Subido por Ana Praguento

Cante Alentejano em Grupos Femininos

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O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
Ana Praguento – a2020125704
Rodrigo Cabral – a2020120770
UNL-FCSH
Departamento de Ciências Musicais
Grandes Correntes da História da Música
Docente: Zuelma Chaves
Dezembro 2022
1
O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
«Alentejo, que és nossa terra
Ai quem nos dera lá estarmos agora!
Para a mocidade,
Com saudade,
De ouvir cantar, como ouvia outrora!
Terra bela, tão desejada,
Casas singelas de branco caiadas,
Eu nunca esqueço,
Que fostes meu berço,
Lindo cantinho desta Pátria amada!»
O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
Índice
Introdução ......................................................................................................................... 1
Estado da Arte ............................................................................................................... 1
Breve consideração sobre a prática do cante .................................................................... 2
O Cante Alentejano em Grupos Femininos ...................................................................... 4
O caso do grupo “As Cantadeiras da Essência Alentejana” ............................................. 6
a.
Descrição geral do grupo e seu propósito de criação ............................................ 7
b.
Repertório e sua orientação temática ..................................................................... 8
c.
Motivação política e emancipatória ....................................................................... 8
d.
Identidade do grupo ............................................................................................... 9
e.
Evolução do grupo e sua dimensão intergeracional ............................................ 10
Conclusão ....................................................................................................................... 10
Referências ..................................................................................................................... 12
Apêndices ....................................................................................................................... 13
Introdução
Este trabalho foi realizado no âmbito da Unidade Curricular de Grandes Correntes
da História da Música, lecionada pela Professora Zuelma Chaves.
A escolha do tema dependeu da obrigatoriedade de estudar um objeto inserido na
História da Música Ocidental, a partir do séc. XX. Sendo assim, e por sugestão de um dos
membros do grupo, decidiu-se estudar o Cante Alentejano, o qual aparece como prática
do folclore português com grande relevo na época em causa. Contudo, seria
temporalmente impossível estudar de forma cabal a história de tudo aquilo que se
relaciona com o cante, de tal modo que se optou por circunscrever o estudo em questão
ao Cante nos Grupos Femininos. Ademais, decidiu-se também investigar um grupo coral
feminino numa lógica de estudo de caso, sendo o mesmo «As Cantadeiras da Essência
Alentejana».
Ao longo deste trabalho almejou-se então entender genericamente a história do
cante com confluência para os grupos femininos, tendo como orientação as seguintes
questões investigativas:
•
Até que ponto é que o cante em grupos femininos se apresenta como um ato
político, isto é, de emancipação das mulheres?
•
Como foram encarados pela sociedade os primeiros grupos femininos?
Quanto à metodologia de investigação, procurou-se realizar o trabalho através de
leitura de bibliografia sobre o tema, com base na visualização de vídeos e através da
realização de entrevistas a pessoas relacionadas com a prática do cante.
Estado da Arte
Cada vez mais se investiga sobre o Cante Alentejano, sobre a sua origem, os seus
grupos, as suas tradições. Temos o caso da antologia escrita por Salwa Castelo-Branco e
Paulo Lima, os responsáveis pela inscrição do Cante para património Cultural da
Humanidade (Castelo-Branco e Lima 2018). Nestes quatro livros, aborda-se a definição
e geografia do cante, e sobre «os alentejanos e alentejanas que contribuíram para a
salvaguarda do cante», abordam também o processo de candidatura a Património Cultural
da Humanidade. Ao longo dos quatros volumes temos várias «modas» e a sua história,
tal como a de vários grupos corais.
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O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
Sobre a mulher e a sua participação na música, não especificamente no cante,
Mayara Pacheco Coelho, Marcos Vieira Silva, Marília Novais da Mata Machado,
escrevem, em 2014, um artigo sobre uma investigação que assenta na presença de
mulheres no panorama musical da região de São João del-Rei, no Brasil. Apesar de se
tratar de uma zona geográfica diferente da portuguesa, o artigo toca alguns pontos em
comum com a investigação do presente trabalho. Nomeadamente, a forma como a mulher
estava subordinada ao homem, confinada ao espaço doméstico e excluída de uma certa
convivência que a impedia de participar na música e no que a mesma envolvia (Coelho,
Silva, e Machado 2014). Tal como instrumentos de percussão e metais não são «uma
coisa de mulheres», também se constata que o «verdadeiro cante» era, por vezes,
exclusivamente reservado aos homens.
Em relação ao título deste trabalho, Sónia Moreira Cabeça e José Rodrigues dos
Santos a 2010 publicam «As mulheres no Cante Alentejano», que aborda a forma como
a mulher pertence e sempre pertenceu ao cante, a perda de visibilidade e liberdade na
prática e, pós 25 de Abril, a recuperação da mesma. O artigo faz menção ao primeiro
grupo coral exclusivamente feminino: «Grupo Coral Feminino “Flores de Primavera” de
Ervidel» e a forma como a sociedade aceita (ou não) as mulheres que cantam. Ainda
assim, os autores não deixam de referir a existência de grupos mistos, que também foram
uma ferramenta para a sobrevivência do cante, alianças entre grupos, entre homens e
mulheres, entre associação são essenciais para ultrapassar as dificuldades e o
envelhecimento do cante.
Breve consideração sobre a prática do cante
Não obstante o levantamento do estado de arte das investigações existentes sobre
a participação da mulher na música popular e, fundamentalmente, no cante alentejano,
importa entender, antes de qualquer estudo focado no género feminino, o que é que torna
a prática do cante tão singular. Nesse sentido, e tendo por base parcial Sousa (2011), é
possível analisar a prática do cante tendo em conta as seguintes dimensões: a arte musical
e os temas cantados.
Quanto ao primeiro ponto, no qual se intenta essencialmente compreender à luz
da teoria musical as estruturas que dão corpo à música no cante alentejano, Graça (1946)
refere que o mesmo tem um cariz polifónico e imitativo que, não obstante ser uma prática
sem cariz erudito, não deixa de apresentar uma impressionante musicalidade:
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O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
«[…] as canções corais, que os íncolas da região, na sua maioria rudes
trabalhadores do campo e pequenos mesteirais, cantam com admirável
musicalidade nata e compenetração de quem cumpre um velho ritual. […] Uma
voz entoa a melodia: canta sozinha os primeiros compassos; em geral outra lhe
dá uma como que réplica – e logo as restantes se lhes juntam, numa harmonização
instintiva, em que um que outro gostoso arcaísmo lembra a arte medieva do
Organum e do Discantus.» (p. 69)
Mas além da organização das vozes referida por Graça (1946), também a forma
como se organiza a letra deve ser considerada. Cabeça e Santos (2010) fazem então a
distinção entre «moda», que deve ser respeitada e imutável, e a «cantiga», que pode ser
alvo de improvisação e alterações, funcionando como estrofes livres.
Já no que tange o plano temático, Graça (1946) refere que o cante alentejano se
caracteriza essencialmente por uma tristeza transversal a todas as modas. Mesmo
naquelas aparentemente mais alegres, é verificável a omnipresença desse pathos que torna
a expressão do júbilo algo contida. Como refere o mesmo:
«A canção alentejana é, por via de regra, larga, dolente e triste, de uma tristeza
nada depressiva, antes nobre e serena, de um colorido sóbrio, de uma linha severa
[…]. Não é que ela desconheça a alegria ou disposições de ânimo pelo menos
sorridentes; mas essa alegria, esses sorrisos são temperados não se sabe por que
pudor, por que melancolia, que eliminam dela todo e qualquer elemento de
exaltação dionisíaca.» (pp. 69-70)
Ainda assim, além dessa interpretação sentimental de Graça (1946), é importante
salientar o sentido materialista e emancipatório das temáticas que, ainda assim, não
deixam de conservar o pathos acima referido. Apesar de originalmente o cante não se
resumir a um sentido reivindicativo, a verdade é que além do entretenimento dos cantores,
o cante também se apresenta enquanto fenómeno agregador da classe trabalhadora
agrícola, servindo ao mesmo tempo como forma de aliviar a angústia dessa classe. Nesse
sentido, muitas das letras vão ter um cariz político de defesa do direito ao trabalho, de
louvor à terra e à importância do seu cultivo, que, ainda assim, não deixa de ser temperado
pela «tristeza severa» referida por Graça (1946). De facto, como refere Sousa (2011):
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O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
«Mais do que reivindicar melhores formas de vida, o cante servia para se
purgarem as dificuldades. Segundo Nazaré ‘tornando possível a comunhão de
homens e mulheres na luta pela obtenção dos produtos da terra, presidia à criação
e perpetuidade de um dos aspetos mais relevantes do repertório da música vocal
de tradição oral da região: os cantares do trabalho’.» (p. 7).
O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Relativamente à presença das mulheres no Cante podemos distinguir três fases
(Cabeça e Santos 2010): a primeira é marcada pela espontaneidade, pela informalidade.
O Cante era uma ferramenta para o estímulo entre os trabalhadores e um incentivo para
darem o melhor de si no trabalho agrícola (Sousa 2011). Nesta participavam homens e
mulheres, em grupos femininos, masculinos ou mistos. O cante não estava só associado
ao contexto laboral. Por vezes, no ‘balho’ (como nós, alentejanos, chamamos ao típico
baile, «bailarico», a romaria, a festa popular), assistimos a «despiques» entre homens e
mulheres. As mulheres não só participavam naquilo que era o Cante, em grupos informais
como no contexto privado e individual «escolhiam as ‘modas’ mais doces e mais serenas
para cantarem às crianças» (Cabeça e Santos 2010).
Na segunda fase, a partir de 1930, sob a regência de Oliveira Salazar, vemos uma
instrumentalização do Cante, surgem cada vez mais grupos formais. Estes grupos
estritamente masculinos, é difundida a ideia de que o Cante é dos homens, as mulheres
não «cantam», ou melhor «não podem cantar o Cante», foi apagada toda uma baliza
temporal onde se notou que as mulheres cantam e sempre cantaram - como referido
anteriormente.
Numa fase posterior, pós-25 de Abril e dura até aos dias de hoje. Como
consequência da revolução, do fim da ditadura, nota-se uma revolução económica,
política, social, cultural, entre outros. Nomeadamente a mulher vê-se mais livre.
«No entanto a sociedade de então com as suas mais que justa exigência moral, na
defesa da mulher e da sua dignidade, só em certas circunstâncias permitia que
esta se juntasse aos homens para cantar, em grupo, como nos «Balhos», nos
«mastros», na igreja ou nas romarias”. Esta “defesa” da dignidade feminina
impede, por exemplo, o acesso a espaços de lazer como as “vendas” (ou tabernas),
que por isso se tornavam exclusivamente masculino – onde o Cante antes
imperava – e confina o canto, no feminino ou em conjunto com o homem, à
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O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
intimidade ou a situações pontuais onde a convivência entre géneros seria
considerada aceitável» (Cabeça e Santos 2010)
É neste contexto que vemos surgir o primeiro grupo feminino de Cante, em 1979,
o mesmo abriu caminho a que o número destes grupos corais aumentassem cada vez mais.
Com a presença das mulheres no cante, a prática vai-se alterando em termos de:
repertório, trajes, entre outros.
Referentemente ao repertório, as mulheres resgatam repertório do cancioneiro
tradicional que havia sido descartado pelos grupos formais masculinos, voltam também a
ouvir-se «modas» que já tinham entrado em desuso. Disse-se que o «Cante no feminino»
é um pouco mais rápido, talvez por serem cantadas modas associadas a um contexto mais
informal («balho», «trabalho»). Ao contrário das modas cantadas pelos grupos formais
masculinos, eram um pouco mais ligeiras.
O Cante representou, para a mulher, exclusão. Por outro lado, a partir do momento
em que a mulher foi incluída no mesmo, o Cante passou a representar liberdade.
Representou um convívio que outrora não existia para as mulheres, que estavam
anteriormente restritas à sua casa e a tratar dos filhos e das tarefas domésticas.
Sónia Cabeça e José Rodrigues dos Santos afirmam que «Com a introdução das
mulheres, o repertório dos grupos corais alarga-se. O Cante abarca novas peças musicais
e algumas modas caídas em desuso voltam a ouvir-se. À inovação fomentada pelos grupos
corais preexistentes, as mulheres acrescentam o repertório tradicional entretanto
abandonado» (Cabeça e Santos 2010).
Contudo, quando falamos de grupos mistos, falamos também de alguma
relutância: há quem defenda que as mulheres podem cantar, sim, mas só com mulheres.
Não só, em termos técnicos se diz que as vozes masculinas não combinam, que homens
e mulheres devem cantar repertórios diferentes, muitos destes grupos corais não têm
ensaiadores que disponham de uma formação musical muito avançada, o que leva a que
existam dificuldades na criação e equilibragem do som. Como refere José Morais, que
nos diz: «Gosto muito de as ouvir cantar, adoro ouvir um grupo feminino, mas misturado
não. Por várias coisas. Temos aí exemplos (…) têm lá quatro ou cinco mulheres e o alto
tem dificuldade por causa do som da mulher. Depois elas não sabem controlar, por vezes
não sabem controlar, vão atrás». Por outro lado, argumentam, «a mulher tem um timbre
de voz de uma maneira, há modas lindas para elas. E o grupo coral do homem tem outras
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O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
que são mesmo feitas para ele, que as mulheres não conseguem lá chegar de maneira
nenhuma» (Cabeça e Santos 2010).
No estado novo, sob os ideais de Salazar a mulher estava restrita ao espaço e
tarefas domésticas Em Portugal, o Estado Novo esforçou-se por conservar a mulher no
seu posto tradicional, como mãe, dona-de-casa e em quase tudo submissa ao marido
(Couto 2005).
Como a mulher estava confinada ao espaço doméstico, nunca frequentava as
tabernas, e sendo a «taberna» um dos berços do cante, acreditava-se que as mulheres não
cantavam nem pertenciam ao Cante (Cabeça e Santos 2010). Com a emancipação da
mulher depois do 25 de Abril, quando se tornou livre para também frequentar estes
mesmos espaços, os homens estranhavam a sua presença: sentiam-se mais retraídos,
cresceram a frequentar estes estabelecimentos, que eram exclusivamente masculinos e
assim perdia-se um dos fatores que caracteriza o Cante – a espontaneidade.
Mesmo não sendo aceites por toda a comunidade, foram criados grupos femininos,
mistos e até infantis. Alguns deliberadamente, outros como forma de combater o
envelhecimento dos grupos corais, e as dificuldades económicas com que se deparam
alguns destes grupos.
Como referem Sónia e José: «Homens e mulheres cantam hoje novamente em
conjunto, no que entendem como medida necessária para a salvaguarda do Cante
Alentejano: um património cada vez mais reconhecido como verdadeiramente comum»
(Cabeça e Santos 2010).
O caso do grupo “As Cantadeiras da Essência Alentejana”
Analisado o papel da mulher no cante alentejano, interessa agora expor, numa
lógica de estudo de caso, o exemplo do grupo «As Cantadeiras da Essência Alentejana».
Ainda assim, não se pode deixar de considerar a crítica que é muitas vezes feita a tal
lógica metodológica. Como afirma Bell (1997), vários são aqueles que «apontam o facto
da generalização não ser geralmente possível e questionam o valor do estudo de
acontecimentos individuais». (p. 23). Todavia, como afirmam Bogdan e Biklen (1994):
«a escolha de um determinado foco […] é sempre um ato artificial, uma vez que
implica a fragmentação do todo onde ele está integrado. O investigador
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O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
qualitativo tenta ter em consideração a relação desta parte com o todo, mas, pela
necessidade de controlar a investigação, delimita a matéria». (p. 91)
Nesse sentido, estudar um caso específico, como é o do referido grupo de
cantadeiras, não deixa de ser uma investigação que, na sua particularidade, permite
posterior reflexão sobre o todo, neste caso, o universo dos grupos femininos de cante.
Para analisar então o grupo «As Cantadeiras da Essência Alentejana», procedeuse à realização de uma entrevista à atual ensaiadora Sara Martins (vide apêndice 1), assim
como à análise de um documentário sobre o grupo realizado por Patrícia Couveira no
contexto do programa O Coro emitido pela Rádio e Televisão de Portugal (Couveiro
2019), sendo que através de tais fontes de dados foi possível extrair informação passível
da seguinte categorização: (a) descrição geral do grupo e seu propósito de criação; (b)
repertório e sua orientação temática; (c) motivação política e emancipatória; (d)
identidade do grupo; (e) evolução do grupo e sua dimensão intergeracional.
a. Descrição geral do grupo e seu propósito de criação
O grupo coral «Cantadeiras da Essência Alentejana» teve a sua fundação em
novembro de 2004, sendo oriundo de zona de Almada. É, portanto, um grupo
relativamente recente que surge num sentido essencialmente amical, apresentando como
grande propósito inicial fazer do cante alentejano não só um momento de recordação das
memórias do Alentejo, mas também um momento de convívio para pessoas em idade de
reforma, nas quais se incluem tanto os elementos do grupo, como os próprios espetadores
que numa fase inicial são essencialmente idosos de lares de acolhimento. De facto, é
interessante referir que esse sentido de inclusão dos mais idosos, no qual a pessoa numa
idade de reforma continua a ser vista como um indivíduo capaz de ser criativo, é, antes
de qualquer sentido emancipatório feminista, a grande motivação social do grupo.
Ademais, importa atentar para o carácter aberto do grupo, na medida em que não
apresenta qualquer pendor purista de uma composição circunscrita a pessoas oriundas do
Alentejo ou com ascendência de tal território. De facto, o grupo não só é formado por
pessoas que vieram do Alentejo nos 60 e 70, mas também por pessoas de Almada e outras
sem qualquer ascendência alentejana que, por gostarem da prática, quiseram aprender e
integrar-se no grupo. Como refere Sara Martins: «eu até diria que atualmente se calhar
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metade do grupo não é alentejano. Tem origens tal como eu tenho as minhas origens
alentejanas, como há pessoas que não têm qualquer ligação.»
b. Repertório e sua orientação temática
Tanto na entrevista como no documentário denota-se algum confluência temática
para a ideia de um Alentejo abandonado, conservando-se a «tristeza severa» do alentejano
que refere Graça (1946), mas também o sentido político de afirmação da classe
trabalhadora agrícola como mencionado por Sousa (2011). Ainda assim, e há semelhança
do que referem Cabeça e Santos (2010), Sara Martins alude para o facto de as modas nos
grupos femininos serem tendencialmente mais ligeiras, algo que o grupo tem tentado
contrariar com a inclusão de modas mais lentas e com maior peso melancólico que,
outrora, somente estavam destinadas aos homens.
Além disso, é igualmente interessante referir que, no capítulo das modas de cariz
amoroso, o grupo tem tentando contrariar a predominância da narrativa na qual é sempre
a mulher que é cortejada pelo homem que lhe canta uma cantiga. Nesse sentido, Sara
Martins tem procurado trazer para o grupo modas em que o sujeito poético nessa narrativa
seja a mulher e não o homem, que seja, portanto, a mulher quem canta para o seu amado.
De referir também que, além de temas do cancioneiro tradicional e adaptações das
canções tendencialmente cantadas pelos homens, o grupo tem temas originais decorrentes
de ofertas de compositores como José Borralho.
c. Motivação política e emancipatória
Já no que tange a dimensão política e emancipatória, é possível afirmar que num
sentido geral está de acordo com a dimensão reivindicativa que faz parte de todo o cante
alentejano. Ainda assim, interessava perceber até que ponto é que o grupo, formado
exclusivamente por mulheres, tinha uma orientação para um sentido emancipatório da
mulher.
Com base na entrevista e no documentário, não é claro que esse sentido político
seja uma motivação consciente por parte do grupo. Como já foi referido anteriormente, a
génese do grupo decorreu muito mais de um sentido de inclusão dos mais idosos do que
propriamente de uma consciência política contra a opressão das mulheres. Mesmo assim,
além da constatação de que o grupo participa regularmente em eventos do Movimento
Democrático das Mulheres, foi possível no desenrolar de a entrevista captar a presença
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Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
de tal pendro emancipatório, ainda que de forma mais oculta. De facto, a seguinte a
seguinte citação de Sara Martins denota isso mesmo:
«E agora lembrei-me que, por falar em emancipação, é engraçado que elas
referem que ‘é assim que devia ter sido sempre, uma mulher ensaiadora’! E nós
até temos ido cantar com outros grupos femininos e faz-lhes muita confusão os
grupos que são ensaiados por homens e em que são os próprios homens a indicar
o que vai cantar o grupo, e eu recordo-me que realmente a maior parte das
cantadeiras diz, ‘mas porque é que está ali aquele homem, as mulheres é que vão
cantar não precisa de estar ali aquele homem’, é interessante! Mas notando isso
afinal existe mais esse sentido emancipatório do que aquilo que eu pensava!»
Pegando nessa citação da entrevista, denota-se então a ideia de que o grupo não
tem grande abertura para vir a ser misto, havendo essa necessidade de afirmação da
mulher no cante enquanto indivíduo autodeterminado e independente do homem. Ainda
assim, como refere a ensaiadora na entrevista, e indo ao encontro do que referem Cabeça
e Santos (2010), a reduzida existência de grupos mistos não decorre somente dessa
disputa entre géneros, mas também da própria dificuldade técnica que comporta a junção
de vozes femininas e masculinas no cante alentejano.
Por fim, deve denotar-se que a inversão das modas do amado para amada, ainda
que decorrentes de uma proposta mais atual da vigente ensaiadora, não deixa de
comportar mais um indicador de procura de autodeterminação da mulher, na medida em
que é ela e não o homem que passa a estar na posição do amante.
d. Identidade do grupo
Contrariamente a outros grupos, como o grupo dos ceifeiros de Cuba referido por
Sousa (2011), as «Cantadeiras da Essência Alentejana» não se caracterizam por um
comprimento rígido dos ditames tradicionais do cante alentejano definidos pela
Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO)1, nem
procuram uma diferenciação por essa via demasiadamente tradicional.
1
Em 2014 a UNESCO elegeu o cante alentejano como Património imaterial da Humanidade. In
https://observador.pt/2014/11/27/unesco-elege-cante-alentejano-como-patrimonio-imaterial-dahumanidade/
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O Cante Alentejano em Grupos Femininos
Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
Ainda que a atual ensaiadora tenha procurado trazer uma maior preocupação com
o respeito pela originalidade das letras e das músicas, e com um maior primor na prática
vocal do grupo, a identidade do grupo está acima de tudo no convívio, no ritual amical,
na música pela música enquanto fenómeno agregador.
e. Evolução do grupo e sua dimensão intergeracional
Ainda que a eleição do cante alentejano como Património Imaterial da
Humanidade tenham representado adesão dos jovens à prática, no caso do grupo em
questão tem-se verificado uma redução considerável do número de membros.
De facto, a par da ensaiadora e da sua irmã, o grupo não tem apresentado qualquer
renovação e inclusão de elementos mais jovens, estando numa tendência decrescente. Se
em 2004 o mesmo era composto por cerca de vinte e cinco elementos, hoje o grupo
somente tem dezasseis.
Sara Martins refere como problema a dificuldade de atrair novas pessoas,
principalmente os mais jovens, para a prática do cante alentejano, algo que sente bastante
na pouca adesão ao incentivo para tal que o grupo tenta promover aquando das suas
atuações.
Conclusão
Ainda que as suas origens sejam incertas, sendo inclusivamente associado por
Graça (1946) a práticas eruditas medievais como o Organum e o Discantus, o cante é
acima de tudo um canto do povo alentejano, descrevendo não só as suas raízes mas
também a dimensão concreta e material das suas vidas, num pathos melancólico, num
desabafo reivindicativo, ainda que num pesar que quase parece anunciar a constatação de
que «quando protestamos, quando nos manifestamos, tudo isso resulta cada vez menos
em transformações efetivas […] e o horizonte de uma tomada de poder parece cada vez
mais longínquo» (Lagasnerie, 2020, p. 14).
No caso do cante feminino, ainda que o surgimento de grupos exclusivamente
compostos por mulheres denote uma evidente afirmação da sua autodeterminação e da
possibilidade de também elas poderem fazer parte da voz alentejana, deve denotar-se que
tais grupos podem ser vistos não como uma recente adesão de vozes femininas ao pathos
alentejano, mas sim como um regresso a uma unidade que, mesmo considerando a
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Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
constante presença do modelo patriarcal em Portugal, foi radicalmente interrompida pelo
reforço desse mesmo modelo no regime salazarista. O cante alentejano das mulheres, não
é, portanto, o mero desejo sectário de superiorização do género feminino em relação ao
masculino, mas engloba um desejo de unidade, uma aspiração ética, na qual a classe
trabalhadora alentejana e o seu sentido coletivo está para além de imposições morais de
um qualquer regime, de uma qualquer instituição.
Talvez por isso, ainda que tal não seja passível de generalização, o grupo
«Cantadeiras da Essência Alentejana» tenha como principal identidade a unidade que
decorre da música, procurando não uma correspondência conservadora a ditames
impostos pelos «castelos» da UNESCO, mas sim a necessidade de cantar o cante na sua
dimensão instintiva, de fazer da música «não apenas um ofício e uma técnica, mas
também, e acaso para além de tudo isso, um alimento espiritual, uma presença e uma
mensagem vivas» (Carvalho 2001, p. 219).
No entanto, tal não quer dizer que a música destas cantadeiras seja desprovida de
preocupação artística, mas sim que é o entretenimento, enquanto momento criador de
vínculos, enquanto ritual amical, e não aquele desprovido de subjetividade tão criticado
por Adorno (2002), que surge como fundamento essencial da prática.
Conservar tal ritual, tal tradição, que por mais imposição institucional vem
decrescendo na adesão das gerações mais jovens, apresenta-se por isso não só como uma
luta alentejana, ou como uma luta de mulheres alentejanas, mas sim como uma luta contra
a mercantilização, contra a morte da contemplação, contra a morte da subjetividade do
indivíduo que hoje parece já não ter lugar numa sociedade em que «estamos sujeitos à
pressão para comunicar, à coação para produzir» (Han 2020, p. 42).
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Estudo de Caso: Cantadeiras de Essência Alentejana
Referências
Adorno, Theodor W. 2002. «On the Fetish-Charecter in Music and the Regression of
Listening». Em Essays on Music, editado por Richard Leppert. London:
University of California Press.
Bell, Judith. 1997. Como realizar um projeto de investigação: um guia para a pesquisa
em ciências sociais e da educação. Traduzido por Maria Cordeiro. Lisboa:
Gradiva.
Bogdan, Robert, e Sari Biklen. 1994. Investigação Qualitativa em Educação. Traduzido
por Maria Alvarez, Sara dos Santos, e Telmo Baptista. Porto: Porto Editora.
Cabeça, Sónia, e José Santos. 2010. «As Mulheres no Cante Alentejano». Proceedings
of the International Conference in Oral Tradition 2: 31–38.
Carvalho, Mário de. 2001. «As Ciências Musicais na Transição de Paradigma». Revista
da Faculade de Ciências Sociais e Humanas, 2001.
Castelo-Branco, Salwa, e Paulo Lima. 2018. Cante (s) Alentejano - Património Cultural
da Humanidade. A Bela e o Monstro. A Bela e o Monstro.
Coelho, Mayara, Marcos Silva, e Marília Machado. 2014. «Sempre Tivemos Mulheres
nos Cantos e nas Cordas». Fractal, Rev. Psicol. 26 (1): 107–22.
https://doi.org/10.1590/S1984-02922014000100009.
Couveiro, Patrícia, dir. 2019. «Cantadeiras da Essência Alentejana». O Coro. RTP.
https://www.rtp.pt/programa/tv/p38042/e3.
Graça, Fernando Lopes. 1946. «Apontamentos sobre a canção alentejana». Seara Nova,
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Han, Byung-Chul. 2020. Do Desaparecimento dos Rituais. Relógio D’Água.
Lagasnerie, Geoffroy de. 2020. Sair da Nossa Impotência Política. Traduzido por
Diogo Paiva. Lisboa: BCF Editores.
Sousa, Filomena. 2011. «O Cante Alentejano e os Ceifeiros de Cuba». Projeto
Memóriamedia, 1–12.
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Apêndices
Apêndices disponíveis em formato digital,
Apêndice 1 – Entrevista
https://app.box.com/s/7og0mv6fgb8x9urf1ovkb3u2kn5meabd
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