Subido por Jorge Manuel de Matos Pina Martins

A prática alimentar na Idade Média

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Jorge Manuel de Matos Pina Martins Prata, Universidade de Coimbra, Faculdade de
Letras, CHSC
Curriculum Vitae
Professor in the Secondary School Inês de Castro of Alcobaca, Graduate in History,
Postgraduate in Good Practices in Heritage Management and in Law of Culture and
Cultural Heritage, Master Degree in Heritage Studies, Master Degree in Medieval History
- Spaces, Powers, Quotidian - and PhD Student in Advanced Studies in History - Middle
Ages.
Resumo:
O dispositivo alimentar estrutura-se em função de formas específicas de interligação entre
práticas discursivas e não discursivas, através das quais vai dando-ordem ao corpo, na
multiplicidade irredutível que o constitui.
Cuidado-do-corpo-alimentar que se modaliza segundo eixos de pre-ocupação, que têm
como referentes fundamentais o corpo-santo, o corpo-espiritual, o corpo-em-trânsitopara-Deus, o corpo-económico e o corpo-poder, desdobrando-se numa prática assente na
contenção do desejo e do prazer da boca. Contenção que só a prudência pode modalizar,
na avaliação de circunstâncias, lugares e qualidades corpóreas. Porque qualquer alimento
não possui, em si, um valor absoluto; este é função da rede de circunstâncias em que se
inscreve.
A temperança alimentar é também fator essencial no combate geral contra a tendência
pecaminosa do homem decaído, porque muitos pecados têm, no ventre, a sua condição
fundamental de possibilidade. E, por isso, é também por ele que o corpo-espiritual pode
readquirir a pureza imaculadamente branca que o reunifica em Deus, através de uma
penitência alimentar. O jejum preserva o homem da dispersão, espiritualiza o corpo. O
pão une-o a Cristo.
A dieta desdobra-se, assim, em duas linhas não convergentes, segundo modulações
diversas: a que cuida do corpo-físico e a que cuida do corpo-espiritual.
Palavras-chave:
Dispositivo-alimentar; Cuidado-do-corpo; Corpo-espiritual; Corpo-económico; Corpo
de poder; Temperança; Prudência.
Abstract:
The feed device is structured on the basis of specific forms of interconnection between
discursive and non-discursive practices through which will giving order to the body, in
his the irreducible multiplicity.
1
Care of feed body that has as fundamental referencies the body saint, the spiritual body,
the body in traffic to God, the economical body and the power body, unfolding a practice
based on the containment of desire and of the pleasure of the mouth. Contention that only
prudence can to model in the assessment of circumstances, places and bodily qualities.
Because any food does not possess in itself, an absolute value; this is a function of the
series of circumstances in which it is part.
Food Temperance is also an essential factor in the general combat against sinful tendency
of fallen man: because many sins have, in the belly, its fundamental condition of
possibility. And so it is also by him that the spiritul body can regain immaculate white
purity that reunites in God through a food penitence. Fasting preserves the man of the
dispersion, spiritualize the body. Bread unites him to Christ.
The diet unfolds, so in two non-converging lines, according to several modulations: the
one that takes care of the physical body and the one that takes care of the sptiritual body.
Keywords:
Feed device; Body care; Spiritual body; Economical body; Power body; Temperance;
Prudence.
2
O “DISPOSITIVO ALIMENTAR” NA BAIXA IDADE MÉDIA PORTUGUESA:
O CORPO COMO MULTIPLICIDADE/
THE “FEED DEVICE” IN PORTUGUESE LOW MIDDLE AGES:
BODY AS MULTIPLICITY
PARERGON
À prática alimentar, enquanto ingestão de iguarias, mais ou menos abundantes, mais ou
menos requintadas, e às notações escriturais em que se inscrevem os elementos funcionais
cuja finalidade é sustentar a citada prática (anotações de aquisições e despesas, receitas,
...), vem agregar-se toda uma produção discursiva que institui a alimentação enquanto
rede problemática que deve ser objeto do pensar. Agregação através da qual se procura
inscrever o discurso nos interstícios do mais singelo ato de deglutição, não só, nem talvez
principalmente, para que por meio dessa discursificação se modelem as práticas, mas para
dar-a-ver o feixe de implicações, tanto carnais quanto espirituais, que, de uma forma mais
ou menos inconsciente, estão implicadas nesse acto, em aparência anódino e
caracterizado pela mera banalidade.
Mas, por sob a naturalidade impensada da ingestão alimentar, desdobra-se uma
tensionalidade agónica em que se digladiam as múltiplas pulsões humanas, pondo em
confronto pecado e virtude, ordem e desordem, humanidade e bestialidade.
Aqui, no confronto inquisitório com a realidade que subjaz ao que se apresenta ao olhar
no campo da visibilidade pura, à mera aparência, cujo aparecer é função de um intrincado
feixe de motivações e desejos, que só se torna percetível ao conhecimento através dos
efeitos que produz, o discurso não pode deixar de devir injunção-de-resposta,
interrogando com inusitada insistência o corpo sobre o qual obsessivamente se abate: é
necessário fazer-falar o acto-alimentar.
Alimentar-se não é um puro ato fisiológico que contenha em si a razão absoluta do seu
próprio obrar, mas uma atividade multímoda, rede intrincada de relações que, através de
uma densa malha enunciativa, vai conectar alimento, prazer, desejo, gestualidades,
odores, finalidades essenciais do ser humano.
Trata-se, portanto, de apreender a materialidade discursiva que cerca o acto-alimentar, e
o transforma num objeto-complexo.
3
A ORDEM-DA-MESA: TEMPERANÇA E PRUDÊNCIA
Ser cindido na estrutura mais profunda do seu íntimo, com-posição complexa de corpo e
alma, em que o movimento de cada um destes entes, interligados numa tensão essencial,
arrasta o outro no seu devir – devir corpo da alma: alma-carnal, e devir alma do corpo:
corpo-espiritual – , e desdobrando a sua existência no seio de uma dúplice temporalidade,
entre a efemeridade da vida mundana e a perene eternidade da vida espiritual, o homem
habita no limiar de dois mundos que se interligam organicamente numa conjugação
tensional.
Conjugação que, de relação pura de subordinação, em que a ordenação política da
sociedade terrena, e dos indivíduos que a integram, tem como única função contribuir
para a efetivação do destino espiritual dessa mesma comunidade, simples meio na
prossecução do fim último do Homo Viator, torna-se, no dealbar da baixa idade média,
relação entre entidades dotadas, cada uma delas, da sua autonomia própria: movimento
conceptual que nos conduz do princípio Isidoriano, segundo o qual
“Principes saeculi nonnunquam intra Ecclesiam potestatis adaptae culmina
tenente, ut per eamdem potestatem disciplinam ecclesiasticam muniant.
Caeterum intra Ecclesiam potestates necessariae non essent, nisi ut, quod
non praevalet sacerdos efficere per doctrinae sermonem, potestas hoc
imperet per disciplinae terrorem.”1,
à posição de São Tomás, que defende que o titular do poder terreno «(…) doit de même
être à la tête de toutes les fonctions humaines et les organiser par l’imperium de son
gouvernement.»2.
Do mesmo modo, a prática alimentar desdobra-se em duas vertentes distintas, mas
complementares, de idêntica dignidade e dotadas, cada uma delas, da sua própria
autonomia: a alimentação enquanto função das necessidades físico-sociais do homem, e
a alimentação enquanto meio de prossecução da finalidade espiritual da humanidade, a
união salvífica com Deus.
Acto eminentemente ligado à natureza humana, pois “(...) las operaciones animales más
naturales son aquellas que hacen que la naturaleza del individuo se conserve gracias a la
comida y a la bebida, y que la naturaleza de la especie se conserve mediante los pláceres
1
2
(Isidoro de Sevilha, 1862: 3, 51, Col. 723)
(Tomás de Aquino, 2008: 56)
4
sexuales.”3, a alimentação tem de prover eficientemente às necessidades físicas do
homem, de modo que “ (...) el hombre puede cumplir com la naturaleza (...)” 4, mas é
também indutora de virtude e obstaculizadora de pecado, na medida em que a temperança
alimentar pode “ (...) aminorar la concupiscencia, (...)”.5
Por isso,
“Del mismo modo que incumbe a los governantes de este mundo
establecer preceptos legales que determinen el derecho natural sobre
materias de utilidade común em cosas temporales, así también los prelados
eclesiásticos pueden exigir, mediante leyes, el cumplimiento de aquellas
cosas que pertenecen al bien común en el orden espiritual. (...) Por eso,
(...), el determinar el tiempo y el modo de ayunar según la conveniencia y
utilidade del pueblo cristiano está sujeto al precepto de derecho positivo,
que fue establecido por los prelados eclesiásticos.”6,
o que nos remete para uma jurisdicionalização da prática alimentar, para a sua integração
na área do Ius. O acto de comer está demasiadamente prenhe de perigos e siladas para
que possa ficar isento de um determinado tipo de normativização.
Partindo do pressuposto da existência de uma ordem universal que rege o mundo e os
seres que o habitam, do qual o homem é a miniaturização especular, a alimentação não
pode deixar de ser concebida, em termos funcionais, como uma ação através da qual o ser
humano preserva a sua ordenação intrínseca, tanto no que concerne à sua finalidade
temporal, quanto à espiritual.
Come-se e bebe-se para manter a força necessária à manutenção da vida, mas também
para que a concupiscência carnal se mantenha subjugada pelo entendimento e, deste
modo, o homem possa, virtuosamente, caminhar ao encontro de Deus, finalidade última
do seu existir.
Por isso preceitua D. Duarte, no Leal Conselheiro, que cada um “(...) coma e beba para
viver, e não queira viver para comer e beber (...)”7, precavendo-os contra a “(...) sobeja
destemperança de beber, por que o entender se enfraquece (...)”8 e “(...) começando a
3
(Tomás de Aquino, 2006: 2-2, C. 141 a.4)
(Idem: 2-2, C. 147 a.6)
5
(Idem: 2-2, C. 147 a.6)
6
(Idem , 2006: 2-2, C. 147 a.3)
7
(D. Duarte, 1982: 163)
8
(Idem: 159)
4
5
sentir a deleitação da parte sensual, priva-se a razão. E aquestes são tornados a aquele
estado tíbio que no apocalipse são mais que outros doestados.”9
Afirmação do embotamento da razão pelo deleite imoderado da comida que une, por
sobre o tempo linear que os separa, D. Duarte e São Tomás de Aquino:
“Em primer lugar, por orden a la razon, cuya agudeza se embota por la
falta de de moderación en la comida y la bebida. Aquí queda incluida la
ceguera mental, fruto de la fumosidad de los alimentos, que llegan a
perturbar a la inteligencia, mientras que, en el extremo opuesto, la
abstinencia favorece la agudeza de percepción, según se dice em Ecl 2,3:
pensé em liberar mi carne del poder del vino para elevar mi alma hasta la
sabiduría.”10.
O próprio uso correto da razão, faculdade da alma, bem como a possibilidade de elevação
do homem até à sabedoria, dependem do que se come, estando indissoluvelmente ligadas
à moderação alimentar.
“Viver para comer e beber (...)”11 é inverter a ordem das finalidades, embrenhar-se, preso
dos prazeres da concupiscência carnal, na mundanidade do mundo, obliterando o desejo
salvífico de Deus, e trocando a bem-aventurança celeste pelos perecíveis bens terrenos.
Fazendo “(...) deus do seu ventre, não havendo tanto desejo nem continuado pensamento
de prazer ao senhor como a ele (...)”12, o homem, dócil presa da gula, inscreve o pecado
mortal no seu ser.
Mas a própria gula se apresenta cindida, num desdobramento do seu imoderado apetite
em torno de diferentes objetos-de-desejo, entre o apreço excessivo pelo puro prazer
provocado pelo sabor, e odor, dos alimentos, e o iniquo deleite na própria renúncia a
Deus, e aos Seus preceitos, o que faz com que aquela se inscreva em diferentes registos
de pecado: venial ou mortal, respetivamente.
“Por eso, si consideramos el desorden del deseo en la gula como algo que
aparta del fin último, en ese caso la gula será pecado mortal. Esto sucede
cuando el hombre toma el deleite proprio de la gula como fin que le hace
despreciar a Dios, por estar dispuesto a obrar em contra de los preceptos
divinos con tal de conseguir este deleite. Pero si el vicio de la gula se da
9
(Idem: 160)
(Tomás de Aquino, 2006: 2-2, C. 148 a.6)
11
(D. Duarte, 1982: 163)
12
(Idem: 163)
10
6
únicamente em los medios, por desear en excesso los deleites de los
alimentos, sin obrar, por ello, en contra de la ley divina, entonces es pecado
venial.”13
Corpo-carnal marcado pela morte, que, pelo ventre, esqueceu a sua essência de corpoem-trânsito-para-Deus.
Porque a queda, que se seguiu ao pecado original, inverteu a relação de domínio existente
entre o desejo e a razão, libertando os apetites sensitivos da inquebrantável autoridade
daquela, o homem tem de perseverar na virtude da temperança, para que se possa afastar
dos prazeres-da-boca, fugir ao deleite dos sabores delicados e dos cheiros inebriantes,
evitar a excessiva ingestão de alimentos: renúncia do prazer pecaminoso, e sujeição ao
simples retemperar das forças vitais, num procedimento de moderação alimentar.
Esta, no entanto, não pode ser determinada por uma qualquer norma de carácter universal,
pois “(...) regra certa de comer e beber não se podem bem divisar, por o desvairo das
compleições, terras e costumes.”14.
Assim, se por regra geral de moderação é pecado comer muitas vezes (“(...) ca todo o
ome que mas de dos vegadas come en el dia que non es de ayuno, faze vida de bestia
(...)”15, ou comer antes de tempo, “(...) commo antes de misa o antes de Terçia, ca non
deve ninguno comer antes de Terçia (...)”16), a aplicação mecânica de tal princípio, sem
a mediação da prudência, poderia constituir uma infração à regra da temperança, caso se
tratasse de pessoa que lavra a terra, de fraca compleição, grávida, pois, neste caso,
provocaria uma desadequação entre a ingestão de alimentos e as necessidades energéticas
do indivíduo em questão.
Sendo a prática do jejum altamente valorizada, como acto virtuoso e demonstração de
amor a Deus, “(...) cimento e comienço de todo o bien para el que quiere fazer
penitençia.”17, contenção de apetites, renúncia da carnalidade e da mundanidade do
mundo, que preserva o homem da dispersão (o diabólico – dyabolein –como des-união),
e espiritualiza o corpo, aquela não pode, no entanto, ser erigida em regra universal, a ser
seguida por todos, independentemente das circunstâncias em que se encontrem, e que os
determinam, pois “(...) el hombre debe abstenerse de alimento en la medida de lo
13
(Tomás de Aquino S. , 2006: 2-2, C. 148 a.2)
(D. Duarte, 1982: 163)
15
(Martin Perez, 2002: 193)
16
(Idem: 194)
17
(Idem: 495)
14
7
conveniente, conforme a las exigencias de los hombres con los que vive y de su propria
persona, además de la necesidad de su salud.”18
Deste modo, a prática concreta do jejum tem de ser objeto de avaliação minuciosa pela
prudência, para que o que deveria ser remédio não se transforme em veneno, causando
debilitação e morte.
Qualquer regra geral é sempre um esqueleto descarnado, um modelo sempre revogável
por condições específicas, determinantes do caso concreto.
Por isso, inscreve no pergaminho a pena do Aquinate:
“Y si, por un motivo especial, em algun hombre se encuentra algo que está
reñido con la observancia de lo mandado, el legislador no pretende
obligarle a su observancia. (...) Esto debe cumplirse em materia de ayunos
de la Iglesia, a los cuales, em general, están obligados todos, a no ser que
exista um impedimento especial.”19
Se se comete pecado “(...) nõ jejuuãdo per muitas vezes as festas de Jhesu Christo nem
de sancta Maria nem os dias que a igreja manda jejuar (...)“20, tal não se verifica se a
desobediência ao jejum aconteceu por “(...) grande necessidade (...)”21.
Pelo contrário, obrar contra a necessidade, ou jejuar “(...) tanto que vêm por elo a morte,
sandice ou grandes infirmidades, das quais são vistos tão claros exemplos (...)”22, não só
não constituem provas de virtude, mas são atos pecaminosos, “(...) maus e dignos de
repreensão (...)”23, na medida em que põem em causa a ordem harmoniosa que deve reger
o corpo humano.
A mera quantidade não é, portanto, um fator decisivo na determinação do carácter
pecaminoso ou não do procedimento alimentar, na medida em que este é condicionado
pela rede de relações em que se inscreve. Deste modo, só a prudência pode modelizar a
quantidade, através de um reto procedimento de avaliação das circunstâncias, lugares e
qualidades corpóreas.
Se o corpo-santo é aquele que expurgou de si, de forma quase absoluta, a necessidade de
comer, numa privação que é condição da sua santificação, este não se pode instituir em
exemplum para todo o cristão, na medida em que é função do obrar miraculoso de Deus
18
(Tomás de Aquino S. , 2006: 2-2, C. 146 a.1)
(Idem: 2-2, C. 147 a.4)
20
(Tratado de Confissom, 1973: 189)
21
(Idem: 206)
22
(D. Duarte, 1982: 168)
23
(Idem: 170)
19
8
que, por vezes, interrompe o normal ordenamento do mundo. Fora desta esfera
miraculosa, resta ao homem ser corpo-em-trânsito-para-Deus, corpo cuja manutenção da
ordem própria não se pode descurar.
Tão pouco a mera qualidade específica dos alimentos se pode instituir enquanto regra
geral para determinar a sua valoração negativa ou positiva. Se ingerir “(...) las carnes
suzias o mortezinas que vedaron los apostoles comer a los christianos (...)”24 constitui um
pecado, tal só o é se forem comidas “(...) por garganteria e non por nesçesidat (...)”25, se
comer “(...) manjares mucho adubados e mucho delicados (...)”26 é pecado, deixará de o
ser se tal era necessário, devido à “(...) conplision del cuerpo, que es tal que los non puede
escusar (...)”27. Porque os alimentos não possuem, em si, um qualquer valor absoluto; o
seu valor é função da estrutura relacional em que se inscrevem.
Duas substâncias, no entanto, parecem escapar a esta regra relacional, instituindo-se
como valores essenciais de positividade: o pão e a água, alimentos omnipresentes no
jejum penitencial que redime o homem dos pecados cometidos. Penitência que, por sua
vez, é fundamentalmente alimentar28: variegadas modalidades de jejum, onde estes dois
alimentos não podem faltar. Pão eucarístico que inscreve Deus no coração do homem,
reatando a relação de similitude que os une. Água batismal que regenera a humanidade,
libertando-a do pecado, mas também água-natural que é causa de saúde e longevidade,
como se pode comprovar pelas mulheres e mouros que “(...) bebem água em esta terra, e
com ela passam dores e vêm a muita velhice, em geral tanto e mais sãos dos que bebem
vinho.”29.
Não é, pois, apenas o corpo-espiritual a beneficiar da temperança alimentar, regida pela
prudência. Também o corpo-físico beneficia desta adequação alimentar à ordenação
intrínseca do corpo, porque “(...) el mucho comer e el mucho bever trae los omes a
enfermedades grandes e desvariadas e a tristeza e a muretes (...)”30, enquanto, pelo
contrário, “(...) el mesurado comer e bever procura e guarda salud e alegria (...)”31. Deste
modo, a dieta, enquanto fonte de saúde corporal, desdobra-se, assim, em duas linhas
24
(Martin Perez, 2002: 609)
(Idem: 194)
26
(Idem: 194)
27
(Idem: 194)
28
Omnipresença do jejum na prática penitencial, na medida em que este “purifica la mente, eleva los
sentidos, somete la carne al espíritu, hace al corazón contrito y humillado, dissipa las tinieblas de la
concupiscencia, apaga los ardores de los placeres y enciende la luz de la caridad.” (Tomás de Aquino S.
, 2006: 2-2, C. 147 a.1)
29
(D. Duarte, 1982: 164)
30
(Martin Perez, 2002: 334)
31
(Idem: 334)
25
9
semelhantes, mas não convergentes, segundo modalizações diversas: a que cuida do
corpo-físico e a que cuida do corpo-espiritual, em função das especificidades de cada um.
Mas o paladar não é o único sentido através do qual a gula se insinua no coração do
homem; também o odor que impregna as narinas lhe serve de veículo inculcador do
pecado.
Por elas somos acometidos pela “(...) sobeja deleitação de bons cheiros, e diligência de
os haver ou trazer com intenção corrupta de luxuria, gargantoíce, ou de sobeja folgança
na doçura deles.”32.
A luta interior contra os pecados-da-boca não se desdobra, no entanto, apenas na gestãoprudente de qualidades e quantidades, nela intervindo, também, não só a intencionalidade
que marca o ato alimentar, como a sua interiorização em hábito-enraizado.
Se alguém, intencionalmente, “(...) beve el vino fuerte que sabe que le sacara de
entendimento, dizen los doctores que peca mortalmente (...)”33, mas se o faz
inadvertidamente, não sabendo “(...) la manera del vino, o quando el ome viene de
caminho o de otra manera de labor escalentado e, non se aguardando, enbriagase,
commoquier que peque, dizen los doctores que non es pecado mortal (...)”34. Se “(...) por
uso lo ha, pecado mortal es (...)”35, porém, “(...) si se embriaga por ocasion (...)”36, não
comete pecado mortal.
A intenção denota uma vontade consciente de apartamento de Deus, de desvio do
caminho para a transcendência da vida eterna, e um desejo voluntário de enraizamento
no mundo sensível, nos prazeres da concupiscência carnal que afastam o homem da
adequação à sua essência, enquanto o acto inconsciente e inadvertido revela, apenas, a
momentânea submissão da razão prudente ao desejo avassalador, a incapacidade de
dominar plenamente os movimentos-da-carne. Mas a vontade pode manter-se na
intencionalidade da união com Deus e, com a sua ajuda, relançar o caminho da eternidade.
A menos que, por falta de atenção aos movimentos interiores da alma, a emergência
ocasional do desejo se transmute em segunda natureza, hábito-enraizado que acabará por
vampirizar a própria intencionalidade da vontade.
Daí a necessidade imperiosa da confissão, enquanto forma de perscrutar os insidiosos
movimentos da carnalidade que se enxertam na vontade, corrompendo-a. Só a atenção
32
(D. Duarte, 1982: 317)
(Martin Perez, 2002: 197)
34
(Idem: 197)
35
(Idem: 197)
36
(Idem: 197)
33
10
constante às mais insignificantes manifestações do desejo, a luta ininterrupta da prudência
contra as insinuações da concupiscência, pode fazer com que o homem persevere no
caminho da salvação.
A gula não limita os seu efeitos perniciosos ao mero desejo desordenado de comida e
bebida, numa transgressão da ordem da razão que, corrompendo a disposição natural que
rege o corpo humano, nele inscreve o desejo pecaminoso, mas reveste-se de uma
gravidade acrescida, na medida em que “(...) de él se derivan otros vários (...)”37,
nomeadamente a luxuria, pois há alimentos que “(...) excitan a lo venereo.”38, e cujo
consumo pode levar a uma acumulação exagerada de “(...) materia seminal, cuya
multiplicación es el mayor excitante de la lujuria.”39
Deste modo, a temperança relativa ao prazer-da-boca é, também, fator essencial no
combate geral contra a tendência pecaminosa do homem decaído: porque, como vimos,
muitos pecados têm, no ventre, a sua condição fundamental de possibilidade, pois a “(...)
garganteria suele abrir carrera por do entren los otros pecados, e destruye las virtudes e
los bienes de otro tienpo ganados (...)”40. Pelo vinho, que as papilas degustam, entranhase-nos no corpo a luxúria, assomam-se-nos à linguagem imprecações contra a divindade,
transforma-se-nos o rosto na hedionda face da ira, inscreve-se-nos nos membros o
infecundo desejo de violência.
Deste modo, a boca, enquanto órgão destinado à ingestão de alimentos, torna-se o local
estratégico de uma luta sem tréguas, não só contra o pecado da gula, mas contra o pecado
em geral, muito em particular da luxúria, pois “(...) vezinos son el vientre e los mienbros
naturales, por que entendamos que han amistad en los pecados.”41
Por isso são os clérigos, na medida em que estão obrigados à castidade, advertidos pelos
santos para que comam e bebam pouco, pois “(...) el vientre farto e de vino escalentado,
ayna se descorre en luxuria (...)”42.
E porque “(...) luxuriosa cosa es el vino, e quien en el se deleyta sabio no puede ser (...)”43,
é pela nefasta influência dessa bebida que D. Duarte explica que homens castos na
juventude se tornem luxuriosos na velhice, na medida em que “(...) por sobeja
37
(Tomás de Aquino, 2006: 2-2, C. 148 a.3)
(Idem, 2006: 2-2, C. 147 a.8)
39
(Idem, 2006: 2-2, C. 147 a.8)
40
(Martin Perez, 2002: 334)
41
(Idem: 333)
42
(Idem: 333)
43
(Idem: 197)
38
11
destemperança de beber, por que o entender se enfraquece, a consciência se torna fria, o
desejo de tal pecado se acrescenta (...)”44.
Também a ordem do discurso se desagrega pelo desregramento da gula, embargando a
voz ou estridentemente a libertando, induzindo o “(...) mucho fablar e los otros pecados
de la lengua (...)”45: “(...) perjúrio, blasfémia, vitupério, maldição, seminação da
discórdia,(...)”46.
Do órgão que deveria servir para articular sonoridades de louvor a Deus, soltam-se
mentiras e impropérios, violências verbais que inscrevem a ira no ser do homem,
encaminhando-o para longe da Divindade.
Útil para o corpo e para a alma, a temperança na alimentação é-o também para a
“fazenda”47, pois a gula impede que os membros do clero “(...) vivam na pobreza que
prometeram, por que se trabalham de ter com que satisfaçam as que desejam. E aos que
riquezas podem possuir, faz ser pobres, mas as despendendo em custosas viandas e vinhos
que bem escusar, se temperados fossem, poderiam.”48, constituindo-se enquanto fator de
penúria, pela desadequação financeira que instaura: corpo-económico.
Torna-se, então, necessário regular despesas, impor restrições. Mas, também, e no mesmo
movimento, instaurar hierarquias, diferenciar corpos, distribuir a imagem de poder: a
alimentação como sustentáculo do corpo-poder.
A publicação da Pragmática de 1340 por D. Afonso IV, visando explicitamente reduzir
as despesas alimentares dos seus súbditos, de modo a estabelecer uma adequação entre
os gastos e os rendimentos que têm disponíveis, não deixa também de instaurar uma
hierarquia de poder, baseada na riqueza da mesa.
A Redução do número de iguarias compradas que se podem servir em cada refeição, sem
que se estabeleça qualquer limite para as que não são objeto de aquisição, tem, sem
dúvida, efeitos estritamente económicos, mas a diferenciação alimentar que se instaura
entre dois grupos distintos (Ricos-Homens, por um lado, Fidalgos e Cidadãos, por outro),
sem que esta diferenciação se baseie na riqueza de cada um dos citados grupos, estabelece
uma relação diferencial de poder e prestígio entre eles, que nada tem de económico.
Distribuição desigual que, se por um lado se apresenta como legitimadora da ordem
estabelecida, pela primazia dos Ricos-Homens, por outro abre uma fissura na separação
44
(D. Duarte, 1982: 163)
(Martin Perez, 2002: 334)
46
(D. Duarte, 1982: 324)
47
(Idem: 164)
48
(Idem: 162-3)
45
12
estatutária entre nobres e não nobres, ao atribuir idêntica dignidade aos Cidadãos ricos e
aos Fidalgos, embora a ausência de limite das viandas provenientes de caça, ou dadas em
pagamento, certamente os distinga. Obliterando a relação direta entre riqueza e gastos
alimentares possíveis, a lei de D. Afonso IV impõe-se, fundamentalmente, como uma
forma de distribuição do poder, que tem como núcleo diferenciador a alimentação.
Apresentar uma mesa farta é sinal de poder, e ter poder implica o fausto da mesa: o corpoalimentar como corpo-poder.
Corpo-poder que, tendo no Rei o seu máximo expoente, impõe ao Monarca perigos e
deveres que excedem os de todos os outros. Perigos maiores por “(...) serem sobejamente
para comer e beber requeridos, e ligeiramente poderem falecer (...)”49, sucumbindo ao
pecado da gula; deveres acrescidos “(...) por seu bom exemplo poderem prestar a muitos,
e por contrário empecer.”50.
A ORDEM-À-MESA: O INSIDIOSO DESEJO
Com a ordem-da-mesa há que interligar uma ordem-à mesa, na medida em que os gestos
não são in-significantes, neles se inscrevendo os íntimos movimentos da alma, que se
torna necessário fazer-aparecer e interpelar.
“(...) en el acto de comer se distinguen dos partes: el alimento que se toma
y el acto de tomarlo. Por ello, puede haber desorden en el deseo bajo un
doble aspecto. En primer lugar, respecto del alimento que se toma. (...) En
segundo lugar, podemos considerar el desorden del deseo en el mismo acto
de tomar el alimento; haciéndolo de prisa, es decir, adelantando la hora de
tomarlo, o com voracidade, es decir, no observando la debida moderación
en el comer.”51
Comer “(...) arrebatadamente a viãda mal mastigada (...)”,
52
“(...) con gran ardimiento
de garganteria, commo algunos que non cuydan en al sinon en comer, e algunos tales
mascan mal la vianda (...)”53 e “(...) despues de tiempo, commo despues de çena de noche
(...)”54, ou falar “(...) mal de sus christianos o si dixo villanias mientras que comia (...)”55,
49
(Idem: 167)
(Idem: 167)
51
(Tomás de Aquino S. , 2006: 2-2, C. 148 a.4)
52
(Tratado de Confissom, 1973: 186)
53
(Martín Pérez, 2002: 194)
54
(Idem: 194)
55
(Idem: 194)
50
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são o modo específico de o desejo desordenado emergir no campo de visibilidade, dando
a ver o que, por essência, se esconde.
Deglutir freneticamente a refeição, sem que os alimentos sejam convenientemente
mastigados, é o sinal visível da gula irreprimível que impele o homem para a satisfação
dos prazeres do ventre, tal como o é a necessidade de comer depois de cear, quando a
compleição física, e os trabalhos do dia, o não exigem.
A postura à mesa, o modo como se encara a materialidade do puro acto de comer, revela
a tipologia dos desejos que se encontram inscritos no corpo.
Não se trata, portanto, de simples regras de civilidade que teriam como finalidade última
modelar os comportamentos, num procedimento de diferenciação comportamental entre
vilãos e não vilãos56, mas do desvelamento dos movimentos intrínsecos do desejo, como
forma de erradicação das causas de pecado.
Comer apressadamente, mastigar deficientemente os alimentos, pronunciar enunciados
impróprios durante a refeição, não são valorados negativamente enquanto modos
bárbaros que infringem a ordem que deve imperar à mesa, mas são-no na medida em que
se apresentam como manifestações de um desejo desordenado pela comida. E é esse
desejo, motivo de pecado, que se torna necessário erradicar, não as práticas por si
mesmas, que são axiologicamente neutras.
Pelo contrário, comer serenamente, mastigar adequadamente os alimentos, são os indícios
visíveis de um desejo regido pela razão. Mas, no mesmo movimento, podem instituir-se
enquanto modeladores do desejo. Obrigar-se à prática dos referidos comportamentos faz
com que um hábito de moderação se inculque no corpo-desordenado-pelo-desejo,
criando nele uma segunda natureza.
O CORPO COMO MULTIPLICIDADE
O corpo-alimentar, do qual está ausente qualquer noção de individualidade abstrata, é
determinado pela errância, pela multiplicidade das posições qualitativas que, sucessiva
ou simultaneamente, vai ocupando, o que faz dele um corpo-compósito: corpo-santo,
corpo-em-trânsito-para-Deus, mas também corpo-são, corpo-doente, corpo-vilão.
O corpo-alimentar é sempre um corpo-concreto, que ocupa uma posição qualitativa
específica no seio do universo dos entes, determinado pelas suas características próprias
56
“Si fue desonesto o villano em el comer.” (Idem: 194) Vilão que adquire, aqui, o significado metafórico
de desordenado, contrário à ordem que deve reger o desejo-alimentar.
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e pelas circunstâncias em que se encontra inserido, pelo lugar que ocupa na ordem-domundo. E é em função das varias posições que ocupa, do reticulado em que desdobra a
sua existência, que tem de saber gerir, através do uso prudente da razão, a sua prática
alimentar.
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BIBLIOGRAFIA
D. Duarte (1982), Leal Conselheiro, INCM, Lisboa.
Isidoro de Sevilha (2009), Etimologías, BAC, Madrid.
Isidoro de Sevilha, S. (1862), Sententiae. Em J. P. Migne (Ed.), Patrologiae Latinae,
Tomo 83, J.- P. Migne Editorem, Paris.
Martín Pérez (2002), Libro de las Confesiones, BAC, Madrid.
Tomás de Aquino (2008), Du Royaume, Obtido em 15 de Março de 2010, de
http://docteurangelique.free.fr
Tomás de Aquino (2006), Suma de Teologia, BAC, Madrid.
Tratado de Confissom (1973), INCM, Lisboa.
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