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1097 Quem é o inimigo def

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Quem é o inimigo?
Anatomias de guerras revolucionárias: uma
análise a partir da Guiné-Bissau
Por Leopoldo Amado (CES)
Ressalvando-se um período caracterizado e m 1971 por um
impasse militar no teatro das operações, genericamente, o
desequilíbrio da situação militar, desde o começo da guerra, foi
sempre favorável ao PAIGC, até para os comandos-chefes
portugueses, mercê da sua permanente melhoria estratégicotáctica e, também, da perfeita combinação de acções de guerrilha
com as da guerra convencional (sobretudo a partir de 1968), para
além de uma manifesta superioridade em termos de arsenal bélico,
sem ainda contar com o conhecimento do meio e uma elevada moral
combativa.
Esse desequilíbrio, a favor do PAIGC, foi no tempo uma
realidade que evoluiu de forma quase inalterável porque, desde o
início da luta armada, este movimento de libertação foi capaz de
adequar a estratégia militar e a consequente táctica às
estruturas logísticas e ao próprio dispositivo, colmatando, aqui
acolá, as situações que se impunham e fazendo face aos desafios
próprios
de
crescimento
que
requeriam
o
confronto
das
estratégias dos exércitos em presença.
Com efeito, esta dinâmica foi impondo às FARP (Forças Armadas
Revolucionárias do Povo) uma gradativa subida de patamar em
termos organizacionais, para além de uma constante adequação dos
desígnios militares aos estritamente políticos, sendo também de
assinalar o facto de o PAIGC ter aproveitado este ascendente
favorável para para estender o seu controlo por quase toda a
região Sul, o que por sua vez criou as condições ideais para o
alastramento do conflito para a região Centro-Oeste, apesar das
contra-ofensivas de Cantanhez e Quitafine, desencadeadas quase
em simultâneo pelo Exército português, mas que não conseguiram
debelar o ascendente militar do PAIGC que, ainda assim, consegue
abrir novos corredores de infiltração e abastecimentos a partir
da fronteira Norte, dos quais se destacam os de Sitató,
Jumbenbem, Sambuiá e Canja, obrigando o Exército português, por
isso, a uma nova e profunda remodelação do seu dispositivo
táctico.
Foi, efectivamente, em 1971, após a chegada de Spínola que
Amílcar Cabral e o PAIGC, em virtude da eficácia e da eficiência
da política da “Guiné Melhor”, que o ascendente político-militar
do PAIGC foi seriamente abalado e posto a prova, na medida em
que a introdução de um novo conceito operacional, do lado do
Exército
português,
baseado
na
combinação
de
acções
psicossociais com a crescente africanização do conflito,
contribuiu significativamente para uma espécie de equilíbrio e
impasse militares, mercê sobretudo da formação de unidades de
recrutamento local, de espírito marcadamente ofensivo, de pendor
atacante e de procura de supremacia, mesmo que transitória, em
todas as zonas em disputa, passando esta alteração estratégica a
denotar, por parte de Spínola, uma profunda percepção dos
aspectos doutrinários da guerra anti-subversiva, a qual,
doravante, passa a ser direccionada no sentido da conquista das
populações, por meio de acções socioeconómicas, de tal sorte que
logrou espalhar, momentaneamente embora, o desânimo nas hostes
combatentes do PAIGC.
Apercebendo-se ambos (Amílcar Cabal e Spínola) de que havia
que tirar partido da situação de equilíbrio e impasse militares
prevalecente,
quer
um
quer
outro,
quiseram
potenciar
positivamente para o seu lado as oportunidades que surgiam,
optando claramente o primeiro por uma estratégia global assente
na internacionalização do conflito - para cujo fortalecimento
era sumamente importante a componente militar -, enquanto o
segundo apostava seriamente num trabalho cujo objectivo era
claramente o de minar a credibilidade da Direcção do PAIGC,
visando igualmente forjar uma solução politicamente negociada,
uma vez que era assente que o conflito só podia ser resolvido
pela via política e não pela militar, pelo que através da acção
concertada da PIDE-DGS e da APSIC, as autoridades coloniais
começaram a desenvolver, paralelamente, com um notável sucesso,
todo um paciente e meticuloso trabalho de sapa e de infiltração
das estruturas intermédias e de base e, em certa medida, a
própria cúpula do PAIGC.
Perante este estado de coisas, Amílcar Cabral responde com
uma nova modificação dos aspectos gerais da sua manobra global,
passando doravante a preocupar-se em manter, no teatro das
operações, com grande economia de meios e de materiais, um
estado de guerra que servisse a sua propaganda interior e
exterior, visando também, especialmente, a adesão das populações
e uma máxima restrição de mobilidade das unidades das tropas
portuguesas.
A associar a estes dois aspectos, Amílcar Cabral introduz
ainda um terceiro, a todos os títulos demolidor, que é o de
permanentemente alimentar nos areópagos internacionais a ideia
de uma possível e até iminente derrota militar do Exército
português na Guiné, não apenas com o objectivo de assegurar que
as questões relativas à justeza da luta do PAIGC se mantivessem
em permanência na agenda internacional, mas sobretudo com a
finalidade de criar um ambiente internacional favorável à sua
intenção de proclamar o Estado da Guiné-Bissau e, assim,
assestar o golpe diplomático fatal ao colonialismo português,
pois para ele era ponto assente de que o Estado da Guiné-Bissau
existia de facto, através de toda uma organização social,
política e económica criada nas zonas libertadas, apenas
precisando, por isso, de ser formalizada de jure, com a
proclamação da independência e a adopção de uma Constituição que
criasse os seus órgãos de governo, transformando assim a
presença do Exército português, na Guiné, à luz do Direito
Internacional, na de uma força invasora de ocupação.
Do confronto de duas convicções estratégicas muito claras,
resulta, do lado português, o incremento de uma forte componente
política na sua actuação, tanto junto das populações como na
procura de uma solução negociada, optando também Amílcar Cabral,
por seu turno, com uma inusitada acção psicossocial, amplamente
realizada com o apoio da Suécia e articulada a mesma, no plano
das operações militares, com acções coordenadas, quer atacando
as guarnições com possibilidades de apoio simultâneo de
artilharia e tirando o máximo rendimento da sua actividade, quer
ameaçando
zonas
urbanas
e
os
chamados
reordenamentos
populacionais organizados pelo Exército português em autodefesa,
quer provocando intervenções junto da tropa portuguesa e
montando de seguida emboscadas nos itinerários de acesso directo
das forças de socorro.
O Exército português caiu assim numa fase desconcertante e
o PAIGC, em virtude sobretudo da introdução, por parte de
Amílcar Cabral e do PAIGC, de novas e potentes armas que colocam
os aquartelamentos situados ao longo da fronteira sob permanente
fogo de artilharia, correspondendo esta opção táctica a uma
substancial melhoria das FARP em termos de organização militar,
e, por outro, ao incremento da eficiência e da eficácia
relativos a uma ampla acção psicossocial posta em marcha e que,
cumulativamente, em boa verdade, revelaram-se capazes de
contrabalançar a inteligente acção psicossocial de Spínola.
Na realidade, justamente pela ameaça que representava,
Amílcar Cabral era já, desde essa altura, um sério problema para
autoridades colonias de Bissau e mesmo da metrópole. Aliás, pelo
menos desde 1972, o nome do general Spínola é falado para a
presidência da República, e, por isso, não pode regressar
derrotado. Era para ele imperioso tudo fazer para inverter a
situação militar, pelo que não é de descartar a hipótese de que
o assassinato de Amílcar Cabral se enquadrasse nessa espécie de
obsessão que levaria o Exército português, no início de 1973,
logo depois do seu assassinato, a realizar uma série de
violentas operações militares contra as regiões libertadas e
algumas bases do PAIGC no Sul que, no entanto, vieram a revelarse desastrosas.
Acresce também que os sucessos militares e políticos do
PAIGC, destacando-se, dentre os mesmos, a proclamação do Estado
da Guiné-Bissau, só foram possíveis tendo em conta os trabalhos
ainda realizados em vida por Amílcar Cabral, os quais, mutatis
mutandi,
se
deu
continuidade
de
acordo
com
as
linhas
estratégicas por ele gizadas. Portanto, ao contrário do que é
lugar-comum afirmar-se, não foram os mísseis Strella, utilizadas
pelo PAIGC após a morte de Amílcar Cabral, que configuraram uma
alteração marcadamente significativa em termos estratégicotácticos. Na verdade, ainda em vida, Amílcar Cabral tinha
logrado alterar significativamente a situação do impasse
militar, fazendo-a nova e favoravelmente pender para o lado do
PAIGC, designadamente, com a utilização maciça de morteiros (82
mm e 120 mm), foguetões de 122 mm (Graad ou jacto do Povo), a
peça de artilharia 130 mm e ainda o M-46 (novíssima arma de
longo alcance capaz de atingir 30 quilómetros), os quais
ocasionaram, do ponto de vista da correlação de forças no
terreno, uma acentuada alteração favorável ao PAIGC.
Com efeito, a última mensagem de Cabral resume de forma
perfeita a situação em que os portugueses se encontravam no
teatro da guerra: Dizia ele que “ (…) o agressor colonialista
enfrenta uma contradição principal, sem solução (…) Para ter a
sensação de que domina o território, ele é obrigado a dispersar
as tropas, levando-as a ocupar o maior número de localidades
possível, mas, dispersando-as fica mais fraco e, assim, as
forças patrióticas, concentradas, podem dar-lhe golpes mais
duros e mortais. Então ele é obrigado a retirar para concentrar
as suas tropas e evitar grandes perdas em vidas humanas, para
melhor resistir ao avanço das forças nacionalistas, contra as
quais pretende ganhar tempo. Mas, concentrando tropas, deixa sem
a sua presença militar e política vastas áreas do país, que são
organizadas e administradas pelas forças patrióticas”. [Cabral,
Amílcar, “Mais Pensamento para Melhor Agir”, mais Actividade Para melhor Pensar”
(mensagem de Ano Novo), Serviços de Informação do PAIGC, Arquivo do PAIGC, Janeiro de
1973, pp. 12 e 13]
Será assim em defesa da sua imagem pessoal – muito mais do
que a imposição de quaisquer perspectivas negociais –, que
Spínola desencadeia operações de grande monta no Sul, ainda
antes do assassinato de Cabral, as quais este e o PAIGC
respondem, no Norte, de forma igualmente violenta, obrigando
assim o Exército português ao balanceamento de efectivos para o
Norte, para logo depois atacar novamente e com assinalável
sucesso os aquartelamentos do Exército português no Sul.
Portanto, para as autoridades coloniais, como acima se
referiu, Amílcar Cabral e o PAIGC eram já um sério problema para
as autoridades coloniais, na medida em que, para além da
projecção e respeito internacionais que este líder africano
granjeara, o PAIGC contava ainda com moderna e potente
artilharia e ainda poderosos carros blindados no seu arsenal,
pelo que tudo apontava que estava nos seus planos a consolidação
da guerra convencional que, de resto, vinha sendo ensaiada com
inquestionável sucesso, desde pelo menos 1968, e que transformou
o teatro de operações da Guiné no mais sério dilema dos
governantes portugueses: não podiam negociar, porque iriam abrir
um precedente noutras colónias, mas também não encaravam de
ânimo leve a possibilidade de uma derrota, que já se vislumbrava
no horizonte, pois afectaria o moral dos seus soldados que
combatiam noutras frentes, nomeadamente em Angola e Moçambique.
A alternativa política era a de “aguentar o mais possível” que,
ainda assim, só jogava contra Portugal.
Antes, porém, deste clima político em que o Portugal
Imperial entre a espada e a parede, num primeiro momento, a
Subdelegação da PIDE-DGS apostou fortemente na transmudação de
elementos da estrutura clandestina do PAIGC em informadores
dessa mesma polícia política, ao ponto dessa mesma estrutura
clandestina vir a encontrar-se quase que completamente minada. O
irónico da situação era que mesmo dentro da estrutura
clandestina do PAIGC, em Bissau, os próprios agentes infiltrados
da PIDE-DGS estavam, sem o saberem, encarregues de vigiar os
movimentos de outros agentes, seus correligionários, o que de
per si dá ideia do enorme grau de infiltração da PIDE-DGS junto
de estruturas nacionalistas. A este grupo juntava-se ainda a
grande rede de informadores que se contavam aos milhares, para
além do nada desprezível contingente de desertores do PAIGC que
a PIDE-DGS convertia em informadores e o próprio Exército
português utilizou como guias privilegiados nas suas acções
cirúrgicas.
Acrescem a tudo isso outros planos urdidos para desacreditar
Amílcar Cabral e mesmo para a sua eliminação física, dos quais
destacamos os seguintes:

A contratação do escritor Amândio César, em 1965, no tempo do governador
Arnaldo Shultz, que se deslocou a Guiné para escolher elementos para a
publicação de um livro de contrapropaganda contra o PAIGC, no qual, de
resto, escreveu sobre Amílcar Cabral frases assaz indecorosas,
evidenciando quase uma batalha pessoal: “ (…) Ele sabe o fim que o
espera, e sabe melhor do que ninguém o que sucedeu a um seu amigo de
subversão, aquele Humberto Delgado em cuja morte parece que também andou
envolvido o nome da sua mulher. Esse fim à vista e a rivalidade dos
outros comparsas, que suportarão mal, ou não suportam de todo, a sua
ascendência cabo-verdiana, agravada com o seu casamento com mulher
branca da metrópole – tudo isso leva Amílcar Cabral a apresentar-se
optimista em L’ Humanité exactamente quando a imprensa estrangeira
também começa a dar pela mentira do terrorismo na nossa província da
Guiné (…) ” [César, Amândio, Guiné 1965: Contrataque, Pax, 1965, p. 31]

Em 1966 ter-se-ia registado uma primeira tentativa de abater Amílcar
Cabral nas regiões libertadas, na sequência da qual Honório Sanches Vaz
e Miguel Embaná, altos responsáveis do PAIGC (igualmente agentes da
PIDE-DGS), foram julgados e condenados ao fuzilamento. Segundo os planos
desse atentado, um atirador de bazuca deveria disparar contra a barraca
onde Cabral devia pernoitar. Honório Sanches Vaz mantinha ligações com a
Subdelegação da PIDE-DGS de Bissau, tendo inclusivamente enviado a
Bathurst, Gâmbia, emissários que se encontraram com o inspector da PIDEDGS, no Hotel Atlântico, onde alegadamente, ele próprio chegou a
encontrar-se com agentes outros da PIDE-DGS para negociar a rendição dos
elementos do PAIGC sob o seu comando.

Um outro plano que, desde 1967 vinha sendo urdido e discutido com
minúcia, entre o Director-Geral da PIDE e o chefe da Subdelegação de
Bissau, através de uma troca de ofícios com a chancela de “muito
secreto”, acabaria depois por ser abandonado por inexequível.
Com efeito, o próprio Amílcar Cabral tinha uma aguda
consciência da existência de planos que visavam a sua eliminação
física. Produziu, por isso, um importantíssimo e premonitório
documento no qual denunciava concomitantemente os planos do
Governo colonial em face da guerra e, no qual, antevia o seu
próprio assassinato. Curiosamente, tudo ou quase tudo veio a
acontecer, como de resto ele previra neste documento. Com
efeito, dizia ele que:
“ (…) Os colonialistas portugueses, para criarem a confusão na nossa
terra, tudo farão para formar uma Direcção paralela do Partido para se
opor à já existente, a qual deve incluir um ou dois agentes e alguns
elementos responsáveis e entre os descontentes, em particular aqueles
que, pelos erros cometidos ou pelas críticas que lhes foram feitas,
estão descontentes com a actual chefia do Partido. A Direcção
clandestina, criada exclusivamente para a sabotagem e a destruição do
Partido, deveria aproveitar todas as possibilidades para manter
contactos com Governos de outros Estados a fim de levá-los a pensar que
existe uma cisão no seio do Partido e para ganhar o seu apoio. Nesta
segunda fase, os colonialistas e os seus aliados, de acordo com o plano
elaborado, devem desenvolver uma campanha de persuasão da opinião
pública sobre a cisão do PAIGC em toda a África e ao nível
internacional, propondo-se desacreditar o prestígio da actual Direcção
do Partido e, em primeiro termo, do seu Secretário-Geral. No interior do
país, as tropas colonialistas activariam as suas operações no intuito de
desmoralizar e aterrorizar a população e os nossos combatentes. E,
enfim, se os agentes dos colonialistas, infiltrados nas nossas fileiras,
não forem desmascarados a tempo e conseguirem levar a cabo os seus
planos, sobretudo recrutar aliados entre alguns dirigentes do Partido e
encontrar apoio dos países vizinhos, em primeiro lugar da República da
Guiné, iniciar-se-ia a terceira fase que prevê: a formação de uma nova
Direcção do Partido (…) com base no racismo e, se for necessário, no
tribalismo e na intolerância religiosa, a fim de fixar a divisão do
nosso povo e torná-lo indefeso perante os colonialistas. Decerto mudarão
também o nome do nosso Partido, a cessação de toda a espécies de acções
antiportuguesas, tanto no interior do país como à escala internacional,
particularmente na República da Guiné, o estabelecimento do controlo
sobre os bens do PAIGC com o fim de paralisar as nossas acções militares
e a manutenção do nosso Exército e a prisão e a liquidação física de
todos os membros fiéis ao PAIGC. Realizadas essas metas, a declaração
sobre o estabelecimento de contactos com Lisboa, por intermédio de
Spínola, para o início de conversações falsas que terão por finalidade
alcançar a autonomia interna da Guiné e o estabelecimento da chamada
autodeterminação sob a bandeira portuguesa. A criação do Governo da
Guiné que declarará a formação do Estado da Guiné como parte integrante
da comunidade portuguesa. Em conformidade com os planos e promessas de
Spínola e das autoridades coloniais portuguesas, a todos os agentes e
membros do Partido envolvidos na realização do dado programa serão
assegurados postos elevados na vida política e nas forças armadas do
futuro Estado. Serão também bem pagos pela sua traição. Este é o plano
diabólico
elaborado
por
Spínola
e
pelas
autoridades
coloniais
portuguesas e que tem em vista destruir o nosso Partido por dentro,
recorrendo aos agentes já infiltrados ou a serem infiltrados no seio do
Partido. Julgo que a veracidade destes planos não dá margem para
dúvidas, pois foram recolhidos por gente nossa em Bissau. Como se vê, as
intenções dos colonialistas são bastante sérias e os programas têm largo
alcance. O nosso Serviço de Segurança fez um grande trabalho no sentido
de neutralizar alguns agentes do inimigo e colher certo material
referente a algumas pessoas que ainda se encontram em liberdade. Esta
informação tem carácter meramente confidencial e, por isso, não vamos
fazer agora debates”. [Cf. Cabral, Amílcar, “Vamos Reforçar a Nossa Vigilância, para
Desmascarar e Eliminar os Agentes do Inimigo para Defendermos o Partido e a Luta e para
Continuarmos a Condenar ao Fracasso Todos os Planos dos Criminosos Colonialistas
Portugueses”, Serviços de Informação e Propaganda do PAIGC, Arquivo do PAIGC, Março de
1972.]
A 20 de Janeiro de 1973, porém, ocorre o assassínio de
Amílcar Cabral em circunstâncias até agora não completamente
esclarecidas, apesar de começar a ser possível descortinar-se,
as várias tentativas, quer as anteriores como as mais recentes,
todas da directa responsabilidade moral e material da PIDE-DGS,
tendo todos eles or objectivo a eliminação física de Amílcar
Cabral e o enfraquecimento da Direcção do PAIGC.
Contudo, apesar de não serem suficientemente claras as
circunstâncias que levaram ao assassínio de Amílcar Cabral, é
hoje possível, na perspectiva de indagação “Quem é o Inimigo”,
demonstrar que para a conspiração que culminou no assassínio de
Amílcar Cabral, concorreram forças de natureza díspar, desde os
circunstancialmente
correligionários
aos
ocasionalmente
entrincheirados no mesmo lado da barricada, sem esquecer,
obviamente, as históricas rivalidades étnicas atiçadas pelo
sistema colonial, para além de uma infinidade de outras linhas
de demarcação, ao ponto de podermos comparar essa conspiração a
um polvo gigante cujos tentáculos compreendiam: os milhares de
agentes da PIDE-DGS, recrutados na Guiné, os agentes duplos da
rede clandestina do PAIGC em Bissau; os inimigos internos do
PAIGC; os guineenses “inimigos da união com os caboverdianos; os
caboverdianos “inimigos” da união com os guineenses; as
clivagens étnicas que se manifestaram sob diversas formam na
luta de libertação; os “comprometidos” (infiltrados) do lado do
PAIGC mobilizados pelas autoridades colonias; os “comprometidos”
do lado das autoridades coloniais (descontentes) mobilizados
pelo PAIGC; e, finalmente, os agentes da PIDE-DGS naturais da
Guiné-Conakry. [No complot contra Amílcar Cabral foi referenciado o nome de dois cidadãos
da República da Guiné, a saber, Alpha Coubassa, funcionário Público e Gueladou Bah, funcionário
administrativo (Vide Arquivos da PIDE-DGS, ANTT, PAIGC, SR 64/61 – nt 3073 (Pasta 8), fls.421)].
Com efeito, enquanto nas hostes dos caboverdianos do PAIGC
que se encontravam em Conakry e que foram presos na altura pelos
conspiradores reinou e, em certo sentido ainda reina, por um
lado, a convicção unânime de que a quase generalidade dos
guineenses em Conakry estavam a par da conspiração que conduziu
ao assassínio de Amílcar Cabral, por outro, as informações hoje
disponíveis permitem-nos assinalar a realização de várias
reuniões discretas efectuadas, logo após o assassínio de Amílcar
Cabral, pelos guineenses notáveis do PAIGC que tinham a
preocupação de ver um guineense a suceder a Amílcar Cabral,
tendo inclusivamente sido aventado, num primeiro momento, o nome
de Rafael Babosa, para logo depois se construir um difuso
consenso em torno da figura de Nino Vieira. Conclui-se,
portanto, que, independentemente da acção da PIDE-DGS, o grupo
dos conspiradores tenha surgido como resultado de várias
clivagens, dissidências e tensões criadas no PAIGC ao longo dos
anos
da
guerra,
catalisadas
as
mesmas
por
motivações
individuais, mas igualmente diversas e mesmo diferenciadas.
Acresce também, na perspectiva de indagação “Quem é o
Inimigo”, a participação das autoridades da Guiné-Conakry na
conspiração, pois é difícil convencermo-nos da sua nãoparticipação se atendermos ao facto de que os cabecilhas da
conspiração chegaram de ser triunfalmente recebidos no Palácio
de Sékou Touré. Aliás, na mesma linha de raciocínio, é possível
hoje provar-se a directa ou indirecta participação dos Serviços
de Inteligência de vários países ocidentais que, na altura,
apoiavam a política colonial de Portugal.
No entanto, Spínola recusa terminantemente a sua implicação
na
morte
de
Amílcar
Cabral,
enquanto
certos
sectores
politicamente
mais
conservadores
do
Exército
Português
consideravam que “ (…) o mal-estar permanente gerado entre caboverdianos e guineenses do PAIGC e o seu reflexo na população
foram dando origem, no decorrer da guerra, a aproximações e
contactos entre responsáveis daquele movimento e autoridades
portuguesas. Talvez que o assassínio de Amílcar Cabral tenha
sido consequência de tudo isto e também do peso da subordinação
soviética de que ele sentia necessidade de se libertar. (…) ”.
[Silvino Silvério, Marques, A Vitória Traída (Quatro Generais Escrevem): J. da Luz Cunha, Bethencourt
Rodrigues, Editorial Intervenção, 1977, p. 263.]
Do nosso lado, porém, não temos dúvidas de que Amílcar
Cabral teria sido vítima das manipulações das autoridades
colonias e da PIDE-DGS, mas igualmente de uma série de entidades
e interesses que pareciam gravitar em círculos concêntricos,
todos eles inquestionavelmente manietados pelos Serviços da
PIDE-DGS em Bissau e Lisboa (o núcleo central da conspiração),
sem margem para dúvidas, os autores morais e matérias do
assassinato de Amílcar Cabral.
Aliás, para nós, reportando-nos ao estado das pesquisas e
das investigações sobre o assassínio de Amílcar Cabral, as
únicas dúvidas atém-se com a dificuldade em determinar, com
exactidão, o grau de infiltração do PAIGC pela PIDE-DGS, e, na
mesma linha, os diferentes níveis de responsabilidade moral, uma
vez que são conhecidos os autores materiais, como se segue:
Inocêncio Cani; Comandante de Marinha; Estêvão Lima; da Marinha;
Mário Cá, da Marinha; João Tomas Cabral, agente da PIDE-DGS
desde a altura em que desempenhou as funções de responsável pela
logística e reabastecimentos em Koundara; Alda Djassi; Coda
Nabonia, um dos guarda-costas de Amílcar Cabral; Momo Turé, expreso político em Tarrafal; Baciro Turé; Inácio Soares da Gama,
comandante da região Leste; Emílio Costa, da Marinha; Luís
Teixeira, da Marinha; Mamadu N’Djai, comandante de infantaria e,
na altura, chefe da segurança do Secretariado do PAIGC;
Marcelino Ferreira, vulgo “Néne”, radiotelegrafista em Conakry;
Aristides Barbos, ex-preso político em Tarrafal; Ansumane
Bangurá; Abdulai Djassi; Valentino Cabral Mangama e Bocoda (ou
Coda) Mabogma.
Segundo um artigo publicado por Basil Davidson em Abril de
1973 (Sunday Times de 15 de Abril de 1973), o autor descreve em
pormenor os acontecimentos que teriam precedido a morte de
Amílcar
Cabral,
atribuindo
o
atentado
às
autoridades
portuguesas. Nesse artigo, Davidson afirma que o programa de
promoção social de Spínola só poderia vingar se o PAIGC fosse
destruído por um duplo golpe que decapitasse a sua chefia e ao
mesmo tempo enfraquecesse a sua principal base logística,
proporcionada por Sékou Touré. Depois evoca a incursão contra
Conakry, em Novembro de 1970, e fala de Momo Touré e Aristides
Barbosa, “que regressaram ao PAIGC depois de terem passado
vários anos encarcerados nas prisões portuguesas e que, uma vez
acolhidos pelo PAIGC, teriam então procurado aliciar recrutas,
tendo conseguido audiência local entre uns quantos descontentes.
O número de tais aderentes teria atingido cerca de três dúzias,
tendo, porém, a tentativa de golpe sido levada a cabo apenas por
nove (…) ” [Davidson, Basil, citado também por uma nota da PIDE-DGS – Arquivos da PIDEDGS/ANTT, Proc. PAIGC, SR64/61 – NT 3073, Pasta 8, fls.762].
Quanto ao assassínio de Amílcar Cabral, corroboramos das
palavras de Costa Pinto que afirmou: “ (…) muito embora seja
ainda difícil fazer um balanço das várias acções desempenhadas
pelos serviços de informação e nomeadamente da PIDE, parece não
oferecer dúvidas de que esta, quer através de informadores
próprios quer através de outras polícias, controlava de perto as
actividades dos movimentos de libertação nos países onde tinham
santuários, desde os primeiros tempos do Congo-Kinshasa e de
Conakry. As acções mais espectaculares que lhe foram atribuídas
estão, no entanto, ainda longe de ter uma resposta satisfatória
no que toca à sua responsabilidade, até pela alta promiscuidade
entre tensões étnicas e pessoais no interior das próprias
organizações guerrilheiras ou, por vezes, entre estas e as
facções políticas dos países de acolhimento. Casos como o
assassínio de Amílcar Cabral ou de Eduardo Mondlane, por
exemplo, apesar de já serem passíveis de reconstituição com
muito maior base informativa, repousam ainda neste limbo
interpretativo (…) ”.
Para nós, contudo, é dado assente que o assassínio de
Amílcar Cabral não dissipou a encruzilhada de dissensões
múltiplas que se geraram à montante e a jusante da guerra
colonial/guerra de libertação, antes pelo contrário, catalisou
uma circunstancial e inaudita união de esforços, ditada pela
emoção colectiva suscitada pela súbita perda de um líder da
dimensão de Amílcar Cabral, aliás, estado de espirito esse que
se traduziu, do lado do PAIGC, no endurecimento guerra,
propiciando assim na Guiné-Bissau uma situação que quase levou o
Exército português a uma situação de colapso militar e que, de
alguma maneira, terá catalisado inclusivamente a ocorrência do
25 de Abril em Portugal, para além da independência da GuinéBissau e Cabo Verde e de outras ex-colónias africanas de
Portugal, nomeadamente o de Angola e Moçambique
No caso da Guiné-Bissau - já o escrevemos algures - o período
pós independência contrasta com esta herança dourada que foi a
luta de libertação nacional, superiormente dirigida por Amílcar
Cabral, de resto, uma luta que entrou a justo título para a
galeria dos povos do Terceiro Mundo que ousaram enfrentar e
vencer o colonialismo. Foi, certamente, o caso do PAIGC. Foi,
inquestionavelmente, por isso, que Amílcar Cabral pagou com vida
o preço por ter ousado enfrentar e vencer uma potência colonial.
Contudo, esta herança histórica, inolvidável a todos os títulos,
porque é nela que se forjou as nações guineense e caboverdiana,
não foi infelizmente gerida de molde a suprimir os matizes
culturais e ontológicos em que se fundaram e ainda fundam as
sobreposições e justaposições inconvenientes de historicidades
várias
em
que,
paradoxalmente,
o
próprio
movimento
de
libertação, sintomaticamente, se movera.
Janeiro de 2012
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