja o seu
conteúdo, tem de ser concebido como um "imperativo categórico", válido
para toda vontade imperfeitamente racional, Kant propõe-se mostrar também
18
BOBBIO, Norberto. p. 64-65
19
que é possível determinar a priori o conteúdo de um imperativo categórico a
partir do mero conceito de um imperativo categórico. A tese kantiana neste
ponto é, pois, que é possível derivar a fórmula (que exprime o conteúdo) de
um imperativo categórico a partir da mera consideração da condição que as
máximas de nossas ações devem satisfazer para adquirir um valor moral e,
assim, serem prescritas (como lícitas, proibidas ou exigidas) por um
imperativo categórico.19
Desse modo, fala-se não em imperativo, mas em lei moral, na hipótese do princípio
ser pensado em relação a uma vontade perfeita, especificamente aquela que não é afetada pela
sensibilidade, ou a uma vontade em geral, em que não importa se é ou não afetada. Assim, a
lei moral, ainda que tenha o mesmo conteúdo que o imperativo correspondente, se refere a
conceitos significativamente distintos de vontade, embora intrinsecamente relacionados.
A vontade racional perfeita parece idêntica a uma vontade puramente racional, sendo
esta uma vontade que sempre conforma suas máximas a princípios racionais puros. A lei
moral, por conseguinte, como princípio incondicional, é equivalente a um princípio livre de
condições empíricas, ou puramente racional. Por sua vez, a vontade perfeitamente racional
consiste na vontade que age necessariamente sob a lei moral.
Feita a distinção entre princípios práticos objetivos, que são os imperativos ou leis,
cabe analisarmos a seguir, os princípios práticos subjetivos, que são as máximas, com o
escopo de entendermos a afirmação de Kant de que as fórmulas do princípio moral servem
não apenas para representá-lo, ou seja, torná-lo compreensível como um princípio prático
objetivo, mas também e sobretudo para torná-lo aceitável e aplicável como um princípio
prático subjetivo.
Na Fundamentação, Kant nos mostra que a máxima da ação constitui um princípio
subjetivo do querer e o princípio objetivo do querer constitui uma lei prática. No entanto,
aponta ainda, que o princípio objetivo, isto é, a lei prática, caberia também como princípio
prático subjetivo, ou máxima, se a razão possuísse domínio exclusivo sobre o homem. Isso
sugere que um princípio objetivo (lei prática) pode ser um princípio subjetivo (máxima).
No tocante à validade, conforme exposto, uma máxima refere-se a um princípio
subjetivo, distinguindo-se de uma lei prática que é referente a um princípio objetivo. Isso
porque, enquanto uma lei prática é válida para todo ser racional, estabelecendo um princípio
orientador por meio do qual ele deve agir, a máxima é uma regra prática fundada em
consonância com as inclinações e disposições naturais da pessoa, ou seja, um princípio que
19
ALMEIDA, Guido Antônio de. p. 33
20
não possui validade necessária para a vontade de todos os indivíduos, assim como exposto por
Guido Antônio de Almeida:
(...) é possível fazer duas outras distinções: [i] entre leis (dizendo o que é
bom fazer, isto é, o que temos razão de fazer de preferência a não fazer) e
imperativos (dizendo o que devemos fazer, mesmo que de fato não o
façamos); [ii] entre princípios objetivos (leis ou imperativos, dizendo o que
devemos fazer) e princípios subjetivos (máximas, dizendo o que de fato
queremos fazer, ou seja, as regras de preferência que de fato aplicamos
quando fazemos uma escolha qualquer). (...)20
Se uma máxima pressupõe a conduta de um indivíduo, então, a partir dessa máxima é
plenamente possível analisar as suas ações quanto à moralidade. Ante o exposto, entendemos
que apenas um ser capaz de adotar máximas poderá ser classificado como moral ou imoral.
Uma máxima será considerada moral quando estiver em conformidade com a lei
prática, podendo ser tida, enquanto tal, como universal, nos termos do descrito por Guido
Antônio de Almeida:
(...) A forma das máximas, diz Kant, consiste na sua universalidade, pois é
por sua universalidade que uma máxima se distingue de intenções
particulares e contingentes (isto é, o que eu quero aqui e agora). É
precisamente por sua universalidade que a máxima se constitui como um
princípio subjetivo da vontade, isto é, uma regra geral dizendo o que eu
quero mais do que qualquer outra coisa e servindo para a deliberação acerca
do que fazer em cada situação particular. (...)21
Cabe esclarecer, no entanto, que a máxima será universalizada somente formalmente e
não positivamente, isto é, a universalidade atinge apenas a forma da ação e não a ação
propriamente dita.
Para Kant, os princípios práticos do agir podem ser, de um lado, subjetivos ou
máximas, caso a condição for considerada pelo indivíduo como válida apenas para a vontade
dele. De outro lado, eles podem ser objetivos ou leis práticas, caso a condição for considerada
válida para a vontade de todos os seres racionais. Nesse último caso, ela também pode ser tida
como a lei da moralidade, sendo apresentada aos entes racionais sensíveis como um dever. No
entendimento kantiano, a lei prática consiste em prescrições da forma como se deve agir, não
se tratando, no entanto, de como se age. Para Kant é possível agir por dever, respeitando a lei
prática.
20
ALMEIDA, Guido Antônio de. Immanuel Kant: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução
com introdução e notas. ed. cidade: ano. p. 32
21
ALMEIDA, op. cit., p. 33-34
21
Agir conforme o dever denota que a ação praticada é correta, uma vez que,
aparentemente, ela está em conformidade com as regras práticas do dever, todavia não é
executada por dever. Já, agir por dever significa que a ação é praticada exclusivamente por
respeito à lei.
As noções de dever e de imperativo categórico irão compor o núcleo da teoria da
obrigação moral de Kant. O dever enquanto obrigação significa a exigência posta pela
vontade para se deixar determinar, racional e livremente, pela lei moral. O respeito é
entendido como a consciência dessa exigência, em outras palavras, é a consciência da
subordinação da vontade a uma lei.
O dever não constitui uma lista daquilo que se deve ou não fazer, ao contrário,
constitui uma forma que deve valer para todas as ações morais. Essa forma é imperativa. O
imperativo vale incondicionalmente e sem exceções para todas as situações de todas as ações
morais. Em função disso, o dever é um imperativo categórico que ordena incondicionalmente,
constituindo uma lei moral interior.
Segundo Kant, o imperativo categórico é traduzido na fórmula geral: “Age em
conformidade somente com a máxima que possas querer que se torne uma lei universal”. Isto
é, o ato moral é aquele que se realiza com a consonância entre a vontade e as leis universais
que ela dá a si própria:
Uma vez que a universalidade da lei, segundo a qual certos efeitos se
produzem, constitui aquilo a que se chama propriamente natureza no sentido
mais lato da palavra (quanto à forma), quer dizer a realidade das coisas,
enquanto é determinada por leis universais, o imperativo universal do dever
poderia também exprimir-se assim: Age como se a máxima da tua acção se
devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza.22
O imperativo categórico não exprime o conteúdo particular de uma ação, mas a forma
geral das ações morais. As máximas evidenciam a interiorização do dever, uma vez que, este
nasce da razão e da vontade legisladora universal do agente moral. A concordância entre a
vontade e o dever é o que Kant chama de vontade boa que quer o bem.
Agir segundo uma máxima universalizável não significa não fazer aos outros o que
não desejamos que nos façam a nós, nem mesmo a fazer aos outros o que desejamos que nos
façam a nós. Esses imperativos são hipotéticos, pois resultam na dependência de um desejo.
Ora, a universalidade do imperativo categórico tem por característica abstrair a máxima da
22
KANT, I. Fundamentação, p. 59
22
particularidade dos meus desejos. Assim, se devo não mentir, não é porque desejo que
ninguém minta para mim, mas porque, considerada em si mesma, a mentira não pode ser
desejada universalmente. E essa é uma impossibilidade racional. Desse modo, quaisquer
razões que a sustentassem num caso particular seriam razões para, em outro caso particular,
não a querer.Nesses termos, na visão de Ricardo R. Terra, a máxima será moral quando puder
ser universalizável:
(...) o imperativo categórico, como a própria expressão indica, comanda
absolutamente. Uma de suas formulações (presente na Fundamentação da
metafísica dos costumes) é a seguinte: "Age apenas segundo uma máxima tal
que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal", a máxima
sendo uma regra que elaboramos para nós mesmos quando vamos agir, de
modo que a questão está em saber se essas regras são morais ou não. A
máxima será moral quando for universalizável. O imperativo é o
procedimento para testar essas regras subjetivas, isto é, para testar sua
capacidade de universalização.(...)23
É importante esclarecer que quando afirmamos que uma ação para que seja moral não
se funda nos resultados pretendidos, não implica dizer que a ação para que tenha valor moral
não possa ter um fim. Toda ação é composta de um fim. No entanto, o valor moral da ação
não está localizado no fim, em outras palavras, o resultado da ação não interfere em nada na
atribuição de valor moral. O que realmente considera-se é a intenção.
A máxima que estabelece uma ação nada mais é do que o querer uma ação, o intento
de praticá-la. A máxima está presente no princípio da vontade, ou seja, é ela que justifica o
que fazer e o porquê fazer. Desse modo, entendemos que toda ação pode ser remetida a uma
máxima que a orienta. Quando a máxima é objeto determinante da vontade prescrevendo algo
que, de fato se deve fazer, então ela é denominada imperativo.
Conforme o que já foi explanado, o valor moral de uma ação não se encontra
simplesmente na ação que se observa, porém antes nos princípios da ação e no princípio do
querer.Dessa maneira, cabe esclarecermos o que Kant entendia por princípio do querer, e
como ele justifica que o valor da ação está nesse princípio, buscando compreender com maior
clareza a relação entre o princípio do querer e máximas da ação.
Com base no pensamento kantiano, uma ação praticada precisamente por dever terá
seu valor verificado na máxima que a determina, e não no propósito que se deseja alcançar
com ela. Nessa esteira, entendemos a distinção feita por Kant entre o propósito da ação e a
máxima da ação.
23
TERRA, op. cit., p. 12
23
Se considerarmos a definição de máxima como algo relativo ao meu querer, que
determina ou move o meu querer fazer, podemos concluir que propósitos, assim como
máximas, constituem institutos que também determinam o meu querer fazer, ou seja, também
movem a minha vontade, traduzindo a ideia de que propósitos e máximas seriam
equivalentes. Todavia, Kant explica que o valor da ação por dever não está no propósito da
ação, mas em sua máxima.
A partir do artigo "Máximas" de Rüdiger Bittner, podemos analisar melhor a distinção
realizada por Kant com relação à propósitos e máximas. O autor utiliza-se de alguns exemplos
de máximas citados pelo filósofo para tratar da diferença entre os dois institutos.
De acordo com Bittner, a diferença se dá pois os propósitos não se submetem ao
critério de uma possível universalidade, ao contrário de uma máxima. Em outras palavras,
uma máxima pode ser universal, sendo assim, as máximas são mais gerais do que meros
propósitos:
"Regra querida pelo meu próprio querer" não pode, contudo, ser ainda uma
determinação suficiente da máxima. Objetou-se a Kant que também uma
regra como Eu quero jantar todas as segundas-feiras na casa dos amigos,
feita lei geral, revoga-se (se pressupomos que os visitados jantam comigo e
que só podemos jantar uma vez ao dia), apesar de não haver nisso nada de
imoral. Se comparamos essa regra aos exemplos kantianos de máxima, então
a evidente maior generalidade dos últimos torna plausível a defesa contra a
objeção, com a indicação de que regras como a do costume da noite de
segunda-feira são apenas propósitos, e não máximas, e por isso não estão
submetidas à prova moral direta da universalidade possível. O sucesso dessa
defesa depende do fato de que a diferença visível entre as máximas citadas
por Kant e tais propósitos específicos seja assegurada com critérios. A
primeira caracterização era de que máximas são mais gerais que propósitos;
a questão é, em que sentido o são.24
Surge então a necessidade de investigarmos em que sentido uma máxima é mais geral
que um propósito. Bittner diz que não é o caso de uma máxima abarcar uma quantidade maior
de situações, também não é o caso de uma máxima valer por um tempo maior, uma vez que,
os propósitos, bem como as máximas, podem valer e perdurar por uma vida toda. A possível
universalidade de uma máxima está muito além de questões quantitativas ou temporais.
Bittner indica como central a questão daquilo que podemos imaginar como
fundamento razoável do abandono de uma máxima por oposição à mudança de um propósito;
segundo ele, evidencia-se ainda mais a diferença entre propósito e máxima no que tange ao
24
BITTNER, Rüdiger. Máximas.
24
que podemos ter enquanto um fundamento razoável do abandono de uma máxima da ação por
oposição à mudança de um propósito.
O autor aponta três possibilidades de abandono de uma regra da ação. A primeira são
as circunstâncias particulares e externas; a segunda são as razões morais, que serão entendidas
apenas com a exata compreensão do conceito de máxima, e; por fim, o melhor conhecimento
dos fatos:
Por um lado, se todo meu agir de acordo com a regra estabelecida é frustrado
pelas circunstâncias, isso pode ser um motivo para abrir mão da regra. Mas
isso vale tanto para máximas quanto para propósitos. O avarento, que apesar
de todo seu esforço não consegue aumentar sua fortuna, pode, por fim, abrir
mão de sua máxima da mesma maneira que alguém que não desperta com o
mais barulhento dos despertadores pode abrir mão de seu propósito de
levantar-se cedo. De outro lado, há as razões morais, cuja influência porém
só é entendida quando se sabe o que são máximas. Em terceiro lugar, posso
mudar a regra de meu agir em razão de melhor conhecer os fatos
(Sachverhalte).25
Circunstâncias simples particulares e externas podem implicar na desistência de um
propósito, contudo, não é suficiente para o abandono de uma máxima, salvo se essa
circunstância externa vier acrescida de um reconhecimento dos fatos e, assim, não serão as
particularidades propriamente ditas que farão o indivíduo mudar sua regra de ação, mas antes,
o entendimento dos fatos gerais que serão trazidos à luz mediante tal particularidade.
Diante do exposto, Bittner identifica um ponto decisivo na distinção entre um
propósito do agir e uma máxima da ação. Supondo que uma melhor compreensão dos fatos
leva o homem a uma mudança da sua regra de ação, trata-se de uma máxima, tal
entendimento engloba o todo, não apenas esta ou aquela circunstância, caracterizando as
máximas da ação, na visão de Bittner, em regra ou plano de vida, sendo assim, mais gerais
que os propósitos, que são sempre relativos a determinadas particularidades.
Para o autor, quando se age segundo uma máxima (por meio de um princípio
determinante da ação), a máxima querida está sempre presente na decisão da ação. O que se
realizou ontem segundo uma máxima, deve ser o motivo de agir hoje e, estar presente em
todas as situações de um agir futuro. Nesses termos, estamos diante de um agir segundo
princípios, não de simples propósitos ou hábitos, possibilitando, assim, uma lei válida em
razão da ação.
25
BITTNER, Rüdiger. Máximas.
25
Bittner explica que se adotamos uma máxima e a queremos enquanto plano de vida do
nosso agir, não basta simplesmente tê-la querido uma única vez, isso descaracterizaria uma
máxima, é imprescindível um querer sem ressalvas:
"Agir segundo princípios " expressa essa forma de autodeterminação. Eu ajo
segundo um princípio, se quero um agir particular como adequado a uma
regra universal do meu agir. Isso, porém, somente é possível à medida que
quero como válida a própria regra universal. (...) o querer da regra universal
precisa estar presente na vontade particular. O que quis ontem como regra do
meu agir somente pode determinar-me hoje no meu fazer se ainda quero
sempre o universal, a saber, à medida que se trata de um agir segundo
princípios, e não apenas de um hábito naturalmente consolidado. (...) se agir
segundo princípios exige um querer dos mesmos, então não é suficiente
simplesmente tê-los uma vez querido: é preciso querer simultaneamente o
fazer particular e a regra universal. Isso significa que preciso, enquanto
quero o particular, querer o geral, e vice-versa. Agir segundo princípios
pressupõe uma vontade orientada por uma determinada universalidade que
lhe seja própria, e, em consonância com isso, direcionada a uma
particularidade adequada àquela. Pois apenas nessa unidade a vontade
particular toma o princípio como seu, e apenas o princípio próprio é um
princípio segundo o qual se pode agir.26
A lei prática determina a vontade objetivamente, ou seja, tal lei é válida
independentemente de como algo é visto/entendido por esse ou aquele sujeito, não
dependendo também de toda e qualquer particularidade, não possuindo nenhuma relação com
o querer deste ou daquele indivíduo, diferentemente dos propósitos aos quais somos
inclinados, que sempre estão ligados a certas particularidades.
Seguindo as lições de Kant, o que deve determinar a ação do homem objetivamente é
unicamente uma lei prática. Por outro lado, o que deve mover a vontade do homem (caso
exista preocupação em ser moral) subjetivamente é o exclusivo respeito por essa lei, isto é, a
máxima da ação, a qual pode expor excepcionalmente o princípio do querer. A adoção de uma
máxima da ação deve se dar à luz da lei prática objetiva. Conclui-se então, que a máxima da
ação está diretamente ligada ao "querer fazer" do agente envolvido na ação.
Ao analisar o entendimento de Kant sobre as máximas, Bittner parece ter descoberto a
subjetividade que é inerente a toda máxima da ação, como também, a relação existente entre a
máxima subjetiva e a objetividade da lei prática. O que é determinado através da máxima é o
querer. Bittner aponta que a diferença específica entre alguns conceitos da expressão máxima
citados por Kant consiste basicamente em sua subjetividade, isto é, no próprio termo subjetivo
e como ele é aplicado.
26
BITTNER, Rüdiger. Máximas.
26
A afirmação de que a máxima vale somente subjetivamente, aparentemente supõe que
a máxima determina apenas o querer de um só indivíduo, o querer de outro qualquer
indivíduo não está submetido à mesma máxima. Essa visão de subjetividade, onde a máxima
move apenas o querer de um indivíduo em particular, torna os termos subjetividade e
particularidade análogos. Todavia, Bittner entende que essa equivalência não é suficiente para
a definição de máxima subjetiva conforme expresso por Kant, isto é, não é suficiente para a
correta compreensão do termo máxima da ação em Kant.
Assim, Bittner identifica a problemática do equívoco de identificação das leis naturais
e máximas. Podemos dizer que leis naturais, assim como as máximas, determinam a ação.
Contudo, na determinação mediante a lei natural, é plenamente possível ignorar o querer e o
querer agir sempre do mesmo modo. Entretanto, para Bittner, isso não será possível quando
tratar-se de uma máxima. No caso de uma máxima da ação será possível haver uma lei prática
da qual se possa fazer mediante a máxima uma regra, ou seja, um princípio de ação querido e
adotado conscientemente.
Para Bittner, a máxima pode ser definida como um princípio que o indivíduo adota
como seu, dessa forma, não apenas possuímos uma máxima, mas antes, a adotamos e a
estabelecemos enquanto tal. No caso de existir uma preocupação com a moral, então, a lei
moral deve constituir parte determinante da adoção de máximas. Segundo Kant:
(...) Temos que poder querer que uma máxima da nossa ação se transforme
em lei universal: é este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral.
Algumas ações são de tal ordem que a sua máxima nem sequer se pode
pensar sem contradição como lei universal da natureza, muito menos ainda
se pode querer que devam ser tal. (...)27
O escopo de Kant, no momento da fundamentação da moralidade, era encontrar e fixar
uma lei moral objetiva, válida independente deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela
particularidade, ou seja, universal. Uma lei prática que determina objetivamente o agir do
homem.
Podemos então concluir, seguindo o entendimento kantiano, que no tocante ao valor
moral das ações humanas, classificamos as ações: de um lado, pelo princípio prático objetivo,
isto é, a lei prática por si só, e; de outro lado, pelo princípio prático subjetivo, ou seja, adoção
de máximas à luz da lei prática.
27
KANT, I. Fundamentação, p. 62
27
O princípio objetivo, ou lei prática, caberia também subjetivamente como princípio
prático, se o homem fosse pura razão, e a razão fosse inteiramente dona da faculdade de
desejar. Se o homem fosse pura razão, adotaria naturalmente a lei prática, todavia, como não
é, deve subjetivamente, não se deixando mover por seus desejos e impulsos, agir pelo respeito
à lei, o que sugere assumir a lei mediante sua máxima.
1.3. A solução do problema da obrigação moral a partir do conceito de autonomia da
vontade
A questão da autonomia da vontade, apresentada por Kant, possui importante papel na
exata compreensão do termo moral. Kant interioriza a origem da lei moral e demonstra que os
homens podem e devem agir moralmente pois, a lei moral é auto-imposta. Segundo Onora
O'Neill:
A mais elementar das dificuldades com a autonomia kantiana é a dificuldade
de compreender como pode haver uma concepção coerente de autonomia
que não seja nem política nem tampouco individualista. A concepção
kantiana de autonomia como caracterizando "uma vontade que impõe a lei
universal" parece dirigir para uma contradição imediata. Como nós podemos
até mesmo dar sentido a uma Fórmula da Autonomia que apela para "a ideia
da vontade de todo ser racional enquanto vontade universalmente
legislante?".28
Assim, a obrigação moral constitui o completo desenvolvimento do homem enquanto
ser racional. Na Fundamentação, Kant almeja justificar dedutivamente a autonomia a partir
do conceito de liberdade.
Para Kant, a obrigação moral é justificada através de uma dedução da lei moral como
imperativo categórico, e essa dedução é baseada na legitimidade da pressuposição da
liberdade como ideia da razão pura. A dedução citada já é considerada livre pois, não se trata
mais de derivar analiticamente a lei moral da liberdade da vontade de um ser racional puro,
mas sim, de demonstrar, para um ser racional sensível, que a lei moral não constitui uma
consequência analítica da liberdade de sua vontade e, em função disso, é necessário mostrar
por que para esse ser a lei moral somente pode valer como um dever, isto é, na forma de um
imperativo categórico.
28
O'NEILL, Onora. p. 03
28
A teoria da obrigação moral assegura a distinção entre um ser racional puro e um ser
racional sensível. Em decorrência dessa distinção, surge uma outra, entre uma vontade
perfeita, isto é, puramente racional; e, uma vontade imperfeita, isto é, afetada por inclinações
e desejos, conforme exposto acima. O ser racional puro, por ser membro apenas do mundo
inteligível, dispõe de uma vontade perfeita, que, por ser boa em si mesma, age sempre em
consonância com a lei moral, ao passo que o ser racional sensível, em função de compor
também o mundo sensível, dispõe de uma vontade imperfeita, que, por não ser boa em si
mesma, nem sempre irá querer e agir em conformidade com a lei moral.Vejamos o que
discorre Ricardo R. Terra:
(...) O homem, entretanto, deve ser considerado sob dois pontos de vista:
enquanto sensível, tem inclinações e apetites que o colocam no plano das
leis heterônomas naturais; ao mesmo tempo, enquanto inteligência, pertence
ao mundo inteligível, é autônomo. É legislador enquanto pertence ao mundo
inteligível, mas, como pertence também ao mundo sensível e está sujeito a
inclinações que o podem afastar da lei racional, esta é considerada como um
imperativo. (...) Cada um é legislador do ponto de vista inteligível; a
legislação é da razão pura, e todos são co-legisladores porque são racionais.
As leis jurídicas como as leis éticas provêm da mesma razão prática, e para
entendê-las deve-se adotar o mesmo ponto de vista, o do mundo inteligível;
mas, como os homens também pertencem ao mundo sensível, tanto as leis
éticas como jurídicas aparecerão como imperativos, e as ações conforme às
leis, como deveres.29
Agir, na visão de Kant, significa atuar sob o império de uma racionalidade normativa
que determina a ação conforme a autonomia da vontade; e, no caso da ação ser moral, ela será
solidária com o caráter normativo do imperativo categórico. Diante dessa situação, o dever
moral não apenas é compatível com a autonomia do sujeito, como também o elemento
probatório da sua condição com o agente moralmente livre. Dessa maneira, é possível
demonstrar que a liberdade e a submissão da vontade a uma legislação não constituem
conceitos opostos no tocante à moralidade. Aderir racionalmente à norma e universalizar a lei
impõem uma obrigação, a saber, o dever de obediência, que não fere a autonomia da vontade,
pelo contrário, confirma a liberdade.
O intuito de Kant é investigar e esclarecer o conceito moral de obrigação e
desenvolver a doutrina do imperativo categórico, como critério da moralidade, e da autonomia
da vontade como princípio supremo da moralidade. Segundo Kant, o homem habita dois
mundos distintos, a saber: o da natureza, isto é, do determinismo; e, o da moralidade, isto é,
da liberdade. Desse modo, se o homem pode e deve agir é porque possui autonomia para agir.
29
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 93
29
Nesse sentido, concluímos que a autonomia da vontade é compreendida como o princípio
supremo da moral:
(...) Pela simples análise dos conceitos da moralidade pode-se, porém,
mostrar muito bem que o citado princípio da autonomia é o único princípio
da moral. Pois desta maneira se descobre que esse seu princípio tem de ser
um imperativo categórico, e que este imperativo não manda nem mais nem
menos do que precisamente esta autonomia.30
Onora O'Neill, no artigo "Autonomia, pluralidade e razão pública", faz menção ao
entendimento kantiano sobre a autonomia da vontade:
Entretanto, Kant faz mais que afirmar que a ideia de legislação universal, ou
de autonomia, é coerente. Ele também afirma que ela é constitutiva da
moralidade: "o princípio da autonomia é o princípio da moral" (G 4:440).
Como vimos, ele não quer dizer que as formulações alternativas do princípio
supremo da moralidade são impossíveis: ao contrário, ele oferece um certo
número de formulações do Imperativo Categórico e afirma (de forma
controversa) que elas são equivalentes. O que ele quer dizer é que quaisquer
princípios da moralidade que não sejam equivalentes estarão subordinados à
Fórmula da Autonomia (ou, de forma equivalente, a uma das outras
formulações do Imperativo Categórico).31
É importante esclarecer que quando Kant rompe com o conceito de moral vigente,
busca o fundamento da obrigação moral na vontade humana autônoma, invocando a
característica atemporal e universal da vontade individual que está submissa à razão.
Seguindo ainda o entendimento de Onora O'Neill:
Duas características enquadram as discussões de Kant sobre a razão. A
primeira é a sua insistência que não existe "cânone da razão" dado de
maneira independente que estabelece o modelo para a razão humana. A
segunda é seu pensamento que diz que já que não temos modelos dados para
a razão, devemos construí-los, e isso é uma tarefa compartilhada, a ser
assumida por uma pluralidade de agentes livres.32
Desse modo, Kant vai partir de imperativos categóricos, isto é, de deveres que se
impõem sem condição à consciência. Pois, o dever imposto à vontade humana é um
mandamento puro da razão, que deve ser concomitantemente a priori e universal. Nesses
termos, Kant constrói o princípio da moralidade que deve estar presente na vontade humana
autônoma. Como vimos, à representação do princípio objetivo da vontade autônoma, Kant dá
o nome de "mandamento" e a sua fórmula, de "imperativo". Nas palavras de Ricardo R. Terra:
30
KANT, I. Fundamentação, p. 85-86
O'NEILL, Onora. Autonomia, pluralidade e razão pública. p. 04
32
O'NEILL, Onora. Autonomia, pluralidade e razão pública. p. 05-06
31
30
Como a noção de autonomia proporcionou uma solução para a questão do
vínculo da liberdade com a lei, resta explicar por que a lei moral e também a
jurídica são formuladas como imperativos. Se o homem é legislador, por que
pensar em termos de deveres de virtude e de deveres jurídicos? A lei moral
vale para todo ser racional, mas para os seres racionais limitados como os
homens que têm desejos e inclinações sensíveis, e por isso podem seguir
móbiles que não coincidem com a lei, a vontade não está sempre em
conformidade com a razão, daí a determinação da vontade segundo leis ser
uma obrigação (Nöthigung), e "a representação de um princípio objetivo,
enquanto obrigante para uma vontade, chama-se mandamento (da razão), e a
fórmula do mandamento chama-se Imperativo" (...)33
Segundo Guido Antônio de Almeida, a partir do conceito de imperativo categórico,
Kant avança em direção à definição do princípio supremo da moralidade:
Com a formulação do imperativo categórico como um "princípio da
autonomia" do sujeito moral, Kant dá um passo avante na exposição
metafísica do princípio supremo da moralidade. Com efeito, a análise do
conceito de vontade como a capacidade de querer com base em princípios,
isto é, como razão prática, torna possível apresentar o princípio moral que
extraíra em FMC I do conceito dado de moralidade, como um imperativo
categórico, válido para toda vontade imperfeitamente racional e, por
conseguinte, para a vontade humana. Com o quê desarma a objeção de que a
exigência de agir por dever seria impraticável para uma vontade que, por ser
afetada por inclinações sensíveis, necessitaria do estímulo dessas inclinações
para fazer o que delibera com base em regras de preferência. Com a análise
da noção de imperativo categórico e a determinação a priori do seu conteúdo
com base na consideração da forma e da matéria das máximas que podem
ser prescritas por um imperativo categórico, Kant determina agora a
propriedade que deve ter uma vontade capaz de querer o que é prescrito por
um imperativo categórico, a saber, a autonomia ou a capacidade de legislar
por si mesma.34
Kant buscou estabelecer uma moral autônoma, partindo de imperativos categóricos,
isto é, de deveres que se impõem sem condições à consciência, baseados na razão pura. A
metodologia criada por Kant tem como mérito conferir à moralidade uma autonomia
conceitual fundada em princípios a priori, ou seja, determinado por um intenso sentido de
dever, que nos é concedido a priori. Sobre essa explicação, Ricardo R. Terra afirma:
Assim, para formular o princípio supremo da moralidade, Kant distingue o
imperativo hipotético do categórico, sempre tendo em vista esse conceito
exigente de autonomia. Um imperativo é hipotético quando afirma que para
atingir um determinado fim deve-se usar certos meios. Esse não pode ser o
princípio da moral, pois os fins são postos de forma heterônoma (já que
33
34
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 92
ALMEIDA, Guido Antônio de. Immanuel Kant: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução com
introdução e notas. ed. cidade: ano. p. 35-36
31
podem visar desde a satisfação sensível até a salvação da alma segundo
determinada religião) e implicam certos meios necessários à sua realização.35
O princípio que garante o imperativo categórico como o critério para avaliar se uma
máxima é moral ou imoral, é a autonomia, justamente em função da ideia de uma legislação
universal e incondicionada da vontade que não carece de nenhum interesse.
Assim, para Kant, a autonomia da vontade é a propriedade da vontade de ser lei para si
mesma, e o princípio da autonomia encontra-se na escolha de máximas que estejam
compreendidas, concomitantemente, como leis universais, no ato de querer:
Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si
mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O
princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as
máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo,
como lei universal.36
Quando consideramos que a vontade está submetida somente a uma legislação que lhe
é própria, afirmamos que essa vontade é capaz de assumir uma lei, como uma causalidade
própria, no sentido de que ela, isto é, a vontade, pode ser independente do curso da natureza.
Na visão de Kant, esta possibilidade existe desde que a vontade tire a lei que a determina
apenas do modo legislador das máximas, abstraída de toda condição material, de forma que
restem somente o princípio racional e a universalidade das máximas como critério de tal lei.
Nessa esteira, a autonomia da vontade combinaria perfeitamente com o imperativo
categórico estabelecido por Kant e destinado a ser o critério que deve sobrepor todo o juízo
moral. As bases deste imperativo são justamente a forma da lei, abstraída de toda matéria, e a
universalização. Nesses termos, poderíamos afirmar que ao ordenar a universalização das
máximas abstraídas de seu elemento material, o imperativo categórico, já poderia supor essa
faculdade da vontade, segundo a qual ela é quem estabelece sua própria lei. O imperativo
categórico não possui poder maior nem menor do que essa autonomia. Apenas dessa maneira
é possível uma lei prática incondicionada, isto é, uma lei que tenha como fundamento único
este princípio incondicionado que denomina-se autonomia da vontade. Segundo Kant:
Assim o princípio, segundo o qual toda a vontade humana seria uma vontade
legisladora universal por meio de todas as suas máximas, se fosse
seguramente estabelecido, conviria perfeitamente ao imperativo categórico
no sentido de que, exatamente por causa da ideia da legislação universal, ele
se não funda em nenhum interesse, e portanto, de entre todos os imperativos
35
36
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 12
KANT, I. Fundamentação, p. 85
32
possíveis, é o único que pode ser incondicional; ou, melhor, ainda,
invertendo a proposição: se há um imperativo categórico (i. é uma lei para a
vontade de todo o ser racional), ele só pode ordenar que tudo se faça em
obediência à máxima de uma vontade que simultaneamente se possa ter a si
mesma por // objeto como legisladora universal; pois só então é que o
princípio prático e o imperativo a que obedece podem ser incondicionais,
porque não têm interesse algum sobre que se fundem.37
A afirmação da autonomia enquanto único princípio necessário para a moralidade está
fundada basicamente na oposição entre autonomia e heteronomia. A expressão heterônoma
constitui toda e qualquer determinação exterior à vontade, portanto, nas palavras de Kant:
Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro
ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação
universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na
natureza de qualquer dos seus objetos, o resultado é então sempre
heteronomia. Não é a vontade que então se dá a lei em si mesma, mas é sim
o objeto que dá a lei à vontade pela sua relação com ela.38
Para Ricardo R. Terra, a autonomia exige uma lei que não seja imposta pelo objeto e
ainda, que a vontade não seja influenciada por inclinações sensíveis:
A autonomia em sentido estrito exige não apenas que a lei não seja dada pelo
objeto, como também que a vontade não seja determinada por inclinações
sensíveis. Se a vontade busca a lei fora dela mesma, ou é determinada por
inclinações sensíveis, deixa de ser legisladora e passa a ser heterônoma. A
vontade, se é autônoma, só pode ser determinada objetivamente pela lei
moral e subjetivamente pelo respeito a esta lei.39
Segundo Kant, a autonomia da vontade é imprescindível à moralidade da ação e a
vontade é autônoma quando é determinada pela lei moral que ela dá a si mesma; logo, se a
vontade for determinada por qualquer outro motivo externo a ela, é heterônoma e, assim,
deixa de ser vontade moral. Vejamos o que diz Norberto Bobbio:
É notória a importância que tem a distinção entre autonomia e heteronomia,
para a distinção da moral de Kant. Segundo Kant, a vontade moral ou é
autônoma ou não é moral: qualquer objeto que determine a vontade de
maneira heterônoma, tira à vontade e à ação que deriva disso a qualidade de
moral. Todos os sistemas morais tradicionais que colocaram como fim da
vontade humana ou a perfeição ou a felicidade, ou qualquer outro bem, são
ilegítimos: não entenderam o caráter profundo e autêntico da moralidade.40
37
KANT, I. Fundamentação, p. 74
KANT, I. Fundamentação, p. 86
39
TERRA, Ricardo R. Kant& o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 20-21
40
BOBBIO, Norberto. p. 63
38
33
Kant entende que a ação moral é autônoma porque o homem é o único ser que possui
capacidade de se determinar segundo leis que a própria razão estabelece, e não em
conformidade com leis dadas externamente como na heteronomia. Contudo, para que seja
possível a vida moral autônoma, é fundamental partir do pressuposto da liberdade da vontade.
No entendimento kantiano, a vontade é a faculdade de autodeterminação das próprias
ações, de acordo com determinadas leis preconcebidas. Essa definição traduz a ideia de uma
vontade legisladora geral. O exercício da vontade, por conseguinte, pressupõe a liberdade.
Segundo Kant, a liberdade existe sob a forma de uma ideia, produzida pela razão. Ela não
possui realidade fora da razão, todavia sem ela não haveria vontade. A razão é prática pois
torna-se a causa determinante da vontade. Dessa maneira, a própria moralidade encontra-se na
concepção de liberdade que se expressa através da vontade.
Kant deixa claro na Fundamentação da metafísica dos costumes, que uma moral para
que seja válida universalmente tem que estar subordinada apenas ao conceito da vontade de
um ser racional em geral, e, assim, não estar baseada na natureza empírica do homem. O fato
de ser independente de uma natureza empírica implica a ideia de um querer, próprio do ser
racional, criado imediatamente a partir da autonomia da vontade:
Este princípio da humanidade e de toda a natureza racional em geral como
fim em si mesma (que é a condição suprema que limita a liberdade // das
ações de cada homem) não é extraído da experiência, - primeiro, por causa
da sua universalidade, pois que se aplica a todos os seres racionais em geral,
sobre o que nenhuma experiência chega para determinar seja o que for;
segundo, porque nele a humanidade se representa não como fim dos homens
(subjetivo), isto é como objeto de que fazemos por nós mesmos efetivamente
um fim, mas como fim objetivo; o qual, sejam quais forem os fins que
tenhamos em vista, deve constituir como lei a condição suprema que limita
todos os fins subjetivos, e que por isso só pode derivar da razão pura.41
A definição de autonomia está diretamente ligada à ideia de liberdade, contrapondo-se
à ideia de heteronomia. A autonomia do homem se expressa na sua capacidade de
autodeterminação, na sua vontade legisladora de estabelecer e alcançar determinados fins no
mundo social. Para tal, isto é, para atingir esses fins, deverão ser utilizados certos meios.
Compõe o imperativo categórico a exigência de que um ser humano não pode ser visto nem
tido como um meio, mas sim, unicamente, como um fim em si. Isso implica que toda a
legislação oriunda da vontade legisladora do ser humano necessita ter como finalidade o
homem, ou mais especificamente, a vida e a dignidade do ser humano. Nesse sentido, o
41
KANT, I. Fundamentação, p. 72
34
imperativo categórico orienta-se segundo um valor fundamental e universal, a saber: a
dignidade humana. Segundo Kant:
(...) É que o princípio de toda a legislação prática reside objetivamente na
regra e na forma da universalidade que a torna capaz de ser uma lei (sempre
lei da natureza); subjetivamente, porém, reside no fim; mas o sujeito de todos
os fins é todo o ser racional como fim em si mesmo: daqui resulta o terceiro
princípio prático da vontade como condição suprema da concordância desta
vontade com a razão prática universal, quer dizer a ideia da vontade de todo
o ser racional concebida como vontade legisladora universal.42
A trilha que nos leva até a moralidade, inicia-se numa faculdade, que é a razão. O
objetivo principal desta faculdade é estabelecer a distinção entre os mundos sensível e
inteligível; e quando ordenada, ultrapassa as barreiras que a sensibilidade possa criar ao
entendimento. Nesse sentido, o homem constitui um ser que participa tanto do mundo
sensível quanto de mundo inteligível. Não pode ser considerado membro somente do mundo
inteligível pois, se assim fosse, todas as suas ações seriam perfeitas e em consonância com a
vontade pura. Também não é mero membro do mundo sensível pois, se assim fosse, suas
ações seriam fundadas somente em apetites e inclinações. Segundo Ricardo R. Terra:
(...) O homem, entretanto, deve ser considerado sob dois pontos de vista:
enquanto sensível, tem inclinações e apetites que o colocam no plano das
leis heterônomas naturais; ao mesmo tempo, enquanto inteligência, pertence
ao mundo inteligível, é autônomo. É legislador enquanto pertence ao mundo
inteligível, mas, como pertence também ao mundo sensível e está sujeito a
inclinações que o podem afastar da lei racional, esta é considerada como um
imperativo. (...)43
O homem, enquanto componente do mundo inteligível, pode agir conforme a
determinação de uma causalidade livre instituída por sua vontade, e constituir um campo da
moralidade que se orienta por princípios universais válidos para todos os indivíduos que,
como ele, são criaturas do mesmo modo racionais e livres. Se o homem pertencesse
exclusivamente ao mundo inteligível, a sua vontade seria sempre uma vontade pura. Todavia,
como membro também do mundo sensível, se encontra submetido às influências e
determinações de desejos e leis com força da ação heterônoma dos fenômenos que afetam a
sua vontade.
Cabe salientar também que, para Kant, não há nenhum princípio supremo da
moralidade autêntico que, independente de toda a experiência, não tenha de fundar-se apenas
42
43
KANT, I. Fundamentação, p. 72
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 93
35
na razão pura. Isso porque, para Kant, somente o ser racional possui a capacidade de agir
segundo a representação das leis, ou seja, segundo princípios, uma vez que apenas ele é
detentor de uma vontade autônoma. Para que o ser humano possa derivar as ações das leis é
indispensável a razão, fato esse que leva Kant a concluir que a vontade não é outra senão a
razão prática. Vejamos o que diz Onora O'Neill:
Kant afirma que apenas quando agentes livres disciplinam seu pensamento e
sua ação de maneira que outros possam seguir seu pensamento e prática
exemplificam os requisitos fundamentais da razão, ainda que escassos. Não
oferecemos razões se não oferecemos algo que pensamos que não pode ser
seguido pelas audiências pretendidas. A autonomia no pensamento não é
mais - nem menos - que a tentativa de conduzir o pensamento (fala, escrita)
por princípios pelos quais (consideramos) todos os outros a que nos
referimos também possam guiar seu pensamento (fala, escrita). A autonomia
na ação não é mais - e também nem menos - que a tentativa de nos
conduzirmos com base em princípios pelos quais (consideramos) que todos
os outros poderiam conduzir suas vidas. A Razão é, pois, não mais que uma
questão de esforçar-se por autonomia nas esferas do pensamento e da ação.44
Na visão de Kant, uma vontade livre e uma vontade sujeita a leis morais podem ser
entendidas como equivalentes, ao passo que uma vontade absolutamente boa é aquela onde
sua máxima pode ser tida como lei universal.
A razão prática e a liberdade podem ser consideradas fundamentais na filosofia
kantiana. E, liberdade para Kant constitui autonomia e, apenas o ser que pode agir sob o ideal
de liberdade é verdadeiramente livre. Em síntese, a razão prática enquanto vontade recebe de
si própria a direção. Para Onora O'Neill:
(...) A razão deve ser livre. Entretanto, se o uso livre da razão não é
disciplinado - se é sem lei - ele falha porque não pode ser seguido por outros.
Consequentemente, o único pensamento ou ação que não pode contar como
racional é aquele que estruturamos mediante a "forma da lei" - da
universalidade. Pensamento e ação racional devem ambos ser legiformes
(lawlike) (e não legal [lawfull], um erro de tradução comum que sugere uma
inexplicada fonte de razão ou legitimação).45
A ideia de autonomia para Kant pode ser analisada sob distintos ângulos. De modo
geral, ela significa a capacidade racional de atuar em consonância com leis que o homem dá a
si mesmo, através das quais ele age independentemente de ser determinado por causas
estranhas. Essa ação necessita do desígnio da vontade em submeter-se ou obedecer somente
as leis que o sujeito propõe para si. No entanto, ainda que ocorra a influência da heterônoma
44
45
O'NEILL, Onora. Autonomia, pluralidade e razão pública. p. 06
O'NEILL, Onora. Autonomia, pluralidade e razão pública. p. 06-07
36
das necessidades de um indivíduo afetado por impulsos sensíveis, ele pode agir com
independência, ou seja, movido por sua capacidade de autodeterminação e de auto-governo,
pelo qual ele pode controlar a si mesmo e estabelecer regras para o seu comportamento.
Assim, no entendimento de Kant, o caráter normativo da razão na prescrição de leis constitui
um princípio evidente e, consecutivamente, a obediência a estas leis que ela dá a si própria.
De outro modo, ela terá de sujeitar-se às leis que um outro lhe dá.
É em função de sua própria autonomia e liberdade que o homem impõe a si mesmo as
regras da moralidade como leis universais. A moralidade, segundo o entendimento kantiano,
obedece à autonomia da vontade. Por conseguinte, a vontade absolutamente boa é aquela que
concorda necessariamente com a autonomia e não simplesmente com a obrigação. Nesses
termos, a autonomia da vontade torna-se o princípio da moralidade. Para Onora O'Neill:
As conexões muito próximas entre razão, autonomia e moralidade no
pensamento kantiano podem agora, penso eu, serem apresentadas de forma
bastante simples. A autonomia, concebida de maneira kantiana, é a prática
de disciplinar o pensamento e a ação de maneira que possam ser seguidas
por outros - e se formos totalmente autônomos, por todos os outros. A
estrutura e a estratégia legiforme que os agentes autônomos incorporam no
seu pensamento e na sua vontade, consideradas abstratamente, são as
estruturas e estratégias básicas da razão, cujas quais todos os outros
princípios racionais são subordinados. As implicações mais determinadas da
vontade e da ação autônoma definem a gama de ações permissíveis e os
limites da vontade autônoma determinam os princípios da ação que há
motivos para rejeitar e assim fixam a forma básica dos princípios da
obrigação no interior de uma pluralidade.46
Imaginar um ser racional pressupõe a presença do instituto da liberdade. Logo, todo
ser dotado de razão e vontade age conforme a ideia da liberdade. Esta ideia implica a
consciência de uma moralidade onde os princípios subjetivos dos atos devem ser considerados
objetivamente de maneira a possuírem validade universal.
A lei moral não é normativa, nem legal. Toda ação moral decorre em função do
próprio sujeito que se impõe a necessidade de cumprimento das normas. Por esse motivo, o
real valor da lei moral encontra-se na liberdade, uma vez que, é por meio desta ideia que nos
afastamos de todo interesse empírico, nos tornando livres no nosso agir e atingindo uma
vontade absolutamente boa. Para Kant:
Podemos agora acabar por onde começamos, quer dizer pelo conceito de
uma vontade absolutamente boa. É absolutamente boa a vontade que não
pode ser má, portanto quando a sua máxima, ao transformar-se em lei
46
O'NEILL, Onora. Autonomia, pluralidade e razão pública. p. 09-10
37
universal, se não pode nunca contradizer. A sua lei suprema é pois também
este princípio: Age sempre segundo aquela máxima cuja universalidade
como lei possas querer ao mesmo tempo; esta é a única condição sob a qual
uma vontade nunca pode estar em contradição consigo mesma, e um tal
imperativo é categórico. E pois que a validade da vontade, como lei
universal para ações possíveis, tem analogia com a ligação universal da
existência das coisas segundo leis universais, que é o elemento formal da
natureza em geral, o imperativo categórico pode exprimir-se também assim:
Age segundo máximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por
objeto como leis universais da natureza. // Assim fica constituída a fórmula
de uma vontade absolutamente boa.47
É nesse contexto que Kant define o conceito de liberdade como "a chave da
explicação da autonomia da vontade". O ideal de liberdade nos remete à existência de
princípios a priori e, consequentemente, estes nos remetem à possibilidade de um imperativo
categórico.
O imperativo categórico expressa a autonomia da razão prática, que determina uma lei
moral absoluta e universal, segundo a qual o homem deve cumprir seus deveres não
simplesmente no escopo de obter vantagens ou qualquer outro fim, mas por respeito para
consigo mesmo.
47
KANT, I. Fundamentação, p. 80-81
38
Capítulo 2 – Uma aproximação entre o princípio supremo da moralidade e o princípio
universal do direito.
Introdução
O presente capítulo busca aproximar o princípio supremo da moralidade ao princípio
universal do direito. Esta análise ocorrerá através da retomada das análises realizadas no
primeiro capítulo sobre o imperativo categórico da moral e, em seguida, da distinção entre os
deveres jurídicos e os deveres éticos. O intuito é mostrar como o imperativo categórico da
moral é mais amplo que o direito e a ética, fundando a Metafísica dos Costumes.
A partir disso, iremos verificar como o direito inato, isto é, a liberdade, está fundado na
autonomia moral. Entretanto, mostraremos também que no âmbito do direito, apenas entrará
em questão a liberdade externa, ou seja, o livre-arbítrio. Por fim, examinaremos o princípio
universal do direito, que exprime-se sob a forma de um imperativo ou princípio metafísico da
moral que ordena a maneira pela qual as ações de todos os indivíduos devem poder
harmonizar-se reciprocamente de um ponto de vista externo.
2.1 O imperativo categórico da moral e a distinção entre direito e ética
Kant irá realizar na Metafísica dos Costumes uma divisão que o auxiliará na busca dos
princípios fundamentais da ética e do direito. Dessa maneira, toda legislação, seja ética ou do
direito, é composta por dois elementos: em primeiro, uma lei que representa uma determinada
ação como objetivamente necessária, isto é, como obrigatória para todo ente racional e,
consequentemente, que a constitui universalmente como um dever; e, em segundo, um móbil
que, subjetivamente, consiga unir àquela lei o fundamento determinante do arbítrio de cada
um, isto é, que associa à representação da lei objetiva, também um móbil subjetivo para a
ação prevista na lei, ou seja, um fundamento determinante do arbítrio:
A toda legislação (prescreva ela ações interiores ou exteriores e estas ou a
priori, através da mera razão, ou por meio do arbítrio de um outro)
pertencem dois elementos: primeiro, uma lei que representa objetivamente
como necessária a ação que deve ocorrer, ou seja, que faz da ação um dever;
39
segundo, um móbil que conecta subjetivamente o fundamento de
determinação do arbítrio para esta ação à representação da lei. Este é,
portanto, o segundo elemento: a lei faz do dever um móbil. Por meio do
primeiro, a ação é representada como dever, o qual é um mero conhecimento
teórico da possível determinação do arbítrio, quer dizer, da regra prática; por
meio do segundo, a obrigação de agir deste modo é ligada, no sujeito, a um
fundamento de determinação do arbítrio em geral.48
A ética, portanto, tem por objeto uma lei interna que faz da ação por ela determinada
um dever e, concomitantemente, exclusivamente desse dever faz também o móbil para a ação.
Isto é, a ética não admite nenhum móbil externo na determinação do dever, pois o único móbil
do qual utilizará para determinar-se no sentido da ação estabelecida por sua lei é o próprio
dever de assim proceder. De acordo com o que explica Ricardo R. Terra: "(...) Na ética o
móbil é o próprio dever: o princípio que leva a uma certa ação é a própria lei. A ação é
realizada não apenas conforme um princípio objetivo de determinação válido universalmente,
mas também pelo dever, com um sentimento de respeito pela própria lei moral"49.
O direito, entretanto, não inclui o próprio dever como móbil da sua ação, uma vez que
tal móbil será achado fora do próprio sujeito, constituindo uma ideia diversa da própria ideia
de dever e, por conseguinte, pode ter como móbil qualquer fundamento patológico da
determinação do arbítrio, sejam desejos ou inclinações. Segundo Ricardo R. Terra:
A lei jurídica, entretanto, admite um outro móbil que não a ideia do dever,
no caso, móbiles que determinam o arbítrio de maneira patológica (e não
prática ou espontânea), ou seja, por elementos sensíveis, que causam
aversão, pois a lei deve obrigar de alguma maneira eficaz. (...)50
Nas ações jurídicas, uma vontade é determinada por leis da razão, valendo-se
exclusivamente da liberdade do arbítrio em seu uso externo, e são definidas como ações dadas
por legalidade. Nas ações éticas, em contrapartida, a vontade se vale da liberdade do arbítrio,
seja no uso externo ou interno. Dessa maneira, tanto a Ética quanto o Direito constituem
institutos que se encontram inseridos num conceito maior que é o de Moral e, somente o uso
interno ou externo da liberdade do arbítrio é que diferencia ações jurídicas das ações éticas,
ou seja, a distinção encontra-se nos móbiles.Vejamos Kant:
Em vista dos móbiles, portanto, toda legislação pode ser distinguida (mesmo
que concorde com outra legislação em vista da ação que ela torna dever,
como, por exemplo, no caso das // ações que podem ser exteriores em todos
48
KANT,
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 14
50
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 14
49
40
os casos): aquela legislação que faz de uma ação dever, e desse dever,
simultaneamente, um móbil, é ética. Mas aquela que não inclui o último na
lei e, portanto, também admite um outro móbil que não a ideia mesma do
dever, é jurídica. Em vista desta última, vê-se facilmente que esse móbil,
distinto da ideia do dever, tem de ser extraído dos fundamentos de
determinação patológicos do arbítrio - as inclinações e aversões - e, dentre
estas últimas, das aversões, porque deve ser uma legislação que obriga, não
uma atração que convida.51
Ricardo R. Terra descreve acerca do direito e da ética:
(...) Moral em sentido amplo compreende a doutrina dos costumes
englobando tanto o direito quanto a ética. Por isso, não se podem tomar
como correlatos os pares moral/direito e moralidade/legalidade. Uma leitura
que os identificasse levaria a uma separação entre direito e ética sem apontar
para os elementos comuns. Quanto à ética (Ethik), Kant assinalou que
significava a doutrina dos costumes em geral, e posteriormente passou a
designar apenas parte dessa, a doutrina da virtude (Tugendl., VI, 379). Como
divisão da doutrina dos costumes (da moral), o direito se opõe à ética
(doutrina da virtude), e não à moral, que é mais ampla que esta; o que pode
confundir é a denominação de moralidade ao acordo das ações com as leis
éticas. (Convém notar que nem sempre Kant mantém os sentidos das
palavras tal como foram firmados aqui, o que evidentemente não facilita a
tarefa do leitor.)52
Nesses termos, concluímos que são os móbiles das ações que irão determinar as
distinções na classificação das legislações e, por conseguinte, a legislação que faz de uma
ação um dever e desse mesmo dever, concomitantemente, um móbil, é uma legislação ética,
enquanto que a legislação que não inclui em seu móbil o dever, mas apenas, inclinações e
desejos, é uma legislação puramente jurídica. Nesse diapasão, uma legislação jurídica tem de
ser uma legislação que atue, exatamente para cercear ou reprimir as inclinações e desejos,
conforme aduz Kant:
Os deveres segundo a legislação jurídica só podem ser deveres externos, pois
essa legislação não exige que a ideia desse dever, que é interior, seja por si
mesma fundamento de determinação do arbítrio do agente e, visto que ela
sempre necessita de um móbil conveniente à lei, só pode ligar esta última a
móbiles externos. A legislação ética, em contrapartida, converte também as
ações internas em deveres, mas sem excluir as externas, estendendo-se antes
a tudo o que, em geral, é dever. Entretanto, precisamente porque a legislação
ética inclui em sua lei o móbil interno da ação (a ideia do dever), cuja
determinação não precisa entrar de modo algum em uma legislação externa,
a legislação ética não pode ser externa (nem sequer a de uma vontade
divina), ainda que admita como móbiles, enquanto deveres em sua
51
52
KANT, 219
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p.77-78
41
legislação, os deveres que se baseiam em outra, a saber, na legislação
externa.53
Segundo Ricardo R. Terra, a exposição do dever como móbile para as legislações irá
estabelecer sua classificação entre ética e jurídica, uma vez que, os deveres em consonância
com a última estão expostos externamente, logo, mediante uma legislação também externa, ao
passo que o jurídico não exige que a ideia do dever, que sendo uma ideia é sempre interna,
seja fundamento determinante do arbítrio do agente, podendo ser apenas o ditame da lei
externa que, dessa maneira, culminará num dever jurídico, enquanto que o dever exposto
numa legislação ética compulsoriamente deverá ser interno, entretanto, não se pode excluir a
possibilidade de ser colocado também externamente.:
(...) A distinção dos dois campos vai se localizar na diferença do móbil: "a
legislação que faz de uma ação um dever e, ao mesmo tempo, deste dever
um móbil (Triebfeder) é ética. Mas aquela que não inclui o móbil na lei, e
por conseguinte admite também um outro móbil que não a ideia do dever ela
mesma, é jurídica" (Rechtsl., VI, 219). Na primeira, o móbil, ou seja, "o
princípio subjetivo do desejar" (Grundl., IV, 427, Abril, p. 228), é o próprio
dever. A ação é realizada não apenas conforme um princípio objetivo de
determinação válido universalmente, mas também é realizada pelo dever,
com um sentimento de respeito pela própria lei moral. Assim, o móbil é o
respeito pela lei moral; apenas este móbil é basicamente ético. A lei jurídica,
entretanto, admite um outro móbil que não a ideia do dever, no caso, móbiles
que determinem o arbítrio de maneira patológica (e não prática ou
espontânea), ou seja, por sentimentos, sensíveis, que causam aversão, pois a
lei deve obrigar de alguma maneira eficaz. Retomando a distinção já feita,
no plano jurídico há legalidade, ou seja, a correspondência da ação com a lei,
mesmo que o móbil seja patológico; e no plano ético há moralidade, em que
esta correspondência não é suficiente, sendo exigido ainda que o móbil da
ação seja o respeito pela lei.54
Para Kant, todos os deveres são deveres jurídicos ou deveres de virtude. Vejamos:
Todos os deveres são ou deveres jurídicos (officia iuris), isto é, aqueles para
os quais é possível uma legislação externa, ou deveres de virtude
(officiavirtutis, s. ethica), para os quais não é possível uma tal legislação. Os
últimos, porém, não podem ser submetidos a nenhuma legislação externa
porque se dirigem a um fim que é simultaneamente dever (ou que é um dever
ter), mas nenhuma legislação externa pode conseguir que alguém se
proponha um fim (porque isto é um ato interno do ânimo); ainda que possam
ser ordenadas ações externas que levem a ele, sem que o sujeito as tome
como um fim para si.55
Ricardo R. Terra descreve a distinção entre a legislação jurídica e a legislação ética:
53
KANT, 219
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p.78
55
KANT, 239
54
42
(...) Segundo a legislação jurídica, os deveres são exteriores e seus móbiles
também, o que possibilita o julgamento do cumprimento ou não da ação e
também os meios de forçar sua realização. Como a legislação ética exige que
o móbil seja o respeito à lei, ela não pode ser uma legislação exterior, pois
não se pode determinar a intenção por leis exteriores, dado que a intenção
não pode ser controlada por um juiz que não seja o próprio agente.
Entretanto, a legislação ética pode admitir deveres de uma legislação
exterior e fazê-los seus, assim, todos os deveres pertencem de alguma forma
à ética. (...)56
Entretanto, em função da legislação ética incluir o próprio móbil interno da ação, isto
é, a ideia do dever, cuja determinação não pode em nenhuma hipótese desembocar na
legislação externa, uma tal legislação não pode ser externa, sob pena de heteronomia, um
princípio rejeitado por Kant, assim, nem mesmo uma vontade divina poderia impor uma
legislação ética, ainda que, uma autêntica legislação ética também admita como móbiles
deveres que, enquanto na condição de deveres éticos possam igualmente radicar noutra
legislação, como por exemplo, numa legislação jurídica. Segundo Kant:
Disso se infere que todos os deveres, simplesmente por serem deveres,
pertencem à ética, mas nem por isso sua legislação está sempre contida na
ética, estando antes a de muitos deles fora da mesma. Assim, a ética ordena
que eu cumpra o compromisso assumido em um contrato, mesmo que a
outra parte não pudesse forçar-me a isso: ela apenas toma como dada a lei
(pacta sunt servanda) e o dever correspondente a ela da doutrina do direito
//. Portanto, a legislação segundo a qual as promessas feitas devem ser
cumpridas não se encontra na ética, e sim no Ius. A ética ensina somente o
seguinte: se é também suprimido o móbil que a legislação jurídica une com
aquele dever, a saber, a coerção externa, a ideia do dever sozinha já é
suficiente como móbil.57
Desse modo, todos os deveres são, antes de qualquer coisa, deveres éticos; todavia,
nem sempre a legislação que os contêm estará compreendida na legislação ética, ao inverso,
as legislações de muitos deveres éticos estão fora de uma tal legislação. Nesses termos, a
legislação que contêm uma determinação para o cumprimento de promessas será encontrada
no Ius, não na ética, isto é, sem a lei jurídica não existiria uma coerção externa, e a legislação
ética não poderia, de imediato, obrigar o cumprimento do compromisso adquirido uma vez
que, esta coerção apenas poderá ser encontrada na lei jurídica "pacta sunt servanda", que
conduz o dever adequado àquela legislação ética. Entretanto, a ética ensina que embora não
houvesse coerção possível, através da legislação jurídica associada àquele dever, ou seja,
mesmo que inexistisse qualquer possibilidade de determinação externa do arbítrio, por meio
56
57
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 79
KANT, 220
43
de coerção, a simples ideia do dever bastaria como móbil para a determinação da vontade no
sentido do seu cumprimento, isto é, bastaria o dever de virtude, conforme demonstrado por
Kant:
(...) Pois se não fosse assim, se a legislação mesma não fosse jurídica, se o
dever que dela nasce não fosse propriamente, portanto, um dever jurídico (à
diferença do dever de virtude), então o cumprimento da fidelidade
(conforme sua promessa em um contrato), as ações de benevolência e a
obrigação em relação a elas se colocariam em uma mesma classe, o que de
modo algum deve ocorrer. Manter sua promessa não é dever de virtude, e
sim um dever jurídico a cujo cumprimento se pode ser coagido. Cumpri-lo
também quando nenhuma coerção precisa ser temida, contudo, é uma ação
virtuosa (prova de virtude). A doutrina do direito e a doutrina da virtude não
se distinguem tanto por seus diferentes deveres, mas, antes, pela diferença da
legislação, que liga um ou outro móbil à lei.58
E, nas palavras de Ricardo R. Terra, os deveres dividem-se em doutrina do direito e
doutrina da virtude:
(...) Os deveres de virtude e os deveres jurídicos subordinam-se aos éticosgerais; por isso, divide-se o "sistema da doutrina geral dos deveres em
doutrina do direito (ius), o qual pode compreender leis externas, e a doutrina
da virtude (ethica), que não pode compreendê-las" (Tugendl, VI, 379).
Direito e virtude participam da doutrina dos costumes e têm os mesmos
fundamentos últimos, o que é consequência da unidade da razão prática, as
duas legislações são provenientes da autonomia da vontade.59
Ante o exposto, a ética, ou em outras palavras, a doutrina da virtude, e a doutrina do
direito, não se diferenciam tanto por conterem deveres distintos, mais pela diferença de
legislação de uma e outra, que associa um ou outro móbil ao dever, pois, enquanto a
legislação ética associa a determinação da vontade unicamente ao móbil da virtude, a
legislação do direito afeta o arbítrio porque tem como móbil também a possibilidade da
utilização da força externamente.
A diferença entre os deveres éticos, ou deveres da virtude, e os deveres jurídicos, é
que a compulsão externa para o dever jurídico é moralmente possível, enquanto o dever de
virtude é fundado na livre coerção própria.
No entendimento de Kant, a legislação ética jamais poderá ser exterior, mesmo
podendo conter também deveres manifestados exteriormente, e, a legislação jurídica é aquela
58
59
KANT, 220
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 80
44
que poderá ser exterior pois, sendo a origem do dever unicamente uma ideia, primeiramente
essa ideia tem que ser dada no mundo interno do agente:
A legislação ética é aquela que não pode ser externa (quando muito os
deveres podem ser também externos); a jurídica é a que também pode ser
externa. Assim, manter sua promessa conforme ao contrato é um dever
externo, mas o mandamento de fazê-lo unicamente porque é dever, sem
levar em consideração um outro móbil, pertence apenas à legislação interior.
A obrigação, portanto, não pertence à ética como um tipo particular de dever
(um tipo particular de ações às quais se é obrigado) - tanto na ética como no
direito ela é um dever externo -, mas porque a legislação, no caso referido, é
uma legislação interior e não pode ter nenhum legislador externo. (...)60
Nessa esteira, o conceito de obrigação não pertence à ética como um tipo particular de
dever ou como um tipo particular de ações a que estamos obrigados, mas sim unicamente a
uma legislação jurídica pois, embora a ética inclua também a existência de um dever exterior
como o do atendimento de uma promessa, quando tratar-se de uma obrigação contratual
pertencerá à doutrina do direito, uma vez que a ética não admite legislador externo:
(...) Por essa mesma razão, os deveres de benevolência estão contidos na
ética, ainda que sejam deveres externos (obrigações referidas a ações
externas), porque sua legislação só pode ser interior. - A ética certamente
tem seus deveres particulares (por exemplo, os deveres para consigo
mesmo), e também deveres em comum com o direito - jamais, porém, o
modo da obrigação. Pois realizar ações simplesmente porque são deveres e
transformar o princípio do dever mesmo em móbil suficiente do arbítrio,
venha ele de onde vier, é o que é próprio da legislação ética. // Há realmente
muitos deveres éticos-diretos, mas a legislação interior torna éticos-indiretos
também todos os deveres restantes.61
Portanto, a ética possui também deveres comuns com o direito, embora não na forma
de obrigação como este; e, é em razão disso que os deveres de benevolência se incluem na
ética, mesmo sendo deveres exteriores, e, logo, obrigações referentes a ações externas, não
obstante a sua legislação apenas poder ser interna, pois não existe possibilidade alguma de
coação para se praticar uma benevolência, sob pena de se extinguir a própria ação como típica
ação de benevolência. Segundo Ricardo R.Terra:
Há deveres que são diretamente éticos, mas os deveres jurídicos, na medida
em que são deveres e dizem respeito também à legislação interior, são
indiretamente éticos. Por exemplo, cumprir um contrato é um dever jurídico,
tanto assim que alguém pode ser obrigado por uma coerção externa a
efetivá-lo; mas, se o móbil externo não pode, eventualmente, ser exercido,
mesmo assim no plano ético continua a ser um dever o cumprimento do
60
61
KANT, 221
KANT, 221
45
contrato, com a diferença de que, neste caso, a ação seria virtuosa, e não
apenas conforme ao direito. "A doutrina do direito e a doutrina da virtude se
distinguem não tanto pelos deveres diferentes, como pela diferença da
legislação, que liga um ou outro móbil à lei" (Rechtsl., VI, 220). Apesar de
poder ter deveres comuns com o direito, a ética não tem um modo de
obrigação exterior como o direito.62
As ações éticas, mesmo podendo ser realizadas também por dever externo, são aquelas
que convertem o próprio dever no único móbil para sua realização, independente de onde vem
o dever, ainda que de uma legislação jurídica, isso porque, uma ação ética não considera para
sua realização uma também possível coerção, mas considera apenas o dever, de modo que se
pode considerar existirem muitos deveres éticos diretos, mas a legislação interior faz também
com que todos os demais deveres jurídicos sejam, antes, deveres éticos indiretos.
Kant irá expor outros conceitos que servirão para construir uma doutrina do direito,
diretamente ligados a uma razão que é prática, isto é, às ações humanas, como por exemplo,
obrigação, dever, entre outros conceitos que contêm os princípios necessários para a
verificação do lícito e do ilícito que existe nas relações dos entes racionais entre si:
Obrigação é a necessidade de uma ação livre sob um imperativo categórico
da razão. (...) O fundamento da possibilidade dos imperativos categóricos,
todavia, reside em que eles não se referem a nenhuma outra determinação do
arbítrio (através da qual se possa atribuir-lhe um propósito), mas unicamente
à sua liberdade.
Permitida é uma ação (licitum) que não é oposta à obrigação. E essa
liberdade, que não está limitada por nenhum imperativo oposto, chama-se
autorização (facultas moralis). Torna-se evidente, a partir disso, o que não é
permitido (illicitum).
Dever é aquela ação a que cada um está obrigado. Ela é, pois, a matéria da
obrigação, e o dever pode ser o mesmo (segundo a ação), ainda que
possamos ser obrigados a ele de diversos modos.63
Um ato é uma ação dada sob leis da obrigação, e exige que o agente possa ser
considerado a partir da liberdade do seu arbítrio, isto é, que o ato seja dado em função da
plenitude do exercício externo de sua liberdade, para que se possa considerá-lo autor do efeito
e da própria ação, exigindo-se, então, conhecimento prévio da lei que instituiu uma obrigação.
Apenas assim, segundo Kant, podemos falar em ato lícito ou ilícito:
Denomina-se feita uma ação que esteja submetida às leis da obrigação e na
qual, portanto, o sujeito seja considerado segundo a liberdade de seu arbítrio,
Por meio de tal ato, o agente é considerado autor do feito, e este, juntamente
62
63
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 79
KANT,
46
com a ação mesma, podem ser a ele imputados se se conhece de antemão a
lei em virtude da qual pesa sobre ele uma obrigação.
Correto ou incorreto (rectumautminusrectum) é um feito em geral na medida
em que seja conforme ou contrario ao dever (factumlicitumautilli//-citum). O
dever mesmo, quanto a seu conteúdo ou sua origem, pode ser o que for. Um
feito contrario ao dever se chama transgressão (reatus).
Uma transgressão não intencional que, não obstante, pode ser imputada,
chama-se uma mera falta (culpa). A intencional (isto é, aquela que esta
ligada à consciência de ser ela uma transgressão) chama-se crime (dolus). O
que é certo segundo as leis externas chama-se justo (iustum), e o que não é
chama-se injusto (iniustum).64
Na visão de Kant, o homem, em função de constituir o único ser detentor de uma
capacidade racional que o distingue dos demais seres da natureza, não pode contar entre as
coisas que possuem um preço, porém, unicamente como um ser que conta uma dignidade. Tal
dignidade que é conferida a todo homem por causa de suas faculdades racionais,
desenvolvidas e possibilitadas pela liberdade, torna-o também um ente sujeito à lei moral,
que, conforme já explanado, é a única que pode mostrar ao homem sua liberdade prática.
Kant (apud Bobbio, 1997, p. 85) fez ainda, uma divisão em sua doutrina do direito,
distinguindo o direito privado do direito público, fixando os domínios de ambos:
"A divisão do direito não reside (como é admitido às vezes) na distinção
entre direito natural e direito social, mas entre direito natural e direito civil,
dos quais o primeiro é chamado direito privado e o segundo direito público.
E, de fato, ao estado de natureza não é oposto o estado social, mas o estado
civil, porque pode muito bem existir uma sociedade no estado de natureza,
mas não uma sociedade civil (que garante o meu e o teu por meio de leis
públicas), e é por isso que o direito neste caso chama-se direito privado."65
A dedução dos conceitos de pessoas e coisas, irão dar ênfase à dignidade de todo
homem diante do simples preço que pode ser atribuído às coisas. Desse modo:
Pessoa é aquele sujeito cujas as ações são suscetíveis de imputação. A
personalidade moral, portanto, é tão somente a liberdade de um ser racional
submetido a leis morais (a psicológica não passando, porém, da capacidade
de tornar-se a si mesmo consciente da identidade de sua existência nos seus
diferentes estados), donde se segue que uma pessoa não está submetida a
nenhuma outra lei além daquela que se dá a si mesma (seja sozinho ou, ao
menos, juntamente com outras).
Coisa é aquilo que é suscetível de imputação. Todo objeto do livre-arbítrio,
carente ele mesmo de liberdade, chama-se por isso coisa (res corporalis).66
64
KANT, 224
BOBBIO, Norberto. p. 85
66
KANT, 224
65
47
Todo indivíduo cujas ações são suscetíveis de uma imputação é, aos olhos de Kant,
uma pessoa, de maneira que a personalidade moral pode ser definida como a liberdade de um
ser racional sujeito a leis morais. Como ente moral e, concomitantemente, como ente físico,
provido de um arbítrio livre, uma pessoa não se submete a outras leis senão àquelas que ela
mesma se dá, seja sozinha, seja em conjunto com outras.
Aquilo que não pode ser suscetível de qualquer imputação, já que não é dotado de
personalidade moral e, pois, que não se pode atribuir-lhe liberdade, é, por esse exato motivo,
para Kant, uma coisa, uma vez que, somente pode afigurar-se como objeto do livre arbítrio de
outrem, precisamente porque necessita daquela faculdade que lhe garante personalidade moral
e, por conseguinte, uma dignidade. A própria humanidade constitui uma dignidade, e o
homem em nenhum caso poderá ser utilizado como meio, mas sempre como fim.
O fato de Kant ter dividido o estudo das especificidades das legislações do direito e da
ética, não implica dizer que elas têm fundamentos distintos da moral, pois, conforme aduz
Ricardo R. Terra, "... as duas legislações são provenientes da autonomia da vontade. Este é o
fundamento das duas legislações; o princípio supremo da doutrina dos costumes é o
imperativo categórico" 67 . "Embora distintos, o direito e a ética têm em comum o projeto
universalista da moral, da razão prática"68, sendo o direito a garantia da liberdade no agir
externo:
Por que, entretanto, a doutrina dos costumes (moral) é usualmente intitulada
doutrina dos deveres, e não também doutrina dos direitos, se uns se referem
aos outros? - A razão é esta: só conhecemos nossa própria liberdade (da qual
procedem todas as leis morais, portanto também todos os direitos, assim
como os deveres) através do imperativo moral, que é uma proposição que
ordena o dever e a partir da qual pode ser desenvolvida, depois, a faculdade
de obrigar aos outros, isto é, o conceito de direito.69
2.2. liberdade como autonomia, direito inato e livre-arbítrio
Primeiramente, é imprescindível ressaltar que no entendimento de Kant, a liberdade
constitui um conceito racional puro. No uso prático da razão, o conceito de liberdade
comprova sua existência por meio de leis derivadas da razão pura para efetivação de escolhas,
67
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 16
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 18
69
KANT, 239
68
48
que são provenientes de princípios práticos, os quais não dependem de quaisquer condições
empíricas, mostrando uma vontade pura no sujeito, da qual surgem os conceitos e as leis
morais:
O conceito de liberdade é um conceito puro da razão que, precisamente por
isso, é transcendente para a filosofia teórica, isto é, um conceito tal que não
lhe pode ser dado nenhum exemplo adequado em qualquer experiência
possível. Ele não constitui, portanto, objeto de nenhum conhecimento teórico
possível para nós, e absolutamente não pode valer como um princípio
constitutivo, mas unicamente como regulador e, na verdade, apenas como
um princípio meramente negativo da razão especulativa.No uso prático da
mesma, porém, ele prova sua realidade mediante princípios práticos que
demonstram, como leis, uma causalidade da razão pura para determinar o
arbítrio independentemente de todas as condições empíricas (do sensível em
geral), e que demonstram em nós uma vontade pura na qual os conceitos e
leis morais têm sua origem.70
Cabe agora voltarmos ao que vimos no capítulo anterior com relação à importância
das máximas, pois é em decorrência delas que o indivíduo deve intencionar suas ações. Para
Kant, o que deve ser considerado é o que conduz a ação, ou seja, a máxima propriamente dita.
O fundamento subjetivo da adoção de máximas deve ser um ato de liberdade, um ato de
escolha do ser racional. Segundo Bittner:
(...) Agir segundo máximas é um agir segundo a representação de leis porque
é um agir segundo leis que, essencialmente, primeiramente foram queridas.
Da representação de e do querer algo universal, contudo, apenas seres de
razão são capazes. "Ou segundo uma vontade": "ou" deve claramente ser
lido como "sive" - vontade é precisamente isto: agir segundo máximas. Com
essa definição, Kant encontra não simplesmente uma distinção
terminológica, mas afirma algo do fenômeno comumente designado desta
maneira: querer é mais do que simplesmente estar interessado em algo, o
querer aspira ao seu objeto sob um aspecto determinado.71
Em razão do modo como Kant coloca o princípio da adoção de máximas, efetuada
pelo arbítrio, não há concessão ao sujeito de neutralidade nas suas máximas. Embora oriundas
do desejo, as máximas subjetivas devem poder ser atribuídas a um ato de liberdade do
indivíduo.
Segundo Kant, na natureza não existe liberdade de escolha, as coisas são
essencialmente o que devem ser. No entanto, a expressão natureza não possui sentido oposto
ao termo liberdade pois, de forma contrária, não poderia atribuir ao livre-arbítrio a faculdade
de adoção de máximas. A moralidade solicita autonomia da vontade, uma escolha, um
70
71
KANT, 221
BITTNER, Rüdiger. Máximas.
49
princípio de adoção de máximas. No entanto, no campo natural, não cabe outra solução a não
ser submeter-se aos ditames da própria natureza.Diante do exposto, concluímos que o
fundamento subjetivo para adoção de máximas só poderá referir-se ao uso da liberdade. No
homem, apenas o arbítrio pode de fato ser tido como livre.
O livre-arbítrio não pode ser determinado por algo empírico e nem estar na
dependência de um fundamento externo de determinação. Ante essas condições exclusivas,
ele apenas poderá fundamentar-se na vontade livre. O arbítrio, enquanto capacidade de
escolha, é livre, seja para fazer a si mesmo agir em consonância com os ditames da vontade,
seja por subordinar tais ditames às exigências das inclinações. Segundo Kant, embora o
arbítrio do homem consista em tal possibilidade de escolha, ele deve ser determinado somente
pela vontade. E, é dessa vontade que procedem as leis determinantes do próprio arbítrio. O
arbítrio de um ser racional, embora suscetível à escolha, não pode ser determinado por outra
coisa, senão pelo mandamento da lei, da vontade.
Assim, o fundamento inicial da adoção de máximas, que, por sua característica, deve
sempre repousar no livre-arbítrio, não pode ser constituído em fato algum da experiência,
ainda que a liberdade humana se dê, positivamente, apenas na experiência.
Para Kant, moralidade e liberdade possuem conceitos recíprocos, isto é, supondo um
destes conceitos, o outro o seguirá necessariamente. Assim, vale relacionarmos os conceitos
de vontade, liberdade, autonomia, imperativo categórico e moralidade pois, estão
intrinsecamente ligados e, consequentemente ao supormos o primeiro, chegaremos ao último:
(...) A moralidade é pois a relação das ações com a autonomia da vontade,
isto é, com a legislação // universal possível por meio das suas máximas. A
acção que possa concordar com a autonomia da vontade é permitida; a que
com ela não concorde é proibida. A vontade, cujas máximas concordem
necessariamente com as leis da autonomia, é uma vontade santa,
absolutamente boa. A dependência em que uma vontade não absolutamente
boa se acha em face do princípio da autonomia (a necessidade moral) é a
obrigação. Esta não pode, portanto, referir-se a um ser santo. A necessidade
objetiva de uma ação por obrigação chama-se dever.72
A liberdade é encontrada na razão prática pura, isto é, na vontade autônoma. Para
Kant, a liberdade seria o fundamento da existência de leis práticas incondicionadas, ou leis
morais, entre as quais está a doutrina do direito:
Nesse conceito positivo (em sentido prático) de liberdade fundamentam-se
leis práticas incondicionais que se denominam morais. Para nós, que temos
72
KANT, I. Fundamentação, p. 84
50
um arbítrio que é afetado sensivelmente e, portanto, não se adequa por si
mesmo à vontade pura, mas com frequência lhe é resistente, essas leis são
imperativos (comandos ou proibições) e, na verdade, imperativos
categóricos (incondicionais) (...)73
Segundo o entendimento kantiano, vontade constitui uma espécie de causalidade dos
seres vivos, enquanto racionais, sendo considerada possível apenas em função da liberdade,
sua propriedade fundamental. Desse modo, os conceitos de vontade e liberdade estão ligados
por suas próprias definições.
Considerando a vontade como uma espécie de causalidade, o que a torna efetiva deve
ser uma lei. Não uma lei da natureza pois, as leis da natureza não são determinadas pela
própria vontade, são leis determinadas por outrem, enquanto as leis da vontade, ao contrário,
devem ser leis da liberdade.
Em virtude das leis da liberdade não serem leis da natureza, ou seja, não são
heterônomas, Kant afirma que devem ser leis da autonomia. Ante o exposto, concluímos
então, que a vontade deve estar submetida à lei da autonomia, isto é, em todas as ações, ela é
uma lei para si própria, agindo sempre de tal maneira que suas máximas são representadas
como leis universais. Assim, uma vontade autônoma é uma vontade obrigada pela lei moral
pois, existindo uma vontade verdadeiramente livre, ela deve ser moralmente obrigada e,
existindo uma vontade moralmente obrigada, ela será livre. Vejamos o exposto por Ricardo R.
Terra:
Kant entende a autonomia da vontade como "aquela sua propriedade graças
à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos
objetos do querer). O princípio da autonomia é, portanto, não escolher senão
de modo que as máximas da escolha estejam incluídas, simultaneamente, no
querer mesmo, como lei universal" (Fundamentação da metafísica dos
costumes). A autonomia em sentido estrito exige não apenas que a lei não
seja dada pelo objeto, como também que a vontade não seja determinada por
inclinações sensíveis. Se a vontade busca a lei fora dela mesma, ou é
determinada por inclinações sensíveis, deixa de ser legisladora e passa a ser
heterônoma. A vontade, se é autônoma, só pode ser determinada
objetivamente pela lei moral e subjetivamente pelo respeito a esta lei. O
móbil da vontade deve ser a própria lei; por isso, no plano ético, a ação é
realizada não apenas conforme o dever, mas por dever; pois o móbil é
incluído na lei, de forma que tem-se de cumprir a letra e também estar de
acordo com o espírito, ou seja, com a intenção.74
73
74
KANT, 222
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 20-21
51
Kant distingue a liberdade interna da liberdade externa, onde a esfera da ética vinculase à liberdade interna, e a esfera do jurídica vincula-se à liberdade externa. A liberdade
interna refere-se à faculdade de agir conforme leis que a nossa própria razão nos fornece; já, a
liberdade externa, remete-nos à faculdade de agir no mundo exterior, porém limitada pela
mesma liberdade presente nas demais pessoas. Desse modo, o âmbito da moralidade diz
respeito à liberdade interna e o âmbito da legalidade concerne à liberdade externa:
Essas leis da liberdade, à diferença das leis da natureza, chamam-se morais.
Na medida em que se refiram apenas às ações meramente exteriores e à
conformidade destas à lei, elas chamam-se jurídicas; mas, na medida em que
exijam também que elas próprias devam ser os fundamentos de
determinação das ações, então são éticas. Diz-se, portanto: a concordância
com as primeiras é a legalidade, com as segundas a moralidade da ação.75
O conceito de liberdade não pode ter validade como princípio constitutivo da razão
especulativa, mas unicamente como seu princípio regulador. Entretanto, no uso prático da
razão, o conceito de liberdade confirma sua existência através de princípios práticos, que são
leis de causalidade da razão pura para determinação de escolhas, independentemente de
quaisquer condições empíricas que denotam uma vontade que origina conceitos e leis morais
puras em nós. Exatamente por esse motivo, a liberdade interna encontra-se determinada na
moral. Ela se origina da liberdade interior do indivíduo, de onde se determina o querer, sendo
autônoma, em que o indivíduo está constituído de uma liberdade que apresenta impedimentos
que surgem dele próprio.
Um imperativo categórico que tem como intuito demonstrar o que é uma obrigação,
está baseado na seguinte premissa: "age com base em uma máxima que também possa ser
válida como uma lei moral". Nesses termos, o indivíduo deverá obedecer a um parâmetro que
seja aceito pelos demais indivíduos, do contrário não estará agindo moralmente. A liberdade
não é ilimitada, para ser liberdade ela deve possuir um parâmetro.
No sistema da obrigatoriedade moral de Kant, o indivíduo não tem a obrigação de
prestar contas à liberdade dos outros. Apenas é necessário que admita que cada semelhante
faça uso do seu livre-arbítrio.
A liberdade externa, segundo o entendimento de Kant, é caracterizada pelo direito e
provém do dever jurídico, por meio do qual assumimos responsabilidades diante dos outros.
75
KANT, 214
52
Kant tem por pressuposto de humanidade a racionalidade, pois conforme
observaremos, o filósofo tem a liberdade como um direito inato, isto é, ele parte da premissa
de que todo ente racional tem pleno direito à independência em relação ao arbítrio constritivo
de outrem:
O direito inato é apenas um único - A liberdade (a independência em
relação ao arbítrio coercitivo de um outro), na medida em que possa
coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal, é
esse direito único, originário, que cabe a todo homem em virtude de sua
humanidade.76
O direito inato é aquele que pertence a todos por natureza, não dependendo de
qualquer ato jurídico para ser estabelecido como direito, ou seja, por não exigir um ato
jurídico, não precisa de uma vontade unida de certo grupo para tornar-se um direito,
representando o que é internamente meu ou teu, isto é, a liberdade; ao contrário do direito
adquirido, que requer uma tal vontade, e representa o que é externamente meu ou teu. Falar de
direito inato equivale a falar em direito humano, uma vez que, pertence a todos em função da
própria condição de ser humano, independente de qualquer fator.
Com base no princípio kantiano do direito, a liberdade como direito inato exclusivo,
traduz a ideia de que cada homem é simultaneamente independente e igual no que tange ao
arbítrio de qualquer outro.
No direito não se realiza a autonomia da vontade, uma vez que o direito comporta
móbiles que introduzem a heteronomia. No entanto, isso não implica que o direito seja alheio
à autonomia da vontade. Embora os móbiles do direito o impeçam de realizar a autonomia por
inteira, como a virtude; a coerção jurídica não impede a liberdade, ao inverso, ela serve de
impedimento ao obstáculo que queira impedir a liberdade. Vejamos o diz Ricardo R. Terra:
(...) As leis jurídicas precisam ter condições de obrigar de maneira efetiva,
com a possibilidade de forçar com uma situação desagradável aqueles que
possam pretender infringi-la. O arbítrio é determinado por princípios
aversivos; as consequências por não cumprir a lei podem ser penosas, como
multas, prisão etc. Pode-se estar de acordo com a lei por si mesma, mas não
é isso que importa, e sim a conformidade da ação com a lei. Dessa forma, no
direito não se realiza a autonomia da vontade, como na ética, pois aquele
comporta móbiles que restringem a autonomia.
Contudo, isso não significa que o direito seja alheio à autonomia da vontade.
Ao contrário, desde que "toda heteronomia do arbítrio não fundamente por si
mesma nenhuma obrigação", a obrigação jurídica, bem como a exigência de
coexistência das liberdades segundo uma lei universal, deve basear-se na
razão prática. Apesar de os móbiles correspondentes impedirem o direito de
76
KANT,
53
realizar a autonomia completamente, como ocorre na virtude, a coerção
jurídica não impede a liberdade, pelo contrário, ela serve de "impedimento
ao obstáculo da liberdade". Deve haver, portanto, algo em comum entre a
liberdade como autonomia da ética e a liberdade jurídica.77
No tocante à relação entre liberdade e dever, não podemos vincular estritamente a
liberdade interna com os deveres para consigo mesmo e a liberdade externa com deveres para
com o próximo. Em um primeiro momento, somos responsáveis por todas as nossas ações
perante nossa própria consciência, e posteriormente, em determinadas situações, diante do
olhar dos outros. Vale lembrar que, no âmbito da ética, somos responsáveis frente a nós
próprios e, no âmbito do direito, somos responsáveis perante à coletividade. Nesse sentido,
podemos ter a liberdade interna atuando nos dois momentos distintos, isto é, na esfera da ética
e na esfera jurídica, apesar da relação jurídica ter como característica fundamental a
intersubjetividade. Tal relação precisa da presença outros seres humanos para a limitação
recíproca da própria liberdade externa.
Diante do exposto, no âmbito da legislação externa, as leis obrigatórias podem ser de
dois tipos: naturais e positivas. As leis externas naturais são aquelas cuja obrigação é
reconhecida a priori pela razão, mesmo que não exista nenhuma legislação jurídica dispondo
sobre ela. As leis externas positivas são aquelas cuja obrigação depende necessariamente de
uma legislação externa efetiva. Nesses termos, Kant entende que as leis positivas encontram
seu fundamento nas leis naturais, o que equivale dizer que o direito se fundamenta na moral:
Chamam-se leis externas (leges externae), em geral, as leis obrigatórias para
as quais é possível uma legislação externa. Dentre estas são de fato externas,
porém naturais, aquelas cuja obrigatoriedade, mesmo sem legislação
externa, pode ser reconhecida a priori pela razão; e aquelas, ao contrário,
que absolutamente não obrigam sem legislação externa efetiva (e que sem as
últimas, portanto, não seriam leis), chamam-se positivas. Pode ser pensada,
assim, uma legislação externa que contenha somente leis positivas, mas ela
deveria ser precedida, então, por uma lei natural que fundamentasse a
autoridade do legislador (isto é, a autorização para obrigar a outrem por
meio de seu mero arbítrio).78
Segundo Kant, do princípio da liberdade inata podem ser extraídas duas competências,
a saber: a igualdade inata, que consiste em poder obrigar aos outros, até o limite em que se
pode, por sua parte, ser obrigado; e a independência, onde a pessoa está autorizada a fazer aos
outros qualquer coisa que em si mesma não reduza o que é deles, enquanto não quiserem
77
78
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 21-22
KANT, 225
54
aceitá-la. Logo, a liberdade externa pontua que cada homem é simultaneamente igual e
independente em relação ao arbítrio impositivo de qualquer outro:
(...) as seguintes competências já estão no princípio da liberdade inata e dela
não se distinguem realmente (como membros da divisão sob um conceito
superior do direito): a igualdade inata, isto é, a independência que consiste
em não ser obrigado por outrem senão àquelas coisas a que também
reciprocamente se pode obrigá-los; por conseguinte, a qualidade do homem
de ser seu próprio senhor (sui iuris); de igual modo, a qualidade de ser um
homem íntegro (iusti) porque anteriormente a qualquer ato jurídico não fez
nada de incorreto; por fim, também a competência para fazer a outrem o que
em si não os prejudica no que é seu, supondo que eles não querem apenas
aceitá-lo, tal como simplesmente comunicar-lhes o seu pensamento, contarlhes ou prometer-lhes algo, ser verdadeiro e sincero, ou mentiroso e falso
(veriloquiumautfalsiloquium), simplesmente porque depende disso se irão ou
não crer nele.79
Kant estabeleceu a relação entre liberdade e arbítrio quando destacou a possibilidade
da liberdade ser considerada no sentido de autodeterminação pela razão. O arbítrio quando
determinado diretamente pela razão pura é o livre-arbítrio, o que significa dizer que o homem
é livre por ser racional.
Conforme nos empenhamos em demonstrar o conceito de moral, por meio do
imperativo categórico da moralidade, Kant buscou a possibilidade para a liberdade em sua
configuração positiva, através do direito ele procurará deduzir a possibilidade de se garantir
externamente aquela mesma liberdade, e, em consonância com o direito, as ações, ou
máximas para ações, que permitem que a liberdade de cada um seja preservada,
concomitantemente, a liberdade de todos, conforme uma lei universal, mediante possibilidade
de coação, isto é, a possibilidade de constrição do arbítrio.
Exatamente por esse motivo, Kant desenvolveu no § E da Introdução à doutrina do
direito, na Metafísica dos Costumes, a seguinte proposição:
O direito estrito pode ser representado também como a possibilidade de
uma coerção recíproca universal em concordância com a liberdade de cada
um segundo leis universais - Esta proposição quer apenas que o direito não
pode ser pensado como composto de duas partes, a saber, da obrigação
segundo uma lei e da competência para coagir daquele que abriga outrem
por meio de seu arbítrio, mas pode ter seu conceito imediatamente
estabelecido na possibilidade da ligação entre a coerção recíproca universal e
a liberdade de cada um.80
79
80
KANT, 238
KANT, 232
55
Diante do exposto, para Kant, o direito, sob uma concepção severa, não pode ser
concebido sendo constituído por dois elementos, a saber: de um lado uma obrigação
constituída por uma lei e, de outro lado, a faculdade de alguém coagir a todos, pelo seu
arbítrio, ao cumprimento de daquela obrigação. O conceito de direito apenas poderá ser
admitido sob a condição de que seja possível uma coação recíproca universal à liberdade de
cada um, isto é, somente como possibilidade de constrição do arbítrio de cada um, por todos,
reciprocamente, conforme uma lei universal da liberdade:
(...) Assim como o direito em geral só tem por objeto o que é externo nas
ações, o direito estrito, a saber, aquele que não está mesclado com nada
ético, exige apenas os fundamentos externos de determinação do arbítrio.
Pois então ele é puro e não se confunde com as prescrições da virtude.
Apenas o completamente externo, portanto, pode ser denominado um direito
estrito (restrito). Ele se fundamenta, de fato, na consciência da obrigação de
cada um perante a lei (...).81
Nota-se, então, que para Kant o conceito de direito pode ser identificado como a
vinculação e a constrição do arbítrio somente por fundamentos externos de sua determinação,
não se mesclando, portanto, com prescrições da virtude, só se podendo, dessa maneira,
denominar de direito, ao inteiramente externo, que também, segundo Kant, encontra seu
fundamento na consciência da obrigação de cada um, agora, contudo, conforme a lei jurídica,
logo, externamente.
Entretanto, vale frisar que o arbítrio, cujo exercício se quer garantir como livre através
da legislação jurídica, encontra seu fundamento naquele conceito positivo de liberdade
explicado através da moral, pois:
(...) Só conhecemos nossa própria liberdade (da qual procedem todas as leis
morais, portanto também todos os direitos, assim como os deveres) através
do imperativo moral, que é uma proposição que ordena o dever e a partir da
qual pode ser desenvolvida, depois, a faculdade de obrigar aos outros, isto é,
o conceito do direito.82
Não nos restam dúvidas de que o fundamento do direito em Kant só poderá ser
encontrado na liberdade, nesses termos, apenas se pode falar em direitos e deveres jurídicos,
pois o imperativo moral ordena, primeiramente, a moralidade como dever fundamental, a
partir do qual se tem a possibilidade de desenvolver, sucessivamente, a faculdade de obrigar
81
82
KANT, 232
KANT, 239
56
outros pelo direito, como garantia externa daquela personalidade e dignidade próprios de
todos os entes racionais. Segundo Norberto Bobbio:
É verdade que o direito é liberdade; mas é liberdade limitada pela presença
da liberdade dos outros. Sendo a liberdade limitada e sendo eu um ser livre,
pode acontecer que alguém transgrida os limites que me foram dados. Mas,
uma vez que eu transgrida os limites, invadindo com minha liberdade a
esfera de liberdade do outro, torno-me uma não-liberdade para o outro.
Exatamente porque "o outro é livre como eu, ainda que com uma liberdade
limitada, tem o direito de repelir o meu ato de não-liberdade". Pelo fato que
não pode repeli-lo a não ser por meio da coação, esta apresenta-se como um
ato de não-liberdade cumprido para repelir o ato de não-liberdade do outro,
e, portanto, - uma vez que duas negações afirmam -, como um ato
restaurador de liberdade. A coação é, pois, um conceito antitético com
relação à liberdade, mas enquanto surge como remédio contra uma nãoliberdade anterior, é negação da negação e, então, afirmação. Portanto, ainda
que seja antitética com relação à liberdade, a coação é necessária para a
conservação da liberdade.83
Assim, para Kant, o direito das obrigações, consoante o fixado em nosso ordenamento
civil, é possível, pois será edificada uma legislação externa que obriga o devedor ao
pagamento da dívida, não porque a própria razão deste o irá constranger, mas porque uma
legislação que o sujeita ao cumprimento de sua obrigação é compatível com a coexistência da
liberdade de cada um conforme uma lei universal. É, pois, à garantia externa do exercício
daquela liberdade prática que se destina o direito:
(...) Quando se diz, portanto, que um credor tem o direito de exigir o
pagamento da dívida a seu devedor, isso não significa que ele possa incutirlhe na mente que sua própria razão lhe obriga a esse pagamento, mas que
uma coerção que obriga todos a fazer isso pode muito bem coexistir com a
liberdade de cada qual, portanto também com a sua, segundo uma lei externa
universal: direito e competência para coagir significam, pois, a mesma
coisa.84
Vejamos o que diz Ricardo R. Terra:
Uma vez que o direito diz respeito às relações exteriores e não pode ter
como móbil o próprio dever, ele precisa de uma coerção exterior que exija a
realização de uma ação determinada.(No plano da virtude não há uma
coerção exterior, mas sim interna - a própria pessoa, como ser racional, se
coage.) Quando alguém que emprestou dinheiro a um outro tem o direito de
exigir a devolução, isso não significa que pode persuadi-lo a pagar a dívida,
mas que uma coerção legal pode forçar o devedor a isso; no caso, "direito e
competência para coagir significam a mesma coisa".85
83
BOBBIO, Norberto. p. 78
KANT, 232
85
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 18-19
84
57
2.3 O princípio universal do direito
Diante do exposto, procurando entender melhor o conceito de direito em Kant,
analisaremos a partir de agora, os princípios metafísicos da doutrina do direito:
O que é a Doutrina do Direito - Chama-se doutrina do direito (Ius) o
conjunto de leis para as quais é possível uma legislação externa. Se uma tal
legislação é efetiva, então ela é doutrina do direito positivo, e o versado
nessa doutrina, ou jurisconsulto (Iurisconsultus), chama-se perito em direito
(Iurisperitus) se conhece as leis externas também de maneira externa, isto é,
em sua aplicação aos casos que se apresentam na experiência. Esta última
pode tornar-se jurisprudência (Iurisprudentia). Sem que ambas estejam
juntas, porém, resta apenas a ciência jurídica (Iurisscientia). A última
denominação cabe ao conhecimento sistemático da doutrina do direito
natural (Iusnaturae), ainda que o jurisconsulto precise tomar da última os
princípios imutáveis para toda legislação positiva.86
Observamos que, para Kant, a doutrina do direito é o ius, ou o conjunto de leis que
estabelecem os entes racionais em suas relações externas com outros entes racionais, e assim,
leis que regulam as vidas das pessoas entre si, que irão dispor sobre a forma de aplicação dos
princípios morais universais, sendo que, ao conjunto de disposições que possibilita a
efetivação dessas leis na experiência, Kant dá o nome de doutrina do direito positivo.
Kant identifica já na primeira parte da Metafísica dos Costumes a existência de uma
dupla legislação que atua sobre o homem, enquanto consciente de sua própria existência e
liberdade, a saber, uma legislação interna e uma legislação externa. A primeira refere-se à
moral, obedecendo à lei do dever, de foro íntimo. Já a segunda, mostra-nos o direito, com leis
que possuem o escopo de regular as ações externas.
Kant nota que um dos critérios que irá distinguir a moral do direito é a razão pela qual
a legislação é obedecida. Afirma que a vontade jurídica é heterônoma pois, está condicionada
por fatores externos de exigência da mesma, enquanto que a vontade moral é autônoma, uma
vez que o móbil desta é o dever pelo dever.
Desse modo, a simples consonância com a norma, independente do móbil, encontra-se
no plano jurídico da legalidade.
86
KANT, 229
58
Por conseguinte, na visão de Kant, jurisconsulto é o versado em direito, do qual se
pode dizer também ser um jurisperito se conhecer as leis externas também no que tange à sua
aplicação aos casos apresentados na experiência, ou, a jurisprudência, isto é, o resultado da
prática reiterada de subsunção dos casos concretos à legislação. Sem a existência ao mesmo
tempo da jurisprudência e da doutrina do direito, restará apenas a ciência do direito, que, para
o filósofo, é o conhecimento sistemático da doutrina do direito natural.
Buscando encontrar o conceito de direito, Kant irá se valer da questão: "o que é o
direito?", tão insolúvel para o jurisconsulto quanto é para o lógico a pergunta: "o que é a
verdade?", de maneira que, se não quiser cair numa tautologia 87 , ou ser imediatamente
remetido para as leis de algum país em um determinado tempo, aquele que se interessar em
perguntar acerca do direito deverá indagar apenas o que seja de direito (quid sitius), ou seja, o
que dizem ou disseram as leis em um determinado lugar e num tempo determinado. Nesse
sentido, Kant distingue o que é de direito (quid sitius), daquilo que diz respeito ao justo e ao
injusto (iustum et iniustum):
O que é direito? Esta pergunta poderia muito bem colocar o jurisconsulto
em embaraço, se ele não quiser cair em tautologia ou, em vez de dar uma
solução geral, remeter ao que prescrevem as leis de um país qualquer em
uma época qualquer, assim como o lógico é posto em embaraço por aquele
desafio a que é chamado: o que é a verdade? O jurisconsulto pode ainda
muito bem declarar o que é de direito (quid sit iuris), quer dizer, o que dizem
ou disseram as leis em certo lugar e em certo tempo. Mas a questão de
também ser justo aquilo que as leis prescreviam, ou a questão do critério
universal pelo qual se pode reconhecer em geral o justo e o injusto (iustum et
iniustum), permanecem-lhe // totalmente ocultas se ele não abandona durante
algum tempo aqueles princípios empíricos e busca as fontes desses juízos na
mera razão (embora para tal aquelas leis lhe possam servir perfeitamente
como fio condutor) de modo a estabelecer os fundamentos de uma possível
legislação positiva.88
E, nas palavras de Otfried Höffe:
No interior da Doutrina do Direito (...), Kant contrasta claramente e parte
positiva da natural. No primeiro caso, trata-se da questio facti: o que é de
direito (quid sit iuris), "isto é, o que as leis em um certo lugar e em uma
certa época dizem ou disseram", no segundo, do que é "justo", contanto que
não se realcem casos singulares, mas sim o "critério universal, pelo qual se
pode conhecer em geral tanto o justo quanto o injusto (iustum et iniustum).89
87
Tautologia é um texto ou termo redundante. Refere-se a redundância.
KANT, 230
89
HÖFFE, Otfried. p. 205
88
59
Diante do exposto, concluímos que, em função disso não poderá reconhecer o justo ou
o injusto, se não abandonar os princípios empíricos da legislação e buscar as fontes desses
juízos na simples razão, unicamente onde se podem determinar os fundamentos para uma
legislação positiva, a qual, para Kant, é imprescindível para a garantia externa da liberdade.
Segundo Höffe:
A equivalência entre "doutrina do direito natural" e "critério para o justo e o
injusto" segue-se da própria tarefa de "a toda legislação positiva fornecer os
princípios imutáveis", ou seja, "estabelecer o fundamento de uma legislação
positiva possível". Este esclarecimento fornece, ao mesmo tempo, uma regra
de prioridade: a legislação positiva tem de regular-se pela natural, e não
inversamente. Pois: "Uma doutrina do direito simplesmente empírica (como
a cabeça de madeira na fábula de Fedro) é uma cabeça que talvez seja bela,
mas, que pena!, não tem cérebro." Normalmente, entende-se aqui a
expressão "doutrina do direito empírica" no sentido de ciência do direito
positivo ou jurisprudência, de tal modo que a ela Kant negaria sem hesitar
todo o cérebro (...). De fato, Kant dirige-se primariamente contra o próprio
direito positivo, na medida em que não se submete a princípios (morais), e
apenas secundariamente contra aquela teoria do direito positivista, que quer
deixar o direito livre de todas as pretensões morais.90
Kant esclarece que unicamente na simples razão podem ser encontrados os elementos
para a fundamentação de uma doutrina do direito pois, o imperativo categórico do direito diz:
"O direito, portanto, é o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode conciliarse com o arbítrio de outro segundo uma lei universal da liberdade"91.
Nos termos do direito em Kant, somente o conjunto das condições sob as quais é
possível o acordo dos arbítrios conforme uma lei universal da liberdade; isto é, em
consonância com o direito são unicamente as imputações externas que permitem a conciliação
da liberdade de um com a liberdade de outro, segundo uma lei universal da liberdade, então,
essa doutrina se encontraria, hodiernamente, mais próxima do ius.
Assim, para Kant, se o princípio supremo da doutrina dos costumes, ou seja, o
imperativo categórico da moral, constitui uma legislação que demonstra a liberdade, fornece
também o passo inicial para o imperativo categórico do direito, ou, princípio universal do
direito, que estabelece: "É correta toda ação que permite, ou cuja máxima permite, à
liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei
universal"92.
90
HÖFFE, Otfried. p. 206
KANT, 231
92
KANT, 231
91
60
A exemplo do que fizera Kant na dedução da lei moral determinando um imperativo
categórico moral, também para o direito apresentará um imperativo categórico, de sorte que o
mesmo fundamento da possibilidade de existência da lei moral, que é a liberdade, permitirá a
Kant a edificação de um princípio fundamental para o direito uma vez que, segundo o
filósofo, está em consonância com o direito toda ação, ou toda máxima da ação, que permita à
liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade do arbítrio de todos, de acordo com
uma lei universal. Nas palavras de Otfried Höffe:
(...) O conceito kantiano de direito é um padrão de medida, com o qual todas
as leis positivas são julgadas em sua legitimidade. Que somente aquelas
determinações do direito, que permitem a compatibilidade da liberdade de
um com a liberdade de todos os outros segundo leis estritamente universais,
são legítimas, produz um padrão de medida, que forma a contrapartida
jurídica do imperativo categórico familiar a nós. Ele obriga a comunidade da
liberdade externa à legislação universal exatamente da mesma maneira que o
imperativo categórico obriga a vontade pessoal em relação às máximas
postas por ela mesma.93
Dessa maneira, no entendimento kantiano, a conformidade com o direito exige
posturas externas dos agentes que permitam ao mesmo tempo a preservação da sua liberdade
e da liberdade de todos os demais entes racionais que estejam envolvidos, ao passo que a
conformidade com a lei moral exige postura interna que permita que a liberdade do indivíduo
seja preservada ante suas inclinações e impulsos:
O conceito de direito, contanto que se refira a uma obrigação a ele
correspondente (isto é, o conceito moral do mesmo), diz respeito,
primeiramente, apenas à relação externa, e na verdade prática, de uma
pessoa com outra na medida em que as ações de uma, como facta,podem ter
influência sobre as ações da outra (imediata ou mediatamente). Mas, em
segundo lugar, ele não significa a relação do arbítrio com o desejo do outro
(em consequência, também com a mera necessidade), como nas ações
benevolentes ou cruéis, mas sim unicamente com o arbítrio do outro. Em
terceiro lugar, não se leva de modo algum em consideração, nessa relação
recíproca do arbítrio, também a matéria deste, ou seja, o fim que cada um
tem em vista com o objeto que quer. Não se pergunta, por exemplo, se
alguém que compra de mim uma mercadoria, para seu próprio negócio, quer
ou não obter vantagem, mas pergunta-se apenas pela forma na relação entre
os arbítrios de ambas as partes, na medida em que ela é considerada
simplesmente como livre, e também se, com isso, a ação de um pode ser
conciliada com a liberdade do outro segundo uma lei universal.94
A total capacidade do exercício da liberdade de cada ente racional encontra-se tanto na
base da moral quanto na base do direito, e, nesse passo, unicamente uma mesma ideia de
93
94
HÖFFE, Otfried. p. 222
KANT, 230
61
liberdade, e não qualquer fundamento casuístico, constitui fundamento tanto da moral, quanto
do direito, cabendo ressaltar, outra vez, que a lei moral é a única que pode dar a conhecer ao
sujeito do direito a sua liberdade, logo, a lei moral é a que pode conferir ao direito o bem
fundamental a ser tutelado.
Consideremos a seguinte afirmativa feita por Kant:
Por conseguinte, se minha ação, ou em geral meu estado, pode coexistir com
a liberdade de cada um segundo uma lei universal, então age injustamente
comigo aquele que me impede disso, pois este impedimento // (esta
resistência) não pode coexistir com a liberdade segundo leis universais.95
Dela podemos extrair que o pressuposto da liberdade da coexistência de cada um com
todos, conforme uma lei universal para autonomia da vontade, ou moralidade, é o próprio
fundamento da possibilidade de minha ação ou o meu estado, ser segundo o direito e, então,
ofende-me, quem coloca um obstáculo qualquer, culminando em um impedimento a essa
minha condição, uma vez que essa resistência causa uma lesão em minha liberdade.
Por esse motivo, Kant ensina que faz parte do direito a faculdade de coagir, pois quem
opõe resistência a algo que contraria um efeito, não apenas concorda com esse efeito, mas
também o fomenta, e tudo que for contrário ao direito constituirá um obstáculo à liberdade,
daí sua faculdade de coagir, pois, se determinado uso da liberdade de um é uma barreira à
liberdade do outro, conforme uma lei universal, tal uso é contrário ao direito e, assim sendo, a
coação que se lhe opõe, enquanto oposição de um obstáculo a quem atrapalha a liberdade,
concorda com a própria liberdade e é pois, consoante com o direito.
A condição para que o direito seja aplicado é imposta pelo elemento descritivo do
direito. Nesse sentido, cabe ressaltar que o fato do direito se ocupar com a liberdade externa,
significa que busca estabelecer a convivência entre as pessoas, voltando-se somente ao uso
externo do arbítrio. Com efeito, a definição de direito deve conter, antes de qualquer
experiência possível, a possibilidade do estabelecimento da coexistência entre as pessoas.
Para Kant, fundamentando-se na liberdade externa, ao direito acompanha um princípio
universal, a saber:
A lei universal do direito - "aja externamente de tal modo que o uso livre de
seu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei
universal" - é realmente, portanto, uma lei que me impõe uma obrigação,
mas que não espera de modo algum, e menos ainda exige, que eu mesmo
deva limitar totalmente minha liberdade àquelas condições em nome dessa
95
KANT, 231
62
obrigação. A razão diz apenas que o arbítrio é limitado em sua ideia e
também que tem de ser limitado por outro, e isso ela diz como um postulado
que não é suscetível de prova ulterior alguma. - Quando o propósito não é
ensinar a virtude, mas apenas expor o que é correto, então não se precisa, e
não se deve, apresentar aquela lei do direito como móbil da ação.96
Esse é o chamado princípio universal do direito: "Age externamente de modo que o
livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos conforme uma lei universal",
pois provém da razão prática e impõe a todos uma obrigação. Segundo Otfried Höffe:
Kant introduz enfim uma terceira variante de moral do direito, a lei universal
do direito. Pelo fato de tomar forma de um imperativo, ela é o exato
imperativo categórico do direito: "age externamente de modo que o livre uso
de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de qualquer um segundo uma
lei universal".97
Quando se tratar do conceito de direito, tal princípio universal do direito não deve ser
considerado como o motivo da ação, como faz a ética, mas em relação ao uso externo do
arbítrio, sendo irrelevante cogitar sobre a intenção que moveu a ação. Assim, sendo um
princípio que concerne somente à conformidade do ato exterior em referência às leis jurídicas,
propugna a legalidade, entendida por Kant como: "A mera concordância ou discrepância de
uma ação com a lei, sem consideração ao móbil da mesma, se denomina legalidade
(conformidade à lei) (...)"98.
Na concepção racional de direito, a compatibilidade das ações em conformidade com
a liberdade externa, constitui um mandamento da razão prática em seu uso jurídico, traduzido
no princípio universal do direito. Tal princípio é responsável por conceder o critério de
legitimidade às leis positivas, do que se segue que, na hipótese de estas não garantirem a
coexistência de acordo com leis universais, são opostas à razão jurídica prática.
Tal princípio, na doutrina do direito, equivale ao imperativo categórico na doutrina da
virtude. Ele obriga seu cumprimento, por parte de todos, em consonância com a legalidade, de
mesmo modo que o imperativo categórico obriga seu cumprimento, por parte do indivíduo,
conforme a moralidade. Nesse sentido, o conceito de direito resulta da razão prática e do
princípio universal do direito.
96
KANT, 231
HÖFFE, Otfried. p. 224
98
KANT, 219
97
63
Dessa maneira, o conceito racional de direito, apresentado por Kant é: "O direito,
portanto, é o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o
arbítrio de outro segundo uma lei universal da liberdade"99.
Nesse sentido, o direito não deve ser considerado como comportando dois elementos:
de um lado, a obrigação decorrente do princípio universal do direito e, de outro lado, a
competência de alguém submeter os demais, coercitivamente, ao cumprimento da obrigação.
Ao contrário, deve constituir-se uma coerção recíproca universal que reúne a obrigação e a
coerção como um mesmo elemento.
99
Idem, 230
64
Capítulo 3 - A solução de Kant para o problema da coerção jurídica
Introdução
O terceiro e último capítulo irá tratar da solução apresentada por Kant para a
problemática da coerção jurídica. Primeiramente, investigaremos o caráter coercitivo do
direito, onde o escopo é analisar a relação existente entre coerção, liberdade e direito,
demonstrando que, embora aparentemente contraditórias, a coerção e a liberdade encontramse como fundamentos de possibilidade do direito em Kant.
No tópico seguinte abordaremos o direito público e a legitimação da coerção, buscando
examinar o direito privado e o direito público, e a passagem do estado de natureza para o
estado civil. Consecutivamente, o terceiro e derradeiro tópico apresentará a ideia de uma
vontade geral e o uso público da razão, distinguindo a vontade autônoma da vontade geral, a
fim de encerrar o presente estudo da filosofia kantiana.
3.1. O caráter coercitivo do direito
Conforme já visto, Kant entende o direito como "o conjunto das condições sob as
quais o arbítrio de um pode coexistir com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da
liberdade". A partir dessa concepção, podemos notar a necessidade de concordância da
escolha a uma lei universal de liberdade, ou seja, à própria moralidade. Logo, o conceito de
direito está ligado à razão prática kantiana no modo de escolha consonante a uma lei universal
de liberdade. Dessa maneira, o conceito de direito não pode derivar de uma determinação
externa, empírica, ou seja, de imperativos hipotéticos assertóricos ou pragmáticos, mas deve
ser instituído sob determinações a priori, como a moral. Ainda que o arbítrio seja diverso da
vontade, quando estiver sob leis universais, o conceito de direito será por elas determinadas.
Nos termos do exposto, vejamos o que diz Ricardo R.Terra:
Já em relação ao direito, tanto sua definição quanto seu princípio universal
são compostos pelos mesmos elementos básicos. "O direito é o conjunto das
condições sob as quais o arbítrio de um pode ser unido ao arbítrio de outro
segundo uma lei universal da liberdade". A lei universal do direito é por sua
65
vez formulada do seguinte modo: "Age exteriormente de tal maneira que o
livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um, segundo
uma lei universal." Trata-se das relações externas, das ações de pessoas que
podem realmente influenciar a ação de outros; nessa perspectiva, não
interessam as intenções, e a lei universal do direito não é necessariamente
tomada como móbil da ação (visto que não se trata de virtude, mas de
direito).100
Ante o exposto, entendemos que para Kant, é o direito que limita a liberdade de cada
indivíduo, de modo que todas as liberdades externas tenham a possibilidade de coexistir
conforme uma lei universal. É o direito que possibilita a livre convivência entre os homens
através do instituto da liberdade, pois apenas onde a liberdade é limitada, a liberdade de um
não se transforma em uma não-liberdade para os demais, e cada indivíduo pode usufruir da
liberdade que lhe é garantida pelo direito dos outros de desfrutarem de uma liberdade igual à
dele.
Kant passa a tratar do caráter coercitivo do direito a partir do §D da Introdução à
Doutrina do Direito - Metafísica dos Costumes, afirmando expressamente que a coação é
pressuposta pelo direito, uma vez que, o objetivo principal do direito é indicar a coação como
aquela que se impõe ao agir de alguém, impedindo que seja obstáculo à liberdade de outro:
O direito está ligado à competência para coagir - A resistência que se opõe
ao obstáculo de um efeito promove esse efeito e concorda com ele. Ora, tudo
o que não é conforme ao direito é um obstáculo à liberdade segundo leis
universais. A coerção, entretanto, é um obstáculo ou uma resistência a que a
liberdade aconteça. Consequentemente, se um certo uso da liberdade é, ele
mesmo, um obstáculo à liberdade segundo leis universais (isto é, incorreto),
então a coerção que se lhe opõe, enquanto impedimento de um obstáculo da
liberdade, concorda com a liberdade segundo leis universais, isto é, é
correta. Ao direito, portanto, está ligada ao mesmo tempo, conforme o
princípio de contradição, uma competência para coagir quem o viola.101
Vale fazermos aqui uma observação sobre a problemática da coação no direito. Norberto
Bobbio aponta:
Entre os problemas gerais do direito ocupa sempre um lugar central o
problema da coação, ou da coercibilidade do direito. Discutiu-se e se discute
a toda hora se a coação deve ser considerada elemento essencial do conceito
de direito, isto é, se somente a norma feita valer coativamente pode ser
considerada norma jurídica.102
100
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 16-17
KANT, 231
102
BOBBIO, Norberto. p. 75
101
66
Embora pareça existir incoerência entre coação e direito, logo podemos notar uma
ligação analítica entre os dois institutos. A partir desse entendimento concluímos que não
existe contradição, pois os juízos analíticos não são compostos por elementos diferentes entre
si. Assim, o conceito de coação está analiticamente compreendido no conceito de direito.
Para Kant, a função do direito é limitar os excessos da liberdade, impedindo que a
liberdade de um não atrapalhe a liberdade de outro, de igual modo, promovendo o pleno gozo
da liberdade por todos os indivíduos.
O cerne da questão é compreender como o direito, enquanto direito à liberdade, pode ser
entendido como não contraditório em relação à coação. Para Otfried Höffe, a presente dúvida
pode ser esclarecida através de uma simples análise. São dois os institutos que devemos
considerar para tal resultado: o princípio de contradição e o princípio da dupla negação:
Para justificar a defesa contra a injustiça sob forma coercitiva, Kant emprega
duas negações práticas: como a simples negação de uma ação, o "obstáculo a
um efeito", e como a negação dupla "a resistência que é contraposta ao
obstáculo". A negação simples de uma ação moralmente legítima, o
obstáculo, é uma injustiça moral, enquanto uma negação dessa negação
recupera a posição. Quem opõe preventiva ou restitutivamente resistência a
uma injustiça, anula a injustiça e reconhece de novo o direito legítimo: "Se
um certo uso da própria liberdade é um obstáculo à liberdade segundo leis
universais (isto é injusto), então a coerção, que é contraposta a ele, enquanto
impedimento de um obstáculo à liberdade, concorda com a liberdade
segundo leis universais, quer dizer é justa".103
Vale ressaltar que, para Kant, a coação pode ser tida como uma negação da liberdade. Ao
entendermos que um determinado uso da liberdade não é justo, então a negação desse uso da
liberdade será não-injusto. Desse modo, a coação exercida sobre essa liberdade pode ser
reconhecida como não-injusta, o que equivale dizer que a coação é justa. Assim, Kant usa,
nessas premissas lógicas, o conceito de justo e injusto, definindo como justo o ato que é
juridicamente autorizado, e injusto o ato que é juridicamente proibido ou não autorizado.
Segundo Otfried Höffe:
Kant opera meramente com os conceitos de direito e de injustiça, bem como
com uma operação lógica, da dupla negação, com a qual se recupera a
posição. Por isso a faculdade de coagir está contida no conceito de princípio
do direito. Aqui, e não nas condições de aplicação, Kant argumenta
analiticamente: "Por conseguinte com o direito conecta-se ao mesmo tempo,
segundo o princípio de contradição, uma faculdade de coagir aquele que o
prejudica". O juridicamente permitido inclui a permissão de segundo nível,
de coagir aquilo que é permitido no primeiro nível: um direito subjetivo não
se compõe "de duas peças", "da obrigatoriedade segundo uma lei" e da
103
HÖFFE, Otfried. p. 227
67
faculdade de coagir conjuntas, mas "direito e faculdade de coagir significam
pois a mesma coisa".104
Tudo aquilo que é considerado injusto constitui um obstáculo à liberdade de acordo
com leis universais. Entretanto, a coerção é um obstáculo ou resistência à liberdade. Portanto,
se um determinado uso da liberdade constitui ele próprio um obstáculo à liberdade de acordo
com leis universais, ou seja, é injusto, a coerção que a isso se impõe, em função de ser um
impedimento à liberdade, é conforme à liberdade de acordo com leis universais, ou seja, é
justa. Observemos o que Norberto Bobbio discorre acerca do assunto:
É verdade que o direito é liberdade; mas é liberdade limitada pela presença
da liberdade dos outros. Sendo a liberdade limitada e sendo eu um ser livre,
pode acontecer que alguém transgrida os limites que me foram dados. Mas,
uma vez que eu transgrida os limites, invadindo com minha liberdade a
esfera de liberdade do outro, torno-me uma não-liberdade para o outro.
Exatamente porque "o outro é livre como eu, ainda que com uma liberdade
limitada, tem o direito de repelir o meu ato de não-liberdade". Pelo fato que
não pode repeli-lo a não ser por meio da coação, esta apresenta-se como um
ato de não-liberdade cumprido para repelir o ato de não-liberdade do outro,
e portanto, - uma vez que duas negações afirmam -, como um ato restaurador
de liberdade. A coação é, pois, um conceito antitético com relação à
liberdade, mas enquanto surge como remédio contra uma não-liberdade
anterior, é negação da negação e, então, afirmação. Portanto, ainda que seja
antitética com relação à liberdade, a coação é necessária para a conservação
da liberdade.105
Dessa forma, a própria possibilidade de coação está ligada ao direito, enquanto
possibilidade de se opor resistência a qualquer impedimento que se pretenda fazer a esse
direito, já que a faculdade de se opor resistência à liberdade particular do infrator concorda
com leis universais da liberdade que se encontram na base desse direito, uma vez que
promove aquela liberdade objetiva.
A coerção não deve ser interpretada como uma ameaça, uma força física ou violência. A
privação dos direitos de outrem não significa somente a restrição de sua liberdade, mas
também a promoção da liberdade alheia. Dessa maneira, quando houver a restrição de uma
ação que irá ferir a liberdade de alguém pela coerção, tal coerção está difundindo a liberdade
deste.
104
105
HÖFFE, Otfried. p. 227-228
BOBBIO, Norberto. p. 78
68
No tocante à fundamentação do direito, nota-se que Kant, busca na física de Isaac
Newton e na sua dedução das leis naturais dos movimentos dos corpos livres elementos para
construção do seu conceito de direito baseado na liberdade. Segundo Ricardo R. Terra:
Kant chega a comparar o direito com o movimento dos corpos; a limitação
da liberdade, sua coexistência e a "lei da coerção recíproca que está de
acordo necessariamente com a liberdade de cada um sob o princípio da
liberdade universal" seriam análogas à "lei da igualdade da ação e reação".
Encontra-se aqui de novo a mesma tensão; a coerção recíproca, a lei da
igualdade da ação e reação, de um lado, e, de outro, o princípio da liberdade
universal.106
Para Kant, a lei de coação recíproca está em conformidade com a liberdade universal,
uma vez que, consoante a analogia da possibilidade dos movimentos livres dos corpos e,
segundo a lei de igualdade de ação e reação, toda ação impeditiva da liberdade fomenta uma
reação que com ela concorda e protege essa mesma liberdade:
A lei de uma coerção recíproca que concorda necessariamente com a
liberdade de todos sob o princípio da liberdade universal é, de certo modo, a
construção daquele conceito, isto é, a apresentação do mesmo em uma
intuição pura a priori segundo a analogia da possibilidade dos movimentos
livres dos corpos sob a lei da igualdade de ação e reação.107
Daí, conclui Kant que direito e possibilidade de coação se confundem num só e
mesmo conceito, sendo que "... não é tanto o conceito de direito que possibilita a sua
exposição, mas antes a coerção com ele coincidente, inteiramente recíproca e igual, que é
submetida a leis universais"108.
Ao analisarmos minuciosamente os primeiros capítulos da Metafísica dos Costumes,
observamos que Kant procura desviar do possível conflito entre coação e liberdade, ao
mostrar que o ato que obriga a obediência ao direito, advém de um motivo exterior e não da
própria consciência.
Podemos notar que, além de tratar da questão do direito e da coerção, na Introdução à
doutrina do direito, Kant aborda também a questão do direito equívoco:
Do direito equívoco (Ius aequivocum) - A todo direito em sentido estrito
(ius strictum) está ligada a competência para coagir. Mas também se pode
pensar um direito em sentido amplo (ius latum) em que a competência para
coagir não pode ser determinada por nenhuma lei. - Esses direitos,
verdadeiros ou supostos, são dois: a equidade e o direito de necessidade, o
106
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 81-82
KANT, 233
108
KANT, 233
107
69
primeiro deles admitindo um direito sem coerção; o segundo, uma coerção
sem direito. E é fácil perceber que esta ambiguidade repousa realmente no
fato de que há casos de um direito duvidoso cuja decisão nenhum juiz pode
ter tomado.109
Em sua obra, Norberto Bobbio descreve o direito equívoco como dois casos anômalos:
(...) Kant considera a coação como um meio indispensável para a atuação do
direito, e expressa este conceito de maneira drástica: "Qualquer direito em
sentido estrito (ius strictum) inclui a faculdade de coagir". Mas admite duas
situações, ainda que consideradas pelo direito, nas quais acontece uma
dissociação entre direito e coação, devendo portanto ser consideradas como
excepcionais. Na primeira existe um direito sem coação, e é o caso da
equidade; na segunda existe uma coação sem direito, e é o caso do estado de
necessidade.110
O direito equívoco constitui esferas do direito, em sentido mais amplo, onde não
existem leis competentes para exercer a coerção. Desse modo, são apresentados dois casos: a
equidade e o direito de necessidade. Segundo Otfried Höffe:
O "Apêndice à Introdução à Doutrina do Direito" trata de dois casos, que
curiosamente reclamam decisões de direito, para os quais, todavia, não se
pode encontrar ninguém que os decida. Kant, de modo consequente, negalhes a possibilidade de pertencerem tanto ao direito estrito quanto ao direito
com faculdade de coagir e tampouco a algum direito "mesclado com
preceitos de virtude". Não obstante eles não caem totalmente fora do âmbito
do direito, para pertencerem à virtude, mas muito antes eles possuem um
meio-caráter de direito. Eles pertencem a um âmbito intermediário, ao qual
não falta simplesmente a "faculdade de coagir", mas no qual ela meramente
não pode ser "determinada por nenhuma lei". Por isso Kant os separa, antes
de passar à "doutrina do direito propriamente dita", cuja faculdade de coagir
se deixa determinar por uma lei.111
Na visão de Kant, a equidade equivale ao fato de haver um direito sem coerção. O
filósofo utiliza um exemplo da sociedade mercantil, onde as cláusulas contratuais dividem os
lucros em partes iguais, todavia um dos sócios gerou mais lucro que os demais. Vindo a
sociedade a passar por momentos difíceis, é evidente que o sócio que mais produziu, é aquele
que obteve também o maior prejuízo. Assim, pelo instituto da equidade, ele pode exigir mais
que apenas a partilha igual. No entanto, em conformidade com o direito estrito, sua petição
poderia ser rejeitada, uma vez que, o juiz não disporia de dados que o capacitasse para decidir
o valor merecido. Kant apresenta ainda um outro exemplo onde um servo, que recebeu o
109
KANT, 234
BOBBIO, Norberto. p. 79
111
HÖFFE, Otfried. p. 229
110
70
salário anual em moeda que se desvalorizou, não consegue mais comprar aquilo que poderia
no começo do contrato. O servo recebeu a quantia avençada no contrato, entretanto, o valor
não equivale ao mesmo. Se ele apelar para o direito de ser recompensado, o juiz não terá base
legal para atendê-lo, pois ele recebeu a quantia acordada no contrato. Nesse passo, apenas
mediante o instituto da equidade, poderá ocorrer o ressarcimento do prejuízo do servo.
Vejamos:
A equidade (objetivamente considerada) não é razão, de modo algum, para
apelar meramente ao dever ético de outrem (sua benevolência e bondade),
mas sim um modo de alguém exigir algo com base nela apoiando-se em seu
direito, mesmo que lhe faltem as condições de que o juiz precisaria para
poder determinar o quanto ou de que modo sua existência poderia ter sido
satisfeita. Aquele que, em uma sociedade mercantil (Maskopei) constituída
sobre ganhos iguais, fez mais, mas também, devido a circunstâncias
acidentais, perdeu mais nisso do que os demais membros, pode, em nome da
equidade, exigir mais da sociedade do que a mera divisão de partes iguais
com os outros. Contudo, segundo o direito em sentido próprio (estrito),
aquele alguém, com sua exigência, seria recusado, porque, quando se
imagina um juiz em seu caso, este não tem quaisquer dados (data) precisos
para decidir o quanto caberia a ele segundo o contrato. O servente doméstico
a quem é pago o salário corrente até o final do ano em moeda que se
desvalorizou durante esse tempo, de modo que ele não pode obter aquilo que
podia comprar no fechamento do contrato, não pode invocar, perante o igual
valor numérico mas desigual valor monetário, seu direito a ser por isso
indenizado; ele pode somente apelar à equidade como fundamento (uma
divindade muda, que não pode ser ouvida). Visto que nada sobre isso foi
definido no contrato, um juiz não pode falar segundo condições
indeterminadas.112
Norberto Bobbio escreve sobre a equidade, denominando-a como "a justiça do caso
concreto":
Por "equidade", entende-se tradicionalmente a "justiça do caso concreto", ou
seja, aquela justiça que nasce não da adequação rígida a uma lei geral e
abstrata, mas da adequação à natureza mesma do caso particular, que
apresenta algumas peculiaridades com relação a circunstâncias de tempo, de
lugar e outras; motivo pelo qual fala-se que existem casos nos quais a
solução justa (ou seja, segundo a lei) não é equânime, e a solução equânime
não é justa. Kant dá o exemplo do servo ao qual foi paga, no final do ano a
sua recompensa com uma moeda que, no curso do ano, se desvalorizara.
Aqui o contraste entre justiça entendida de maneira abstrata e equidade
entendida como solução a ser dada àquele caso particular, é evidente.
Segundo a justiça, o servo deve ser pago com a quantia em moeda, assim
como foi estabelecido. Mas esta solução, que é justa, é também equânime?
Não é ele defraudado por causa de um evento (a desvalorização) que não é
imputável a ele? Portanto, existem dois direitos que concorrem: um direito
segundo justiça, e é o direito de receber a quantia em dinheiro que foi
estabelecida, e um direito segundo a equidade, e é o direito de receber não a
112
KANT, 234
71
quantia, mas o valor. Qual dos dois deve prevalecer? Segundo Kant, não há
dúvida: deve prevalecer o primeiro, mas então é claro que o servo tem um
direito (com base na equidade) que não pode ser aplicado de maneira
coativa, ou seja, tem um direito sem coação. Kant não admite um tribunal da
equidade, ou seja, um tribunal que julgue não com base nas leis gerais e
abstratas, mas caso por caso.113
Os dois exemplos citados por Kant se encaixam no considerado por ele como um
direito sem possibilidade de coerção. Ainda que trate de direito a uma reivindicação, não
existe possibilidade de recorrer ao que se estabelece como direito, alegando direito à
indenização. Nestes casos, pode-se apelar somente junto ao tribunal da consciência:
O lema (dictum) da equidade é, sem dúvida, "o direito mais estrito é a maior
injustiça" (summum ius summa iniuria). Este mal, porém, não deve ser
remediado pelo caminho do que é de direto, ainda que se refira a uma
exigência jurídica, porque esta pertence apenas ao tribunal da consciência
(forum poli), ao contrário de toda questão jurídica que precisa ser levada ao
direito civil (forum soli).114
Com relação ao direito de necessidade, Kant escreve:
Este presumível direito deve ser uma competência para, em caso de perigo
da perda de minha própria vida, tomar a vida de um outro que não me
causou nenhum sofrimento. É evidente que nisso deve estar contida uma
contradição da doutrina do direito consigo mesma - pois não se trata aqui de
um injusto agressor da minha vida, ao qual me antecipo com a privação da
sua (ius inculpatae tutelae), caso em que a recomendação de moderação
(moderamen) nem sequer pertence ao direito, mas somente à ética; trata-se
antes de uma violência permitida contra alguém que não exerceu contra mim
violência alguma.115
Trata-se de uma violência permitida contra alguém que não está sendo violento com
ninguém. Para tal, Kant apresenta o exemplo de um naufrágio, onde um náufrago, para salvar
sua vida, toma a tábua de outro que com ela tentava se salvar. No exemplo, aquele que tomou
a tábua e se salvou, agiu em estado de necessidade, situação onde não cabe punição:
(...) Não pode haver, pois, nenhuma lei penal que condene à morte quem em
um naufrágio, correndo com um outro o mesmo risco de vida, lhe empurre
da tábua em que se refugiou para salvar-se a si mesmo. Porque a pena que a
lei ameaçasse certamente não poderia ser maior que a perda de sua vida.
Ora, uma semelhante lei penal não pode ter de modo algum o efeito
pretendido, pois a ameaça de um mal que é todavia incerto (o da morte por
sentença judicial) não pode superar o medo diante do mal que é certo (quer
dizer, do afogamento). Portanto, o ato da autoconservação violenta não deve
113
BOBBIO, Norberto. p. 79-80
KANT, 235
115
KANT, 235
114
72
ser julgado como algo não condenável (inculpabile), mas apenas como algo
não punível (impunibile), embora, por uma assombrosa confusão dos
jurisconsultos, esta impunidade subjetiva seja considerada objetiva
(conforme a lei).116
Diante do exposto, a pessoa que se salvar da maneira acima descrita comete, com
certeza, uma violência, que é culpável, no entanto impunível. Vejamos o que pondera
Norberto Bobbio:
Trata-se, em outras palavras, de uma violência permitida contra mim. Para
tornar didático o exemplo comum, aceito também por Kant, considere-se um
náufrago que para poder sobreviver impede um outro náufrago de apanhar
uma tábua ou um salva-vidas; ou para dar um exemplo mais atual, ao
alpinista que corta a corda por meio da qual o companheiro está
dependurado, no caso em que a corda, gasta, não possa mais aguentar os
dois. Kant considera o estado de necessidade como um caso de nãopunibilidade, apresentando a argumentação de que punição com a qual a lei
ameaça o culpado não poderia nunca ser tão grande para ser eficaz, e
portanto seria perfeitamente inútil: ninguém de fato poderia ser induzido a
abster-se de um mal certo (aquele de morrer afogado ou destroçado) através
da ameaça de um mal menos certo (a condenação penal). O que então
diminui no estado de necessidade seria portanto não a culpa, mas somente a
pena: o que significa que, para Kant, o ato cumprido no estado de
necessidade é injusto, ainda que não seja punido por motivos práticos.
Enquanto ato culpável, ao qual não corresponde a pena, o estado de
necessidade pode ser considerado como uma coação (ou ato de força ou de
violência) sem o direito correspondente.117
Dessa forma, existe um ato injusto, mas que não pode ser punido. Uma coerção sem
direito correspondente. Assim, há uma divergência decorrente da irregularidade na relação
entre direito e coerção, isto é, rompe-se a necessidade entre a relação direito e coerção, que
exige que o direito seja cumprido e a ofensa ao direito seja punida ou retificada. Na equidade,
ocorre uma pretensão não atendida, e no direito de necessidade, um erro não corrigido, casos
onde não se aplica a coerção. Nas palavras de Norberto Bobbio:
A anomalia desses dois casos está portanto no fato de que, enquanto a
normalidade da relação entre direito e coação exige que o direito seja
satisfeito e o erro remediado, aqui existe de um lado um direito não
satisfeito, do outro um erro não remediado. Em outras palavras, seria
possível dizer assim: a natureza da justiça implica em que seja dada razão a
quem tem razão e negada a quem não a tem. Nos dois casos anômalos,
porém, existe esta alteração: no primeiro caso, uma pessoa tem razão e não
lhe é dada, no segundo caso, uma pessoa não a tem e lhe é dada.118
116
KANT, 236
BOBBIO, Norberto. p. 80-81
118
BOBBIO, Norberto. p. 81
117
73
Por fim, vale ressaltar ainda, a visão de Otfried Höffe a respeito da equidade e do
direito de necessidade:
A equidade é um "direito sem coerção" e o direito de necessidade, uma
"coerção sem direito". Em ambos os casos é perfeitamente razoável falar de
direito. A questão, de em que ele exatamente consiste, é tão radicalmente
controversa, que "não se pode apresentar nenhum juiz para decidi-la".119
3.2. O direito público e a legitimação da coerção
Primeiramente, cabe fazermos uma distinção entre o direito privado e o direito
público. O direito privado, segundo o entendimento kantiano, trata dos direitos naturais dos
homens, sendo que tais direitos são provenientes do direito de liberdade, o único direito
humano verdadeiramente inato. Desse modo, o direito privado é um direito provisório que
constitui uma necessidade do indivíduo e, seu dever é passar do estado de natureza para o
estado civil, estabelecendo assim, um direito público, de caráter permanente.
Kant define o direito público como um sistema legal de caráter geral constituído para
um povo ou multiplicidade de povos por meio de uma vontade unificadora representada em
uma constituição no intuito de estabelecer a justiça. Nesse passo, o Estado seria a totalidade
de indivíduos sob uma condição civil e legal em relação com os membros desta totalidade:
O conjunto de leis que precisam ser universalmente promulgadas para
produzir um estado jurídico é o direito público. - Este é, portanto, um
sistema de leis para um povo, isto é, para um agrupamento de homens ou
para um agrupamento de povos que, estando entre si em uma relação de
influência recíproca, necessitam de um estado jurídico sob uma vontade que
os unifique numa constituição (constitutio) para se tornarem participantes
daquilo que é de direito. - Este estado de relação mútua entre os indivíduos
no povo chama-se estado civil (status civilis), e o seu todo, em relação aos
seus próprios membros, é o Estado (civitas), que se denomina república (res
publica latius sic dicta) devido à sua forma, enquanto unida pelo interesse
comum de todos em estar em um estado jurídico, mas que, em relação com
outros povos, chama-se simplesmente potência (potentia) (de onde a palavra
potentado), a qual, em virtude de sua (pretensa) união herdada, denomina-se
também nação (gens).120
119
120
HÖFFE, Otfried. p. 229
KANT, 311
74
Segundo Kant, o direito público é composto por três partes: o direito político, o direito
das gentes e o direito cosmopolita:
(...) Sob o conceito geral de direito público, assim, há motivo para pensar
não somente um direito político, mas também um direito das gentes (ius
gentium), e, como a terra não é ilimitada, mas uma superfície finita por si
mesma, ambos tomados em conjunto conduzem inevitavelmente à ideia de
um direito político das gentes (ius gentium) ou direito cosmopolita (ius
cosmopoliticum), de modo que, se o princípio que restringe a liberdade
externa por meio de leis faltar a uma dessas três formas do estado jurídico, o
edifício das duas restantes ficará inevitavelmente arruinado e acabará por
desabar.121
Kant acredita em um estado de natureza, que não constitui uma realidade, mas tão
somente uma ideia, onde não há um juiz a quem se possa reivindicar os direitos, a posse não
passa de algo provisório e as liberdades não possuem limites. Ricardo R. Terra discorre sobre
esse entendimento kantiano:
(...) O estado de natureza, para Kant, é igualmente uma ideia, e não um fato
do passado. Ele se caracteriza como uma situação não de injustiça, mas de
ausência de justiça, na medida em que não há um juiz competente para
decidir os casos controversos, o que não significa ausência de direito no
estado de natureza. Nesse estado, "embora cada um, segundo seus conceitos
de direito, possa adquirir alguma coisa exterior por ocupação ou contrato,
esta aquisição é apenas provisória enquanto não contiver a sanção de uma lei
pública, porque não é determinada por nenhuma justiça (distributiva) pública
e garantida por nenhum poder que exerça este direito".122
Assim, o estado de natureza consiste em um estado provisório, que deve conduzir ao
estado civil, onde existe a figura de um poder soberano ou de um legislador civil que tem
como escopo realizar o direito natural dos homens, a posse torna-se peremptória e as
liberdades não são mais ilimitadas. Vejamos o que diz Ricardo R. Terra:
A diferença entre o estado de natureza e o civil consiste no fato de que, no
último, há uma legislação pública, justiça distributiva e um poder coercitivo,
de modo que as leis sejam obedecidas. Mas nos dois estados há o direito de
aquisição das coisas exteriores e, mais ainda, "segundo a forma, as leis sobre
o meu e o teu no estado de natureza contêm o mesmo que elas prescrevem
no estado civil, na medida em que este é pensado somente segundo conceitos
da razão pura". No estado civil, entretanto, há a possibilidade de realização
do direito natural, e o que era provisório pode tornar-se peremptório.123
121
KANT, 311
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 33
123
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 33-34
122
75
Desse modo, Kant ensina que esse estado de natureza deve ser superado por meio de
um contrato social, no intuito de que seja formado o Estado, de modo que os homens passem
a conviver em um estado civil:
(...) A primeira coisa, portanto, sobre a qual cabe ao ser humano decidir, se
não quer renunciar a todos os conceitos jurídicos, é o seguinte princípio: é
preciso sair do estado de natureza, em que cada um age como que lhe vem à
cabeça, e unir-se com todos os demais (com os quais não pode evitar entrar
em relação recíproca) para submeter-se a uma coerção externa legalmente
pública; ingressar em um estado, portanto, onde aquilo que deve ser
reconhecido como o seu seja legalmente determinado a cada um e atribuído
por um poder suficiente (que não seja o seu, mas sim um poder exterior); em
outras palavras, ele deve ingressar antes de qualquer coisa, em um estado
civil.124
Ricardo R. Terra explica o entendimento kantiano acerca da necessidade da passagem
do estado de natureza para o estado civil:
(...) A exigência da instituição de um estado jurídico e a consequente
passagem do estado de natureza para o estado civil são várias vezes tratadas
no Rechtslehre, inclusive por ocasião da análise do ter e do adquirir o meu e
o teu exteriores, como também na oportunidade do exame da relação do
direito público com o privado. Para se ter algo de exterior como seu, é
necessário estar em um estado jurídico, em um estado civil onde haja um
poder público; "uma posse na espera e preparação de um tal estado, que só
pode ser fundado numa lei da vontade comum, que assim está de acordo com
a possibilidade da última, é uma posse provisória e jurídica, em
compensação aquela que se encontra num tal estado seria uma posse
peremptória".125
Kant enxerga a transição do estado de natureza para o estado civil como uma maneira
de possibilitar o exercício dos direitos naturais por meio da organização da coação sob o
domínio do Estado. Nas palavras de Ricardo R. Terra :
A possibilidade de se ter ou de se adquirir originariamente algo de exterior
está vinculada à ideia da vontade geral; dessa forma, no estado de natureza
pode-se ter ou adquirir algo legitimamente, desde que se esteja de acordo
com aquela ideia; mas, por outro lado, tal aquisição é provisória, porque a
vontade geral não é ainda efetiva. Para garantir a cada um sua propriedade, é
necessário que haja uma legislação proveniente da vontade geral e um poder
coercitivo que a execute; "o estado submetido a uma legislação universal
externa (ou seja, pública) acompanhada da potência é o estado civil".126
124
KANT, 312
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 35-36
126
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 36-37
125
76
Com relação ao estado civil, Hobbes entende que ele nasce da eliminação dos direitos
naturais, isto é, aquele que estipula o contrato renuncia a todos os direitos naturais, o poder
soberano nasce sem limites, sendo que, qualquer limitação futura será tida como uma
autolimitação. No entanto, Kant possui entendimento diverso. Para Kant, o poder soberano
surge com o dever de assegurar o melhor gozo dos direitos naturais, sendo limitado por um
direito preexistente:
Hobbes é de opinião contrária. Segundo ele (De Cive, cap. VII, § 14), o
chefe de Estado de nenhum modo está ligado por contrato ao povo e não
pode cometer injustiça contra o cidadão (seja qual for a sua decisão a
respeito deste). - Semelhante tese seria totalmente correcta se, por injustiça,
se entende a lesão que reconhece ao lesado um direito de constrangimento
relativamente àquele que comete a injustiça; mas, considerada na sua
generalidade, a tese é terrível.127
Kant adota a teoria contratualista, que admite a existência dos dois estados, isto é, do
estado de natureza e do estado civil. Isso comprova-se pelo modo como explica a
transformação do primeiro estado no segundo. Kant afirma que o estado natural não é
eliminado pelo estado civil, mas é somente por este último qualificado por meio dos
mecanismos de coação de que dispõe. O que difere na transformação de um estado para o
outro é a forma.
Conforme as lições de Norberto Bobbio, na visão de Kant, o direito privado não deve
desaparecer no direito público, ao contrário, deve desfrutar das garantias que não pode ter no
estado de natureza. O estado civil não é constituído para anular o direito natural, mas para
possibilitar o exercício desse direito por meio da coação. Assim, direito estatal e direito
natural estão em uma relação de integração. Kant entende o estado de natureza como
provisório e o estado civil como peremptório. Equivale dizer, que após a transição do estado
de natureza para o estado civil, o direito torna-se formalmente público, mesmo que continue
sendo natural:
(...) O direito privado, segundo Kant, não deve desaparecer no direito
público, mas deve usufruir de garantias que não pode ter no estado de
natureza. O estado civil nasce não para anular o direito natural, mas para
possibilitar seu exercício através da coação. O direito estatal e o natural não
estão numa relação de antítese, mas de integração. O que muda na passagem
não é a substância, mas a forma; não é portanto o conteúdo da regra (o qual
somente a razão pode ditar), mas o modo de fazê-la valer. E inclusive
quando Kant indica como provisório o estado de natureza e como
peremptório o estado civil, indica claramente que a modificação, ainda que
importante, não é substancial mas formal. Seria possível dizer-se que, após a
127
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. p. 90
77
constituição do estado civil, o direito torna-se formalmente público, ainda
que continue sendo substancialmente privado, ou seja, natural.128
O modo através do qual um povo sai do estado de natureza e forma um Estado é
denominada contrato originário. Neste contrato o indivíduo abandona sua liberdade externa
primitiva e irrestrita e torna-se membro do Estado:
(...) O ato pelo qual o povo mesmo se constitui num Estado - embora apenas,
propriamente falando, segundo a única ideia dele pela qual se pode pensar
sua legalidade - é o contrato originário, segundo o qual todos (omnes et
singuli) no povo renunciam à sua liberdade externa para readquiri-la
imediatamente enquanto membros de uma república, ou seja, enquanto
membros do povo considerado como Estado (universi). E não se pode dizer
que o homem no Estado tenha sacrificado a um fim uma parte de sua
liberdade externa inata, mas sim que teria abandonado por completo a
liberdade selvagem e sem lei para, numa situação de dependência legal, isto
é, num estado jurídico, reencontrar intacta sua liberdade em geral, pois essa
dependência surge de sua própria vontade legisladora.129
Kant entende a possibilidade de restrição da liberdade externa como uma das
características do direito, ainda que seja pela violência, e o indivíduo que afeta a lei deve ser
coagido exatamente por infringir a liberdade de outro, expressa na lei. Apenas existe coação
se o fundamento tiver base em leis públicas, isto é, leis formais, pois, o direito garante, acima
de tudo, a liberdade dos indivíduos que, somente pela lei, podem ou não ser coagidos.
O contrato originário não carece de uma origem histórica, ele constitui apenas uma
ideia da razão utilizada para justificar a transição do estado de natureza para o estado civil.
Nas palavras de Ricardo R. Terra:
Convém insistir que o estado de natureza não é uma realidade histórica, mas
uma ideia. O homem isolado é portador tanto da lei ética quanto da lei
jurídica natural que valem no estado de natureza e no civil, o que leva à
prioridade lógica do direito no estado de natureza em relação ao estado civil.
Assim, justamente porque no estado de natureza é possível a posse, mesmo
que provisória, é que será um mandamento sair desse estado.130
Para Kant, um povo não deve indagar a respeito da origem da autoridade suprema a
qual se submete, de forma que, este questionamento é considerado perigoso ao dar margem
para uma atitude de resistência ante ao poder soberano. O povo deve obedecer ao legislador
128
BOBBIO, op.cit., p. 120
KANT, 316
130
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 34
129
78
estabelecido independente de sua origem, sendo vedada inclusive, a revolução, mesmo que
exista injustiça por parte do soberano:
De um ponto de vista prático, a origem do poder supremo é imperscrutável
para o povo que está submetido a ele, isto é, o súdito não deve raciocinar
ativamente sobre essa origem, como sobre um direito duvidoso no que se
refere à obediência que lhe deve (ius controversum). Pois, dado que o povo,
para julgar com força de lei sobre o poder supremo do Estado (summum
imperium), tem já de ser considerado unido sob uma vontade universalmente
legisladora, então ele não pode nem deve julgar de nenhum outro modo que
não aquele pretendido pelo atual chefe de Estado (summus imperans).131
Ricardo R. Terra destaca o problema da possibilidade da lei não estar em acordo com
o direito natural:
A legislação civil deve realizar o direito natural, mas, por outro lado, este dá
o fundamento racional à legislação positiva. Surge, entretanto, um problema:
a possibilidade de a lei positiva estar em desacordo com o direito natural.
Kant afirma que ela deve ser obedecida assim mesmo, e, mais ainda, que é
um imperativo obedecer à autoridade atualmente no poder, não admitindo o
direito de resistência. (...)132
Norberto Bobbio busca esclarecer as motivações para o entendimento kantiano da
obediência absoluta às leis:
Quais são os motivos por que se deve obedecer de qualquer maneira à lei?
Das páginas de Kant podem ser derivados dois motivos principais. O
primeiro pode ser formulado assim: se uma constituição admitisse o
princípio da resistência, o legislador não seria mais soberano, e o princípio
da soberania seria destruído. O que é de fato a soberania a não ser a potestas
superiorem non recognoscens? Admitindo o direito de resistência
acabaríamos admitindo que o povo tem o direito de julgar o soberano e que
portanto este não o é mais, e o povo é, ao mesmo tempo, súdito e soberano, o
que é contraditório. O segundo motivo assume a forma seguinte: a questão
se devemos admitir ou não o direito de resistência, surge quando acontece
um conflito entre soberano e súditos; mas atribuir ao súdito o direito de
resistência significa atribuir a uma das duas partes o direito de decidir o
conflito, ou seja, atribuir ao povo o direito de ser juiz em causa própria, o
que é contrário a qualquer constituição civil.133
Cabe nesse momento, fazermos um parênteses e analisarmos as formas de governo
antes de apresentarmos o modelo de divisão de poderes adotado por Kant. Utilizando como
critério de distinção a diferença numérica dos detentores do poder soberano, temos: a
autocracia, quando somente um homem manda; a aristocracia, quando alguns iguais entre si
131
KANT, 319
TERRA, op. cit., p. 29
133
BOBBIO, Norberto. p. 148
132
79
mandam em todos os demais; e, por fim, a democracia, quando todos mandam em cada um e
cada um em si próprio. Nas palavras de Kant:
Os três poderes no Estado, que decorrem do conceito de uma república em
geral (res publica latius dicta), são apenas relações da vontade unificada do
povo que procede a priori da razão, e uma ideia pura de um chefe de Estado,
que possui realidade prática objetiva. Mas este chefe (o soberano) é até aqui
somente um produto do pensamento (que representa o povo inteiro), já que
ainda falta uma pessoa física que represente o poder público supremo e
proporcione a essa ideia eficácia sobre a vontade do povo. A relação do
primeiro com a última é, então, concebível de três modos diferentes: ou bem
um no Estado comanda todos, ou bem alguns, que são iguais entre si,
reunidos comandam todos os demais, ou bem todos juntos comandam cada
um e, portanto, também a si mesmos; ou seja, a forma do Estado é ou
autocrática, ou aristocrática, ou democrática.134
Norberto Bobbio também pondera acerca das formas de governo tratadas por Kant:
Das formas de governo Kant fala em dois momentos: no pequeno tratado
Sobre a Paz Perpétua e na Metafísica dos Costumes. Pensa ele que, para
distinguir as formas de governo podem ser adotados dois critérios diferentes
de distinção: ou se leva em conta a diferença das pessoas que detêm o poder
soberano, ou se leva em conta a diferença no modo de governar. Com base
no primeiro critério, o Estado é caracterizado segundo o fato de que o
governo seja regido por um, por poucos, ou por todos, e tem-se assim as três
formas tradicionais (conhecidas já na filosofia política grega e estudadas de
maneira particular por Aristóteles) da autocracia, da aristocracia e da
democracia. Com base no outro critério, os estados se distinguem segundo o
fato de que os governantes, sejam eles um, poucos ou muitos, exerçam o
poder legal ou arbitrariamente. Neste segundo critério fundamenta-se a
distinção entre a república e o despotismo.135
Segundo Kant, a forma mais simples de governo é a autocrática, que consiste na
relação única do rei com o povo. Na aristocracia, existe primeiramente uma relação dos
governantes entre si a fim de constituir o soberano e, posteriormente, deste com o povo; por
derradeiro, a vontade dos cidadãos no intuito de formar a república e, por fim, a vontade da
república para eleger o governante, que surge dessa vontade coletiva:
Nota-se facilmente que a forma autocrática do Estado é a mais simples, isto
é, consiste na relação de um (o rei) com o povo, na qual, portanto, apenas
um é o legislador. A aristocrática já é composta de duas relações, a saber, a
dos nobres entre si (como legisladores) para constituir o soberano e, depois,
a deste soberano com o povo; mas a democrática é de todas a mais
complexa, pois se trata primeiramente de unificar a vontade de todos para, a
partir daí, formar um povo, depois unificar aquela dos cidadãos para formar
134
135
KANT, 339
BOBBIO, op. cit., p. 140
80
uma república e, então, pôr à frente dessa república o soberano, que é ele
mesmo essa vontade unificada.136
Outro critério que também pode ser utilizado na distinção diz respeito ao modo de
governar. Segundo as lições de Kant, o soberano pode nortear seu governo de forma despótica
ou republicana. O despotismo refere-se ao exercício arbitrário do poder. A república constitui
o exercício do poder nos termos da lei que fora determinada por todos os indivíduos, o
tratamento do povo conforme princípios relativos às leis de liberdade. Não é considerada
como forma de governo contraditória à monarquia. Tanto que, na visão de Kant, a forma ideal
de governo é a república, governada apenas por uma pessoa. Vejamos o que diz Norberto
Bobbio:
Como se vê, a república não é contraposta, como nas análises comuns, à
monarquia, mas ao despotismo. Ela não é para Kant uma das formas
tradicionais de governo, que se distingue com relação às pessoas, mas
representa a forma boa de governo contraposta à má. E uma vez que as duas
distinções, entre autocracia, aristocracia, e democracia, e entre república e
despotismo não coincidem, nada impede que se possa falar de uma república
democrática, de uma república aristocrática, e também de uma república
monárquica.137
Kant divide os poderes do Estado da seguinte maneira: poder soberano, que se dá
através do legislador; poder executivo, que se dá por meio do governo e; poder judiciário, que
se dá através da pessoa do juiz. Nesses termos, do legislativo advém a premissa maior que é a
norma geral e abstrata; do poder executivo a premissa menor de conformar as ações segundo
a norma geral; e, do poder judiciário, a conclusão que define o direito no caso concreto:
Cada Estado contém em si três poderes, isto é, a vontade universal unificada
em uma tríplice pessoa (trias politica): o poder soberano (a soberania) na
pessoa do legislador, o poder executivo na pessoa do governante (seguindo a
lei) e o poder judiciário (adjudicando o seu de cada um segundo a lei) na
pessoa do juiz (potestas legislatoria, rectoria et iudiciaria), como as três
proposições de um silogismo da razão prática - a premissa maior, que
contém a lei daquela vontade, a premissa menor, que contém o comando de
proceder segundo a lei, isto é, o princípio de subsunção sob a maior, e a
conclusão, que contém o veredicto jurídico (a sentença) daquilo que é de
direito no caso em questão.138
Kant entende o poder legislativo como um poder soberano que deve ser exercido
apenas pela vontade unida do povo, de maneira que cada um decida para todos e que todos em
136
KANT, 339
BOBBIO, op. cit., p. 140-141
138
KANT, 313
137
81
grupo decidam para cada um. Apenas assim, seria possível um sistema por meio do qual o
legislador não pudesse prejudicar os sujeitos de suas leis, uma vez que, o próprio legislador
estaria também na condição de sujeito:
O poder legislativo só pode pertencer à vontade unificada do povo. Visto,
com efeito, que dele deve proceder todo direito, ele não deve por meio de
sua lei poder fazer injustiça a ninguém. Ora, se alguém decreta algo contra
um outro, é sempre possível que, com isso, cometa injustiça contra este, mas
nunca naquilo que decide sobre si mesmo (pois volenti non fit iniuria).
Somente a vontade concordante e unificada de todos, portanto, na medida
em que cada um decida a mesma coisa sobre todos e todos sobre cada um,
isto é a vontade popular universalmente unificada, pode ser legisladora.139
Ricardo R.Terra fala da importância do poder legislativo:
O poder legislativo deve ser de tal forma, que não possa prejudicar ninguém,
pois é dele que provém o direito. A maneira de impedir que se faça mal a
alguém é que cada um participe das decisões que lhe digam respeito, de tal
modo que não haja exceção, e que estas valham para todos, tenham valor
universal, sejam leis; por isso, o poder legislativo só pode estar com a
vontade unida do povo.140
Dentre os indivíduos que pertencem ao Estado, são cidadãos, membros e, assim,
legisladores, aqueles que são capazes de votar. Para possuir esta capacidade, o indivíduo deve
ser independente economicamente, isto é, ter meios próprios de produção. Nesse sentido,
segundo o entendimento kantiano, as mulheres e os trabalhadores assalariados não podem ser
considerados cidadãos. Eles são vistos como meros associados do Estado, pois necessitam da
proteção e da direção de outros indivíduos para se manterem. Entretanto, isso não significa
que aqueles que não gozam da condição de cidadãos estejam submissos ao arbítrio dos
demais. A eles são garantidos seus direitos naturais, inclusive a liberdade de, por meio de seus
próprios méritos, sair de sua condição de dependência e passar à condição de cidadão:
A capacidade de votar constitui a única qualificação do cidadão, mas essa
capacidade pressupõe a independência daquele que, no povo, não quer ser
mera parte da república, mas também seu membro, isto é, quer por seu
próprio arbítrio ser parte atuante da mesma em comunidade com outros. A
última qualidade, porém, torna necessária a distinção entre cidadão ativo e
passivo, ainda que o conceito do último pareça estar em contradição com a
definição do conceito de um cidadão em geral. - Os seguintes exemplos
podem servir para superar essa dificuldade: o rapaz empregado por um
comerciante ou artesão; o servidor (não aquele que está a serviço do Estado);
o menor de idade (naturaliter vel civiliter); todas as mulheres; e qualquer
um, em geral, que não pode manter sua existência (seu sustento e proteção)
139
140
KANT, 314
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 61
82
por sua própria atividade, mas segundo as disposições de outrem (exceto as
do Estado), carece de personalidade civil e sua existência é como que apenas
inerente. - O lenhador que emprego em minha propriedade, o ferreiro na
Índia, que vai pelas casas com seu martelo, sua bigorna e seu fole para
trabalhar no ferro, em comparação com o carpinteiro ou o ferreiro europeus,
que podem colocar publicamente à venda os produtos de seu trabalho como
mercadorias; o tutor em comparação com o professor de escola; o meeiro em
comparação com o arrendatário etc. são meros serventes da república porque
precisam ser comandados ou protegidos por outros indivíduos e, portanto,
não possuem independência civil.141
Na concepção de constituição republicana de Kant, observamos a exigência de que o
poder soberano seja exercido por representantes eleitos pelos cidadãos, a fim de garantir a
liberdade civil, interpretada como a faculdade do indivíduo de obedecer somente as leis para
as quais consentiu:
Os membros de uma tal sociedade (societas civilis), ou seja, de um Estado,
unidos pela legislação, chamam-se cidadãos (cives), e os atributos jurídicos
inseparáveis de sua essência (enquanto tal) são: a liberdade legal de não
obedecer a nenhuma outra lei senão àquela a que deu seu consentimento; a
igualdade civil que consiste em não reconhecer nenhum superior a si mesmo
no povo, senão aquele que tenha faculdade moral de obrigar juridicamente
quanto ele de obrigá-lo; e, em terceiro lugar, o atributo da independência
civil, que consiste em poder agradecer sua existência e conservação não ao
arbítrio de um outro no povo, mas aos seus próprios direitos e forças
enquanto membro da república - por conseguinte, a personalidade civil, que
consiste em não se deixar representar por nenhum outro nos assuntos
jurídicos.142
Após feitas todas essas considerações, podemos entender o pensamento de Kant a
respeito da legitimação da coerção. Conforme arrazoado na presente dissertação, os homens
são seres afetados sensivelmente que conservam o desejo de transgredir a lei moral, na qual
reconhecem uma autoridade, e, aqui encontra-se propriamente a coerção da lei moral, isto é,
para eles é necessária constrição da vontade, e, a ideia do dever já funciona, em si própria,
como a definição de uma coação do arbítrio livre pela autoridade da lei, de modo que, essa
coação pode ser exterior, quando tratar-se do direito, ou autocoação, quando tratar-se da ética.
Entretanto, para que possam seguir os princípios da lei moral carecem de uma sentença
categórica que estabeleça o dever incondicionado, e, tal determinação é representada através
do imperativo categórico. Vejamos o que diz Ricardo R. Terra:
A autonomia em sentido estrito, tal como foi definida por Kant, desempenha
seu papel no direito na medida em que o imperativo categórico é o princípio
141
142
KANT, 315
KANT, 314
83
supremo da doutrina dos costumes; mas a legislação e os deveres jurídicos,
apesar de terem um fundamento comum com as leis e deveres éticos, são
distintos destes. Na ética, a lei é o princípio de determinação subjetivo e
objetivo, e é pensada como lei da própria vontade; no direito, ela pode
também ser a vontade de outro, o que fundará um dever externo jurídico. As
relações das vontades no direito serão pensadas sob uma vontade em geral,
remetendo para a autonomia no direito, pois todos participam da legislação à
qual se submetem, as relações jurídicas devendo dar-se sob as leis universais
da liberdade. Dessa forma a liberdade externa (jurídica) é definida como "a
faculdade de não obedecer a nenhuma lei externa, senão àquelas às quais
possa dar meu consentimento" (...)143.
Assim, as leis jurídicas que fazem coexistir as liberdades externas devem surgir da
autonomia do povo. A autonomia em sentido moral passa também a ter um sentido político,
pois, segundo a teoria republicana de Kant, é necessário que as leis jurídicas, cuja finalidade é
fazer coexistir as liberdades externas, sejam baseadas na autonomia do povo, como vontade
geral.
3.3. A ideia de uma vontade geral e o uso público da razão
Conforme já mencionado, Kant acredita na existência de um estado de natureza, que
deve ser superado por um contrato social, no intuito de que seja formado um Estado, de modo
que os homens passem a conviver em um estado civil:
Entre todos os contratos pelos quais uma multidão de homens se religa numa
sociedade (pactum sociale), o contrato que entre eles estabelece uma
constituição civil (pactum unionis civilis) é de uma espécie tão peculiar que,
embora tenha muito em comum, quanto à execução, com todos os outros
(que visam a obtenção em comum de qualquer outro fim), se / distingue, no
entanto, essencialmente de todos os outros no princípio da sua instituição
(constitutionis civilis). A união de muitos homens em vista de um fim
(comum) qualquer (que todos têm), encontra-se em todos os contratos da
sociedade; mas a união dos mesmos homens que em si mesmos é um fim
(que cada qual deve ter), por conseguinte, a união em toda a relação exterior
dos homens em geral, que não podem deixar de se enredar em influência
recíproca, é um dever incondicionado e primordial: uma tal união só pode
encontrar-se numa sociedade enquanto ela radica num estado civil, isto é,
constitui uma comunidade (gemein Wesen). Ora o fim, que em semelhante
relação externa é em si mesmo um dever e até a suprema condição formal
(conditio sine qua non) de todos os restantes deveres externos, é o direito
143
TERRA, Ricardo R. Kant& o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 22
84
dos homens sob leis públicas de coacção, graças às quais se pode determinar
a cada um o que é seu e garanti-lo contra toda a intervenção de outrem.144
Norberto Bobbio explica o entendimento de Kant acerca da transição do estado de
natureza para o estado civil:
Fica claro, portanto, que para Kant a passagem do estado de natureza para o
estado civil é um dever para o homem; o que, em outros termos, significa
que a constituição do Estado não é nem um capricho nem uma necessidade
natural, mas uma exigência moral.145
Partindo do princípio que o fundamento principal do estado é a constituição jurídica,
assim como assevera Norberto Bobbio, cabe perfeitamente o entendimento de que o estado
segundo Kant, pode ser também denominado estado de direito:
(...) Se a função principal do Estado é a constituição jurídica, é bem possível
dizer que o estado kantiano é um estado de direito. A expressão "estado de
direito", com a qual os juristas da segunda metade do século passado
designaram o estado constitucional moderno, pode ser entendida de
diferentes maneiras, mas dois são os significados principais: 1) "estado de
direito" é o Estado limitado pelo direito, ou seja, o Estado cujo poder é
exercido nas formas do direito e com garantias jurídicas pré-estabelecidas; e
nesta acepção contrapõe-se ao estado absoluto; 2) "estado de direito" é o
Estado que tem como função principal e específica a instituição de um
estado jurídico, ou seja, de um Estado no qual, segundo a definição kantiana
de direito, cada um possa coexistir com os outros segundo uma lei universal:
e nesta acepção contrapõe-se ao estado do eudemonismo. Parece então fora
de qualquer dúvida que o conceito que Kant tem do Estado deve
corresponder exatamente a esta segunda acepção do estado de direito,
segundo a qual o Estado não tem uma ideologia própria, seja ela religiosa,
moral, econômica; mas, através da ordem externa obtida por meio do
respeito ao direito, permite, ao grau máximo, a expressão e a atuação dos
valores e das ideologias de cada um dos seus membros. Do que foi dito até
agora, e do conceito que Kant tem do direito, não há dúvida de que a
concepção que Kant tem do Estado é uma concepção jurídica, no sentido em
que a característica da atividade do Estado é a atividade jurídica, ou seja, a
instituição e a manutenção de um ordenamento jurídico como condição para
a coexistência das liberdades externas.146
Em Kant, o Estado de Direito se funda na liberdade, sendo que, segundo o
entendimento moral kantiano, a liberdade pode ser interpretada de duas formas distintas: 1)
como autonomia; e, 2) como coexistência ou limitação recíproca da liberdade em seu uso
externo. Ricardo R. Terra explica estas duas formas de liberdade:
144
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. p. 73-74
BOBBIO, Norberto. p. 121
146
BOBBIO, op. cit., p. 135
145
85
(...) "O direito é a limitação da liberdade de cada um como condição de seu
acordo com a liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei
universal." Essa concepção da liberdade como limitação recíproca é
condizente com a defesa da liberdade individual, o direito de cada um indo
até onde começa o do outro. (...) a universalidade da lei, aponta para a razão
prática, para o direito como um dos ramos da doutrina dos costumes. Aqui as
leis são dadas a priori e fundadas na liberdade, entendida como autonomia.
A tensão entre a liberdade entendida como limitação recíproca e a liberdade
como autonomia estará presente em várias partes da obra de Kant. (...)147
Podemos observar as duas noções de liberdade quando Kant, na Metafísica dos
Costumes, expõe a lei universal do direito, a qual vale lembrarmos: "age externamente de
modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com
uma lei universal".
Segundo Kant, o direito está inserido em um dilema surgido pela coexistência entre a
liberdade como restrição recíproca e a liberdade como autonomia. Isso porque, a obrigação
jurídica e a necessidade de coexistência dos arbítrios em conformidade com uma lei universal
decorrem da própria razão prática, assim como discorre Ricardo R. Terra, "(...) a obrigação
jurídica, bem como a exigência de coexistência das liberdades segundo uma lei universal,
deve basear-se na razão prática148".
É fundamental para Kant, a distinção institucional entre povo e soberano, isso porque,
ele é contra a democracia direta, pois, seguindo os ensinamentos de Ricardo R. Terra, "a
democracia, pelos seus vícios inerentes, não pode ser reformada ou melhorada
gradativamente; como é essencialmente despótica, só pode ser transformada radicalmente149".
Vale ressaltar, entretanto, que o entendimento de Kant diz respeito à ideia de uma democracia
direta e não de uma democracia representativa, uma vez que, na democracia direta não cabe a
fiscalização. Assim, o povo teria que fiscalizar a si mesmo, e não um representante. Daí,
então, a essência despótica. Notemos mais uma vez as lições de Ricardo R. Terra:
A "democracia direta" seria um despotismo, pois, tratando do particular, a
vontade de todos deixa de sê-lo para tornar-se a vontade de uma parcela do
povo contra um, ou alguns dos cidadãos. Não havendo diferença entre a lei e
a regra que possibilite a sua aplicação ao caso particular, seria assim possível
a promulgação de uma lei contra um cidadão particular, o que destruiria a
própria noção de lei e introduziria a arbitrariedade. Esta só pode ser evitada
com o princípio da representação, que preserva a vontade geral em sua
universalidade e em seu caráter ideal. Não é possível tomar a vontade unida
do povo empiricamente, já que necessariamente haveria discórdia entre os
147
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 17-18
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 90
149
TERRA, Ricardo R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 44
148
86
cidadãos, e ela deixaria de ser a vontade unida. A universalidade, idealidade
e racionalidade da vontade geral tornam a democracia, entendida dessa
maneira, impossível.150
A teoria republicana de Kant, ao impor como dever que as leis jurídicas, cuja
característica é fazer coexistir as liberdades externas, provenham da autonomia do povo,
como vontade geral, parece relacionar de forma irreversível a liberdade negativa e a liberdade
positiva. Isso porque, na concepção de Kant, no estado de direito constituído por meio de uma
república, a liberdade parece ser concomitantemente fundamento e objetivo do direito,
interpretado como legislação universal, pautada politicamente na ideia de uma vontade geral
do povo:
(...) todo o direito depende das leis. Mas uma lei pública que determina para
todos o que lhes deve ser juridicamente permitido ou interdito é o acto de um
querer público, do qual promana todo o direito e que, por conseguinte, não
deve por si mesmo cometer injustiças contra ninguém. Ora, a este respeito,
nenhuma vontade é possível a não ser a de todo o povo (já que todos
decidem sobre todos e, por conseguinte, cada um sobre si mesmo): pois, só a
si mesmo é que alguém pode causar dano. Mas se for outrem, a simples
vontade de um indivíduo diferente nada sobre ele pode decidir que possa não
ser injusto; por conseguinte, nenhuma vontade particular pode ser
legisladora para um corpo comum. Na realidade, os conceitos de liberdade
externa, de igualdade e de unidade da vontade de todos concorrem para a
formação deste conceito, e a independência é a condição desta unidade, uma
vez que o voto se exige quando a liberdade e a igualdade se encontram
reunidas. Chama-se lei fundamental à que apenas pode provir da vontade
geral (unida) do povo, ou contrato originário.151
Cabe fazer uma distinção entre uma a vontade autônoma, que é característica da esfera
moral, e uma vontade geral, que é própria da República. A vontade autônoma é restrita à
vontade individual, como vontade pura autolegisladora, da razão prática. Já, a vontade geral,
ao passo que é ligada à política, constitui-se como uma autolegislação criada pelo povo.
Ricardo R. Terra explica a diferença entre a vontade autônoma e a vontade geral:
(...) Na ética, a lei é o princípio de determinação subjetivo e objetivo, e é
pensada como lei da própria vontade; no direito, a lei pode também ser a
vontade de outro, o que fundará um dever externo jurídico. As relações das
vontades no direito serão pensadas sob uma vontade em geral, o que remete
para a autonomia no direito, pois todos participam da legislação à qual se
submetem, as relações jurídicas devendo dar-se sob as leis universais da
liberdade; dessa forma a liberdade externa (jurídica) é definida como "a
150
151
TERRA, op. cit., p. 44
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. p. 80
87
faculdade de não obedecer a nenhuma lei externa, senão àquelas às quais
possa dar meu consentimento".152
Nesses termos, a vontade geral é a única vontade que, essencialmente por sua
natureza, possui sempre como escopo o bem comum, pois é constituída pelas vontades dos
particulares, enquanto predispostos ao mesmo interesse. Desse modo, não cabe falar-se em
alienação da soberania, uma vez que é constituída da vontade geral, visando sempre o bem
comum. Vejamos o que aduz Ricardo R. Terra:
O contrato originário e a noção de vontade geral já indicavam que o poder
supremo, a soberania, só poderia estar com o povo. "O summus imperans
não é membro da sociedade, como homem, porém tira sua potência das
forças da sociedade. Portanto, ele não é outro senão toda a sociedade. Cada
membro da sociedade precisa ter direito de coerção e submeter-se a ele. O
summus imperans não precisa de nenhuma coerção, porque sua vontade
sempre provém da vontade geral, consequentemente é sempre boa". A
sociedade é formada pela união das vontades particulares numa "vontade
geral (unida) do povo". Ora, nessa junção cada um estará pondo suas forças
à disposição do todo, surgindo daí, ao mesmo tempo, a sociedade e o poder
soberano. Todos estarão sob esse poder e serão coagidos a obedecer-lhe,
poder que não erra, pois não pode exprimir interesses pessoais como as
vontades particulares, situando-se sempre na dimensão da universalidade
legal da razão.153
Seguindo o entendimento kantiano, a vontade autônoma, isto é, interna, transforma-se
em vontade geral, isto é, externa. A vontade geral constitui um espaço da liberdade na
sociedade civil, como unidade e autonomia do povo.
Segundo Kant, a constituição republicana, por ser expressão da liberdade e
concomitantemente ter como intuito a promoção desta, é a única que decorre da ideia do
contrato originário, sobre a qual toda legislação jurídica de um povo tem de estar constituída:
Eis, pois, um contrato originário no qual apenas se pode fundar entre os
homens uma constituição civil, por conseguinte, inteiramente legítima, e
também uma comunidade. - Mas neste contrato (chamado contractus
originarius ou pactum sociale), enquanto coligação de todas as vontades
particulares e privadas num povo numa vontade geral e pública (em vista de
uma legislação simplesmente jurídica), não se deve de modo algum
pressupor necessariamente como um facto (e nem sequer é possível
pressupô-lo); como se, por assim dizer, houvesse primeiro de provar-se a
partir da história que um povo, em cujo direito e obrigações entrámos
enquanto descendentes, tivesse um dia de haver realizado efectivamente um
tal acto e nos houvesse legado oralmente ou por escrito uma notícia segura
152
153
TERRA, Ricardo R. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 90-91
TERRA, op. cit., p. 44-45
88
ou um documento a seu respeito, para assim se considerar ligado a uma
constituição civil / já existente.154
Ricardo R. Terra aduz sobre o conceito kantiano de constituição republicana:
A constituição republicana é uma ideia da razão ligada à do contrato
originário, reafirmando a liberdade civil, a igualdade dos homens, além de
sua sujeição a um sistema legal, válido para todos, e que se origina na
vontade unida do povo. Correspondente à ideia do direito dos homens e à da
justiça, é uma constituição que garante a realização do direito, devendo para
isso ser representativa.155
Para Kant, a liberdade apenas existe por que há coação, sendo que, há liberdade para
se fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. O direito, então, passa a ser o fundamento da noção
de liberdade externa, permitindo limitar a liberdade de cada indivíduo a fim de que todos
convivam de forma harmoniosa, existindo assim, coerção na garantia de liberdade de todos.
A liberdade é a condição de uma vida moral e, assim, do direito. Garante direitos e
deveres entre os seres livres. O direito é o instrumento por meio do qual será possível o
exercício da liberdade universal igualitária.
Para Kant, o fundamento objetivo da possibilidade da liberdade é a autonomia da
vontade. Dessa forma, não cabe falar em liberdade sem autonomia, isto é, sem uma possível e
universal autodeterminação racional. E, de igual modo, não existe autonomia sem liberdade.
Nenhuma lei prática possui sentido se não puder ser cumprida livremente.
Concluímos então, que um indivíduo apenas será livre exteriormente dentro da lei,
com a existência de contratos e convenções. O indivíduo somente adquirirá a liberdade dentro
da lei, pois está obrigado a obedecer uma lei da qual ele próprio é o legislador. Os homens
dão-se as leis, sejam morais ou jurídicas, e somente por elas estão limitados.
Quando está fora da lei, o indivíduo fica sujeito ao arbítrio dos outros indivíduos.
Dentro da lei, sua liberdade está garantida, pois os outros indivíduos apenas poderão agir
exteriormente de maneira que não irão ferir a sua liberdade de ação, conforme uma lei
universal.
Podemos notar que em Kant, o objetivo do Direito é a liberdade externa. Os homens se
reúnem em sociedade e constituem um Estado para assegurar a liberdade, o exercício do
arbítrio conforme uma lei universal. O Direito não possui como principal escopo a igualdade
154
155
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. p. 82-83
TERRA, op. cit., p. 46
89
ou a segurança, mas sim a liberdade. Tal liberdade está garantida a todos os seres dotados de
razão, o que gera um postulado igualitário e impõe segurança, uma vez que a liberdade de um
deve estar em consonância com a liberdade de todos os demais, nos termos de uma lei
universal:
(...) o conceito de um direito externo em geral decorre totalmente do
conceito da liberdade na relação externa dos homens entre si e nada tem a
ver com o fim, que / todos os homens de modo natural têm (o intento da
felicidade), nem com a prescrição dos meios para aí chegar; pelo que
também este último fim não deve absolutamente mesclar-se naquela lei
como princípio determinante da mesma.156
Vale ressaltar ainda, a diferença entre o uso público e o uso privado da razão. Kant
entende por uso público da própria razão "aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela faz
perante o grande público do mundo letrado" e, por uso privado "aquele que alguém pode fazer
da sua razão num certo cargo público ou função a ele confiado"157. Desse modo, enquanto o
indivíduo exercer uma função privada, seja de cientista, oficial, sacerdote ou professor, ele
deve agir sem raciocinar, apenas obedecendo os atributos de sua função. Todavia, quando
esse mesmo indivíduo for dirigir-se à sociedade constituída por cidadãos, a um público de
direito, ou seja, transcendental, não deverá sofrer qualquer tipo de limitação ou restrição.
Vejamos o que diz Kant:
(...) o uso que um professor contratado faz da sua razão perante a sua
comunidade é apenas um uso privado, porque ela, por maior que seja, é
sempre apenas uma assembléia doméstica; e no tocante a tal uso, ele como
sacerdote não é livre e também o não pode ser, porque exerce uma
incumbência alheia. Em contrapartida, como erudito que, mediante escritos,
fala a um público genuíno, a saber, ao mundo, por conseguinte, o clérigo, no
uso público da sua razão, goza de uma liberdade ilimitada de se servir da
própria razão e de falar em seu nome próprio.158
Para Kant, o uso público da razão refere-se a uma relação igualitária entre os
indivíduos, na qual, todos eles, livres, discutiriam suas ideias e a partir desta discussão
chegariam a um consenso sobre determinado assunto. Kant expõe casos em que o cidadão,
mesmo não concordando com certos atos do governo, cumpre com suas ordens e,
posteriormente, de forma correta e no momento oportuno, questiona as mesmas. Há
momentos em que o questionamento pode ser prejudicial, no entanto, ele deverá ser feito na
ocasião adequada. Mas, o importante é que o indivíduo não deixe de raciocinar, buscando
156
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. p. 74
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. p. 13
158
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. p. 15
157
90
sempre conhecer as coisas que acontecem ao seu redor. Assim, podemos notar, que apenas
com liberdade é que o cidadão consegue usufruir do uso público da razão.
O uso privado da razão ocorre quando existe uma vinculação a uma legislação, a toda
uma estrutura que estabelece uma determinada função. Quando nos baseamos em normas ou
princípios estamos fazendo o uso privado da razão. É o exercício da função vinculado às
normas da atividade. O uso privado da razão possui determinadas limitações, ou seja, não
existe uma liberdade plena, ao contrário, existem restrições à liberdade. Já no uso público da
razão não há que se falar em restrições da liberdade. É uma argumentação racional, bem
intencionada.
Para melhor entendermos o uso público e o uso privado da razão, Kant aponta como
um de seus exemplos o caso do cidadão que discorda do valor dos impostos que deve pagar.
Em seu uso privado da razão ele deve cumprir seu dever e pagar seus impostos, ou, se não
pagar, será punido de acordo com as regras da sociedade. Mas em seu uso público da razão,
deve expor publicamente seu desacordo com relação ao abuso que tais impostos representam.
Nesse caso, o cidadão deverá discutir a questão, expor suas ideias e argumentar nas instâncias
adequadas:
(...) O cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos;
e uma censura impertinente de tais obrigações, se por ele devem ser
cumpridas, pode mesmo punir-se como um escândalo (que poderia causar
uma insubordinação geral). Mas, apesar disso, não age contra o dever de um
cidadão se, como erudito, ele expõe as suas ideias contra a inconveniência
ou também a injustiça de tais prescrições.159
Nesses termos, os princípios universais não podem ser tirados da experiência, eles
devem ser provenientes a priori da razão. A experiência não é universal, ela é particular. O
critério ético deve ser universalizado, assim, não pode resultar da experiência. O critério
último deve ser dado a priori na razão. Nesse passo, Kant institui a razão pura.
Na visão de Kant, a vontade deve vir da razão e, a razão pura não tira da experiência a
sua fundamentação, mas tira de si própria, não havendo, desse modo, uma heteronomia, mas
sim uma verdadeira e real autonomia pois, o indivíduo dá a lei a si mesmo.
159
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. p. 14
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nossa dissertação procuramos mostrar que encontra-se no centro da filosofia
prática de Kant o conceito de autonomia da vontade, isto é, o conceito da auto-legislação da
razão pura prática. A lei moral como fato da razão postula a existência da liberdade ou de uma
causalidade livre, distinta da necessidade natural. Assim, a liberdade constitui a própria
autonomia da razão pura prática ou da vontade. Nesse passo, é o direito que torna possível a
liberdade externa, que difere da liberdade interna tornada possível por meio da ética, mas que,
por sua vez, encontra o critério de sua validade nos princípios da razão pura prática ou ainda,
em derradeira instância, na legislação autônoma da razão. Desse modo, adentrar uma
sociedade de direito constitui um imperativo categórico da razão jurídica prática, assim como
criar uma constituição republicana e estabelecer a paz perpétua, que são realizações possíveis
somente a partir do pressuposto da autonomia da vontade.
Para isso investigamos, em primeiro lugar, o que Kant compreende como princípio
supremo da moralidade, tal como exposto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Ali, ele procura mostrar que o critério para julgar se nossas ações são morais não pode estar
pautado em uma investigação empírica sobre a natureza humana, nem em exemplos extraídos
da experiência. É a partir de uma análise da razão prática que Kant extrai o princípio da
moral, o imperativo categórico, que consiste em agir de tal maneira que a máxima da tua
vontade possa valer sempre, e ao mesmo tempo, como princípio de uma lei universal. Com
isso Kant apresenta a noção de liberdade como autonomia, de modo que, no caso da ética,
esta autonomia será encontrada no âmbito da liberdade interna; e, no caso do direito, esta
autonomia terá que possibilitar um espaço externo de convivência entre os arbítrios.
A partir desta investigação preliminar sobre o princípio da moralidade e da liberdade
como autonomia procuramos mostrar como Kant funda o princípio universal do direito.
Mostramos como ele distingue as leis éticas das leis jurídicas, esclarecendo que, a legislação
ética é de foro íntimo e autônomo, admitindo como móbil o agir pelo valor intrínseco do
dever e, a legislação jurídica, observada nas leis do direito, está condicionada a exigências
externas que dependem da coação, e até mesmo, se necessário, da força legitimada
proveniente do Estado. Como se refere apenas à conduta externa, a liberdade de que Kant
trata no direito é uma liberdade externa. Isso envolve a noção de coerção, que implica na ideia
de obrigar alguém a cumprir determinada regra ou a ter certa conduta em função da imposição
92
de uma norma. Ora, cria-se aqui uma tensão entre os dois sentidos de liberdade apresentados
por Kant: a liberdade externa do direito e a liberdade como autonomia. Como explicar, então,
que a liberdade no plano do direito não se contrapõe à liberdade como autonomia?
Propusemo-nos a dar resposta a esta questão no terceiro capítulo. Em primeiro lugar,
mostramos como de fato o princípio do direito envolve a noção de coerção, explicitando que a
coerção jurídica não impede a liberdade, senão que ela serve de impedimento ao obstáculo à
liberdade segundo leis universais. Mas por outro lado insistimos que a partir da concepção de
contrato originário em que a ideia de vontade geral cumpre uma função fundamental, que é a
de tornar-se a própria vontade racional de cada membro da sociedade, fazendo com que todos
obedeçam ao imperativo categórico, uma vez que, todos são legisladores de uma legislação
universal; e, também a partir da noção de uso público da razão que permite aos membros da
república questionar se o soberano está sendo coerente com a ideia de uma vontade geral, é
possível compreender como a noção de autonomia está fortemente presente na concepção
kantiana do direito.
A razão precisa impor regras à conduta humana, que se traduz por meio do imperativo
categórico. Desse modo, o imperativo categórico dá a forma de legislação moral, qual seja,
age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa valer sempre concomitantemente como
princípio de uma lei universal.
Kant estabelece então, o princípio universal do direito, que constitui a premissa: age
externamente de maneira que o uso livre do teu arbítrio tenha a possibilidade de conviver com
a liberdade de cada indivíduo conforme uma lei universal.
Segundo Kant, a liberdade se divide em liberdade interna e liberdade externa, de modo
que, a interna refere-se à moral e a externa refere-se ao direito. A liberdade interna gera a
obrigação moral e a liberdade externa gera a obrigação jurídica, assegurada por um sistema de
coação.
A liberdade, interpretada como autonomia da razão, constitui o fundamento do direito.
A liberdade fundamenta a existência de leis internas, geradoras de deveres internos, na forma
de imperativos categóricos. E, esta liberdade interna irá fundamentar a existência de leis
exteriores, que possibilitam o convívio das liberdades individuais. Logo, o direito é a
liberdade exteriorizada.
Agir moralmente significa agir por dever, uma vez que, este dever provém da razão,
lei universal. Quando agimos por dever, estamos agindo racionalmente e exercitando a
93
verdadeira liberdade, livre de quaisquer inclinações externas do mundo sensível. A liberdade
está em agir sem inclinações ou coações externas. A coação é legítima na medida em que
possui o objetivo de impedir a injustiça.
Para Kant, a origem do Estado é ideia da razão humana. Ele entende o homem como
um ser político por meio do exercício de sua liberdade com a qual funda a sociedade civil. O
ato através do qual o povo se constitui em Estado é o chamado contrato originário, onde todos
os integrantes do povo renunciam sua liberdade exterior, para a seguir, readquiri-la como
membros do Estado.
O Estado é, então, um conjunto de homens regidos por leis jurídicas. Estas leis
emanam do legislador, que é o soberano, que representa e concomitantemente se identifica
com o próprio povo. Apenas uma vontade unida e concordante de todos, isto é, uma vontade
popular universalmente unida, pode ser legisladora.
Para Kant, o conceito do cidadão que irá compor este Estado possui basicamente três
elementos: ele tem liberdade legal para não obedecer nenhuma outra lei senão aquelas a que
tenha aceitado e concordado; ele também tem a igualdade civil de não reconhecer entre o
povo nenhum superior senão aquele que tem faculdade moral de obrigar juridicamente do
mesmo modo, que por sua vez pode ser obrigado; e, ainda, possui a independência civil que
consiste, como membro da república, em ser devedor de sua existência e de sua conservação,
não ao arbítrio de outro povo, mas sim aos próprios direitos e faculdades.
Temos assim, a participação do povo, que sempre foi formalmente titular do poder
soberano, mas que apenas no paradigma do Estado Democrático de Direito, passa de fato a
exercê-lo. Desse modo, os cidadãos deixam de ser meros expectadores, e passam a fazer parte
da vontade do Estado, participando da elaboração das normas jurídicas e da execução de
decisões políticas.
94
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