Relação entre as causas de morte evitáveis por atenção à saúde e

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Investigación original / Original research
Relação entre as causas de morte evitáveis
por atenção à saúde e a implementação
do Sistema Único de Saúde no Brasil
Daisy Maria Xavier de Abreu,1 Cibele Comini César 2
e Elisabeth Barboza França 3
1
2
Como citar
Abreu DMX, César CC, França EB. Relação entre as causas de morte evitáveis por atenção à saúde e a
implementação do Sistema Único de Saúde no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2007;21(5):282–91.
RESUMO
Objetivos. Analisar a relação entre a ocorrência de mortes que poderiam ser evitadas por
atenção à saúde e o processo de reorganização do sistema de saúde brasileiro entre 1983 e 2002.
Métodos. No presente estudo ecológico, a mortalidade por causas evitáveis foi analisada em
117 municípios. As causas de morte evitáveis por atenção à saúde foram agrupadas em: evitáveis por diagnóstico e tratamento precoce, evitáveis por melhoria no tratamento e na atenção
médica e doença isquêmica do coração. Para avaliar a associação entre as causas de morte evitáveis e a reorganização do sistema de saúde, o período analisado foi dividido em dois subperíodos, 1983 a 1992 e 1993 a 2002 (antes e depois da aprovação da norma operacional que serviu como referencial para a implantação do Sistema Único de Saúde). Utilizou-se um modelo
de regressão binomial negativa, com controle das variáveis sexo, idade, região geográfica e condições socioeconômicas.
Resultados. No período analisado, ocorreram 1 854 165 óbitos por causas evitáveis nas idades de 0 a 74 anos nos municípios selecionados. A análise multivariada indicou que o risco foi
maior no período de 1983 a 1992 em relação ao período de 1993 a 2002 para os três grupos de
causas evitáveis estudados. Observou-se que os homens apresentaram risco maior, particularmente para a doença isquêmica do coração. As populações mais jovens tiveram um risco menor.
O nível socioeconômico mais elevado reduziu o risco de morte por causas evitáveis, exceto para
a doença isquêmica do coração.
Conclusões. Os resultados sugerem que, no Brasil, o declínio da mortalidade por causas
evitáveis entre 1983 e 2002 deveu-se, em parte, às mudanças na oferta e no acesso aos serviços
de saúde, impulsionadas pela reorganização do sistema de saúde a partir da década de 1990.
Palavras-chave
Avaliação de serviços de saúde, Brasil, causas de morte evitáveis, estudos ecológicos, mortalidade.
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Medicina, Programa de Pós-Graduação
em Saúde Pública. Enviar correspondência para
esta autora no seguinte endereço: Av. Alfredo Balena 190, sala 9028, Santa Efigênia, CEP 30130-100,
Belo Horizonte, MG, Brasil. Tel: +55-31-3248-9685;
e-mail: dmxa@medicina.ufmg.br
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
Instituto de Ciências Exatas, Departamento de Estatística, Belo Horizonte (MG), Brasil.
282
O interesse em avaliar o impacto dos
sistemas de atenção à saúde sobre os
níveis de saúde da população foi impulsionado por Rutstein et al. (1), que
3
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Medicina, Departamento de Medicina
Preventiva e Social, Belo Horizonte (MG), Brasil.
identificaram grupos de causas de
óbito relacionados à qualidade da
atenção prestada. Essa abordagem considera que, se o progresso tecnológico e
médico-científico e o modelo assistencial são direcionados para a prevenção
e o tratamento de doenças evitáveis, o
desenvolvimento desse tipo de doença
Rev Panam Salud Publica/Pan Am J Public Health 21(5), 2007
Abreu et al. • O sistema de saúde e as causas de morte evitáveis no Brasil
poderia não ocorrer ou ser interrompido em estágios menos avançados.
Dessa forma, seria possível reduzir as
taxas de morbidade hospitalar e de
mortalidade por essas causas.
Ao final do século XX e início do
século XXI, a validade e a aplicabilidade do conceito de mortalidade evitável como uma medida de efeito da
atenção à saúde foram demonstradas
em vários estudos conduzidos em países desenvolvidos (2–7). Desde então,
verificou-se um crescimento do interesse científico na identificação, mensuração e análise de variações temporais,
regionais e socioeconômicas da mortalidade por patologias que poderiam ser
evitadas por ações de saúde. Nesses estudos, observa-se uma variabilidade
nas metodologias aplicadas, nos critérios de seleção de causas de morte e nas
variáveis explicativas e de confusão utilizadas (8). A definição de quais causas
de morte podem ser consideradas como
evitáveis tem se modificado no decorrer
do tempo em função do desenvolvimento e da introdução de novas tecnologias médicas, bem como dos objetivos
dos estudos realizados (9).
Os trabalhos que abordam tendências temporais sugerem que a redução
nos níveis de mortalidade por causas
evitáveis pode ser explicada, pelo
menos em parte, pelo aumento da efetividade dos serviços de saúde (10–12).
O ritmo de declínio pode também
estar relacionado com a introdução de
uma melhoria específica da atenção
médica (13). Outros estudos comparativos têm indicado que variações regionais existentes na mortalidade
podem estar relacionadas ao acesso à
assistência, que reflete as condições socioeconômicas da população (2, 3, 14,
15). As melhorias na oferta e no acesso
a serviços de saúde de qualidade tiveram impacto em vários países durante
os anos 1980 e 1990, com redução da
mortalidade de crianças, de adultos
em algumas faixas etárias e de mulheres em idades mais avançadas (8).
No Brasil, a análise de causas evitáveis para a população em geral ainda é
pouco desenvolvida (16, 17). O critério
de evitabilidade da mortalidade, baseado na classificação de Rutstein et al.
(1), vem sendo explorado, na maioria
das vezes, em estudos sobre mortalidade infantil e perinatal (18-20). Entretanto, a abordagem da mortalidade
evitável na realidade brasileira se
torna pertinente em virtude dos
padrões de morbi-mortalidade vigentes, que exigem respostas das políticas
públicas de saúde nos diferentes níveis
de atenção. Ainda persistem significativas diferenças entre regiões e municípios brasileiros, tanto na distribuição da oferta de atenção à saúde
quanto no acesso da população aos
serviços de saúde. Essas diferenças se
refletem na saúde da população e repercutem nos níveis e na estrutura da
mortalidade, mantendo, ampliando ou
reduzindo os diferenciais regionais e
sociais (21, 22). Portanto, as políticas
de saúde devem ser capazes de enfrentar esse desafio.
O atual sistema de saúde brasileiro
apresenta, como um de seus principais
objetivos, alterar a situação de desigualdade na oferta de serviços de saúde à
população. Sua organização foi engendrada a partir de um longo processo cumulativo de transformações políticas
mais amplas, incrementadas na década
de 1980 (23). Várias propostas de organização da atenção à saúde antecederam e orientaram o modelo consubstanciado na Constituição Federal de 1988,
que criou o Sistema Único de Saúde
(SUS). Esse sistema buscou organizar
uma rede assistencial que possibilitasse
o acesso universal e igualitário às ações
e serviços de saúde, com um modelo
baseado na regionalização e hierarquização do cuidado, na priorização de
atividades preventivas e no desenvolvimento de mecanismos de participação
da comunidade (24). O processo de mudança teve início efetivo nos anos 1990,
com atos normativos e administrativos
que procuraram garantir a acessibilidade da população aos serviços de
saúde, com repercus-são nos indicadores de saúde da população (25).
Nesse contexto, justifica-se o desenvolvimento de estudos para identificar
as implicações das mudanças ocorridas a partir da implementação do SUS
para a saúde da população brasileira.
Ao se ampliar o acesso aos serviços de
saúde, seria esperada uma redução
nas causas de morte evitáveis por
Rev Panam Salud Publica/Pan Am J Public Health 21(5), 2007
Investigación original
atenção à saúde. Dessa forma, o presente trabalho teve como objetivo analisar a mortalidade por causas evitáveis em municípios brasileiros no
período de 1983 a 2002, relacionando-a
com o processo de reorganização do
sistema de saúde brasileiro.
MATERIAIS E MÉTODOS
Este é um estudo ecológico, cuja unidade de análise é o município. Foram
investigados os óbitos por causas evitáveis no período de 1983 a 2002. A
fonte de dados para óbitos foi o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. As
estimativas populacionais foram obtidas junto ao Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Os
dados foram processados pelo programa Tabwin 3.2, com programação
dos arquivos de conversão e definição para município, sexo, idade e causas selecionadas (baseadas na Nona
Revisão da Classificação Internacional
de Doenças, CID-9, para os anos de
1983 a 1995, e na Décima Revisão,
CID-10, para o período de 1996 a
2002). Considerando-se que o uso de
duas versões da CID poderia representar um problema para a análise da
evolução da mortalidade por causas
(8, 26), a definição das causas evitáveis
baseou-se nos códigos de três dígitos,
o que garantiu que as mesmas patologias fossem incluídas na classificação
de causas evitáveis utilizada.
Definição da amostra
Em virtude dos problemas de qualidade das informações de óbitos ainda
existentes no Brasil (27–29), foram definidos os seguintes critérios de inclusão
para seleção dos municípios deste estudo: população maior do que 100 mil
habitantes, população urbana maior do
que 90%, desvio médio da taxa geral de
mortalidade (DTGM) menor do que
10%, porcentagem de causas mal definidas menor do que 10%.
A escolha desses critérios deveu-se
ao fato de que municípios maiores e
mais urbanizados dispõem de melho-
283
Investigación original
Abreu et al. • O sistema de saúde e as causas de morte evitáveis no Brasil
res condições em termos da oferta de
serviços de saúde e melhor qualidade
nas informações. Quanto ao DTGM,
valores menores do que 10% indicam
maior estabilidade das taxas, com controle de possíveis flutuações estocásticas. Além desses, um dos indicadores
clássicos da qualidade das informações sobre mortalidade é a proporção de óbitos atribuídos a causas
mal definidas, que deve ser menor do
que 10% (26).
A partir desses critérios, foram incluídos 117 municípios brasileiros. A
grande maioria encontra-se nas regiões
Sudeste e Sul (84 e 24 municípios, respectivamente, o que representa cerca
de 92% dos 117 municípios), com poucos municípios localizados no Nor-
deste e Centro-Oeste (cinco e quatro
municípios, respectivamente). Nenhum município da Região Norte foi
selecionado.
Variáveis selecionadas
Para definir as causas evitáveis de
óbito, considerou-se a revisão das classificações de causas evitáveis realizada
por Nolte e McKee (8) e as propostas
de Simonato et al. (30) e Tobias e Jackson (31). Esta última ampliou e qualificou as classificações desenvolvidas
por Charlton et al. (2) e Mackenbach et
al. (12). Foi construída uma tipologia
adaptada de causas evitáveis, com três
grupamentos (tabela 1).
O primeiro grupo foi constituído
pelas causas evitáveis por diagnóstico
e tratamento precoce, incluindo causas
de morte para as quais há evidências
de que cuidados médicos preventivos
podem postergar ou impedir o avanço
da doença (neoplasmas de mama,
útero, pele, dentre outras) ou a recorrência dos eventos (acidente vascular cerebral, por exemplo). O segundo
grupo foi composto por causas consideradas evitáveis por melhoria no tratamento e na atenção médica. Neste
grupamento foram incluídas, por
exemplo, as infecções intestinais, cuja
mortalidade é altamente afetada por
tratamento com antibióticos e vacinação. Também fazem parte deste
grupo, em virtude da sua evitabilidade
TABELA 1. Classificação das causas evitáveis de morte em gruposa
Grupo de causas
Grupo de causas evitáveis por diagnóstico e tratamento precoce
Neoplasma maligno do cólon e reto
Neoplasma maligno da pele
Neoplasma maligno da mama
Neoplasma maligno do colo do útero
Neoplasma maligno do corpo do útero
Doenças da tireóide
Diabetes melito
Epilepsia
Doenças cerebrovasculares
Influenza
Pneumonia
Hiperplasia da próstata
Grupo de causas evitáveis por melhoria no tratamento e na atenção médica
Infecções intestinais
Tuberculose
Outras infecções (difteria, tétano, poliomielite)
Coqueluche
Septicemia
Sarampo
Neoplasma maligno do testículo
Doença de Hodgkin
Leucemia
Doença reumática crônica do coração
Doenças hipertensivas
Todas as doenças respiratórias (exceto pneumonia/influenza)
Úlcera péptica
Apendicite
Hérnia abdominal
Colelitíase e colecistite
Nefrite e nefrose
Mortalidade materna
Anomalias congênitas do coração
Acidentes com pacientes durante intervenção cirúrgica e atenção médica
Doença isquêmica do coração
Idade (anos)
CID 9b
CID 10c
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 44
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
153-154
173
174
180
179, 182
240-246
250
345
430-438
487
480-486
600
C18-C21
C44
C50
C53
C54, C55
E00-E07
E10-E14
G40-G41
I60-I69
J10-J11
J12-J18
N40
0 a 14
0 a 74
0 a 74
0 a 14
0 a 74
1 a 14
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
1 a 14
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
0 a 74
001-009
010-018, 137
032, 037, 045
033
38
55
186
201
204-208
393-398
401-405
460-479, 488-519
531-533
540-543
550-553
574-575.1
580-589
630-676
745-747
E870-E876, E878-E879
410-414
A00-A09
A15-A19, B90
A36, A35,A80
A37
A40-A41
B05
C62
C81
C91-C95
I05-I09
I10-I13, I15
J00-J09, J20-J99
K25-K27
K35-K38
K40-K46
K80-K81
N00-N07, N17-N19, N25-N27
O00-O99
Q20-Q28
Y60-Y69, Y83-Y84
I20-I25
a
Seleção baseada em classificações propostas por Simonato et al. (30), Tobias e Jackson (31) e Nolte e McKee (8).
Nona revisão da Classificação Internacional de Doenças (1983 a 1992).
c Décima revisão da Classificação Internacional de Doenças (1993 a 2002).
b
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Rev Panam Salud Publica/Pan Am J Public Health 21(5), 2007
Abreu et al. • O sistema de saúde e as causas de morte evitáveis no Brasil
por intervenções médicas e cirúrgicas,
as doenças hipertensivas, a úlcera péptica, a apendicite e a complicações da
gravidez e do parto. A mortalidade por
essas causas está relacionada com uma
complexa articulação no interior do sistema de saúde, que prevê um diagnóstico acurado, acesso a serviços especializados e adequada atenção médica e
cirúrgica (30). Assim, no segundo
grupo, foram incluídas causas para as
quais as taxas de mortalidade podem
ser significativamente reduzidas por
tratamento médico e cirúrgico existente, mesmo quando o processo da
doença esteja totalmente desenvolvido.
O terceiro grupo correspondeu à
doença isquêmica do coração, considerada em separado devido ao seu peso
relativo na mortalidade geral. Além
disso, não há consenso sobre qual é o
tipo de intervenção médica que prioritariamente tem impacto na ocorrência
dessa doença (8).
A seleção das causas de morte evitáveis procurou abarcar diferentes tipos
de atenção à saúde. Na escolha das
causas foram excluídas aquelas para as
quais a intervenção efetiva ocorre fora
do controle direto do sistema de saúde,
incluindo várias formas de prevenção
primária, conforme proposto por
Charlton et al. (2) e por Mackenbach
et al. (12). Foram observados ainda os
grupos etários para os quais cada patologia pode ser classificada como potencialmente evitável. A idade limite considerada para a maioria das causas foi
74 anos (tabela 1), tendo em vista as
tendências de aumento da esperança
de vida ao nascer e a limitação na possibilidade de intervenção visando a redução das taxas de mortalidade acima
dessa faixa etária (8).
Neste estudo, não foram incluídas as
causas perinatais, por falta de dados
disponíveis sobre nascidos vivos para
anos anteriores a 1994. Sabe-se que o
enfoque da evitabilidade é recomendado para esses óbitos, dado que boa
parte deles, especialmente em países
em desenvolvimento, poderia ser evitada com a melhoria da assistência prénatal, ao parto e ao recém-nascido (20,
32). No Brasil, já existe uma discussão
sobre o tema, no sentido de se elaborar
uma classificação que possa ser utili-
zada para esse grupo etário, em especial, e para as demais idades (33).
Foram selecionadas as seguintes variáveis socioeconômicas: percentual de
pessoas com idade igual ou maior do
que 25 anos e 12 anos ou mais de estudo; percentual de pessoas com idade
igual ou maior do que 25 anos e menos
de 4 anos de estudo; razão entre a
renda média dos 10% mais ricos e a
dos 40% mais pobres (medida do grau
de desigualdade na distribuição de indivíduos segundo a renda domiciliar
per capita); índice de Gini; renda per capita; e esperança de vida ao nascer. As
variáveis socioeconômicas foram obtidas do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, com indicadores para
os anos de 1991 e 2000, disponíveis por
município. Esses anos correspondem
aos dois últimos censos demográficos
brasileiros (34).
Como foram utilizadas variáveis socioeconômicas possivelmente correlacionadas, e para evitar problemas de
estimação do modelo, foi aplicada a
técnica de análise fatorial para criação
de novos indicadores socioeconômicos. A partir da análise dos interrelacionamentos das variáveis, foram
gerados dois fatores, que explicavam
68% da variação observada nas variáveis originais. O primeiro fator apresentou correlação alta com as variáveis
índice de Gini e razão entre a renda
média dos 10% mais ricos e dos 40%
mais pobres, e recebeu o nome de “desigualdade” (D). Já o segundo fator era
altamente correlacionado com as variáveis percentual de pessoas com
idade igual ou maior do que 25 anos e
12 anos ou mais de estudo, percentual
de pessoas com idade igual ou maior
do que 25 anos e menos de 4 anos de
estudo e renda per capita, e foi denominado “nível socioeconômico” (NSE). A
questão da raça/etnia não foi introduzida no modelo de análise por problemas de qualidade da informação
disponível.
No controle de possíveis fatores de
confusão, foram consideradas ainda as
variáveis sexo, faixa etária (dividida
em 0 a 14 anos, 15 a 44 anos, 45 a 64
anos e 65 a 74 anos) e região geográfica
brasileira (Nordeste, Sudeste, CentroOeste e Sul).
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Investigación original
Análise dos dados
Os dados foram analisados utilizandose o programa estatístico Stata 8.0.
Na análise da mortalidade por causas, foi considerado o número de óbitos por grupo de causas evitáveis no
período de 1983 a 2002. Para o cálculo
das taxas de mortalidade padronizadas por idade, foi utilizada, como
distribuição etária padrão, a população do Brasil em 1991. Essa escolha
baseou-se na consideração de que a
população brasileira nesse ano poderia
representar uma média razoável das
distribuições etárias proporcionais
existentes no país.
As análises de associação foram realizadas inicialmente através do modelo de regressão de Poisson. Na aplicação do modelo de Poisson, supõe-se
igualdade entre a média e a variância.
Entretanto, quando a variabilidade é
maior do que a média, considera-se
que há sobredispersão, ou seja, a suposição básica do modelo — de igualdade entre a média e a variância — não
é válida (35). Uma alternativa nesse
caso é o modelo binomial negativo,
que considera a sobredispersão como
resultado de uma heterogeneidade
não observada. O modelo binomial negativo oferece como parâmetro a razão
de taxas de incidência (incidence rate
ratio, IRR), da mesma forma que o modelo de Poisson. O IRR indica qual foi
a alteração na incidência (expressa em
%) associada ao acréscimo unitário na
variável explicativa em análise, com
todas as outras variáveis do modelo
mantidas constantes.
Para todos os conjuntos de variáveis
explicativas considerados, foram ajustados o modelo de Poisson e o modelo
binomial negativo e, através do teste
da razão de verossimilhança, verificouse a significância do parâmetro indicativo de heterogeneidade não observada (α). Em todos os casos, a hipótese
de nulidade do parâmetro α foi rejeitada. Dessa forma, a análise final foi
realizada através do modelo binomial
negativo, que foi ajustado para identificar mudanças no nível e na variação
da mortalidade evitável. A variável
resposta foi o número de óbitos segundo as causas evitáveis seleciona-
285
Investigación original
das. As variáveis explicativas selecionadas foram período (1983 a 1992 e
1993 a 2002), distribuição da população por sexo e faixa etária, região
brasileira e condições socioeconômicas. O critério de significância adotado
foi P < 0,05.
A separação em dois períodos reflete
a hipótese de que a mortalidade por
causas evitáveis pode ter sido afetada
pelas mudanças operadas no sistema
de saúde em determinados momentos.
Foi considerada como marcador dessas
mudanças a introdução de normas que
redefiniram a organização de serviços
de saúde (25), ou seja, portarias do Ministério da Saúde que estabeleceram
os objetivos e as diretrizes estratégicas
para o processo de descentralização das
políticas de saúde. A Norma Operacional SUS 01, de maio de 1993 (NOB-SUS
01/93), pode ser considerada como referencial do processo de implantação
do SUS, na medida em que procurou
sistematizar o processo de descentralização da gestão do sistema e serviços
de saúde, transferindo para os estados
e municípios as responsabilidades de
operacionalização do SUS, antes concentradas no nível federal.
RESULTADOS
De 1983 a 2002, ocorreram 1 854 165
óbitos por causas evitáveis na faixa de
0 a 74 anos de idade nos municípios
selecionados. Na população masculina,
esses óbitos representaram 32,51% do
total de óbitos por todas as causas
(1 016 331 óbitos por causas evitáveis
de 3 126 492 óbitos por todas as causas) e, na população feminina, 46,00%
(837 834 óbitos por causas evitáveis de
1 821 526 óbitos por todas as causas)
(tabela 2).
As causas evitáveis por diagnóstico
e tratamento precoce responderam por
45,28% e 55,84% do total de óbitos por
causas evitáveis para homens e mulheres, respectivamente. Dentre essas,
as doenças cerebrovasculares foram as
mais freqüentes, em ambos os sexos.
As causas evitáveis por melhoria no
tratamento e na atenção médica foram
responsáveis por cerca de um quarto
dos óbitos evitáveis em homens e mu-
286
Abreu et al. • O sistema de saúde e as causas de morte evitáveis no Brasil
lheres. Nesse grupo de causas, as doenças hipertensivas foram as que tiveram
a maior participação para ambos os
sexos. Já a doença isquêmica do coração foi responsável por 29,68% dos
óbitos masculinos e 19,66% dos femininos (tabela 2).
Em termos da razão de taxas de
mortalidade entre os dois períodos de
análise, observou-se que o risco foi
maior para o período de 1983 a 1992
em relação ao período de 1993 a 2002
para todos os grupos de causas evitáveis. O mesmo não ocorreu com as
taxas de morte por causas não evitáveis, que se mantiveram praticamente
constantes, tanto para os homens
quanto para as mulheres (tabela 3).
A redução dos níveis de mortalidade
pode também ser confirmada pela análise da variação percentual das taxas
padronizadas por idade para os grupos
de causas evitáveis nos dois períodos
(tabela 3). Os resultados indicaram que,
tanto para homens como para mulheres, houve redução dos níveis de mortalidade. A variação foi semelhante
para as causas evitáveis por diagnóstico e tratamento e doença isquêmica
do coração e mais evidente para as causas evitáveis por melhoria no tratamento e atenção médica. As maiores diferenças entre homens e mulheres em
termos de níveis de mortalidade foram
observadas para a doença isquêmica do
coração, sendo que as taxas padronizadas para as mulheres representaram
praticamente a metade daquelas encontradas para os homens, diferença mantida mesmo com o declínio das taxas de
mortalidade por essa causa. No tocante
à mortalidade por causas não evitáveis,
as taxas padronizadas apresentaram
um pequeno aumento para os homens
(variação de 1,37%), enquanto que para
as mulheres houve uma diminuição de
5,31%. No total das causas de morte, o
que se observou foi uma redução nas
taxas de mortalidade, sendo essa redução um pouco maior para as mulheres (16,11% contra 10,48% para os
homens). Nota-se ainda que as taxas
padronizadas de mortalidade das mulheres representaram praticamente a
metade das taxas dos homens para as
causas não evitáveis e para o total de
causas (tabela 3).
Na tabela 4 são apresentados os resultados das análises de associação
entre a mortalidade para os grupos de
causas evitáveis e variáveis explicativas selecionadas. Para cada grupo de
causas evitáveis foi ajustado um modelo, incluindo todas as variáveis consideradas no estudo. Através desse
modelo, foi possível identificar as variáveis significativas nos diferentes
grupamentos de causas evitáveis.
A variável explicativa de maior
interesse —período de análise (1983 a
1992 e 1993 a 2002)— manteve-se significativa no modelo final (P < 0,05)
para os três grupos de causas evitáveis
por atenção à saúde, após controle da
situação socioeconômica, região geográfica, sexo e idade. O risco de morte
por causas evitáveis por diagnóstico e
tratamento precoce foi 33,56% maior
no período de 1983 a 1992 em relação
ao período de 1993 a 2002. Para os
óbitos por causas evitáveis por melhoria no tratamento e atenção médica, o
risco foi maior cerca de 27,18%. Para
as mortes provocadas por doença isquêmica do coração, o risco foi maior
22,34% no primeiro período (1983 a
1992) comparativamente ao segundo
(1993 a 2002) (tabela 4).
A variável sexo apresentou uma
performance de magnitude variada,
mas sempre no mesmo sentido: o sexo
masculino representou um risco maior
em relação ao sexo feminino. Os homens tiveram um risco 14,03% maior
para as mortes por causas evitáveis
por diagnóstico e tratamento, 30,37%
maior para os óbitos por causas evitáveis por melhoria no tratamento e
atenção médica e até 116,51% maior
para doença isquêmica do coração.
A análise dos grupos etários em relação ao grupo de referência (65 a 74
anos) mostra um risco menor para as
idades mais jovens (entre 0 e 14 anos e
15 e 44 anos). Esse comportamento foi
ainda mais acentuado para os óbitos
por doença isquêmica do coração.
A variável indicadora de localização
regional (tomando a Região Sul como
referência, por ser uma das regiões
com melhores condições socioeconômicas), apresentou também situações
particulares segundo o grupamento de
causas evitáveis analisado. Essa variá-
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Abreu et al. • O sistema de saúde e as causas de morte evitáveis no Brasil
Investigación original
TABELA 2. Distribuição dos óbitos por causas evitáveis segundo o sexo, Brasil, 1983 a 2002
Homens
Grupo de causas
Causas evitáveis por diagnóstico e tratamento precoce
Doenças cerebrovasculares
Pneumonia
Diabetes melito
Neoplasma maligno da mama
Neoplasma maligno do cólon e reto
Neoplasma maligno do colo do útero
Epilepsia
Neoplasma maligno da pele
Neoplasma maligno do corpo do útero
Doenças da tireóide
Influenza
Hiperplasia da próstata
Causas evitáveis por melhoria no tratamento e na atenção médica
Doenças hipertensivas
Infecções intestinais
Tuberculose
Septicemia
Nefrite e nefrose
Anomalias congênitas do coração
Leucemia
Úlcera péptica
Doença reumática crônica do coração
Mortalidade materna
Colelitíase e colecistite
Todas as doenças respiratórias (exceto pneumonia/influenza)
Acidentes com pacientes durante intervenção cirúrgica
e atenção médica
Doença de Hodgkin
Hérnia abdominal
Apendicite
Sarampo
Outras infecções (difteria, tétano, poliomielite)
Neoplasma maligno do testículo
Coqueluche
Doença isquêmica do coração
Total de causas evitáveis
Total de causas (inclusive evitáveis)
Mulheres
Total
No.
%a
No.
%a
No.
%a
460 200
232 262
130 704
66 545
166
20 923
0
5 517
2 245
0
357
554
927
254 441
58 283
35 311
38 113
27 575
26 527
18 189
15 304
11 553
5 505
0
2 837
3 273
45,28
22,85
12,86
6,55
0,02
2,06
0,00
0,54
0,22
0,00
0,04
0,05
0,09
25,04
5,73
3,47
3,75
2,71
2,61
1,79
1,51
1,14
0,54
0,00
0,28
0,32
467 888
188 492
83 655
78 142
61 855
22 721
24 297
2 956
1 086
2 548
1 720
416
0
205 215
54 226
27 432
13 395
21 598
19 981
16 104
12 896
5 032
9 221
10 411
3 962
2 719
55,84
22,50
9,98
9,33
7,38
2,71
2,90
0,35
0,13
0,30
0,21
0,05
0,00
24,49
6,47
3,27
1,60
2,58
2,38
1,92
1,54
0,60
1,10
1,24
0,47
0,32
928 088
420 754
214 359
144 687
62 021
43 644
24 297
8 473
3 331
2 548
2 077
970
927
459 656
112 509
62 743
51 508
49 173
46 508
34 293
28 200
16 585
14 726
10 411
6 799
5 992
50,05
22,69
11,56
7,80
3,34
2,35
1,31
0,46
0,18
0,14
0,11
0,05
0,05
24,79
6,07
3,38
2,78
2,65
2,51
1,85
1,52
0,89
0,79
0,56
0,37
0,32
2 165
2 449
1 766
1 808
957
1 156
1 467
203
301 690
1 016 331
3 126 492
0,21
0,24
0,17
0,18
0,09
0,11
0,14
0,02
29,68
100,00
–
1 980
1 532
1 785
1 187
852
646
0
256
164 731
837 834
1 821 526
0,24
0,18
0,21
0,14
0,10
0,08
0,00
0,03
19,66
100,00
–
4 145
3 981
3 551
2 995
1 809
1 802
1 467
459
466 421
1 854 165
4 948 018
0,22
0,21
0,19
0,16
0,10
0,10
0,08
0,02
25,16
100,00
–
Fonte: Ministério da Saúde/DATASUS/Sistema de Informações sobre Mortalidade.
a Percentual em relação ao total de causas evitáveis por sexo.
vel só apresentou significância estatística (após controle do período, condição socioeconômica, sexo e idade)
para os óbitos por doença isquêmica
do coração, com todas as regiões apresentando risco menor em relação à Região Sul (tabela 4). Foi expressivo o
valor do IRR encontrado para a Região
Nordeste no caso das causas evitáveis
por melhoria no tratamento e atenção
médica — 47,53% maior do que o risco
de morte por esse grupo de causas na
Região Sul. Já para os óbitos por causas evitáveis por diagnóstico e tratamento precoce, o risco foi 4,42% maior
para o Sudeste quando comparado
com a Região Sul.
Dentre os dois fatores indicadores
de nível socioeconômico (NSE e D), o
primeiro foi significativo para os óbitos por causas evitáveis por diagnóstico e tratamento e causas evitáveis
por melhoria no tratamento e atenção
médica. Dessa forma, sendo NSE uma
variável contínua, pode-se inferir que,
para cada aumento neste fator, houve
uma redução no risco de morte por
causas evitáveis de aproximadamente
8% para as mortes por causas evitáveis
por diagnóstico e tratamento e de 10%
para os óbitos por causas evitáveis por
melhoria no tratamento e atenção médica. O fator D, indicativo de desigualdade social, só não apresentou efeito
Rev Panam Salud Publica/Pan Am J Public Health 21(5), 2007
significativo para os óbitos por causas
evitáveis por diagnóstico e tratamento.
Entretanto, os limites do intervalo de
confiança de 95% apresentaram valores muito próximos de 1.
DISCUSSÃO
Os resultados deste estudo indicam
que houve uma redução nos níveis de
mortalidade por causas evitáveis por
atenção à saúde no período de 1993 a
2002 em relação ao período de 1983
a 1992, após controle do nível socioeconômico e de variáveis demográficas.
Para o grupamento de causas evitáveis
287
Investigación original
Abreu et al. • O sistema de saúde e as causas de morte evitáveis no Brasil
TABELA 3. Distribuição das taxas de mortalidade padronizadas por idade segundo o grupo de causas evitáveis e o sexo, Brasil, 1983 a
1992 e 1993 a 2002a
Homens
Grupos de causas
Causas evitáveis por diagnóstico
e tratamento precoce
Causas evitáveis por melhoria
no tratamento e na atenção médica
Doença isquêmica do coração
Causas não evitáveis
Total de causas
a
Mulheres
1983 a
1992
(a)
1993 a
2002
(b)
Razão
de taxas
(a/b)
Variação
(%)
1983 a
1992
(a)
1993 a
2002
(b)
Razão
de taxas
(a/b)
Variação
(%)
108,56
81,79
1,33
–24,66
96,13
75,93
1,27
–21,01
64,58
68,20
388,47
677,19
44,37
53,54
393,80
606,25
1,46
1,27
0,99
1,12
–31,29
–21,49
1,37
–10,48
48,09
32,73
163,99
375,76
33,16
26,02
155,29
315,23
1,45
1,26
1,06
1,19
–31,05
–20,50
–5,31
–16,11
Taxa de mortalidade por 100 000 habitantes, idade entre 0 e 74 anos.
TABELA 4. Regressão binomial negativa para a mortalidade por grupos de causas evitáveis, Brasil
Causas evitáveis por diagnóstico
e tratamento precoce
Variáveis
Período de análise
1983 a 1992
1993 a 2002
Sexo
Masculino
Feminino
Idade
0 a 14 anos
15 a 44 anos
45 a 64 anos
65 a 74 anos
Regiões
Nordeste
Sudeste
Centro-Oeste
Sul
Nível socioeconômicoc
Desigualdaded
Causas evitáveis por melhoria
no tratamento e na atenção médica
Doença isquêmica do coração
IRRa
(IC95%)
IRRa
(IC95%)
IRRa
(IC95%)
1,336b
1
(1,296 a 1,377)
1,272b
1
(1,234 a 1,311)
1,223b
1
(1,185 a 1,277)
1,140b
1
(1,106 a 1,176)
1,304b
1
(1,265 a 1,344)
2,165b
1
(2,086 a 2,247)
0,027b
0,030b
0,272b
1
(0,026 a 0,029)
(0,029 a 0,031)
(0,265 a 0,279)
0,140b
0,063b
0,317b
1
(0,133 a 0,147)
(0,061 a 0,066)
(0,306 a 0,328)
5E-05b
0,016b
0,261b
1
(4E-05 a 6E-05)
(0,015 a 0,017)
(0,251 a 0,271)
1,026
1,044b
0,903b
1
0,918b
–
(0,931 a 1,130)
(1,008 a 1,081)
(0,837 a 0,974)
1,475b
1,183b
1,057
1
0,901b
1,039b
(1,270 a 1,715)
(1,143 a 1,222)
(0,988 a 1,131)
0,695b
0,898b
0,730b
1
–
0,970e
(0,613 a 0,788)
(0,863 a 0,934)
(0,648 a 0,822)
(0,904 a 0,932)
–
(0,888 a 0,914)
(1,019 a 1,059)
–
(0,945 a 0,995)
a
IRR = razão de taxas de incidência (incidence rate ratio).
Significativo a 0,01 (P < 0,01).
Variáveis: percentual de pessoas com idade maior ou igual a 25 anos e 12 anos ou mais de estudo, percentual de pessoas com idade maior ou igual a 25 anos e menos de 4 anos de estudo e renda per capita.
d Variáveis: índice de Gini e razão entre a renda dos 10% mais ricos e a dos 40% mais pobres.
e Significativo a 0,05 (P < 0,05).
b
c
por diagnóstico e tratamento precoce, o
maior risco no primeiro período é indicativo de que, na prática, a reorganização do sistema de saúde, procurando
priorizar a atenção básica, pode ter repercutido sobre a incidência de doenças
diagnosticadas e tratadas precocemente
e, em última instância, sobre a mortalidade por essas causas, conforme sugerido por outros estudos (3, 36).
Cabe ressaltar que o processo de reorganização do sistema de saúde no
Brasil não se iniciou em 1988 com a
288
criação do SUS. O SUS é, na realidade,
o resultado de um longo processo político para implementação de propostas de conformação de um modelo
público de atenção à saúde. Em virtude da natureza, complexidade e
abrangência das mudanças institucionais, políticas e operacionais em desenvolvimento, o SUS está ainda sujeito a aprimoramentos. Todavia, em
que pese toda essa complexidade, as
mudanças foram mais evidenciadas
em diferentes instâncias de estrutu-
ração da atenção à saúde no início da
década de 1990 (24, 25, 37). Assim, é
possível, pelo menos em parte, creditar a essas mudanças o processo de
descenso da mortalidade por causas
evitáveis por atenção à saúde.
A análise dos dados aqui apresentados demonstrou ainda que, no Brasil,
ser do sexo masculino representou um
risco maior para qualquer um dos grupos de causas evitáveis analisados,
sendo que, no caso da doença isquêmica do coração, esse diferencial al-
Rev Panam Salud Publica/Pan Am J Public Health 21(5), 2007
Abreu et al. • O sistema de saúde e as causas de morte evitáveis no Brasil
cançou 116,51%. Em relação à idade,
observa-se um risco menor para as populações mais jovens para todos os grupos de causas evitáveis por atenção à
saúde, conforme esperado. A localização geográfica também foi significativa, com menor risco para a Região
Sul, uma das mais desenvolvidas do
País, para as causas evitáveis por diagnóstico e tratamento e para as causas
evitáveis por melhoria no tratamento e
atenção médica. O Centro-Oeste, onde
os riscos foram menores do que na Região Sul (considerada como região de
referência), foi exceção, entretanto.
Uma explicação pode ser o fato de que
um dos municípios dessa região (Brasília) apresentava melhores indicadores
sociais e de saúde, os quais se distinguiam da média regional. A situação
socioeconômica, expressa nos dois indicadores construídos através de análise
fatorial, mostrou uma menor influência
no comportamento da mortalidade evitável, possivelmente porque a própria
seleção dos municípios, ao se basear em
critério de qualidade da informação, selecionou municípios com condições socioeconômicas mais similares.
A partir dessas observações, é possível inferir que a formulação de tipologias de causas de morte evitáveis pode
contribuir para a identificação de fatores que afetam a mortalidade. Para a realidade brasileira, em que há ainda
marcantes diferenciais regionais e sociais, expressos também nos níveis de
mortalidade, esse tipo de abordagem
permite analisar a mortalidade por causas evitáveis como indicador da qualidade da assistência de saúde. Apesar
de sua relevância, ainda são poucos os
estudos desenvolvidos no Brasil que
utilizam esse indicador, mais explorado em estudos da mortalidade infantil e perinatal (16–18). Mesmo em outros países da América Latina, também
são poucos os estudos nessa linha; a
abordagem da mortalidade evitável
tem sido mais direcionada para outras
classificações, que estabelecem uma categorização das causas de morte segundo o grau de evitabilidade, considerando também causas passíveis de
serem evitadas através de ações de
saúde pública e melhorias nas condições de vida da população (38–40).
Nos países desenvolvidos, as análises
de mortalidade publicadas indicam um
padrão consistente de declínio na mortalidade evitável, que se caracteriza por
uma velocidade de queda mais acentuada do que a da mortalidade por outras causas (3, 8, 41). Devido a essas mudanças, existe uma tendência de forte
redução da mortalidade proporcional
por causas evitáveis. Os estudos sugerem que, pelo menos em parte, o declínio da mortalidade por causas evitáveis se deve à melhoria na atenção à
saúde (4, 12–14, 42–44). A qualidade da
atenção está relacionada a diferentes
elementos, relativos à estrutura organizacional do sistema de saúde, à oferta e
ao acesso aos serviços de saúde e aos resultados em termos do impacto na condição individual e coletiva de saúde
(36). A relação entre esses diferentes
componentes representa um importante
recurso para avançar nas avaliações da
qualidade da assistência para mais além
das análises de tendências e variações
da mortalidade evitável. Entretanto, a
análise da mortalidade por causas evitáveis pode ser útil para o planejamento
de saúde, considerando que oferece um
indicador sensível para acompanhar os
efeitos de políticas de saúde que preconizem a ampliação e o aprimoramento
da atenção à saúde oferecida à população (45). Quanto a esse aspecto, tornase imperioso que sistemas nacionais e
locais sejam capazes de identificar quais
são as ações que devem ser priorizadas,
no sentido de aumentar a capacidade
resolutiva das intervenções de saúde
para a redução da mortalidade evitável.
É importante lembrar que as diferenças de mortalidade podem, pelo
menos parcialmente, ser explicadas
pela variação na incidência. Se a incidência pode ser alterada por intervenção médica, variações na incidência
indicam possíveis variações na qualidade do cuidado médico (5). Porém, se
por um lado as diferenças de tendência
na incidência de causas evitáveis
devem-se a diferenças na efetividade
de certas intervenções (prevenção e
tratamento), podem também ser espontâneas e devidas a outros fatores
que não a atenção à saúde, como por
exemplo a rápida difusão de estilos de
vida alternativos e mais saudáveis (14).
Rev Panam Salud Publica/Pan Am J Public Health 21(5), 2007
Investigación original
Uma conseqüência provável dessas
questões é a necessidade de tornar mais
complexa a capacidade para avaliar sistemas de saúde, valendo-se de dados
agregados de mortalidade. Essa exigência decorre da ampliação do escopo da
mortalidade evitável e da redução da
extensão de variação à medida que se
observa uma tendência de declínio nas
taxas de mortalidade por causas evitáveis. Nesse caso, os estudos ecológicos
são indicados, pois permitem analisar o
impacto de variáveis de contexto, que
não têm reprodutibilidade no nível individual. Da perspectiva da saúde pública, a abordagem ecológica pode ser
de grande interesse, considerando-se a
necessidade de avaliar os efeitos das
políticas de saúde (46).
Por outro lado, deve-se considerar
ainda que os estudos de mortalidade
por causas evitáveis podem apresentar
diferenças nos padrões e tendências em
razão da própria seleção das causas estudadas. Uma tipologia de causas evitáveis é sempre determinada pelos propósitos da análise. Deve ficar claro que
essa escolha vai influenciar os resultados encontrados (9). Portanto, no estudo realizado, é importante considerar
que, na seleção de causas de morte,
foram identificados aqueles grupos de
causas que podem ser considerados
como mais suscetíveis a diferentes tipos
de atenção médica, tendo em vista o interesse em analisar o impacto das mudanças introduzidas na organização e
oferta de serviços de saúde no Brasil.
Deve-se ter claro que essa seleção não
esgota todas as causas de morte que poderiam também ser consideradas como
evitáveis, bem como contempla causas
que sofrem a influência de outras intervenções, não restritas ao setor saúde.
Uma limitação para análises de
mortalidade por causas no Brasil, já evidenciada em outros estudos (29), refere-se ao sub-registro de óbitos, que
ainda persiste como um problema importante em um grande número de
municípios. Na seleção dos municípios
deste estudo, os indicadores de qualidade da informação (menos de 10% de
causas mal definidas, por exemplo)
foram aplicados desde o período do estudo (1983 a 1985), quando os sistemas
de informação provavelmente apresen-
289
Investigación original
tavam maior grau de sub-registro. Em
anos recentes, muitos esforços têm sido
desenvolvidos no sentido de produzir
estatísticas oficiais de boa qualidade,
reduzindo o sub-registro de óbitos e
aprimorando a classificação de causas
básicas nas declarações de óbitos (47).
Esse é um aspecto a ser considerado,
pois informações de boa qualidade minimizam os vieses que podem ser introduzidos na análise pela variabilidade
de códigos de causas, devido a mudanças nas classificações utilizadas (8),
e também por problemas no registro de
causas para populações mais velhas,
sujeitas a apresentar, em maior grau,
causas múltiplas de morte (26).
A partir dos critérios adotados, foram selecionados somente 117 municípios brasileiros. Desses, a grande maioria está localizada no Sudeste e Sul. Por
um lado, esse é um desafio para as análises de mortalidade, uma vez que o
universo de estudo, muitas vezes, não
permite captar as especificidades regionais existentes e por si só já remete a
problemas na atenção à saúde. Mas, por
outro lado, os municípios selecionados
detêm um terço da população brasi-
Abreu et al. • O sistema de saúde e as causas de morte evitáveis no Brasil
leira—cerca de 33% do total, segundo
o censo demográfico de 2000. Ao
mesmo tempo, são aqueles onde a reorganização do sistema de saúde mais
avançou, pois cerca de 70% deles já se
encontravam, em junho de 2005, em um
estágio no qual a gestão dos serviços de
saúde era de responsabilidade do município, que recebia o total de recursos
federais programados para o custeio da
assistência em seu território (48).
Assim, pressupondo que, conforme
argumenta Chackiel (49), nenhuma informação sobre mortalidade é totalmente desprezível, desde que se conheçam as suas limitações e se saiba o
que se pode esperar dela, a análise da
mortalidade por causas evitáveis pode
ser relevante na discussão sobre a aplicabilidade desse indicador para avaliar a qualidade da atenção médica
prestada. Os resultados deste estudo
sugerem que o declínio da mortalidade por causas evitáveis no Brasil
entre 1983 e 2002 pode ser creditado,
em parte, às mudanças na oferta e no
acesso a serviços de saúde. Entretanto,
o peso relativamente expressivo das
causas evitáveis no total de óbitos e os
níveis das taxas de mortalidade por
essas causas no Brasil podem ser um
indicativo de que o sistema de saúde
ainda não é suficientemente capaz de
enfrentar essa questão, em consonância com os resultados do estudo realizado na Inglaterra nos anos 1970 (2).
Cabe ressaltar ainda a persistência
de aspectos não esclarecidos, relacionados possivelmente com diferenciais
regionais e socioeconômicos na mortalidade evitável. A questão da eqüidade
no acesso aos serviços de saúde deve
ser então abordada, tendo em vista
que pode ser um dos fatores explicativos para as variações existentes na
mortalidade por causas evitáveis entre
as regiões e os grupos sociais. Estudos
nessa direção podem revelar novos
parâmetros para avaliar a importância
da atenção à saúde no declínio da mortalidade evitável no Brasil.
Agradecimento. O presente estudo
foi parcialmente financiado pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais (processo n° CDS
1624/98).
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Manuscrito recebido em 1 de março de 2006. Aceito em
versão revisada em 18 de abril de 2007.
Objective. To analyze the relationship between the occurrence of deaths that are
avoidable with adequate health care and the reorganization of the Brazilian health care
system between 1983 and 2002.
Method. This ecological study analyzed avoidable mortality in 117 municipalities of
Brazil. The causes of death avoidable with adequate health care were grouped into three:
(1) ones avoidable through early diagnosis and treatment, (2) ones avoidable with improvements in the quality of treatment and medical care, and (3) ischemic heart disease.
To evaluate the association between avoidable mortality and reorganization of the health
care system, the period under study was divided into two subperiods: from 1983 through
1992 and from 1993 through 2002 (respectively, before and after approval of the operational guideline that served as the reference for the organization of the Unified Health
System (Sistema Único de Saúde)). A negative binomial regression model that controlled
for sex, age, geographic region, and socioeconomic conditions was used for the analysis.
Results. During the period analyzed, 1 854 165 individuals between 0 and 74 years old
died from avoidable causes in the municipalities studied. The multivariate analysis
showed that, for all three groups of avoidable causes, the risk of avoidable mortality was
higher in the 1983–1992 subperiod than in the 1993–2002 subperiod. For the entire
1983–2002 period, the risk was higher for males than for females, especially with respect
to ischemic heart disease. Younger populations had lower risk. Higher socioeconomic
level reduced the risk of death from avoidable causes, except for ischemic heart disease.
Conclusions. Our results suggest that in Brazil the decrease in avoidable mortality
from the 1983-1992 subperiod to the 1993–2002 subperiod was partially due to the
changes in the availability of and access to health services brought about by the reorganization of the Brazilian health care system.
Health care reform, health services research, mortality, cause of death, risk factors,
Brazil.
Rev Panam Salud Publica/Pan Am J Public Health 21(5), 2007
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