O conto `O Anjo Rafae`

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O CONTO “O ANJO RAFAEL”, ATRIBUÍDO A MACHADO DE ASSIS SÓ
POSTUMAMENTE, DESVELA-SE UM HIPERTEXTO DE RIQUÍSSIMAS
INFORMAÇÕES HISTÓRICO-SOCIAIS DO BRASIL E AUTOBIOGRÁFICAS
Anna Palma
Resumo
Através da análise do conto O Anjo Rafael, de Machado de Assis, esta comunicação tem
como objetivo mostrar como Machado elabora este texto, que pode ser considerado um
hipertexto devido às múltiplas referências históricas e autobiográficas. Publicado
originalmente no Jornal das Famílias em 1869, O Anjo Rafael pertence àqueles contos que
nunca foram republicados por Machado de Assis. Em sua estrutura rigorosamente calcada
(número de capítulos, trama, personagens) naquela de um dos livros deuterocanônicos do
Antigo Testamento, O Livro de Tobias, Machado insere problemáticas do homem moderno
e da sua sociedade, que procuram na ciência suas respostas. Datas e nome próprios são
chaves que se referem a outros eventos externo à diegese, uma pista em códigos que leva à
descoberta de outro tema, o das doenças mentais e dos hospitais destinados à cura delas.
Mas o caminho até essa revelação está semeado com outras chaves de leitura, como as que
reconduzem à Revolução Pernambucana e ao casamento de Machado com Carolina, base
de outras numerosas leituras que este conto surpreendente de Machado pode revelar, e
todas elas guiadas pela “intenção do autor”.
Palavras-chave: Machado de Assis - O anjo Rafael - O Livro de Tobias - história
brasileira do séc. XIX - diabo
1. O Anjo Rafael de Machado de Assis 1
1
O texto utilizado é aquele da versão encontrada na Internet, site da biblioteca digital do
Nupill (ver referências bibliográficas), em um arquivo de TXT sem páginas numeradas.
Portanto, as citações diretas são acompanhadas exclusivamente do número do capítulo.
Machado de Assis escreveu mais de 200 contos ao longo de sua vida, publicados em
revistas e jornais fluminenses. Organizando seleções de seus contos a serem publicados em
livros, Machado deixou que muitos deles ficassem na sombra, considerados por seus
leitores e críticos como “menores”, ou ficando anônimos, assinados com pseudônimos que
nem sempre foram atribuídos a ele sem controvérsias.
O conto apresentado neste trabalho, O Anjo Rafael “Publicado originalmente em
Jornal das Famílias 1869”, não tinha sido publicado mas até agora não foi apresentado
nenhum estudo sobre ele. De fato o conto talvez não possua as características procurada
pelas casas editoras: é de não fácil leitura, considerando também o inusitado, para o autor,
comprimento do texto (quase 12.500 palavras contra as 17.000 de “O Alienista”, o conto
mais longo de Machado).
Os leitores de Machado sabem que existem três textos de sua autoria bastante
conhecidos onde o diabo é o protagonista: A Igreja do Diabo (1874), Adão e Eva (1896) e
O Sermão do Diabo (1893), além do mais já analisados e objetos de interessantes estudos e
artigos. O anjo Rafael fala também do diabo, em uma história cujo título contem a sua
antítese, um anjo.
Trata-se da história, dividida em XIV capítulos, do dr. Antero que, desiludido com a
vida, e especialmente cheio de dívidas, decide de se suicidar. Mas enquanto está com a
pistola na mão, alguém bate à porta da sua casa, e dali uma série de acontecimentos o
levarão a percorrer um caminho, ao final do qual ele terá se transformado em um outro
homem, como ele mesmo admite conversando com uma das personagens. Ele de fato, após
alguns dias morando em uma casa à qual chega após um pedido de um desconhecido
entregado-lhe pelo criado, consegue uma jovem mulher em casamento e uma fortuna. Não
consegue porque o pede, mas porque lhe é imposto pelo esquisito dono da obscura
moradia, longe da cidade, à qual é trazido pelo próprio mensageiro/criado. O major Tomás,
apesar de ter uma aparência quase diabólica, conforta o dr. Antero ao contar para ele que
era amigo do seu pai, falecido já há muitos anos, e acrescentando que o tinha procurado
para que se casasse com a sua filha Celestina e para que ficasse com a sua fortuna. Após
ter recebido a estranha notícia, e ter ficado meio contrário ao ter que se casar com uma
desconhecida, o dr. Antero aceita a proposta antes pela fortuna, e depois porque quando
conhece a sua noiva, se apaixona dela à primeira vista. Mas quando tudo na vida do
protagonista parece estar a seu favor, ele percebe que o major Tomás sofre de uma
“monomania celestial”, já que insiste em dizer que ele é um anjo, o anjo Rafael, vindo na
terra para salvar algumas boas almas, mas após ser considerado um impostor teve que se
retirar naquela casa. A preocupação do jovem doutor aumenta quando descobre que
também Celestina, que cresceu, segundo a sua criada Antônia, sem nunca ter saído daquela
moradia, acha que é filha de um anjo e que ela não tem mãe. Se não fosse por Antônia, que
em um encontro às escondidas com Antero o convence a salvar Celestina casando com ela
e levando-a fora dali, o “nosso herói” teria ido embora desistindo até da fortuna do major.
A vinda de outro amigo do maior, o coronel Bernardo, que conta a ele a verdadeira história
da mãe de Celestina, será mais uma informação que deixa Antero mais tranqüilo em
relação à saúde mental da sua noiva, e que o persuade a ficar. Contemporaneamente à
vinda de Bernardo e ao esclarecimento do estranho comportamento daquela família, o
major Tomás / anjo Rafael adoece e morre, após que Antero ter prometido de casar com
sua filha e ter recebido dele a sua fortuna. O conto termina com o casamento e a volta de
Antero à sua vida, sendo que ele era considerado morto por seus amigos, devido à carta
achada no quarto de Antero, com a qual ele se despedia do mundo, e após que a polícia ter
encontrado um corpo afogado, cuja identidade foi logo atribuída como aquela do jovem
doutor desaparecido.
1.2 O diabo em O anjo Rafael
Nesse conto pouco conhecido de Machado de Assis, O Anjo Rafael, uma frase
chama particularmente a atenção do leitor: “morreu o Diabo” (cap. IX). Quando se pensa
que quem pronunciou esta frase é a personagem major Tomás, que se define anjo Rafael,
então a curiosidade do leitor aumenta ainda mais e o leva a querer descobrir quem é o
diabo de quem se fala. Antes da pronunciação dessa frase, se tem a impressão que o major
Tomás seja o diabo, e não são poucas as descrições do narrador que induzem a essa
conclusão. Começando pela aparência física do homem, descrito como um ser um pouco
repugnante, seja fisicamente que em certos modos, diabo mais que anjo, como mais tarde
ele se apresentará ao seu hóspede:
Os cabelos do major Tomás eram completamente brancos; a tez pálida e macilenta.
Os olhos vivos, mas encovados [...] Os beiços do velho eram finos e brancos; e o
nariz, curvo como um bico de águia, assentado sobre um par de bigodes da cor dos
cabelos [...] O aspecto do major poderia causar menos desagradável impressão, se
não fossem as bastas e cerradas sobrancelhas, cujas pontas internas vinham ligar-se
na parte superior do nariz; além disso o velho contraía constantemente a testa, o
que lhe produzia uma enorme ruga que, vista de longe, dava ares de ser uma
continuação do nariz. [...] a figura do homem inspirava um sentimento de medo.
[...] As mãos do velho pareciam garras; o dr. Antero já as estava sentindo cravadas
em si. (cap. IV)
Conto que, já nos capítulos anteriores àquele acima citado, mostra o seu caráter de
mistério, como sublinhado pelo próprio narrador: “O que ele queria era pôr termo àquela
aventura que tinha ares de um conto de Hoffmann” (cap. II). Misteriosos os
acontecimentos e as personagens e, em um diálogo na metade do texto, é citado o próprio
diabo.
— Ora, guarde-o Deus, disse ele ao entrar; é a primeira vez que o visito no seu
quarto.
— É verdade, respondeu o doutor. Queira sentar-se.
— Mas também o motivo que me traz aqui é importante, disse o velho assentandose.
— Ah!
— Sabe quem morreu?
— Não.
— O diabo.
Dizendo isto deu uma gargalhada nervosa que fez estremecer o doutor; o velho
continuou:
— Sim, senhor, morreu o diabo; o que é grande fortuna para mim, porque me dá a
maior alegria da minha vida. Que lhe parece? (cap. IX).
Quem dá a notícia da morte do Diabo ao dr. Antero é o major Tomás, a personagem
que inspirara em Antero, e no leitor, “um sentimento de medo”, quase fosse ele o diabo.
Mas após ele ter declarado que “morreu o diabo”, surge a dúvida sobre quem é na verdade
o major Tomás, e quem é o diabo que morreu.
Segundo Cousté “Por um processo antinômico típico das grandes religiões (e ainda
se poderia dizer de todo o chamado ‘pensamento primitivo’) todas as coisas devem ter o
seu oposto e toda força provoca uma reação que se lhe oponha” (Cousté, 1991, p.18).
Mas não são somente as personagens e suas estranhas palavras a deixar o
protagonista Antero e o leitor do conto em um estado de ânsia, este é fruto também da
estrutura narrativa, as vezes lenta e cansativa, assim como de descrições de espaços
claustrofóbicos. Estes são delimitados por portões, portas e outras entradas, no começo
trancados, depois somente fechados e, enfim, é deixada ao dr. Antero a faculdade de abrilos e fechá-los. Ele percebe a limitação da sua liberdade bem antes do leitor. No capítulo
III diz ao criado que o trouxe naquela casa: “Mas, enfim, estou ansioso por falar a esse
major que não conheço, e que me tem preso sem que eu saiba por que motivo”. A resposta
dada pelo criado, exposta com um tom ofendido, é que o seu patrão “deu-lhe quarto, cama,
dá-lhe um almoço; creio que isto não é tê-lo preso”, revela-se com todo o sarcasmo
machadiano, a descrição de um cárcere como falta de liberdade de movimento, e não como
maltratos e/ou tortura.
É importante evidenciar que aqui estão sendo descritas ainda as primeiras impressões
que brotam quase que intuitivamente, originadas pela leitura rápida à procura de “fatos” e
de seus desenvolvimentos, aquela leitura com a qual Machado diverte os leitores e, ao
mesmo tempo, diverte-se com eles. O mesmo conto depois revelará outras leituras muito
surpreendentes, disponíveis a quem queira aceitar o desafio de procurar textos e/ou
documentos apontados por aquelas palavras que podem ser chamadas de “palavraschaves”, fazendo deste conto de Machado de Assis um hipertexto todas as vezes que os
leitores decidam de ir à procura das “portas” cujas chaves irão abrir, e que permitirão a
entrada em outras histórias e outros discursos.
Voltamos aos elementos que, no conto objeto deste trabalho, inspiraram a
interpretação pela qual aquele que se diz anjo Rafael seja talvez um anjo, mas das trevas,
como as seguintes afirmações:
— Conheci muito seu pai; fomos companheiros no tempo da independência. Era
ele mais velho do que eu dois anos. Pobre coronel! ainda hoje sinto a sua morte.
O moço respirou; a conversa levava um bom caminho; o major confessava-se
amigo de seu pai, e lhe falava nele. Animou-se um pouco, e disse:
— Também eu, Sr. major.
— Bom velho! continuou o major; sincero, alegre, valente...
— É verdade.
O major levantou-se um pouco, apoiando as mãos nos braços da poltrona, e disse
com voz surda:
— E mais que tudo, era obediente àqueles que têm uma origem no céu! (cap. IV).
Ele, o major Tomás, ainda não tinha confessado de ser um anjo, como ele acreditava
ser. A filha dele, Celestina, parece mesmo um anjo por como é descrita:
Era, com efeito, um rosto angélico; transluzia-lhe no semblante a virgindade do
coração. Os olhos serenos e doces pareciam feitos para a contemplação; os cabelos
louros e caídos em cachos naturais assemelhavam-se a uma auréola. A tez era alva
e finíssima; todas as feições eram de uma harmonia e correção admiráveis. Rafael
podia copiar dali uma das suas virgens. (Cap. V)
A beleza e candura de Celestina contrapõem-se à horripilante descrição feita antes do
major e, se esta aparece ser mesmo um anjo, o outro, pai dela, não pode que ser a sua
versão oposta, ou seja, o diabo.
No capítulo VII o major Tomás faz outra afirmação muito estranha respeito à sua
pessoa:
— Meu caro doutor, já deve ter percebido que eu não sou um homem vulgar; nem
sou mesmo um homem. Gosto do senhor porque tem respeitado a minha origem
celeste; se eu fugi ao mundo é porque ninguém me queria respeitar (cap. VII).
E ainda:
— Eu sou, continuou o velho, eu sou o anjo Rafael, mandado pelo Senhor a este
vale de lágrimas a ver se colho algumas boas almas para o céu. Não pude cumprir a
minha missão, porque apenas disse quem era fui tido em conta de impostor. Não
quis afrontar a ira e o sarcasmo dos homens; retirei-me a esta morada, onde espero
morrer (cap. VII).
Antero das dúvidas chega à certeza, e convence-se, provavelmente porque era
médico, que Tomás é afeto por uma doença mental:
O major dizia tudo com uma convicção e serenidade que, dado o caso de falar a um
homem menos mundano, vê-lo-ia logo ali a seus pés. Mas o dr. Antero não viu na
origem celeste do major mais do que uma monomania pacífica. Compreendeu que
era inútil e perigoso contestá-lo (cap. VII).
A este ponto da leitura/análise, para entender algo a mais daquilo que Machado
“quer dizer” precisa começar uma série de pesquisas, e a primeira é saber quem é o anjo
Rafael e quais são as característica desta personagem que dá o título ao conto em questão.
2. O Anjo Rafael e o Livro de Tobias
O Anjo Rafael, conhecido também como arcanjo, é o terceiro em ordem de
importância da tríade que compõe com os outros dois arcanjos, Gabriel e Miguel.
Provavelmente um dos motivos desta menor importância seja que Rafael está presente na
Bíblia só em um dos livros chamados deuterocanônicos. Deuterocanônicos são chamados
alguns livros e partes de livros bíblicos do Antigo Testamento que são considerados
canônicos pelos cristãos católicos e ortodoxos, mas tidos como apócrifos pelos judeus e
pelos cristãos evangélicos. A palavra é composta pela raiz grega deutero- (segundo) e por
canônico. Ou seja, só foram reconhecidos em um segundo momento e fazem parte da
Bíblia chegada à cultura ocidental em grego, mas não fazem parte da Bíblia em hebraico 2 .
O Anjo Rafael é conhecido como protetor dos viajantes, prófugos, médicos, da
juventude e dos noivos, e isso devido à história do Livro de Tobias, do qual ele é umas das
personagens.
2.1 Resumo do Livro de Tobias
O Livro de Tobias (Velho Testamento) 3 , é composto por 14 capítulos, o mesmo
número do conto de Machado de Assis O anjo Rafael, coincidência esta que leva a crer que
Machado esteja referendo-se indiretamente a esta narrativa bíblica, hipótese confirmada
após a leitura deste texto bíblico e a descoberta de suas inúmeras semelhanças com o conto
neste trabalho analisado.
2
WIKIPÉDIA
“Livros
deuterocanônicos”.
Disponível
em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Livros_deuterocan%C3%B4nicos. Acesso mar. 2007
3
“Libro di Tobia”. Disponível em italiano em
http://www.labibbia.org/pls/bibbiaol/GestBibbia.Ricerca?Libro=Tobia&Capitolo=1; em
português em http://virtualbooks.terra.com.br/biblia/PDFvelho/livrodetobias.pdf. Acesso
mar. 2007. No resumo deste trabalho, foi utilizada a versão encontrada em italiano,
adaptada em português pela autora
É narrada a história de Tobit, a sua descendência, as suas peregrinações no exílio, as
persecuções de seu povo (hebreu), suas esmolas, etc. Importante pela história é dizer dos
saquinhos cheios de dinheiro, deixados por Tobiat, quando trabalhara na Média,
escondidos na casa de um seu parente de nome Gabael, em Ragés de Média. Aquela noite
Tobit enterrara mais um homem hebreu achado morto e jogado na praça. Enquanto
repousava no jardim, uns pássaros voando sobre ele sujam seus olhos de excrementos,
provocando a formação de manchas brancas que o condenarão à cegueira. Então Tobit reza
ao Senhor pedindo de morrer, considerando a cegueira uma punição por ter agido contra a
vontade do seu Deus. Em outra cidade Sara, filha de Raguel, parente de Tobit, à qual o
demônio Asmodeu matara bem sete maridos, também reza pedindo de morrer, porque era
ela acusada dos homicídios pelas pessoas. As orações dos dois são acolhidas na hora e o
Senhor decide de enviar Rafael para ajudá-los. Naquele dia Tobit se lembra do dinheiro
escondido na Média e, achando que estava prestes a morrer, chama o filho Tobias e lhe diz
de ir até Ráges para recuperar a quantia. Tobit diz ao filho para procurar um homem de
confiança que conheça aquelas terras para ser seu guia. Tobias na rua encontra Rafael, que
se apresenta como Azarias, filho de Ananias o grande, um de seus irmãos (filho de Israel).
A este Tobias pede de acompanhá-lo. Tobit promete a Rafael uma grande quantia de
dinheiro se acompanhar seu filho na viagem. Os dois partem acompanhados por um cão. A
primeira noite, para dormir param perto do rio Tigre. Enquanto Tobias se lava os pés no
rio, um peixe chega e por pouco não o devora. Mas Rafael lhe diz de capturar aquele peixe,
de abri-lo e tirar o fel, o coração e o fígado dele porque são remédios eficazes. Entrando na
Média Rafael diz a Tobias para ir na casa de seu parente Raguel, apresentar-se a ele e casar
com Sara. Conta também como fazer para livrá-la do demônio.Raguel acolhe Tobias
comovido e concede que sua filha Sara case com ele. Com a fumaça do peixe Tobias
espanta o demônio que foge para o Alto Egito, onde Rafael vá imediatamente para
acorrentá-lo e prendê-lo aos cepos. Sara faz uma oração para louvar o Senhor. Os pais de
Sara felicíssimos organizam um banquete que dura quatorze dias. Tobias envia Rafael a
pegar o dinheiro na casa de Gabael, e o manda a convidá-lo para as núpcias. Gabael dá os
saquinhos ainda intactos para Rafael e sae com ele de manhã cedo para ir às núpcias.
Chegam na casa de Raguel e encontram Tobias na mesa. Enquanto isso os pais de Tobias
estão preocupados, porque passam os dias e ele não volta para casa. Tobias depois os 14
dias de festa pede a Raguel de deixá-lo partir, ele sabe que seus pais o pensam morto. Eles
chegam de frente a Nínive, Rafael diz a Tobias de ir com ele à frente do grupo para
arrumar a casa antes da chegada da sua esposa. Depois diz a Tobias que seu pai podia
voltar a ver, e lhe dá as instruções de como passar o fel sobre os olhos de Tobit e tirar as
escamas brancas. Ana, que estava sentada olhando o horizonte vê o filho chegar com o seu
acompanhante. Tobias abraça sua mãe e vá encontro a seu pai seguindo as palavras de
Rafael. Tobit consegue enxergar novamente e abençoa o Senhor e os anjos por tê-lo
ajudado. Tobias então conta da sua viagem e do casamento com Sara, filha de Raguel, que
estava chegando. Então Tobit sae e se dirige às portas de Nínive ao encontro de Sara.
Começam os festins das núpcias e continuam por sete dias. Chegou a hora de pagar o
salário de Rafael, e Tobit o chama para lhe dar a metade de quanto trouxera, mas Rafael se
manifesta, diz que era um dos sete anjos que estão sempre prontos a estar na presença do
Senhor. Diz a eles de louvar Deus, que o mandara, de praticar esmolas sempre e de
espalhar a palavra de Deus, e outras recomendações. Depois sobe ao céu e eles não podem
mais vê-lo. Depois ter recuperado a vista, Tobit vive feliz, praticando esmolas, abençoando
e celebrando Deus, até os cento e doze anos. Antes de morrer, chama o filho Tobias e o
recomenda de ir com seus filhos para a Mídia, porque ele acreditava em todas as palavras
dos profetas de Israel, sobre a destruição da Assíria e da Babilônia. Além disso, profetiza o
futuro de Jerusalém e da glória de Deus e do povo de Israel.
3. Comparando as narrativas de O Anjo Rafael e do Livro de Tobias
As duas narrativas, O Anjo Rafael de Machado de Assis, e o texto bíblico O livro de
Tobias, apresentam elementos em comum que podem ser evidenciados.
•
a viagem, no conto de Machado aquela do dr. Antero da sua casa até o interior de
Rio de Janeiro, no Livro de Tobias, aquele de Tobias de Nínive até a Mídia;
•
a existência de um mensagero/acompanhante da viagem, no primeiro texto, o
criado que depois se descobrirá de nome José, e no segundo Azarias, que mais
tarde se revelará o anjo Rafael;
•
a presença de um cão, nas duas histórias nomeados só uma vez e sem uma função
evidente na diegese;
•
a presença de um anjo e de um diabo, no primeiro conto, o major Tomás que diz
de ser o anjo Rafael, e o diabo nomeado quando se anuncia a sua morte,
acontecimento que segundo o major é a melhor festa para o casamento da filha, no
texto bíblico Rafael, que se revela anjo e Asmodeu, o demônio que matara sete
maridos de Sara;
•
desesperação e procura da morte das personagens, no conto de Machado por
parte do dr. Antero, que decide de se suicidar, por causa principalmente dos seus
problemas econômicos e da falta de forças para enfrentá-los, no Livro de Tobias,
Tobit e Sara pedem ao Senhor de lhe enviar a morte porque Tobit sente vergonha
por terem ofendido Deus, e Sara não que envergonhar seus pais com a acusa sobre
ela de matar sete maridos;
•
a “morte” do diabo, quando Asmodeu é afugentado pela fumaça que Tobias
prepara segundo as indicações de Rafael, o qual depois corre no deserto atrás do
demônio para acorrentá-lo e amarrá-lo aos cepos, eliminando-o para sempre e, em
O anjo Rafael, a notícia que o major dá ao dr. Antero da morte do diabo;
•
a presença de uma importante quantia de dinheiro, na primeira narrativa, cem
contos de reis contidos em caixinhas de ferro escondidas na casa do major, e
prometidos ao dr Antero como dote no caso se case com Celestina, na segunda
narrativa, uma quantia importante dentro saquinhos lacrados na casa de Gabael;
•
o tema do casamento, o casamento combinado pelo major Tomás/ anjo Rafael
entre sua filha Celestina e o dr. Antero no conto de Machado, e o casamento
sugerido por Rafael entre Tobias e sua prima Sara no livro bíblico;
•
ascensão ao céu do anjo Rafael na conclusão dos acontecimentos, no Livro de
Tobias, quando Rafael é chamado para receber a devida recompensa por ter
ajudado Tobias, e revela de ser um anjo mandado pelo Senhor; no conto de
Machado, o major/anjo morre mas o seu corpo e o seu enterro não são mostrados
para Celestina, a qual referem que o major foi no céu;
•
as curas, do dr. Antero, que confessa ao coronel que a entrada naquela casa o
tornara um bom homem, enquanto antes não era senão um homem inútil e mau, do
Tobit, sarado da cegueira pelo filho Tobias, com o remédio que Rafael lhe ensinara
a fazer.
3.1 Os temas tratados nas narrativas
Quanto concluído no capítulo anterior, mostra que recapitular os temas enfrentados
no Livro de Tobias pode ajudar a entender porque Machado o tenha tomado como
referência para o seu conto O Anjo Rafael, e o tenha feito em modo que somente quem
fosse um conhecedor da Bíblia pudesse vê-lo. De fato só quem sabia que o Arcanjo Rafael
estava presente uma única vez no texto bíblico, e precisamente como protagonista do Livro
de Tobias, poderia entender a quais temas o autor-narrador estivesse apontando chamando
o seu conto de O Anjo Rafael. Isso enquanto o narrador diegético assinala ao leitor que
aquela aventura “tinha ares de um conto de Hoffmann” (Cap. II). As duas indicações são
corretas uma vez que, se as personagens e a trama podem ter sido inspirados pelo livro
bíblico em questão, o conto está notavelmente marcado por elementos psicológicos que lhe
dão a aparência de mistério própria dos sonhos, mas cuja realidade dos fatos é reforçada
por elementos como os jornais, que o dr. Antero recebe no seu quarto, marcando o tempo
“externo” a casa, e introduzindo os acontecimentos que estão além daqueles muros. Com
isso o leitor desiste de acreditar de estar lendo sobre um sonho. Os temas em comum entre
as duas diegeses são:
•
existência do bem e do mal, representados pelo anjo e pelo diabo;
•
a vitória do bem sobre o mal, uma vez que o diabo “morre”;
•
a salvação da morte graças à intervenção do Anjo Rafael (morte pedida nas orações
de Sara e Tobit no Livro de Tobias, e morte por suicídio no caso do dr. Antero);
•
a riqueza como incentivo à tomada de duas decisões que mudam totalmente a vida
de dois homens (é atrás da riqueza que vão Tobias e o dr. Antero, e terminam com
casar-se e curando outros ou si mesmos).
Mas ainda há um grande enigma: quem é o diabo em O Anjo Rafael, já que não se
conhece o seu nome? Para chegar a entendê-lo serão feitas duas pesquisas que
freqüentemente dão indicações importantíssimas para a compreensão mais profunda (o
para outras interpretações), das obras de Machado de Assis. E elas são: o estudo dos nomes
dados às personagens da diegese; o estudo das datas.
3.2 Personagens (e seus nomes) no conto O Anjo Rafael e eventuais analogias com
aquelas do Livro de Tobias
A importância dos nomes próprios na narrativa de Machado, e a escolha acurada
com a qual o autor os coloca às personagens, são características conhecidas do autor
fluminense do séc. XIX. É por isso que a pesquisa de suas genealogias e de seus
significados é sempre uma etapa importante na análise dos romances e contos
machadianos. A seguir é apresentada a análise dos nomes que resultaram mais
interessantes pelo seu significado, comparados com alguns do livro bíblico.
O anjo Rafael, presente nos dois contos, chave aliás para a “descoberta” da
existência de paralelismos entre as duas narrativas, se revelará como ser angélico só em um
segundo momento em ambas as diegeses, apresentando-se inicialmente com nome
diferentes. Tomás é o nome do major no conto de Machado, e Azarias filho de Ananias é o
nome do acompanhante de Tobias no conto bíblico. Segundo Scottini (1999), “Tomás [...]
de origem aramaica, significa gêmeos, por ser variante de Tomé” enquanto Rafael é o anjo
do amor esponsal e da saúde, é patrono dos andarilhos, dos prófugos, dos médicos, da
juventude e dos noivos 4 . De fato, no conto O Anjo Rafael há um médico, o dr. Antero que,
apesar de não estar doente, queria se suicidar. Como será revelado ainda neste trabalho, o
suicídio, na época em que Machado escreve, era considerado por alguns médicos produto
de uma doença mental. Além disso o dr. Antero se casa segundo os desejos do major
Tomás / Anjo Rafael.
Azarias é “de origem hebraica, significa Deus ajudou” (Scottini, 1999), enquanto
Ananias, sempre de origem hebraica, “significa graça de Deus” (ibidem) ou, segundo
outras fontes “Deus teve misericórdia” 5 . É o enviado por Deus para salvar Tobias, nome
hebraico que quer dizer “Deus é bom” (ibidem).
Rafael, do hebraico Rapha ou Rapha-El, “Deus tem curado” (Obata, 1994)
contrapõe-se ao significado do nome do demônio Asmodeu: aquele que faz perecer 6 , e que
superintende à luxuria. Segundo outras fontes Asmodeu descenderia do Aramaico: As'medi
ou seja Destruidor 7 , e Aeshma-daeva significa demônio chefe, que pode ser traduzido
como príncipe dos demônios, além de ser o príncipe da destruição, seria também o
demônio da cobiça, da ira e da vingança. No Egito é ainda venerado pelo povo como
protetor das biscas clandestinas e do jogo de azar. Além disso parece que Asmodeu seja o
4
WIKIPÉDIA “Tomás”. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Tom%C3%A1s. Acesso em
27 mar. 2007
5
JACK “Significato nome”. Disponível em jack.logicalsystems.it/homepage/nomi.asp?l=l.
Acesso em 4 maio 2007
6
WIKIPÉDIA “Arcangelo Raffaele”. Disponível em it.wikipedia.org/-
wiki/Arcangelo_Raffaele. Acesso em 26 mar. 2007
7
“Il demone Asmodeo”. Disponível em http://www.vampiri.net/personaggi_022.html.
Acesso em 5 maio 2007
demônio ao qual Lílith se juntou depois ter sido mandada embora do Paraíso Terrestre, por
não ter aceitado a autoridade de Adão, do qual foi a primeira esposa 8 .
No conto de Machado o diabo não tem nome próprio, quase a significar que está bem
aqui o coração da leitura, o segredo a desvelar, ou seja, descobrir a que diabo o major
Tomás/Anjo Rafael se refere na sua frase “morreu o diabo”.
Antero, o nome que Machado dá ao doutor que quer se suicidar, mas que é salvo por
uma intervenção independente dele, quase divina, tem origens gregas. Segundo Obata
(1994) vem do grego Anthêrós, “florescente, florido, viçoso” ou “alegre”. Mas “Antero é
[também] um nome citado nas Metamorfoses de Ovídio como o gênio vingador do amor
rejeitado (do grego 'Αντέρως, "anti-" e "amor")” 9 . Irmão de Eros, Antero inspirava a troca
do amor inspirado por Eros, mas sob a forma de sentimento fugaz. Teria alguma ligação
com Asmodeu, o demônio da sensualidade e da luxuria e que, como já visto neste trabalho,
foi afugentado por Tobias com a fumaça aconselhada por Azarias/Anjo Rafael? Mas seria
mais natural comparar o dr. Antero com Tobias, uma vez que são eles que acharão uma
noiva e receberão um tesouro.
Mais uma personagem chave aparece no conto O anjo Rafael, o coronel Bernardo
que, segundo quanto narra o major Tomás, ele, Bernardo e o pai do dr. Antero, cujo nome
é desconhecido, pela amizade que os unia eram chamados os Horácios. Bernardo, nome
germânico, quer dizer “urso forte” ou “forte como um urso” ou, de forma figurada
“guerreiro forte” (Obata, 1994), enquanto os irmãos Horácios são conhecidos por uma
história/lenda da Roma antiga, mas se tornaram também os símbolos da luta pela
República com o quadro pintado por Jacques-Louis David em 1984, chamado “O
Juramento dos Horácios” (óleo sobre tela, 330 x 425 cm, Louvre, Paris).
Bernardo será aquele dos três que viverá mais, mas qual é a batalha que combateram
essas personagens do conto de Machado, para merecer este apelido? Talvez seja aquela
contra o diabo, uma vez que a notícia que o diabo morreu tinha sido enviada ao major
Tomás do amigo que morava ao Norte, o coronel Bernardo: “Soube por carta que recebi
hoje do meu amigo Bernardo, também amigo de seu pai. Não vejo o Bernardo há doze
anos: chegou agora do Norte, e apressou-se a escrever-me para dar esta agradável notícia”
(capítulo IX). Descobrir quem é o diabo e como morreu é uma pesquisa à qual sutilmente o
8
Ibidem
9 WIKIPÉDIA “Antero”. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Antero. Acesso em 27 mar.
2007
autor Machado convida o leitor a fazer, e cujas bases para começar poderiam estar nestas
frases mesmo. Mais à frente se verá o porque.
Um nome do conto O Anjo Rafael é bem curioso. Foi já apontada neste trabalho a
presença de um cão, em ambas as narrativas aqui comparadas, aquela de Machado e aquela
bíblica, um cão do qual não se entende a utilidade narrativa, que acompanha a viagem de
Tobias e Azarias/Anjo Rafael em uma delas, e que se acha encerrado na frente da entrada
da casa, na noite em que chega o dr. Antero com o seu acompanhante, criado da casa, na
outra. Enquanto o cão Tobias não tem um nome próprio, aquele de O Anjo Rafael tem: “O
cão entrou a rosnar quando pressentiu gente; mas o criado fê-lo calar, dizendo: - Silêncio,
Dolabela!” (Cap. II).
Dolabela, segundo o dicionário português disponível on-line: “do Lat. dolabella,
pequena enxó - s. f., Zool. espécie de molusco” 10 , enquanto enxó, sempre segundo a
mesma fonte, “do Lat. asciola, dim. de ascia - s. f., instrumento de carpinteiro ou tanoeiro
para desbastar madeira” 11 . Ou seja, um machado. Por quê este nome? Machado é também
o nome do autor, Machado de Assis. Haverá aqui o desejo do escritor de se colocar
fisicamente na narrativa, distanciando-se do narrador diegético, que é o dr. Antero? Como
querendo dizer que ele autor também está aí, mas não é o narrador?
Finalmente não pode ser esquecido o fiel criado do dr. Antero, Pedro, que, além de
lembrar a monarquia de Dom Pedro II, própria daqueles anos do tempo diegético (1869),
possui ele também seu significado, de “pedra, rocha” (Obata, 1994).
Após concluir a observação dos nomes próprios presentes no conto O Anjo Rafael de
Machado de Assis, chega o momento de mais um estúdio, aquele das datas e dos
acontecimentos históricos-políticos a que estão ligadas.
3.3 Datas em O anjo Rafael
O Anjo Rafael, segundo a versão disponível on-line 12 a que se refere este trabalho, é
introduzido pela seguinte informação “Publicado originalmente em Jornal das famílias
10
DICIONÁRIO ON-LINE PRIBERAM. “Dolabela”. Disponível em
http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx. Acesso em 5 maio 2007
11
Ibidem
12
“Joaquim Maria machado de Assis”. Disponível em alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/-
Consulta/Autor.php?autor=8333. Acesso em 26 mar. 2007
1869”. Esta é uma data externa à narrativa, mas que deve ser considerada como
pertencente à diegese.
Nas primeiras linhas do capítulo I se descobre que “O dr. Antero contava trinta
anos”, ou seja, se deduz que nasceu em 1839. Enquanto no capítulo VI Celestina diz sua
idade ao doutor “[...] a moça disse ao doutor que tinha dezessete anos, e perguntou a idade
dele”, portanto a moça nasceu em 1852.
Na descrição do coronel Bernardo, narra-se que o homem “Representava quarenta
anos e tinha cinqüenta e dois” (capítulo IX), portanto nascera em 1817, mas aparentava ter
nascido em 1829.
Segundo Antônia, o major Tomás “[...] está perdido” visto que “[...] há doze anos
que perdeu a razão” (cap. X), ou seja, perdeu-a em 1857. Não sabe porque isso aconteceu,
uma vez que ela chegara “para esta casa há cinco anos; a menina tinha dez” (cap. X), ou
seja, Antônia entrara naquela casa em 1864 e, pelo seu testemunho, Celestina teria nascido
em 1854 e não em 1852. Ou seja, a moça teria quinze anos e não dezessete como ela
mesmo falou para o dr. Antero.
Voltando ao fulcro do nosso trabalho, que é descobrir a identidade do diabo cuja
morte é anunciada na diegese do conto pelo major Tomás, precisa ter em conta que “o
diabo morreu” em 1869, uma vez que o conto é narrado como acontecido no ano de sua
publicação.
São, portanto, as seguintes datas sobre as quais precisa refletir, expostas na seguinte
tab. 1 ao lado dos acontecimentos diegéticos em análise:
Tab. 1
Ano
Acontecimento diegético
1817
ano do nascimento do coronel Bernardo
1829
ano em que teria nascido Bernardo se tivesse 40 anos como aparenta ter
1839
ano do nascimento do dr. Antero
1852
ano do nascimento de Celestina
1854
ano do nascimento de Celestina segundo Antonia
1857
ano em que o major Tomás perdeu a razão
1864
ano em que Antônia chegou naquela casa
1869
ano em que o diabo morreu e em que acontecem os fatos narrados
Para descobrir quais acontecimentos históricos-políticos aconteceram nas datas
citadas na tab. 1, o único instrumento utilizado neste trabalho é o motor de pesquisa em
rede Google, graças ao que, e graças aos documentos disponíveis em Internet, foram
levantadas interessantes descobertas impossíveis em outras maneiras de serem efetuadas.
1817 é o ano em que surge a Revolução Pernambucana na então chamada Província
de Pernambuco, causada especialmente pela insatisfação das províncias do nordeste do
Brasil com a coroa portuguesa, cujo governo era considerado o motivo da crise sócioeconômica naquelas terras 13 . O coronel Bernardo, nascido neste ano e morador do norte do
Brasil, poderia ser o símbolo da Revolução Pernambucana. Em 1829 uma crise monetária
determina a falência do Banco do Brasil, que teria sido causada por D. João VI que, ao
voltar para Lisboa (1921) teria saqueado o Banco, o Tesouro e também o Museu 14 .
1839 é, além do ano do nascimento do dr. Antero, também o ano do nascimento do
autor do conto objeto deste trabalho, Machado de Assis. Mas talvez seja importante este
outro acontecimento relativamente à personagem doutor, “Em 4 de abril de 1839, criou-se
por meio do decreto estadual de Minas Gerais, a Escola de Farmácia de Ouro Preto, a
primeira faculdade independente do curso de medicina no Brasil”. 15 Segundo Holanda &
Campos (1969, p.484) a farmácia foi um centro social de grande importância e nela
reuniam-se, á tarde, homens das mais variadas profissões.
1852 é uma data riquíssima de indicações para o presente trabalho. O ano de
nascimento de Celestina (se tem mesmo 17 anos como conta à Antero) é “quando da
inauguração do Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro em 1852” (Jaco-Vilela & Espirito
Santo & Pereira, 2005), o ano em que “Manoel Antonio Dias de Castro Monteiro, em tese
denominada Alienação mental considerada debaixo do ponto de vista médico-legal” 16 ,
explícita as diferentes classificações daquela que já era chamada doença mental, afirmando
que “as formas de loucura que mais interessam à justiça criminal são a monomania
homicida, a piromania e a monomania de roubo” 17 e, na avaliação da responsabilidade do
criminoso, afirma que “o louco não tem consciência do bem e do mal, a consciência moral
13
WIKIPEDIA “Revolução Pernambucana”. Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_de_1817. Acesso em 7 maio
2007
14
PROJETO BRASIL URGENTE PAINEL 25 “As Aventuras de Dom Pedro I”.
disponível em http://www.expo500anos.com.br/painel_25.html. Acesso em 7 maio 2007
15
WIKIPÉDIA “Farmacêutico”. Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Farmac%C3%AAutico. Acesso em 7 maio 2007
16
Ibidem
17
Ibidem
abandona o doente” 18 . Em outra tese de Azevedo Junior, sempre de 1852, o autor “aponta
a gravidez como tendo influência imediata no moral da mulher, podendo levar até à
alienação mental” 19 .
Os dados acima citados relativos ao ano em que se supõe que nasceu Celestina,
fazem vir a suspeita que esta personagem “vinda do céu” esteja representando a instituição
dos hospitais psiquiátricos e dos estudos de doenças mentais no Brasil. Além da
coincidência da data, na narrativa estão presentes algumas frases que fornecem a quase
certeza sobre o argumento enfrentado por Machado no conto O Anjo Rafael, “Mas o dr.
Antero não viu na origem celeste do major mais do que uma monomania pacífica.
Compreendeu que era inútil e perigoso contestá-lo” (Cap. VII, p. 9), ou seja, os estudos de
medicina legal nascidos naquele período, os estudos dos tipos de loucura que levam a
determinados crimes e pelos quais os criminosos não podem ser responsabilizados, mas
que justificam o nascimento dos hospitais psiquiátricos. Quiçá as reflexões que inspiraram
Machado de Assis a escrever este conto não tenham mais tarde influenciado também outro
seu conto, famosíssimo, O Alienista, publicado pela primeira vez em 1882.
O fato de que a citação da “monomania” seja feita no sétimo dos quatorze capítulos
da narrativa, pode também ser um fator que indique a importância central do argumento.
Mas aquilo a que precisa fazer mais atenção, é o tipo de monomania a que o dr. Antero se
refere, ou seja, a “monomania pacifica” da qual acredita que o major Tomás esteja
sofrendo, visto que esta personagem afirma que, poucas linhas antes da conclusão do
doutor: “[...] eu sou o anjo Rafael” (Cap. VII, p. 9). Mas a “monomania pacifica” não
existe, e a frase seguinte o adjetivo pacífica o revela, no estilo típico de Machado, “[O dr.
Antero] Compreendeu que era inútil e perigoso contestá-lo” (grifos meus). Ou seja, se era
perigoso contestá-lo quer dizer que a sua monomania não tinha nada de pacífico, ou que a
monomania pacífica não existe e que o autor Machado esteja se referindo a outra
monomania.
A monomania que logicamente se acerca ao conteúdo da diegese e também à
personagem narrador diegético, não pode que ser a monomania suicida, termo introduzido
por Esquirol, J. E. D., no seu Des maladies mentales, publicado em Paris em 1838. Segundo
Ana Maria Galdini Raimundo e Saulo Veiga Oliveira, Esquirol constrói o conceito de
“monomania” a partir daquela de melancolia de Pinel. Para Esquinol monomanias são
18
Ibidem
19
Ibidem
“loucuras de um só tema, incidindo parcialmente sobre a inteligência, o afeto ou a vontade;
entre elas a monomania suicida e ainda a lipomania (monomania triste)” (Esquinol apud
Galdini & Veiga, 2007, pp. 3-4, nota de rodapé 12).
Após esta reflexão sobre o ano 1852, e sobre sua importância para uma leitura mais
profunda do conto O Anjo Rafael de Machado de Assis, continua a análise do resto dos
anos citados direta e indiretamente no conto machadiano.
Sobre o 1854, sempre sobre hospitais psiquiátricos e alienados no Brasil, o
presidente da Província de Pernambuco, José Bento da Cunha e Figueredo, transfere alguns
alienados que se acham em péssimas condições, para o “Hospital de Pedro II na Corte”,
onde foram acolhidos muito bem “pelo incansável e magnânimo Provedor daquele grande
Hospício” (Oda & Dalgarrondo, 2005, p. 998). Fato que poderia ter feito cair a escolha no
nome de José que Machado deu ao “criado”, José é aquele que acompanha o dr. Antero da
sua casa para sua nova casa na Tijuca.
Em 1857, o ano em que o major Tomás perde a razão, “o Ministro Bernardo de
Sousa Franco estabeleceu a pluralidade bancária, permitindo a vários Bancos o direito de
emitir, contrariamente ao monopólio estabelecido antes” (Holanda & Campos, 1969, p 65),
procedimento este que “não encontrava pleno apoio do ministério nem do Imperador”
(Ibidem, p. 66).
Em dezembro 1864 começa a guerra do Paraguai que se estende até 1870, ou seja,
está ainda acontecendo no ano da publicação do conto, considerado o ano do tempo da
diegese (1869), chamada também a Guerra da Tríplice Aliança, entre o Brasil, a Argentina
e o Paraguai 20 . Mas em 1864 teve também o segundo governo de Zacarias de Góis e
Vasconcelos, cujo ministério foi considerado progressista, mas não era bem visto pelos
liberais, substituído em agosto do mesmo ano pelo gabinete de Francisco José Furtado,
com uma composição bem mais liberal da anterior (Holanda & Campos, 1969, pp.94-95).
Em setembro de 1864 teve também a falência de J. Alves Souto & Cia., a casa bancária
mais popular do Rio, que pôs em jogo quase 10 mil credores, arrastando em sua crise
também outros bancos, motivada mais pelo sistema financeiro, com o aumento de bancos e
as emissões de papel-moeda (Ibidem, pp. 96-97).
Finalmente, na tentativa de compreender quem seja o diabo que “morreu”, foi-se à
procura de personagens famosas falecidas no Brasil, em 1869. Um deles é o General Abreu
20
“Guerra do Paraguai”. Disponível em
http://www.brasileirosnoexterior.com/?q=Guerra_do_Paraguai. Acesso em 7 maio 2007
e Lima, que nasceu em Recife em 6 de abril de 1794 e morreu na mesma cidade em 8 de
março de 1869. Revolucionário filho de Padre Roma, o General Abreu e Lima combateu
pela independência da dominação espanhola junto a Simon Bolívar. Além de militar, ele
era político e escritor. Publicou, entre outros livros, Compêndio de história do Brasil
(1843) e O Socialismo (1855). A causa de suas idéias socialistas, não foi permitido que seu
corpo fosse sepultado no Cemitério de Recife, então foi sepultado no Cemitério dos
Ingleses 21 .
Em 1869 morreu também outra personagem, mas não brasileiro, e na França, Alan
Kardec, pai do espiritismo, religião que terá depois muitos seguidores no Brasil. É
importarnte aqui lembrar que Allan Kardec morreu em 1869 aos 64 anos de idade, e que
também Brás Cubas, defunto narrador da sua vida no romance Memórias Póstumas de
Bras Cubas (Machado de Assis, 1881), morre aos 64 anos no mesmo ano 1869.
Coincidência incrível, será que Machado estava referendo-se indiretamente ao francês
pedagogo? Mas não é este o momento para responder a este ulterior interrogativa, é preciso
voltar a descobrir quem é “o diabo [que] morreu”.
Na seguinte tab. 2 a síntese de quanto descoberto sobre as datas histórico-políticas do
Brasil coincidentes com as datas da diegese de O Anjo Rafael, enquanto na tab. 3 temos
algumas das mesmas datas com os eventos mais marcantes na biografia de Machado de
Assis (fonte: Massa,1971).
Tab. 2
Ano
Acontecimento diegético
1817
ano
do
nascimento
acontecimento histórico/político
do
coronel
começa a Revolução Pernambucana
Bernardo
1829
ano em que teria nascido Bernardo se
falência do Banco do Brasil
tivesse 40 anos como aparece ter
1839
ano de nascimento do dr. Antero
- fundada em Ouro Preto a primeira Escola de Farmácia no Brasil;
1852
ano de nascimento de Celestina
- inauguração do “Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro”, o primeiro do país;
- publicadas duas teses sobre doenças mentais
1854
ano
de
nascimento
de
Celestina
segundo Antônia
José Bento da Cunha e Figueredo, Presidente da Província de Pernambuco, transfere
alguns alienados que se achavam em péssimas condições para o “Hospital de Pedro II
na Corte”
1857
ano em que o major Tomás perdeu a
estabelecida a pluralidade bancária no direito de emitir moedas
razão
21
WIKIPÉDIA “José Inácio Abreu e Lima”. Disponível em
pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_In%C3%A1cio_de_Abreu_e_Lima Acesso em 7 maio
2007
1864
1869
ano em que Antônia chegou naquela
começa a Guerra del Paraguay; governo liberal; crise econômica no Rio devido a
casa
falência de um importante banco
ano em que o diabo morreu e em que
- morre em Recife o General Abreu e Lima;
se desenvolve a diegese
- morre na Francia Allan Kardec
Tab. 3
Ano
Acontecimento diegético
acontecimento biográfico de Machado de Assis
1839
ano de nascimento do dr.
- ano de nascimento de Machado de Assis
Antero
1857
1864
ano em que o major Tomás
costituiu-se o grupo dos cinco - virada do escritor Machado: da poesia à prosa - fundação do
perdeu a razão
jornal “O Paraíba” - publica o texto: A Odisséia Econômica do Sr. Ministro da Fazenda
ano em que Antônia chegou
publicação das Crisálidas - Machado comentava fatos políticos do interioir e do exterior -
naquela casa
virou correspondente da Imprensa Acadêmica - começou a escrever as crônicas da série Ao
acaso - começou a escrever os contos do Jornal das Famílias
1869
ano em que o diabo morreu e
termina sua colaboração no Jornal das Famílias - publica os Contos fluminenses - casamento
em
de Machado com Carolina - morte de Faustino de Novais, irmão de Carolina - cinco contratos
que
se
desenvolve
diegese
a
fechados com a Garnier
4. Considerações finais: Antero, “o nosso herói”
Como com os contos A Igreja do Diabo, Adão e Eva e em O Sermão do Diabo,
também com O Anjo Rafael Machado de Assis escreve um texto inspirado a outro
religioso, neste caso ao Livro de Tobias. A escolha de um livro Deuterocanônico, ou seja,
reconhecido só em um segundo momento e não presente em todas as versões da Bíblia,
tem feito com que, provavelmente, o conto de Machado aqui analisado não tenha levantado
um mínimo interesse entre os estudiosos deste autor.
A escolha por parte do autor de uma história bíblica por muitas religiões (hebraica e
luterana, por exemplo), não reconhecida e, portanto, não divulgada aos fiéis, não
demonstra obviamente a intenção de Machado de querer “imitar” uma trama sem ser
acusado de “plágio”. Freqüentemente aparece, durante o trabalho de comparação exposto
acima, que os elementos de semelhança com o texto bíblico tenham sido incluídos como
que forçadamente por Machado, como para não deixar qualquer dúvida, para quem viesse
a descobrir certas semelhanças, de que estava no caminho certo. E o título talvez constitua
o primeiro rastro.
Se na construção da trama, das personagens, dos temas tratados na superfície, O
Anjo Rafael se espelha em o Livro de Tobias, o aspecto religioso no conto de Machado,
homem do séc. XIX, está praticamente ausente. A presença de um homem que se diz anjo
Rafael, que conta que “morreu o diabo”, não quer dizer que se está na frente de um texto
religioso, e tampouco que inspire a fé em um Deus. Pelo contrário. É de fato o caráter
psicológico que permeia a narrativa, não por nada o mesmo narrador diegético indica ao
leitor, já no segundo capítulo, que aquela aventura “tinha ares de um conto de Hoffman”
(cap. II).
O narrador diegético se identifica com o protagonista dr. Antero, mas só a aprtir do
capítulo II. No capítulo I, o narrador está presente na narrativa com todo o seu deboche
para aquele que chama “[...] o nosso herói” (cap. I), dando os seus juízos sobre ele com
uma certa ironia, ora abertamente ora mais sutilmente. Além disso, fornece indícios aos
leitores do fato que o dr. Antero não seja religioso. Na verdade ele está por se suicidar,
visto que não se achava bem com o resto “da sociedade”; antes de executar o plano da sua
morte se deita no divã para ler o “Dicionário filosófico”, e depois de ter carregado a arma,
“para rematar a vida com um traço de impiedade” usa como “bucha que meteu no cano da
pistola [...] uma folha do Evangelho de S. João” (cap. I).
Se de um lado o narrador do capítulo I mostra um “herói” moderno, que lê filosofia e
não a Bíblia, do outro canto dá os indícios de que sua religiosidade ainda enraizada nele. É
o homem moderno que esconde no seu interior, ou inconsciente, o ser religioso dos seus
pais, antepassados, mas também da sociedade na qual vive, da qual não é capaz de se
libertar. A sua casa “era à rua da Misericórdia”, e a folha do Evangelho que usa como
bucha da pistola é “de S. João” 22 (cap. I). São estes indícios de caráter supersticioso,
presentes nas pessoas que são marcadas, apesar de suas vontades, pelo elemento religioso,
neste caso cristão. Mais um destes indícios está presente na reação tida por Antero quando
o Tomás declara que “morreu o diabo” (cap. IX). De fato, depois que o major lhe pergunta
se não acha que “esta notícia é a melhor festa que posso ter por ocasião de casar minha
filha?” (cap. IX), o dr. Antero reponde: “- Com efeito, assim é [...]; mas, visto que o
inimigo da luz morreu, não falemos mais nele” (cap. XII). Demonstrando, portanto, certo
nervosismo na frente do argumento diabo, não apropriado em um homem racional, livre
das crenças populares e religiosas.
Livrar-se da sua formação cristã não é fácil para Antero (aquele que é contrário ao
amor [divino?]), símbolo do homem ocidental, racional, que consegue muito bem viver nas
circunstâncias a ele favoráveis, na tranqüilidade do conforto material ao qual está
22
È bom lembrar aqui que o Evangelho segundo João é considerado o mais “distante” dos
outro três Evangelhos, portanto é como se o dano feito aos textos sagrados seja menor
privando-o de uma folha do Evangelho de João
acostumado, mas de quem não tardam a aparecer medos e incertezas todas as vezes que
perde o domínio das situações. E a ironia do narrador machadiano o explica muito bem:
“No fundo do seu espírito havia uma extrema dose de fraqueza. Podia disfarçá-la quando
dominava os acontecimentos; mas agora que os acontecimentos dominavam a ele,
facilmente desaparecia o simulacro da coragem” (cap. II).
Mario Fleig, no artigo Da possessão demoníaca à hipocondria 23 , a propósito das
crenças religiosas cristãs e, portanto, daquelas de Deus e do diabo segundo Freud, diz que
“Freud nos aponta com precisão é a função de suplência do Nome-do-Pai desempenhada
por ambos, Deus e o diabo” (Fleig, 2003, p. 14). O dr. Antero, o “herói” do conto
machadiano aqui analisado, perdeu há muitos anos o pai, e aparentemente parece não
acreditar em Deus.
Se para o seu consciente Antero despreza a religião, os seus sonhos revelam a sua
formação “teopoética”. É o inconsciente que lhe fala das bases da sua formação como ser
humano do final de 1800, pertencente à cultura ocidental. “Ora, o nosso herói teve um
sonho durante o curto espaço de tempo que dormiu, fora levado para a cidade das dores
eternas, onde Belzebu o destinava a ser perpetuamente queimado numa imensa fogueira”
(cap. III). Não é possível se livrar de algo inculcado em nossas consciências só com o uso
da razão. A religião, Deus e o Diabo, fazem parte da cultura do homem ocidental, e é
difícil se livrar deles completamente. O preço que se paga é a absoluta solidão do homem
moderno, espécie em frente das dificuldades. Segundo Freud, citado por Fleig, “[...] Para o
cristão piedoso de séculos anteriores, a crença no Diabo era um dever não menor que a
crença em Deus. Na realidade, ele precisava do Demônio, a fim de defender Deus. O
posterior declínio em sua fé por diversas razões afetou primeiramente e acima de tudo a
pessoa do Demônio” (Fleig, 2003, p. 14).
Se quem tenta o suicídio é para os cristãos um pecador destinado às penas do inferno,
para o homem moderno representado por Antero o suicida é uma pessoa afetada por
doença mental, e especificamente por uma monomania suicida, de que se falou no capítulo
anterior. A medicina forense prova que os doentes mentais não são responsáveis pelos seus
atos, que são pessoas que perdem a consciência, não distinguem entre o bem e o mal. Em
O anjo Rafael Celestina, nascida com os primeiros hospitais psiquiátricos do Brasil, e
23
Artigo publicado na revista da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre),
disponível em http://www.appoa.com.br/download/correio116.pdf. Aacesso em 8 maio
2007
aquela que possui “essa confiança da inocência e do pudor, essa confiança de quem não
suspeita o mal e só conhece o bem” (cap. VIII). A inocência dos seres não contaminados
pela civilização, como Celestina que foi distanciada pelo pai, major Tomás/Anjo Rafael da
vida além daquela casa, da qual não conhece as leis. Ela sabe que o pai é um anjo, sabe do
céu, mas não suspeita do diabo.
“Monomaníaco pacifico” é a definição médica que o dr. Antero faz da fixação do
major em crer-se o anjo Rafael, mas na realidade é ele o doente monomaníaco suicida que
percorre a sua viagem-pesadelo, no estilo de Hoffman, dentro de um hospital psiquiátrico,
ao qual ele mesmo se destinou na tentativa de tirar sua vida: “Ao mesmo tempo que fazia
estas reflexões, lançava mão da pistola, e olhava para ela com um certo orgulho. - Aqui
está a chave que me vai abrir a porta deste cárcere, disse ele” (grifos meus) (cap. I).
O hospital psiquiátrico nascia como uma grande esperança da medicina, na cura dos
criminosos cujos atos eram considerados irresponsáveis, gerados por doenças mentais, mas
era também o lugar onde eram trancados os portadores das assim chamadas neuroses, entre
as quais, na época do conto e por muitos anos ainda, a epilepsia. Mas a epilepsia era a
doença que afetava Machado de Assis.
Em qualquer bibliografia de Machado de Assis, e há muitas, são sempre
desatacados, além da importância do escritor brasileiro, considerado um dos maiores da
língua portuguesa, duas suas características físicas, quase como duas “doenças”: ser mulato
e sofrer de epilepsia. Não é este o momento de fazer uma crítica sobre a importância que os
biógrafos de Machado dão a estas suas “características” peculiares, não sendo pertinente a
este trabalho, mas sim de entender um pouco mais de como era considerada a epilepsia
pelos médicos no Brasil da época de Machado.
Na segunda metade de 1800, a epilepsia era vista como uma doença mental e era
classificada, assim como a histeria, entre as neuroses. Margarida de Souza Neves 24 (2006)
mostra como na primeira tese apresentada na universidade de medicina de Rio de Janeiro,
o autor, o Dr. Francisco Pinheiro Guimarães, define a epilepsia como uma “neurose de
acessos intermitentes” (Guimarães apud Neves, 2006, p. 9). Na mesma página a autora diz
24
Doutora em História e professora do Departamento de História da PUC-Rio, atualmente
coordena um projeto de pesquisa cujo objeto é a história social do pensamento médico
brasileiro
sobre
a
epilepsia
no
Brasil
entre
1859
e
1906
(
http://www.historiaecultura.pro.br/cienciaepreconceito/apresentacao.htm, acesso em 7
maio 2007)
que, portanto, a epilepsia era tratada como uma outra doença mental durante o período
1859 (data da primeira tese no Brasil sobre o tema) - 1906 (ano em que a descoberta dos
neurônios mudam as perspectivas da medicina sobre esta doença), achando na reclusão o
tratamento mais recomendado.
Voltando ao conto aqui analisado O anjo Rafael, depois as reflexões acima expostas,
pode ser visto como vira fácil deduzir, agora, que o dr. Antero não é por acaso que tem a
mesma idade do autor Machado de Assis, e que este possa ter escolhido o tema do suicídio,
para denunciar, em maneira nada explícita, quase uma denúncia só para ele mesmo, o
absurdo a que a medicina chegava catalogando também o suicídio, e a epilepsia escondida
de baixo dele, como doenças mentais. Ou talvez não havia por parte de Machado nem uma
denúncia de tal absurdo, mas sim do tratamento de tipo carcerário a que os “doentes”
sofriam 25 .
Relendo o conto sob este ponto de vista, ficam delineados nitidamente, como por
magia nascendo do texto, a descrição da reclusão de um homem, o dr. Antero, em um
hospital psiquiátrico, com todo seu aspecto lúgubre e todas as suas características
carcerárias (especialmente as numerosas chaves com as quais o “criado” abria e fechava as
portas antes de permitir o acesso do novo “hóspede”, Antero). O modo como as restrições
das liberdades eram camufladas por uma demonstração de cordialidade, até que o “doente”
Antero não se acostuma com sua nova condição de “prisioneiro” a ponto de confessar que
“a entrada naquela casa fizeram do doutor um bom homem, quando não passava de um
homem inútil e mau” (cap. XI).
O tema da loucura e de como os “alienados” são identificados e, portanto, levados em
manicômio, lembra um dos contos mais famosos de Machado de Assis, O Alienista, o que
faz do conto objeto deste trabalho uma leitura importante também desse ponto de vista,
como precursor talvez de obras posteriores de Machado.
Não podemos esquecer que aspectos autobiográficos podem estar escondidos atrás
dos eventos diegéticos deste conto: em 1969 Machado de Assis se casa com Carolina, após
a morte do irmão desta que estava doente, Faustino de Novaes, e para Machado começa
outra fase da sua vida (ver tab. 4 acima).
25
Só posteriormente, em 1887, Lombroso publicará seu livro O homem criminoso, em que
sustenta a hipótese de que todos os epiléticos são potencialmente criminosos (Neves,
2006, p. 15)
Enfim, quem sabe o conto não esconda alguma pista sobre o famoso “mistério [que]
pairava sobre a razão que levara Carolina a atravessar o Atlântico” (Massa, 1971, p. 580)?
CONCLUSÃO
Este trabalho de análise e pesquisa, com o propósito de “descobrir” outras possíveis
leituras do conto de Machado de Assis O Anjo Rafael, não termina aqui, mas abre a
possibilidade a eventuais estudos futuros e a futuras interpretações não somente do conto
em questão, mas de outras obras do mesmo autor. Se há uma conclusão certa a se fazer
para o presente trabalho, é que ler e reler Machado de Assis, o homem e suas obras, visto
que em suas obras há também o homem-autor, e não só o homem narrador, pode ser um
trabalho entre os mais estimulantes intelectualmente falando, porque levam o leitor a um
desafio consigo mesmo, com sua capacidade de incentivar a sua curiosidade e utilizar a
imaginação para acercar-se aos fatos reais.
Partindo da curiosidade que este conto tem inspirado para ser utilizado em um
estudo sobre o diabo, O Anjo Rafael levou à redescoberta de um livro bíblico praticamente
desconhecido para muitos cristãos, o Livro de Tobias. À procura do que seja uma
monomania e portanto, a entender que está se falando de um hospital psiquiátrico, a
descobrir também que o suicídio era considerado, na época em que vive Machado de Assis,
fruto de uma doença mental, mas que muitas outras coisas eram consideradas desta
maneira, e entre elas a epilepsia, a doença conhecida a Machado.
As análises dos nomes e das datas revelaram que, em 1869, morreu em Recife, Norte
do Brasil, um homem chamado General Abreu e Lima, brasileiro de quem os livros
escolares falam muito pouco ou não falam, mas que nos países da América Central, como
o Venezuela, é considerado como um Giuseppe Garibaldi no sul do Brasil. Até aqui este
trabalho não conseguiu confirmar que “morreu o diabo” seja ligado à morte deste homem,
apesar de que, por causa de suas idéias socialista, ao General Abreu e Lima não foi
permitido que fosse sepultado no cemitério católico da sua cidade. Mas isso tudo pode ser
fruto da fantasia, e o fato que “morreu o diabo” não é outra coisa que um elemento da
diegese que o autor tinha que colocar, com a finalidade única que essa se parecesse em
mais detalhes com a diegese do Livro de Tobias.
Enfim, pode ser feita uma interpretação alegórica da figura do protagonista do conto
de Machado O Anjo Rafael, o dr. Antero que, apesar de simbolizar o homem racional do
final do séc. XIX, positivista e livre das crenças religiosas, está ainda permeado por
elementos supersticiosos, resquícios de uma cultura, a ocidental, ainda longe de se ver livre
de presenças como Deus e o Diabo, em todos seus aspetos literários ou menos.
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Uma leitura de Missa do galo
Benedito José de Araújo Veiga
Resumo
A presente comunicação propõe-se a análise e interpretação da proposta seguinte: A
obra de Machado de Assis deixa de ser tomada como mera realização exemplar que
comportasse constante admiração. Como literatura que é, ela está necessariamente
condicionada a um determinado lugar e a um momento, e comporta, para que permaneça,
leitura e discussão continuadas. O escritor carioca viveu num determinado período e
ambiente que bem poderiam ter marcado sua presença − nascido em 1839, filho de um
pintor de paredes e de uma lavadeira açoriana −, sobretudo a de um intelectual considerado
de méritos e respeito. Seguindo uma estrutura de questionamento de um contexto
psicossocial, Missa do galo serve de amostra para que sejam lidos padrões
comportamentais e não apenas de uma fase do Segundo Império brasileiro. Um exemplo
dessa recepção crítica privilegiada é Missa do galo: variações sobre o mesmo tema, com
depoimentos de Antonio Callado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia
Fagundes Telles, Nélida Piñon e Osman Lins.
Palavras-chave
Relações psicossociais, comportamento, ambivalências, conto machadiano.
Literatura e história
Partimos do pressuposto de que a literatura é um acontecimento eminente histórico,
portanto carente de mutações espácio-temporais, como aliás relembra José Luis Jobim em
História da Literatura
O que a própria História da Literatura nos mostra é que houve sucessivas e
diferentes representações daquilo a que chamamos “literatura”. Ou seja, a nossa
civilização ocidental concebeu de modos diferentes o que denominou “literatura”:
dependendo do momento, do ponto de vista, do lugar a partir do qual se fale, ela
pode não ser a mesma coisa. Assim, uma parte do problema da história literária
constituiria em investigar quais foram as representações que se constituíram para
este termo. Jobim (1992, p. 127).
Prosseguindo, o estudioso, em seu ensaio, acrescenta que a tarefa do investigador em
Literatura não está nunca segura, pelo contrário é uma atividade de perquirição e busca
continuadas:
Se, ao produzirmos uma História da Literatura, partimos do pressuposto de que um
determinado universo de autores e obras, consagrados como clássicos pelo cânon
que herdamos, constitui necessária e suficientemente nosso objeto, teremos um
resultado diferente do que se partirmos do pressuposto de que a primeira tarefa do
historiador é de determinar seu objeto. Neste caso, a própria definição, bem como
os critérios que a fundamentam, seria parte daquela tarefa. Jobim (1992, p. 127).
Diferentemente dos formalistas, não mais acreditamos que a chamada “literariedade”
seja uma “[...] propriedade, característicamente ‘universal’ do literário, que se manifestaria
no ‘particular’, em cada obra literária” (Jobim, 1992, p. 128), e sim, “[...] o termo
‘literariedade’ não teria um conteúdo permanente, mas variável”: “porque ‘aquilo’ variaria
de acordo com o momento. Poderia ser algo diferente, caso adotássemos o ponto de vista
do Renascimento ou do Modernismo, por exemplo”. Jobim (1992, p. 128).
Não podemos esquecer que
Cada época tem seu quadro de referências para identificar a literatura, tem suas
normas estéticas, a partir das quais efetua julgamentos. Em outras palavras, cada
época tem suas convenções, valores, visões do mundo, formando um certo
universo, cujos elementos interdependentes mantém entre si relações associativas e
funcionais, em constante processo. Jobim (1992 p. 129).
Não estaria sendo questionada toda possibilidade de pensarmos uma obra de
literatura sem qualquer questionamento de tempo e lugar?
Jobim, em certo sentido, procura dar um sentido para tais perplexidades existentes,
chamando, em auxílio, um desdobrar-se contínuo de perguntas e aceitações:
O autor produz e o receptor lê uma obra considerada “literária” dentro de um
quadro de referências em que outras obras “literárias” já foram e estão sendo
produzidas. É neste horizonte que se manifesta a nova obra: a partir de uma
concepção determinada pelas normas vigentes, tanto o autor pode reivindicar
produzir quanto o leitor pode reivindicar ler uma obra enquadrada como literária.
Jobim (1992, p. 130).
Roberto Reis, em Cânon, adverte-nos, inicialmente, para o caráter de aprisionamento
do leitor pela literatura e da luta de perde/ganha de ambos os lados:
[...] toda escrita ficcionaliza o seu leitor. E todo leitor acumula um repertório de
pré-noções e é munido deste aparato que se cerca de um texto, com o qual seu
conjunto de expectativas passará a atritar. Toda cultura nos inculca um conjunto de
saberes − e estes saberes, via de regra, de uma forma ou de outra, são saberes
textualizados. Sempre lemos/interpretamos (pode-se escrever que toda leitura é
uma interpretação e toda interpretação é uma leitura) aparelhados com este elenco
de conhecimentos; ou seja, de textos, na medida em que estes ou nos são passados
por meio de textos propriamente ditos ou por outras formações discursivas que se
comportam como textos. Reis (1992, p 65-66).
A imposição canônica mostra-se, por vezes, como se fora um único caminho, embora
relativizada pelo conhecimento de que “[...] todo este intercâmbio de saberes − e saber é
uma forma de domesticar, pelo conhecimento, a realidade − está mediado pela linguagem.
[...] A realidade passa a ser conhecida e o mundo, uma vez inserido na ordem simbólica,
assume um caráter humano e social”. Reis (1992, p. 66)
A obra produzida por Machado de Assis, como literatura que é, deixa de ser tomada
como realização exemplar; ela está condicionada a um determinado tempo e lugar e, para
que permaneça, tem que ser lida e discutida constantemente.
Literatura e recepção crítica
Os estudos da recepção crítica preocuparam-se, inicialmente, dentro das diretrizes
defendidas por Hans Robert Jauss, em suprir determinados problemas da tradicional
historicidade literária, como indica o próprio autor, em seu texto inaugural de 13 de abril
de 1937, História da literatura como provocação à teoria literária:
Os patriarcas da história da literatura tinham como meta suprema apresentar, por
intermédio da história das obras literárias, a idéia da individualidade nacional a caminho de
si mesma. Hoje, essa aspiração suprema constitui já uma lembrança distante. Em nossa
vida intelectual contemporânea, a história da literatura, em sua forma tradicional, vive tãosomente uma existência nada mais que miserável, tendo se preservado apenas na qualidade
de uma exigência caduca do regulamento dos exames oficiais. Jauss (1994, p. 5)
A aula proferida pelo docente da Universidade de Constança, na Alemanha,
inserida no atendimento às reivindicações discentes de 1958, sobretudo, abre espaço para a
discussão da presença do leitor/receptor como elemento atuante na preservação e
permanência das literaturas na contemporaneidade.
Regina Zilberman, uma estudiosa da recepção crítica, em seu ensaio “O Uraguai:
moderno e americano”, corrobora as insuficiências levantadas por Jauss:
[...] não diagnostica o impacto representado pelo aparecimento de dada obra e certo
contexto. Ela não é examinada em relação ao horizonte dentro do qual foi concebida e
criada; por causa disso, perde-se de vista o diálogo que propôs estabelecer com a época, os
demais textos, os autores contemporâneos e, sobretudo, com o público a que se dirigiu.
Também não examina o efeito desencadeado pela obra, a não ser quando analisa
influências. Zilberman (1995, p. 131)
Prosseguindo, lembra também a professora e pesquisadora gaúcha que, para Jauss,
[...] uma obra não deixa de agir depois de editada e começar a circular entre o
público; pelo contrário, sua vida depende da capacidade de continuar atuando sobre os
leitores. Eis por que a história da literatura não pode lidar com épocas fechadas, dentro das
quais encerra as obras escritas e publicadas; pelo contrário, cabe-lhe acompanhar a
trajetória diferenciada que elas experimentam entre situações e grupos distintos. Zilberman
(1995, p. 132)
Dentro, pois, dos critérios indicados e considerados necessários pela ensaísta para o
desvendamento da obra divulgada, em nossa rápida proposta de um refletir sobre Missa do
galo de Machado de Assis, tomamos como pontos a serem questionados e encaminhados:
A) Examinar o horizonte histórico, dentro do qual a obra foi “concebida e criada”;
B) Determinar o diálogo estabelecido pela obra com sua época, com textos e
autores contemporâneos e com seu público;
C) Verificar as diversas apreensões acontecidas com a obra, em “situações e
grupos distintos”.
Missa do galo e seu contexto
O conto Missa do galo é dado em livro de Páginas recolhidas, em 1899, segundo
“Breve cronologia da vida e da obra” de Machado de Assis, numa “condensação da que foi
organizada por J. Galante de Sousa, publicada na Revista do Livro, RJ, Instituto Nacional
do Livro, set. 1958, ano III, n° 11”, e apresentada no volume I, página 93, da Obra
Completa do autor da edição Nova Aguilar, de 1997. Sousa, apud Assis (1997a, p. 93).
Trata-se da apresentação de um tempo desdobrado em dois momentos: o da ação
narrada, entre 1861 ou 1862, (“Era pelos anos de 1861 ou 1862”), Assis (1977a, p. 14), e o
de sua divulgação em livro, em 1899. O primeiro deles, no Segundo Reinado (1840-1888),
e o seguinte, nos começos da Primeira República (1889-1930), períodos bastante
diferenciados da história político-econômica brasileira.
No Reinado,
O Imperador e a burocracia imperial atendiam à essência dos interesses dominantes
ao promover a ordem em geral, ao dar tratamento gradativo ao problema da
escravidão etc. Mas assim agiam contrariando, às vezes, os pontos de vista de sua
base de apoio. A Lei do Ventre Livre, proposta pelo Imperador apesar da oposição
generalizada dos fazendeiros, é um exemplo disso. O núcleo de uma visão estatista
do Brasil se concentrava nos membros vitalícios do Conselho de Estado. Fausto
(2001, p. 104).
Na Primeira República:
Como episódio, a passagem do Império para a República foi quase um passeio. Em
compensação, os anos posteriores ao 15 de novembro se caracterizaram por uma grande
incerteza. Os vários grupos que disputavam o poder tinham interesses diversos e divergiam
em suas concepções de como organizar a República. Os representantes políticos da classe
dominante das principais províncias − São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul −
defendiam a idéia da República federativa, que asseguraria um grau considerável de
autonomia às unidades regionais. Fausto (2001, p. 139).
De acordo com a enumeração elaborada sob a direção de Afrânio Coutinho e J.
Galante de Sousa para a Enciclopédia de Literatura Brasileira, a obra Páginas recolhidas
é quase coetânea da publicação de Dom Casmurro, 1899 e 1900, respectivamente.
Coutinho e Sousa (2001, p. 282).
No âmbito literário, próximos da publicação de Páginas recolhidas, vamos
encontrar: O Ateneu de Raul Pompéia, em 1888; A carne de Júlio Ribeiro, em 1888; O
cortiço de Aluísio Azevedo, em 1890; Aleluias de Raimundo Correia, em 1891; Cartas de
Inglaterra de Rui Barbosa, em 1896; Um estadista do Império de Joaquim Nabuco, em
1897-1899; Ensaios de sociologia e literatura de Sílvio Romero, em 1900; Poesias (edição
definitiva) de Alberto de Oliveira, em 1900; Estudos de literatura, 6 séries, de José
Veríssimo, em 1901-1907; Os sertões de Euclides da Cunha, em 1902; O caçador de
esmeraldas de Olavo Bilac, em 1902; Rosa, rosa de amor de Vicente de Carvalho, em
1902; Páginas de estética de João Ribeiro, em 1905. Coutinho e Coutinho (1999, p. 4312).
Havia, portanto, inúmeros caminhos literários que se mostravam. Machado de Assis
já se havia pronunciado, em 1873, pelo escrito em “Instinto de nacionalidade”:
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do
escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo
e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Assis
(1997b, p. 804).
O escritor carioca viveu num determinado período e ambiente que bem poderiam ter
marcado diversamente sua presença na sociedade e nas artes. Nascido em 1839, filho de
um pintor de paredes e de uma lavadeira açoriana, é Machado de Assis fruto de uma
vida de constante e continuada dedicação:
Inimigo do diletantismo e da improvisação, tendo por máxima “aprender
investigando”, estudou com perseverança, meditou os clássicos e os modelos da
língua e dos gêneros, dos quais recebeu as leis da arte literária e com os quais
aprimorou o instrumento expressional e a poética do idioma; disciplinou o
temperamento, a inspiração e a imaginação; não teve pressa nem cedeu à sedução
da facilidade; compreendeu desde cedo que “com os anos, adquire-se a firmeza,
domina-se a arte, multiplicam-se os recursos, busca-se a perfeição que é a ambição
e o dever de todos os que tomam da pena para traduzir no papel as suas idéias e
sensações”, sentiu que o segredo da arte está num justo meio clássico, “nem
descuido, nem artifício, arte”, pelo qual sempre se norteou; e aprendeu que a
originalidade e a invenção não necessitam de lançar-se contra a tradição, daí não
ter sido levado à atitude de negação e iconoclastismo que caracteriza o
antropofagismo geracional. Coutinho e Sousa (2001, p.274).
O conto machadiano
O conto machadiano caracteriza-se pela procura de seguir certo rigor tradicional. Como
escreve Masaud Moysés em A criação literária, ao tratar do conceito e estrutura do
conto,
Trata-se, pois, de uma narrativa unívoca, univalente. Constitui uma unidade
dramática, uma célula dramática. Portanto, contém um só conflito, um só drama,
uma só ação: unidade de ação. Para entender nitidamente essa unidade dramática,
temos de considerar ainda outro aspecto da questão: todos os ingredientes do conto
levam a um mesmo objetivo, convergem para o mesmo ponto. Assim, a existência
de um único conflito, duma única “história”, está intimamente relacionada com
essa concentração de efeitos e de pormenores: o conto aborrece as digressões, as
divagações, os excessos. Ao contrário, exige que todos os seus componentes
estejam galvanizados numa única direção e ao redor de um só drama. Moysés
(1965, p. 100).
Missa do galo, por exemplo, constitui uma unidade de ação dramática; o passado ou o
futuro representa um campo nulo ou vazio de significados. (“Nunca pude entender a
conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.
Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho de irmos à missa do galo, preferi
não dormir; combinei que iria acorda-lo à meia-noite”.). Assis (1977, p. 13).
Seguindo, ajunta Massaud Moysés:
A unidade de ação condiciona as demais características do conto. Assim, a noção
de espaço é a primeira que cabe examinar. O lugar geográfico, por onde as
personagens circulam, é sempre de âmbito restrito. No geral, uma rua, uma casa, e,
mesmo, um quarto de dormir ou uma sala de estar basta para que o enredo se
organize. Raramente as pessoas se deslocam para outros sítios. [...] Conclusão: à
unidade de ação corresponde a unidade de espaço. Moysés (1965, p. 101).
Em Missa do galo, todos os acontecimentos de significativos acontecem na casa onde
Nogueira está hospedado. (“A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas
escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às
dez e meia a casa dormia”.). Assis (1977, p. 13).
Em seguida, arremata Moysés:
À noção de espaço segue imediatamente a de tempo. E aqui também se observa
igual unidade. Com efeito, os acontecimentos narrados no conto podem dar-se em
curto lapso de tempo: já que não interessam o passado e o futuro, as coisas se
passam em horas ou dias. Se levam anos, de duas uma: 1) ou trata-se dum embrião
de romance ou novela, 2) ou o longo tempo referido aparece na forma de síntese
dramática, pois esta envolve, habitualmente, o passado da personagem. Moysés
(1965, p. 101).
Podemos constatar em Missa do galo o pouco tempo da duração do enredo: (“Na manhã
seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a
curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem
nada que fizesse lembrar a conversação da véspera”.). Assis (1977, p. 21).
Observamos, pois, em Missa do galo, a presença de três unidades: de ação, lugar e
tempo.
Recepção crítica privilegiada
No decorrer da leitura do conto machadiano, podemos sentir toda uma perplexidade
frente ao contexto psicossocial das relações humanas, sobretudo do casamento,
permitindo analisar o ser humano além do contexto do Segundo Império brasileiro.
Uma amostra da recepção crítica de Missa do galo − talvez privilegiada − seja o
livro Missa do galo (de) Machado de Assis: variações sobre o mesmo tema, com estórias
curtas de seis autores da literatura brasileira: Antonio Callado, Autran Dourado, Julieta de
Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Osman Lins.
É uma concretização de uma idéia de Osman Lins que juntamente com Julieta de
Godoy Ladeira, pelos idos de 1964, combinaram escrever novas versões de Missa do galo.
Decorridos treze anos, o autor pernambucano resolveu convocar os outros quatro colegas
para homenagearem o mestre carioca, daí resultando a publicação de 1977.
É um exemplar multifacetado, no qual cada um procura seguir outros caminhos.
De inúmeras modalidades poderiamos abordar a obra: uma delas, partindo de uma
divisão de gêneros, vez que temos três mulheres e três homens empenhados na tarefa.
Julieta de Godoy Ladeira transfere a narrativa para Conceição que assume certa
malícia:
Não vem à tona com freqüência. Seria mau. Surge entre minhas tarefas quando há
calma e silêncio, trazendo seu perfume e sua culpa, seu mistério, a inocência que
me faz sorrir imaginando se hoje, afinal, ele compreende, e se nessa compreensão
há benevolência. Suponho que não. Julgo mais fácil o esquecimento ou a dúvida
ainda, o sentimento de perda. Ladeira (1977, p. 55).
Lygia Fagundes Telles, com audácia, faz os fatos serem presenciados por uma
mariposa:
[...] Um jovem nítido, próximo. E distante, sei que não vou alcança-lo embora
esteja ali, exposto, sem mistério como o tapete. Ou como a ânfora de porcelana
onde anjinhos pintados vão em diáfana fuga de mãos dadas. Também ele me foge,
inatingível, ele e os outros. Sem alterar as superfícies tão inocentes como essa noite
diante do que vai acontecer. E do que não vai − precisamente o que não acontece é
que me inquieta. E excita, o céu tão claro de estrelas. Telles (1977, p. 100).
Nélida Piñon centra em Menezes todo o contar da história:
Não a fui logo introduzindo aos meus hábitos noturnos. Não queria a sogra em
lamentos pela vizinhança, sempre nestes casos querendo a tudo arrancar de uma
alma sofredora. Um escrivão, como eu, não podia expor-se sem cuidados. Na
Corte, sabemos como os rumores logo espalham-se em prejuízo para o ofendido.
Depressa os negócios se ressentem e menos moeda pingam na algibeira. Piñon
(1977, p. 29).
Antonio Callado entrega a Dona Inácia os cuidados de tecer os fios do enredo:
Agora tinha estalado outra porta, precisamente a do quarto de Conceição, ou, ainda
mais precisamente, era o ruído daquela maçaneta de vidro vermelho onde boiavam
margaridinhas brancas, presa à sua placa com pregos frouxos e cujo conserto, por
mais que recomendado às escravas, não se providenciava nunca. Bastava... Mas
que queria Conceição na sala, a desoras, enquanto o garnisé do Nogueira
aguardava, todo paramentado, que o viessem buscar para a missa do galo na casa
em que todas as mulheres já deviam estar dormindo, ou, mãos postas, rezando
diante do chocho presépio usado há anos, e onde, sem qualquer blasfêmia, o
próprio Menino Jesus já tinha o ar envelhecido? Ah, ainda bem, estão falando de
livros. A Corte inteira na missa do galo e Conceição na missa do frango? Callado
(1977, p. 69).
Autran Dourado altera a ordem dos fatos dando ao “escrevente juramentado do
marido” o comando do narrar:
Pode-se dizer que o escrevente juramentado Joaquim Fontainha Távora, como usaria por
inteiro em caprichadas letras e bordados riscos de firma e sinal, foi o grande beneficiário
da morte do escrivão Menezes. De uma certa maneira, mais do que a viúva, Fontainha se
tornou por vias da obstinação, da humildade e do amor, no seu herdeiro universal. Com a
morte do Menezes, além das casas da Rua do Senado e do Engenho Novo, das apólices e
dinheiro de contato oriundos do casamento com Conceição, passou de interino a escrivão
vitalício da Vara de Órfãos, Ausentes, Resíduos e Capelas, de que Francisco Baltazar de
Menezes era o titular. Dourado (1977, p. 79).
Osman Lins revê a seqüência do conto, mantendo em Nogueira o foco da narração:
Enquanto batem à janela com mais força − e agora vibra a campainha −, olho a
parde vazia, acima dos degraus. Ouço fechar a porta do seu quarto. Inexperiente
embora, pressinto que a perdi. Na manhã seguinte, à hora do almoço, falarei ainda
dos fogos de artifício, dos candelabros, doa cânticos, do povo, e só conseguirei
enfastiá-la. Não voltarei jamais a ver essa mulher, vinda, no silêncio da noite, de
turvas profundezas, outra vez submersa, agora para sempre. Lins (1977, p. 52).
O importante é que Missa do galo de Machado de Assis continua uma obra de
interesse e de estudos, nossos contemporâneos.
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