APONTAMENTOS SOBRE A EPISTEMOLOGIA CRÍTICA DE LOCKE E KANT: NOTAS DE CONTINUIDADE E DISSONÂNCIA NO PARADIGMA MODERNO Helena Colodetti Gonçalves Silveira1 Resumo O presente trabalho procurará expor as matrizes do pensamento moderno a partir da análise das construções epistemológicas de Locke e Kant. Enquanto o primeiro rompeu com o inatismo e fundou a epistemologia sob as bases da experiência, o segundo colocou sob julgamento a própria razão e a sua capacidade de apreender a realidade como ela realmente é. Apesar de díspares, as construções de Kant e Locke têm em comum o olhar crítico em relação aos limites do conhecimento, cuja conseqüência é uma maior precisão no esforço moderno de intervenção sobre o real, que contribuirá diretamente para a consolidação do individualismo liberal nos séculos que seguem. Palavras Chaves Epistemologia, experiência, crítica, razão, idéia, entendimento, intuições, noumemon, fenômeno. I – INTRODUÇÃO A análise da construção epistemológica de autores como Locke e Kant possibilita ao intérprete da Modernidade a utilização de ferramentas singulares para a compreensão de como se formou e desenvolveu esta tão peculiar visão de mundo, marcada pela crença otimista nas potencialidades da razão humana, e, ainda, ingênua sobre os perigos da conquista da natureza e do próprio homem por esta mesma razão totalizante. A epistemologia 2 , por excelência, constitui um saber reflexivo, voltada para as próprias condições do conhecimento, seus limites, seus critérios de verdade. Enfim, é nela que se consegue descortinar os materiais utilizados no edifício do saber científico. Mas essa construção, antes de se colocar como um projeto consensual, aponta para as disputas a respeito dos fundamentos de um conhecimento 1 Advogada e Mestre em Direito Constitucional pela PUC-RIO. Email: helenacolodetti@gmail.com CONHECIMENTO, TEORIA DO. A teoria do C. é chamada, também, em italiano, “gnosiologia” ou, mais raramente, “epistemologia” (...). Todos esses nomes têm o mesmo significado: não indicam, como muitas vezes ingenuamente se crê, uma disciplina filosófica geral, como a lógica ou a ética ou a estética, mas, de preferência, o tratamento de um problema que nasce de um pressuposto filosófico específico, isto é, no âmbito de uma determinada diretriz filosófica. Tal diretriz é a o idealismo; e o problema cujo tratamento é o tema específico da teoria do C. é o da realidade das coisas ou, em geral, do “mundo externo”. A teoria do C. apóia-se em dois pressupostos: 1º que o C. seja uma “categoria” do espírito, uma “forma” da atividade humana ou do “sujeito”, que possa ser indagada no universal e em abstrato, isto é, prescindindo dos processos cognitivos particulares de que o homem dispõe fora e dentro da ciência; 2º que o objeto imediato do conhecer seja, como o julgara Descartes, somente a idéia ou a representação; e que a idéia seja uma entidade mental, ou seja, exista apenas “dentro” da consciência ou do sujeito que a pensa. Trata-se, portanto, de ver: 1º se essa idéia corresponde uma coisa qualquer, ou entidade “externa”, isto é, existente “fora da consciência”; 2º se, no caso de uma resposta negativa, existe uma diferença, e qual, entre idéias irreais ou fantásticas e idéias reais (ABRAGNANO: 1962, p. 169). 2 reputado verdadeiro. Locke e Kant, neste sentido, representam respectivamente o início e um momento de síntese de correntes epistemológicas, que no período de menos de dois séculos conseguiram eliminar completamente as formulações teológicas da Escolástica, vigentes por mais de quinhentos anos. Apesar de pertencerem a momentos históricos distintos, é possível perceber em Locke e Kant algumas notas de continuidade justamente naquilo que os distingue de seus contemporâneos: a crítica. Ambos os filósofos, antes de preocuparem com o que é verdade, buscam inquirir o que se pode chamar de verdadeiro. A preocupação, portanto, se desloca para o método de obtenção do conhecimento e suas limitações. Contrastando com o dogmatismo epistemológico, para o qual a busca da verdade não possui limites à sua conquista pela via da razão ou experiência, a pergunta crítica é como se faz possível a verdade ao homem?. As respostas divergem entre Locke e Kant, e para compreendê-las nas suas diferenças, indispensável é a contextualização dos filósofos no seu tempo, expondo suas influências e preocupações. II – LOCKE E KANT NO CONTEXTO DO PENSAMENTO MODERNO DOS SÉCULOS XVII E XVIII As intensas transformações históricas que ocorreram na esteira dos séculos XVII e XVIII denotam a efervescência do paradigma da Modernidade no período. Entretanto, um recorte analítico das duas épocas se mostraria inadequado caso fosse percebida como uma tentativa de desconexão entre elas. Pelo contrário, a análise do pensamento moderno dos séculos XVII e XVIII deve ser compreendida como um recurso expositivo que facilite a percepção de como se orientou, sempre de maneira sinuosa, o fluxo das idéias modernas. Assim, compreender o século XVIII é antes descortinar o terreno fértil preparado pelo século XVII. Nesse sentido, o que existe de peculiar na filosofia e no pensamento político do século XVII? Vários autores consideram essa “jovem modernidade” (KREIMENDAHL, 2000:08) como um momento único, de transição do Renascimento para o Iluminismo, e vários também são os intentos de rotulá-la como o “século do racionalismo”, “do método”, “da tecnicização e laicização” e do “universalismo”(op.cit). De fato, o século XVII não é nenhuma dessas características, mas todas elas, espelhando um momento de conflito, de erupção de um novo paradigma, no qual pensamentos estão em disputa na arena da história. Basta lembrar o exíguo espaço de tempo entre Hobbes e Locke, e a quão diferentes conclusões chegaram a respeito da limitação do poder político, para se exemplificar as dificuldades de fazer uma leitura que rememore idéias de “continuidade” e “consenso”. Quanto à primeira característica, o século XVII foi bastante marcado pelo racionalismo, isto é, uma epistemologia para qual é possível a priori, por meio de argumentos, isto é, independentemente de qualquer experiência, também fora da matemática, chegar a conhecimentos não analíticos, ricos em conteúdo. A base para isso encontra-se na hipótese de que a razão e a experiência convergem. Para o racionalismo, essa concordância se fundamenta em Deus. Ele garante que o pensamento pode atingir o ser como tal, porque Deus conferiu a ambos os campos estruturas isomorfas (KREIMENDAHL, 2000: 10/11). Mas também o empirismo marcou o século XVII, e teve em Locke um dos seus maiores expoentes. Divergindo do racionalismo, o empirismo lockeano buscará fundar o conhecimento sobre nova base, a experiência, expondo seus limites e sua capacidade de extensão, com pretensões universalistas, como será adiante desenvolvido. A preocupação a respeito do método é tema recorrente no século XVII, não em virtude dele próprio, mas sobre a função que tem na busca de um critério de verdade para as ciências. O rigor do método, seja ele racionalista ou empirista, é o que torna o resultado do conhecimento confiável. Daí a preocupação tanto de Hobbes quanto de Locke com a linguagem. Assumindo o caráter convencional da mesma, ambos procuraram corrigir as imperfeições no uso das palavras, que impediria os filósofos de comunicarem uns aos outros “suas descobertas, raciocínios e conhecimentos” (LOCKE, apud TADIÉ, 2005: 191). O raciocínio metodológico é primordialmente dedutivista 3 , operando a partir de uma lógica demonstrativa de conseqüências rigorosas, análoga à matemática e geometria. Busca-se acima de tudo a criação de um sistema concatenado de princípios a priori sintetizados pela razão que somente num segundo momento se volta para a explicação dos fenômenos do real. A razão, segundo esse arcabouço metodológico, representa a faculdade que nos possibilita a compreensão desses princípios universais. Ela, portanto, opera a comunhão do espírito humano com o campo das verdades eternas, originadas da divindade. O surgimento e fortalecimento das ciências naturais, e com elas as tentativas de se dominar a natureza através da técnica, igualmente possuem bastante relevo nesta “jovem modernidade”. Todo esse esforço científico visava a um maior aproveitamento da natureza pela humanidade; um saber utilitário, que parte das potencialidades racionais do homem para a conquista do mundo natural em prol dele mesmo. A idéia de universalismo, por sua vez, tão presente em toda a Modernidade, teve como um dos seus marcos iniciais a concepção de “natureza humana universal” e de certas “leis naturais universais”. Ambas formulações estariam ligadas pela razão. Seria a racionalidade que nos atribuiria a qualidade universal de humano, bem como possibilitaria o conhecimento das leis da natureza formuladas pela divindade, tanto no seu aspecto prático, isto é, de regras morais universais (preservação da vida em Hobbes e preservação da propriedade em Locke, v.g.), quanto no seu aspecto “natural” ou “teórico”, isto é, das leis constantes que regem os fenômenos da natureza, e que são universalmente válidas e observáveis. Mas fazendo um recorte ainda menor, o que de moderno então possui o pensamento de Locke? Como já foi mencionado, além de empirista, do rigor metodológico, do entusiasmo pelas ciências naturais e técnicas de dominação da natureza, do universalismo, a doutrina filosófica-política de Locke possui outras características mais sutis, porém não menos modernas. Primeiramente, toda a estrutura do seu pensamento está ancorada no indivíduo, cuja singularidade é dada pela sua racionalidade, que proporciona sua liberdade natural. O ser humano para ele é uma unidade irredutível e irrenunciável, nem mesmo a um soberano, pois fundada na razão que lhe confere liberdade. “É a 3 Locke, embora um entusiasta da matemática e geometria e do conhecimento demonstrativo como o único capaz de aspirar à condição de científico, desenvolve um método empírico que parte dos fenômenos para os princípios, e não o contrário. É a partir da experiência que se inicia o conhecimento, e não de um sistema previamente sintetizado pela razão. consciência que assegura a identidade da pessoa, e que faz com que cada um seja um eu individual e se reconheça como tal” (POLIN, 1980:133). Esse individualismo se manifesta de diversas maneiras na obra de Locke. Primeiro, como um individualismo epistemológico, ou seja, todo o caminho para a obtenção do conhecimento verdadeiro, processado pelo entendimento a partir da experiência, é percorrido sozinho pelo indivíduo dotado de razão. Em segundo lugar, há um individualismo religioso, no qual há uma relação individualizada que une o homem a Deus, que dispensa a intermediação da igreja. Em terceiro lugar, existe um individualismo político. É o homem racional que dá sentido à sociedade, e não a sociedade que atribui sentido ao homem. O mundo político é criado a partir de um ato de vontade de contratantes livres, que procuram através da ferramenta do Estado alcançar uma maior felicidade pela via da maior proteção à propriedade. A perspectiva individual é constitutiva da política, e anterior a esta. Em quarto lugar, haveria para MACPHERSON um individualismo possessivo. Partindo de uma análise marxista, o professor canadense defende que o núcleo do individualismo de Locke é a afirmação de que todo homem é naturalmente o único proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades – proprietário absoluto, no sentido de que não deve nada à sociedade por isso – e principalmente proprietário de sua capacidade de trabalho (1979: 242). Daí a sociedade ser organizada como um mercado de proprietários que ora oferecem sua própria força de trabalho como mercadoria, e ora se apropriam da força de trabalho de outrem. Todo o arcabouço político só teria justificativa enquanto protegesse o direito de propriedade e garantisse a manutenção das relações de troca. Também a qualidade de “liberal” é atribuída a Locke por muitos dos seus comentadores. Todavia, algumas considerações a esse respeito devem ser feitas. Afirmar que Locke era partidário do liberalismo não deve significar outra coisa senão que ele lançou as bases para a consolidação do pensamento liberal nos dois séculos seguintes. De fato, Locke não poderia ser o “paladino de um sistema de governo que não existia em sua época e que não poderia, portanto, corresponder à realidade do seu texto” (TADIÉ, 2005: 77). Feitas essas ressalvas, inegável, contudo, que o liberalismo teve em Locke um dos seus precursores, na medida em que, impulsionado pelas tensões políticas da Inglaterra do seu tempo, procurou limitar o exercício do poder ao colocar em primeiro plano os direitos e deveres individuais de cada cidadão à defesa da sua propriedade. O espaço político, portanto, somente seria justificado enquanto defensor desse espaço privado irrenunciável. A perspectiva individual era para Locke, e também para o liberalismo, anterior ao Estado, de maneira que a co-existência de ambos operaria apenas no âmbito da subordinação do público ao privado. E foi nesse sentido liberal que Locke redigiu as Constituições Fundamentais da Carolina, cujo preâmbulo ilustrativo aponta para o seria o liberalismo norte-americano: “para melhor organizar o governo deste país e determinar os interesses dos senhores proprietários dentro da igualdade” (1994: 287). O homem liberal burguês de Locke foi aliviado de seus encargos públicos na medida em que o ponto de partida para as suas ações é a individualidade, e em relação a esta subjetividade que serão valoradas. É o ser pontual que vai definir suas necessidades e, pela via reflexa, determinará também a proposta coletiva. A busca da satisfação da esfera privada vai definir a esfera pública. Por isso o caráter instrumental e artificial do Estado, mero dinamizador da felicidade individual. O século XVIII de Kant, por sua vez, apresenta vários pontos de continuidade com o modernismo do século XVII, e pode ser interpretado como um momento de maturidade e reavaliação dos objetivos anteriormente colocados. A confiança na razão em si mesma continua, assim como a crença na unidade do racionalismo: somente pela via exclusiva da racionalidade se consegue apreender o real. Logo, o conceito de verdade é intrínseco e restrito às ciências. Prossegue-se com todo o afinco a tarefa de entronização do sujeito racional e autônomo, pois é a partir da ordenação do real pela razão que se obterá o progresso moral e científico, e via de conseqüência, a maior felicidade humana. Todavia, o projeto de conhecimento será, sob certo sentido, mais modesto, na medida em que procurará depurar-se das aspirações de verdade sobre o plano puramente metafísico. Conhecer a essência das coisas, a alma, Deus, enfim, tudo que se dá no plano supra-sensível está além do saber racional. A razão indagará sobre seus limites, e, em parceria com a experiência, fundará novas bases para o conhecimento: El siglo XVIII maneja a la razón con un sentido nuevo y más modesto. No es el nombre colectivo de las “ideas innatas”, que nos son dadas con anterioridad a toda experiência y en las que se nos descubre la esencia absoluta de las cosas. La razón, lejos de ser uma tal posesión, es uma forma determinada de adquisición. No es la tesorería del espíritu en la que se guarda la verdad como moneda acuñada, sino más bien la fuerza espiritual radical que nos conduce al descubrimiento de la verdad y a su determinación y garantia. Este acto de garantizar es el núcleo y supuesto imprescindible de toda verdadera seguridad. Todo el siglo XVIII concibe la razón en este sentido. No la toma como un contenido firme de conocimientos, de princípios, de verdades, sino más bien como uma energia, una fuerza que no puede compreender-se plenamente más que en sua ejercicio y en su acción. Lo que ella es y puede, no cabe apreciarlo integramente em sus resultados, sino tan solo em sua función (CASSIRER, 1972: 28). O método abandona a demonstração e os modelos de lógica dedutiva rigorosa, próprios da matemática, para serem substituídos pelo modelo de análise (e não dedução) das ciências naturais, tal como operou Newton com sua física. A observação dos fenômenos é que iniciará o caminho a ser percorrido para o conhecimento verdadeiro. Partindo do conhecimento do “fático” é que se formulará os princípios universalizáveis pela indução do particular. É com Kant que esse projeto assume sua fórmula mais elaborada a partir da crítica da razão e sua dependência da experiência para se obter juízos verdadeiros no campo teórico, e da autonomia do sujeito quando voltado para a razão prática. Tal como nos experimentos físicos, as críticas feitas por Kant submetem a razão a testes últimos para apurar suas limitações e identificar seus campos de atuação. Conclui-se que para Locke e Kant a razão, ancorada na experiência, é a força motriz do conhecimento. Explicar racionalmente a política, a natureza, a economia, a moral e até mesmo a religião são alguns dos objetivos desses pensadores. Estabelece-se um saber ativo em contraposição ao saber contemplativo, tipicamente medieval. Relações de causalidade devem ser expostas, um critério de certeza deve ser encontrado. Eliminar a contingência significa dominar a natureza mediante leis universais que possibilitarão a ordem social. E nessa tarefa, a epistemologia expressa a atitude de conquista do homem sobre a organização do real, como será amiúde desenvolvido. III - EPISTEMOLOGIA DE LOCKE: O EMPIRISMO No “Ensaio sobre o entendimento humano” (1999), Locke tem uma tarefa muito específica que é desobstruir o caminho do conhecimento através da filosofia, que seria para ele uma operária a serviço das ciências. E como ele levou adiante essa empreitada? Em primeiro lugar, refutando o inatismo, Locke lançou novos fundamentos para o conhecimento, que se daria através da experiência. Defendeu que o inatismo seria uma doutrina do preconceito, levando diretamente ao dogmatismo individual. Se os princípios fossem verdadeiramente inatos, disse Locke, seriam uma certeza irredutível; mais ainda, deveriam se encontrar em todos os indivíduos, como aspectos constantes e universais, o que não sucederia, bastando a simples observação daqueles portadores de sofrimento mental, incapazes de expressarem juízos racionais. Para ele, seria a partir da percepção, organizada pelo entendimento, que se alcançaria um conhecimento verdadeiro, e não mediante propriedades inatas a este entendimento, desconectada do mundo exterior. O conhecimento filosófico, neste contexto, deveria se justificar a si mesmo, como expressão de sua autonomia, e não recorrer aos princípios inatos, que em última instância remetiam o conhecimento à instância de justificação externa, como a própria natureza ou Deus. Reconhecer a experiência como ponto de partida epistemológico para o saber implicava em eliminar o transcendente e a atitude contemplativa do sujeito cognoscente, e substituí-los pela imanência dos fenômenos e o sujeito que conhece a partir da uma postura de conquista da realidade: Não posso senão admitir mais uma vez que a sensação externa e interna são as únicas passagens pelas quais o conhecimento pode chegar a nosso entendimento. Só as sensações, tanto quanto posso perceber, são a abertura pela qual a luz é admitida nessa câmara escura. Pois parece-me que o entendimento não é muito diferente de um cubículo fechado, dotado apenas de uma pequena abertura para deixar entrar as aparências visíveis externas ou idéias das coisas que estão fora. Bastaria que as imagens que entram nessa câmara escura permanece lá dentro e se dispusessem ordenadamente de modo a serem encontradas quando necessário, para que houvesse aí uma grande semelhança com o entendimento em relação a todos os objetos da visão e suas idéias (Ensaio, II.11.17, apud TADIÉ, 2005: 91). Seguindo em sua linha de raciocínio, Locke afirma que cada conteúdo da consciência é uma idéia, isto é, cada objeto com o qual se ocupa o espírito humano, quando pensa. Mas esse conteúdo pensado, que são as idéias, parte da percepção do mundo sensível. Portanto, são as experiências que fornecem o material a ser pensando pelo entendimento, formando, assim, num nível mais elementar as idéias simples de solidez, frio, quente, v.g, que depois podem ser associadas em juízos mais complexos e proposições. Noutros termos, “a idéia é ao mesmo tempo o efeito produzido por um objeto do mundo exterior sobre o entendimento e a modificação sofrido pelo entendimento” (TADIÉ, 2005: 115). É o resultado e o próprio processo de aprendizado. Importante pontuar que a experiência não apenas é o material do pensamento enquanto “sensação”, isto é, enquanto voltado para a percepção do mundo exterior, mas também como “reflexão”, ou seja, como consideração pela mente de suas próprias operações. As idéias, sejam advindas da sensação, sejam da reflexão, se referem aos dados da percepção em geral, e não a categorias inatas do intelecto. Se o conhecimento é obtido através da experiência, o conhecimento será verdadeiro se guardar correspondência entre a idéia e aquilo que a produz, ou seja, se houver conformidade entre a experiência pensada (idéias) e a realidade percebida. Nesse momento, é razoável inferir que para Locke, e assim também o será para Kant, não percebemos o mundo sensível como ele é, mas como ele nos parece ser. O conhecimento da realidade é sempre mediado pelas próprias estruturas do entendimento, de maneira que “a brancura não existe na bola de neve, mas a bola de neve possui o poder de produzir a idéia de brancura em nosso entendimento” (TADIÉ, 2005: 103). Portanto é possível concluir que o conhecimento para Locke possui limites, e o primeiro deles é que não temos acesso imediato ao mundo real, mas nem por isso deixamos de formular juízos verdadeiros sobre ele, desde que guardemos correspondência entre o objeto real e a representação que fazemos dele através das idéias. Daí a necessidade de rigor metodológico. Em virtude dessa limitação do conhecimento, é que se percebe em Locke em certo ceticismo cognitivo, moderado, pois não há a negação da realidade do mundo exterior, mas apenas do conhecimento que posso ter dele. Assim, a epistemologia da Locke, ao expor os limites do conhecimento da realidade a partir da experiência, acaba tendo como pressuposto de legitimação a tese metafísica de que o mundo existe independente de ser conhecido (realismo), e que a forma de conhecê-lo verdadeiramente se dá pela experiência. Se as fragilidades do conhecimento são ligadas aos limites impostos pela dependência da experiência, essa insegurança quanto à verdade se mostraria muito mais forte nas chamadas filosofias naturais, que não poderiam, para Locke, serem alçadas à condição de ciências. Isso porque o seu progresso dependeria exclusivamente dos diversos experimentos sobre o mundo, e, portanto, sempre mediatos e passíveis de não correspondência com a realidade. Já a moral e a matemática, por serem capazes de se libertar legitimamente da experiência como sensação, concentrando-se na experiência como reflexão, e formulando raciocínios susceptíveis de demonstração, poderiam sim alcançar um grau de certeza suficiente para se tornarem verdadeiras ciências. O progresso do conhecimento só dependeria da capacidade de demonstração de suas proposições, e não da constante percepção insegura dos fenômenos físicos pela filosofia natural. Importante destacar que nas ciências demonstrativas não há uma completa autonomia em relação à experiência, pois afinal o raciocínio, mesmo que demonstrativo, parte das idéias, que são a síntese da percepção do mundo sensível pelo entendimento. Todavia, a experiência só ingressa na filosofia demonstrativa num nível primário, sendo seu cerne a reflexão sobre essas experiências e não o catálogo delas, como faz a filosofia natural. Justamente porque revela as fraquezas do empirismo é que Tadié considera Locke também um empirista moderado, pois ele distingue, na ordem do conhecimento, os saberes cujas causas o homem domina (donde o acoplamento tipicamente moderno da matemática e da moral), e os saberes dependentes da experiência, cujas causas o homem não domina (e que são reportadas a Deus como causa suprema). O empirismo de Locke não é portanto radical, já que postula que a filosofia natural é limitada pela experiência, que o mundo físico não é susceptível de nenhum conhecimento certo, pois as essências reais (consideradas ao mesmo tempo como a natureza das coisas e a causa dos fenômenos) são-me desconhecidas, ao passo que a moral e a geometria, repousando no entendimento e em sua capacidade de raciocinar sobre as idéias, podem ser conhecidas com certeza (2005:154-155). Logo razoável sustentar que a experiência, para Locke, mais que um fundamento do conhecimento, constitui seu próprio limite. Locke então vai finalizar sua epistemologia apontando para onde deve se concentrar o esforço científico e, via de conseqüência, o progresso humano. Para ele, é no estudo da moral e da matemática que se faz ciência, focando a partir daí seus estudos na determinação dos princípios morais que irão trazer o bem geral, de maneira que o objetivo do “Segundo Tratado sobre o Governo Civil” pode ser compreendido dentro desse esforço epistemológico de se obter um conhecimento útil à humanidade, porque científico. IV - SOBRE A EPISTEMOLOGIA CRÍTICA KANTIANA: OS LIMITES DA RAZÃO Um grande embate entre as correntes racionalistas dogmáticas, lideradas por Descarte, e as empíricas, lideradas por Locke e Hume, marcaram a Modernidade vivida por Kant. A primeira vertente colocava a razão, psicológica e subjetiva, como única condição para se conhecer a realidade. Dessa maneira, o homem fazendo uso dessa faculdade do espírito poderia discorrer a respeito de qualquer objeto, sendo ele Deus, a alma ou leis da física, independente da experiência. Já o empirismo colocava o conhecimento da realidade como condicionado pelos dados sensíveis: a experiência seria a condição para a verdade. A grande ruptura que se processa em Kant é justamente a crítica 4 que se faz em relação aos limites da possibilidade do conhecimento. Ambos, racionalistas e empiristas, postularam uma realidade, uma verdade, mas não se preocuparam em questionar se a nossa razão conhece a realidade como ela realmente é. Como cita Hannah Arendt o próprio filósofo: “ Talvez, haja algo de errado com seu conceito de verdade. Talvez, os homens, seres finitos, tenham uma noção de verdade, mas não possam ter, possuir a verdade. Vamos antes analisar essa nossa faculdade que nos diz que há a verdade” (1993). É através de um sistema crítico da razão, e não de um sistema metafísico, que em Kant a razão se volta para si mesma, indagando sobre seus elementos e sobre sua relação com os dados sensíveis e a transcendência: “A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que se submeter. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas não suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame” (KANT, CRP A XI, apud PIMENTA, 2007: 17). É em sua Crítica da razão pura que ele vai elaborar sua teoria a respeito do conhecimento. Kant processa um verdadeiro giro copernicano, na medida em que “em vez de colocar no centro a realidade objetiva ou os objetos de conhecimento, 4 Uma filosofia crítica, naquele sentido dado por Kant, é um voltar-se para o questionamento do próprio limite da razão. Como coloca Hannah Arendt (1993), é uma limitação, purificação dos processos de conhecimentos. Não é descobrir a verdade mas inquirir sobre o que se pode chamar de verdadeiro. dizendo que são racionais e que podem ser conhecidos tais como são em si mesmo, comecemos colocando no centro a própria razão” (KANT:1983, CRP, B XII), indagando seus limites. O giro crítico irá instaurar um “tribunal da razão”, e apurará se a mesma tem condições de fundar uma metafísica capaz de se constituir como ciência. A razão passa a guiar por si própria, e não pelo seu objeto de conhecimento. Não é mais o sujeito ou objeto que revelam a realidade como coisa em si, ou seja, como noumenon. Se é possível a apreensão da realidade, não a percebemos como noumenon, mas como nos parece ser, ou seja, como fenômeno. Isso significa dizer que o conhecimento verdadeiro é uma síntese entre matéria e forma. Aquilo que possuímos a priori, intuições e estruturas de pensamento, voltadas para a experiência sensível. Donde que se conclui que a realidade como a percebemos é a conjugação das minhas experiências com o pensamento que faço delas. Portanto, o pensamento só tem sentido se voltado para a matéria, e a matéria só é percebida se pensada pelo sujeito. Todavia, isso não implica em dizer que Kant seja um relativista. Na medida em que as formas puras de pensamento são universais e iguais para todos os homens, um critério de verdade igualmente universal pode ser deduzido. E é essa a sua grande tarefa na Crítica da Razão Pura: Como é possível a metafísica ou qualquer outro tipo de conhecimento ser verdadeiro? Observe-se que Kant não quer postular a verdade de maneira dogmática como os empiristas e racionalistas, mas antes como fazê-la possível ao homem. Conclui ele que o conhecimento é uma síntese que a razão realiza entre uma forma universal inata e um conteúdo particular oferecido pela experiência. É uma relação entre o sujeito e objeto. Nota-se, todavia, que embora o sujeito do conhecimento seja dependente da esfera da necessidade (sein), a preocupação de Kant não é tanto com o objeto, não quer ele o empirismo. A preocupação de Kant é justamente o que faz essa ligação entre o sujeito e o objeto. Em outras palavras, o que me faz perceber a realidade como fenômeno. Ora, o “eu penso” é que tem esse poder de ligação. Isso significa dizer que reside na unidade da consciência, portanto a priori e subjetiva, a capacidade de conhecer. Logo, pode-se concluir que, embora o sujeito funcione em vista do conhecimento do objeto, é a subjetividade a principal preocupação de Kant. Sua epistemologia, apesar de tributária da experiência, não dá às coisas o papel principal do processo de conhecimento. Exposto em linhas gerais a problemática dos limites do conhecimento, vamos seguir o método que Kant utilizou para chegar a essas conclusões. IV. 1 - Dedução Transcedental 5 Explica Kant que os modos de percepção da realidade ora são empíricos, ora são a priori. Os primeiros acrescentam ao sujeito um predicado que não lhe é inerente. Assim, quando se diz: “Joana é morena”, um predicado - morena - é 5 Comparando a dedução transcendental como a atividade dos juristas (o direito seria um a priori com relação ao fato), diz Kant que há certos conceitos destinados ao uso puro a priori, cuja legitimidade necessita de uma dedução, pois a prova da experiência não basta para legitimá-los. Trata-se, portanto, não de constatá-los [...], mas também de deduzi-los, isto é, buscar seus fundamentos. A explicação pela qual os conceitos a priori são referidos aos objetos é o que chama Kant “dedução transcendental”, diferente de uma dedução empírica, que mostraria como a experiência fornece conceitos (Locke). Se as categorias como as intuições puras se referem aos objetos de modo inteiramente a priori, vê-se que a dedução de que se servirá, será a transcendental, pois a sua relação com objetos nada pede à experiência (SALGADO, 1995: 104/105). atribuído ao sujeito - Joana -, sendo que este não encerrava em seu conceito a qualidade de ser morena. Esse tipo de juízo tem a característica de adjetivar o sujeito, logo contribui para um aumento de seu conhecimento. Todavia, sua informação não pode ser generalizada, assim, nem toda Joana é morena. Kant chamou esse juízo de sintético. Já os segundos se dão independentemente da experiência, são os chamados juízos analíticos. Têm como característica a universalidade de proposições, mas em contrapartida nada aumentam o conhecimento, pois somente explicam o sujeito. Por conseguinte, o juízo “todo corpo é extenso” é universal, mas inerente a todo corpo. Independe de nossa experiência. O grande desafio que ele coloca, então, é a possibilidade de se alcançar juízos sintéticos analíticos, ou a priori. Ou seja, obter um critério de universalidade que contribua para o aumento de conhecimento, ou ainda que forneça à ciência um critério seguro de verdade. Com isso, irá ele reafirmar a ligação entre o sujeito e objeto num processo dual. Isto é, onde o mundo sensível e o mundo inteligível se mostram diferenciados quanto à fonte de conhecimento, mas interdependentes, na medida que “pensamentos sem conteúdo (experiência) são vazios, experiência sem conceito (pensamento), são cegas” (SALGADO, 1995: 98). Kant chama de Estética Transcendental 6 o estudo do pensamento que tem como ponto de partida a sensação. Todavia, como já foi dito, não é o empirismo que lhe interessa. É antes o pressuposto que nos faz apreender o sensível, ou seja, as formas puras de intuição: o espaço e o tempo. Dentro da própria esfera do sensível, separa ele aquilo que é dado a posteriori, as experiências, daquilo que nos é dado a priori, as intuições. A noção de espaço não é empírica, não pertence às coisas consideras em si, como noumenon, mas como fenômeno. Ou seja, é uma representação criada que já se encontrava subjetivamente em nosso espírito, na qual se percebe a extensão das coisas. Assim como o espaço, o tempo é uma intuição que permite a apreensão dos objetos como fenômenos. Não é uma coisa em si, mas antes uma condição para que percebamos a realidade em temporalidade. Essa formulação teórica sobre o espaço e tempo se mostra relevante na medida em que consegue responder à pergunta inicial - Como é possível juízos sintéticos a priori? Ora, as próprias intuições são exemplos desse tipo de juízo. São sintéticas, pois vão determinar o próprio conhecimento do objeto, atribuindo-lhes predicados. São a priori, vez que são representações criadas pelo nosso próprio espírito, independentemente da experiência, embora só se revele com a mesma. Não são algo que podem se percebidos, mas são justamente aquilo que permite a percepção. Discutida a primeira parte das faculdades de nossa mente, aquela voltada para sensibilidade, é preciso introduzir a segunda parte, o pensamento stricto sensu ou entendimento. Kant denominou esse estudo de Lógica Transcendental. Ao contrário das intuições puras que, embora a priori, são direcionadas para a compreensão dos dados empíricos, o entendimento não vai tratar da matéria do conhecimento, mas antes de sua forma. Ou seja, é o entendimento que vai 6 “Transcendental é todo conhecimento pela qual nós conhecemos serem certas representações (intuições ou conceitos) aplicadas a priori ou pelo qual conhecemos como são possíveis a priori” ( SALGADO, op. cit. p. 99). Ainda segundo AFTALIÓN e VILANOVA, “Kant ilama transcendental no ya a lo importante (como el lenguaje usual) sino a ciertos ingredientes del conocimiento que no tienen origen en la experiência pero que están contenido en ella puesto que contribuyen a formala y a harcela possible (1994: 240). proporcionar a estruturação desses dados empíricos de maneira que essas percepções se transformem em conhecimento intelectual ou em conceitos. Dessa maneira, categorias (unidade, pluralidade) são formuladas em juízos (universal, particular) que ilustram formulações básicas do nosso pensamento. É a maneira pela qual o sujeito cognoscente organiza a realidade e a conhece. Ele possui à sua disposição uma primeira fonte de conhecimento, voltada para os dados sensíveis, as intuições, e uma segunda fonte, o entendimento, que produz conceitos para a compreensão dos objetos. É importante observar que essas duas funções não devem ser confundidas, ou seja, assim como o entendimento não é receptividade de representações sensíveis, a intuição não produz pensamentos [...]. Tornar sensíveis os conceitos e compreensíveis as intuições representa condição de possibilidade para obtenção do conhecimento. Isso quer dizer: as duas fontes fundamentais a priori do conhecimento, embora heterogêneas entre si, quando reunidas possibilitam o conhecimento no interior da experiência (PIMENTA, 2007b: 23/24). Retoma-se, assim, a interdependência entre o mundo sensível e o inteligível. Em todo fenômeno cabe distinguir uma matéria (sensação) e uma forma a priori (que poder ser uma intuição pura, ou conceitos). Nesses termos, um conhecimento verdadeiro é a síntese que a razão realiza entre uma forma universal inata e um conteúdo particular oferecido pela experiência, que pode ser resumido em um processo onde a sensibilidade é percebida pelas formas puras de intuição e estruturadas pelo entendimento em conceitos e juízos. Como coloca Salgado: A intuição apenas nos dá as coisas como representações em pura receptividade. Para serem entendidas, pensadas, é preciso que se opere nas suas representações uma síntese que é o resultado da espontaneidade do nosso espírito. Pode-se dizer que uma ligação rudimentar se dá no diverso das instituições, inconscientemente. As ligações, porém, operadas no diverso, são obra do nosso espírito, pois que a intuição não fornece a síntese consciente das representações, mas as representações simplesmente (1995: 105). Conclui-se que após a dedução transcendental a filosofia kantiana é a celebração do ideário iluminista. Todo o processo de conhecimento descrito só tem propósito em termos do indivíduo. É para ele que se pensa toda a transcendentalidade. A questão ‘eu penso’ nunca teve tanto impacto, na medida em que o pensar não é uma mera característica psicológica e subjetiva, como defendia os racionalistas, mas característica universal e comum de todo o ser humano. Se pensarmos que a noção de indivíduo não é fática, mas contingencial, sua formulação chega, em Kant, ao máximo. Não só a capacidade cognitiva é tarefa do uno, também o homem é capaz de se auto-realizar. É ele o autor de suas próprias leis, derivando daí toda a ética kantiana, baseada na razão pura, voltada para a prática, mas totalmente livre na medida em que se desvincula do mundo fenomênico das necessidades. Bandeira epistemológica que em muito ajudará o ideal revolucionário dos séculos XVIII e XIX. IV – LOCKE E KANT: NOTAS DE CONTINUIDADE E DISSONÂNCIA DE UMA ESPISTEMOLOGIA CRÍTICA O problema do conhecimento para Locke e Kant pressupõe o retorno do entendimento sobre si mesmo. Antes de se voltar para os objetos e perguntar sobre suas essências, uma epistemologia crítica questiona reflexivamente o próprio pensamento, indagando sobre seu funcionamento e limitações. Conhecer o mundo implica ao mesmo tempo conhecer a si mesmo, enquanto racionalidade, determinando até que ponto somos capazes de formular juízos passíveis de serem verdadeiros. A epistemologia crítica, nesse sentido, procurar determinar qué clase de objetos son adecuados ao conocimento y determinables por él. No se puede resover esta cuestíon, ni lograr la visión exacta de la específica pecularidad del entendimento humano más que si medimos su âmbito, todo el dominio que le es próprio, si perseguimos la marcha de sua desarrollo desde los primeros elementos hasta sus formaciones últimas (CASSIRER, 1972: 113). Locke envereda pela crítica a partir do empirismo. Segundo ele, seria precisa fazer uma verdadeira anatomia do entendimento humano, que é colocado de diante de si mesmo, para que ele se torne seu próprio objeto de estudo. “Requer-se arte e esforço para que o entendimento seja posto em perspectiva e se torne objeto de si mesmo” (Ensaio, apud PIMENTA, 2007a: 34). Daí a decomposição do pensamento em idéias simples, a descrição dos processos de formulação de juízos mais complexos, enfim, a dissecação do “eu pensante” como se fosse uma máquina a ser estudada. Mas a crítica de Locke expõe as limitações do conhecimento justamente no momento da ligação do entendimento com a experiência. Esta decorre da nossa incapacidade de aferir de maneira imediata a veracidade dos conteúdos experimentados, porque sempre mediados pelas próprias estruturas do pensamento. Assim, as idéias pensadas a partir das sensações requerem um processo contínuo de validação pelo teste de correspondência como a realidade compreendida como fenômeno empírico, circunstância que torna esse conhecimento dependente de seus contextos particulares de experimentação, que não podem ser universalizados. A razão, por si só, não é capaz de se sustentar sozinha para a obtenção da verdade, e depende da experiência para lhe dar conteúdo. Percebe-se em Locke a descrição da realidade como fenômeno (algo como nos parece ser) e o conhecimento como um processo de confirmação empírica das idéias pensadas, segundo um juízo de probabilidade, mas não de certeza a respeito da essência do real. Kant também opera um giro crítico, que consiste em desviar o olhar das coisas, a subtrair seu poder de fascinação, para aplicar-se ao exame das condições sob as quais essas coisas nos aparecem (...). O meio da reflexão é, pois, o do possível por oposição ao real, ou ainda o do direito por oposição ao fato. O que quer que se faça, os fatos estão sempre aí. Não se trata de contestá-los ou de apresentar outros. Não é essa a tarefa do filósofo. Mas o que se faz dos fatos e o título de fato que vale para este ou para aquele, em suma, a interpretação dos fatos, eis o que constitui a questão favorita do filósofo, a questão “com que direito?”, quid juris? (THOUARD, 2004:38). Todavia, Kant não vai formular sua crítica no engate do entendimento como a experiência, como fez Locke, mas antes vai colocar sob exame a própria razão que conhece o real e perquirir sobre suas potencialidades. A crítica de Kant é, portanto, a crítica da razão, e não da experiência. Ao contrário de Locke, a razão para Kant, “na sua relação como seu objeto, não se porta passivamente como uma mera observadora dos fenômenos naturais, mas, antes, interroga a Natureza por meio de seus princípios, instaurando o tribunal crítico. A razão, que fique bem claro, na condição de juiz, e a Natureza na condição de testemunha” (PIMENTA, 2007b: 22). Ao estabelecer o tribunal da razão, Kant tem como projeto descrever os princípios que fazem com que ela guie a si própria. Ora, mas os princípios de uma razão autônoma não podem estar na experiência, externa e do mundo das necessidades; ao contrário, devem anteceder à experiência, sendo, portanto, a priori e passíveis de universalização, porque intrínsecas à racionalidade. Com efeito, Kant pretende forjar um novo padrão de cientificidade moderno, de acordo com a física newtoniana. Todavia, um projeto de ciência que ficasse restrito aos contextos cotidianos de experimentação não atenderia aos critérios de universalidade de princípios retores. Para Kant, embora o conhecimento começasse com a experiência, esta não poderia ser seu fundamento, haja vista a sua contingência. É o que nos faz apreender a experiência que é a chave para o conhecimento. Como explicou Pimenta: De qualquer maneira, no entanto, para caracterizar o conhecimento da física como universal e necessário, deve-se reconhecer que a sua origem encontra-se na razão, e não na experiência. Nesse ponto é possível observar a guinada kantiana: há uma profunda modificação daquilo que, até então, era compreendido como conceito de experiência. Diferentemente do que entendiam os empiristas, a experiência por si só não é mais a condição do conhecimento da razão. Kant inverte essa equação, apontando para o seu contrário: é a razão que se mostra como condição de possibilidade da experiência, seu fundamento último. Nesse sentido, a tarefa da Crítica da Razão Pura é mostrar como, por meio da constituição da sua faculdade de conhecimento, essa condição é fundamentada (2007b: 23). Kant dá à razão um papel de regulação da realidade, inexistente em Locke, na medida que a compreensão dos dados pelo sujeito cognoscente implica na constituição desses mesmos dados por ele, a partir das estruturas a priori da nossa racionalidade, intuições e entendimento, que, na experiência, mas independente dela, se voltam para o mundo sensível e elaboram o próprio objeto de conhecimento a partir da sua própria subjetividade. Como explicou Kant: “Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porém todas as tentativas [...] fracassaram sob esta pressuposição. Por isso, tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento” (CRP, B, XVI, apud THOUARD, 2004:43). Por todo exposto, inegável que tanto Locke quanto Kant representam o apogeu de uma linha de pensamento e o prenúncio de sua superação no curso da história. O primeiro rompeu com o racionalismo de idéias inatas, e antecipou o giro crítico e empírico que marcaria o século XVIII. O segundo, levando a sério o empirismo acabou por reduzir a relevância da experiência ao momento inicial do processo de conhecimento, instaurando uma nova crítica, agora da razão, que passa a ser o cerne na análise do processo de conhecimento, não porque é capaz de tudo conhecer, mas porque conhece tudo aquilo que pode a partir da experiência, no campo da razão teórica, dirigida para o mundo natural, e cria suas próprias leis, no âmbito da razão prática, enquanto auto-determinação do sujeito moralmente livre. V - BIBLIOGRAFIA ABRAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bossi. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou,1962. AFTALIÓN, José Enrique R., VILANOVA, José. Introduccion al Derecho. 2ª ed. 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