Bloco Histórico Renato Zangheri http://www.acessa.com/gramsci/texto_visualizar.php?mostrar_vocabulario=mostr a&id=632 Confunde-se freqüentemente o conceito gramsciano de bloco histórico, que é um conceito histórico e analítico, com o de alianças sociais, ou de bloco social. Gramsci formulara com grande clareza, em sua ação como dirigente do Partido Comunista, o problema das alianças da classe operária, particularmente nos anos imediatamente anteriores à prisão. Nas teses do Congresso de Lyon (janeiro de 1926), afirma-se a necessidade de pôr em primeiro plano, entre os aliados do proletariado industrial e agrícola, os camponeses do Sul e das Ilhas. No escrito sobre a Questão meridional (novembro de 1926), Gramsci indica “o consenso das amplas massas camponesas” como a condição para mobilizar contra o capitalismo a maioria da população trabalhadora. Os intelectuais, na concreta situação italiana, têm um papel decisivo na formação das alianças. Com efeito, eles contribuem, no Mezzogiorno, para vincular os camponeses aos grandes proprietários rurais. É necessário quebrar este vínculo através da formação, na massa dos intelectuais, de uma tendência de esquerda, “no significado moderno do termo, ou seja, orientada para o proletariado revolucionário”. Coloca-se em outro plano, como dissemos, o conceito de bloco histórico, que se refere à questão teórica central do marxismo: a relação entre estrutura e superstrutura, entre teoria e prática, entre forças materiais e ideologia. Gramsci rejeita toda visão determinista e mecanicista desta relação. Não existe uma estrutura que mova de modo unilateral o mundo superestrutural das idéias, não há uma simples conexão de causa e efeito, mas um conjunto de relações e reações recíprocas, que devem ser estudadas em seu concreto desenvolvimento histórico. É fundamental quanto a isso a pesquisa empreendida nos Cadernos do cárcere. Gramsci tende a considerar abstrata a distinção entre estrutura (as relações sociais de produção) e superestrutura (as idéias, os costumes, os comportamentos morais, a vontade humana). Na concretude histórica, há convergência entre os dois níveis, uma convergência que conhece a distinção e a dialética, mas que se resolve numa “unidade real”. A pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo histórico) escreve Gramsci - de apresentar e expor toda flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da estrutura deve ser combatida, no plano teórico, como um infantilismo primitivo, ou, no plano prático, valendo-se do testemunho autêntico de Marx, escritor de obras políticas e históricas concretas. Com efeito, existe uma dificuldade para identificar estaticamente, em cada momento concreto, a estrutura. Na realidade, a estrutura entendida em si, separadamente do processo histórico, não existe: e, ainda que ela seja objetivamente identificável, trata-se de um movimento no interior da história, não de uma realidade externa à história e situada abaixo dela. Por isso, a política deve levar em conta as tendências de desenvolvimento da estrutura, mas isso não significa que todas elas devam necessariamente se realizar. Disso decorre a possibilidade do erro político, que o materialismo histórico mecânico não admite, considerando que todo ato político é rigidamente determinado pela estrutura. Trata-se, ao contrário, de captar um movimento e suas contradições. O mesmo critério vale para o exame das relações entre teoria e prática. Gramsci observa que, até mesmo nos novos desenvolvimentos do materialismo histórico (referindo-se provavelmente à experiência soviética), “o aprofundamento do conceito de unidade da teoria e da prática está apenas numa fase inicial: ainda existem resíduos de mecanicismo. Fala-se ainda da teoria como ´complemento` da prática, quase como um ´acessório`”. Toda a polêmica de Gramsci dirige-se contra o economicismo e o pragmatismo dos intérpretes do marxismo da Segunda e da Terceira Internacionais, e, ao mesmo tempo, contra toda concepção idealista, especulativa, que anula ou subordina os fatos práticos e materiais. Existe, ao contrário, uma “reciprocidade necessária” entre estruturas e superestruturas, “reciprocidade que é precisamente o processo dialético real”. Sublinhar o valor dos elementos de cultura e de pensamento não tem um significado apenas teórico e de método histórico. Remete-nos ao problema das alianças e dos intelectuais: o consenso, a direção política e cultural, são “forma necessária do bloco histórico concreto”. Nenhuma formação histórica dotada de consistência e de futuro pode prescindir de uma expressão intelectual e moral, de um cimento de idéias e de valores. Ideologia e fanatismo Fabio Mussi Gramsci conhece bem todas as acepções negativas do conceito de “ideologia”: falsa consciência, construção mental arbitrária, puro reflexo da estrutura econômica, etc. Mas, numa curta nota de um dos primeiros Cadernos, uma vez analisado “o sentido pejorativo da palavra”, lembra que, “mais ou menos” – ele não dispõe do texto para conferir – Marx usara expressões do tipo: “quando esta maneira de conceber tiver a força das crenças populares, etc.” A força das crenças populares. Gramsci é um estudioso da “crença” fundamental dotada de “força”: a religião. Ele escreve: “A força das religiões, e notadamente da Igreja Católica, consistiu e consiste no seguinte: elas sentem intensamente a necessidade de união doutrinária de toda a massa ‘religiosa’ e lutam para que os estratos intelectualmente superiores não se destaquem dos inferiores”. A ideologia, pois, é um aspecto de massa das concepções filosóficas. A filosofia tem uma dimensão orgânica, mostra-se com características de universalidade, expressa a visão “alta” de uma classe, de um bloco histórico, de uma hegemonia. A ideologia é a forma pela qual ela se torna ação concreta, transformação da realidade, força real. Aliás, é uma autêntica “fase intermediária entre a filosofia e a prática cotidiana”. Gramsci é um marxista inimigo do economicismo. Rechaça a vulgata segundo a qual é a “estrutura” que “determina” diretamente. Estuda a complexidade da sociedade, a articulação das funções, os elementos que interagem e as diversas combinações em que se apresentam, a sobrevivência de uma fase histórica em outra ou o “jogo” dos deslocamentos ideológicos de uma classe para outra, de uma área para outra, de uma nação para outra. Num trecho dos Cadernos, dá o exemplo do “direito natural”, que, “se está morto para as classes cultas, é conservado pela religião católica e está mais vivo entre povo do que se supõe”. Estruturas materiais e estruturas ideais se interpenetram. E cada uma delas se dispõe em camadas diversas. Existem os “grandes sistemas” (e, na Itália, antes de tudo Gramsci se via diante daquele de Benedetto Croce) e as idéias difusas que vão compor o “senso comum”. A batalha hegemônica, pois, obriga a um esforço tanto no nível da filosofia quanto no nível da ideologia. Isto implica a construção de um “sistema” mais “alto”, mais compreensivo de realidade e de ciência, e, ao mesmo tempo, a penetração de massa, dado que uma “nova maneira de conceber” pode assumir “força material”. Mas, na batalha hegemônica, o que é dominante: a política, a economia ou a filosofia? Se estas três atividades são os elementos constitutivos de uma mesma concepção do mundo, deve existir necessariamente, em seus princípios teóricos, convertibilidade de uma na outra, tradução recíproca na linguagem específica própria de cada elemento constitutivo: um está implícito no outro e todos, em conjunto, formam um círculo homogêneo. Gramsci introduz aqui um tema que lhe é muito caro: o tema da tradutibilidade das linguagens. Veremos mais adiante que relação mantém com a questão do “fanatismo”. Nos anos 1920, Gramsci não subestimara a função do utopismo, da crença religiosa e mitológica, do fanatismo. Tanto na continuidade histórica das ideologias, quanto – do ponto de vista das classes subalternas em combate – nos períodos de recuo e derrota política (e este era o momento em que lhe cabia viver: o fascismo). De todo modo, o “fanatismo” lhe aparece como um elemento de subalternidade: Mas, para as grandes massas da população governada e dirigida, a filosofia ou religião do grupo dirigente e dos seus intelectuais apresenta-se sempre como fanatismo e superstição, como motivo ideológico próprio de uma massa servil. Assim, se estas massas querem se libertar do seu estado servil, devem se libertar do fanatismo. Como? Compreender e valorizar com realismo a posição e as razões do adversário (e o adversário é, em alguns casos, todo o pensamento passado) significa justamente estar liberto da prisão das ideologias (no sentido pejorativo, de cego fanatismo ideológico), isto é, significa colocar-se em um ponto de vista “crítico”, o único fecundo na pesquisa científica. Mas é o único fecundo também na luta política, social, de classe. Para Gramsci, a questão aqui se torna candente. Na URSS, a revolução socialista tomara a forma do stalinismo. O marxismo europeu corrente e dominante no movimento operário é um marxismo dogmático, ou seja, carregado de peso religioso e atitudes fanáticas. Ele percebe que o o “filósofo da práxis” (o marxista), que vive no terreno das contradições históricas e vê em perspectiva um mundo sem contradições, corre imediatamente o risco de criar uma utopia. Percebe também o risco de uma outra contradição: uma concepção historicista, que mostra as origens práticas de toda “verdade” que se crê eterna, bem como seu valor provisório, não pode negar que isso seja válido também para si mesma. Mas, deste modo, não se abalam “aquelas convicções que são necessárias para a ação”? Mas, definitivamente, Gramsci vê o perigo maior neste fato: [...] que a própria filosofia da práxis tende a se transformar numa ideologia no sentido pejorativo, isto é, num sistema dogmático de verdades absolutas e eternas. É um juízo nítido, uma previsão clara. O dogmatismo (“traduzido”, naturalmente, num sistema político e econômico) marcou toda uma época histórica do marxismo. Gramsci começou a combatê-lo do fundo de um cárcere fascista. Só muitas décadas depois é que tal crítica poderia se refletir num movimento político de alcance mundial.