O CONTO “O ANJO RAFAEL”, ATRIBUÍDO A MACHADO DE ASSIS SÓ POSTUMAMENTE, DESVELA-SE UM HIPERTEXTO DE RIQUÍSSIMAS INFORMAÇÕES HISTÓRICO-SOCIAIS DO BRASIL E AUTOBIOGRÁFICAS Anna Palma Resumo Através da análise do conto O Anjo Rafael, de Machado de Assis, esta comunicação tem como objetivo mostrar como Machado elabora este texto, que pode ser considerado um hipertexto devido às múltiplas referências históricas e autobiográficas. Publicado originalmente no Jornal das Famílias em 1869, O Anjo Rafael pertence àqueles contos que nunca foram republicados por Machado de Assis. Em sua estrutura rigorosamente calcada (número de capítulos, trama, personagens) naquela de um dos livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, O Livro de Tobias, Machado insere problemáticas do homem moderno e da sua sociedade, que procuram na ciência suas respostas. Datas e nome próprios são chaves que se referem a outros eventos externo à diegese, uma pista em códigos que leva à descoberta de outro tema, o das doenças mentais e dos hospitais destinados à cura delas. Mas o caminho até essa revelação está semeado com outras chaves de leitura, como as que reconduzem à Revolução Pernambucana e ao casamento de Machado com Carolina, base de outras numerosas leituras que este conto surpreendente de Machado pode revelar, e todas elas guiadas pela “intenção do autor”. Palavras-chave: Machado de Assis - O anjo Rafael - O Livro de Tobias - história brasileira do séc. XIX - diabo 1. O Anjo Rafael de Machado de Assis 1 1 O texto utilizado é aquele da versão encontrada na Internet, site da biblioteca digital do Nupill (ver referências bibliográficas), em um arquivo de TXT sem páginas numeradas. Portanto, as citações diretas são acompanhadas exclusivamente do número do capítulo. Machado de Assis escreveu mais de 200 contos ao longo de sua vida, publicados em revistas e jornais fluminenses. Organizando seleções de seus contos a serem publicados em livros, Machado deixou que muitos deles ficassem na sombra, considerados por seus leitores e críticos como “menores”, ou ficando anônimos, assinados com pseudônimos que nem sempre foram atribuídos a ele sem controvérsias. O conto apresentado neste trabalho, O Anjo Rafael “Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1869”, não tinha sido publicado mas até agora não foi apresentado nenhum estudo sobre ele. De fato o conto talvez não possua as características procurada pelas casas editoras: é de não fácil leitura, considerando também o inusitado, para o autor, comprimento do texto (quase 12.500 palavras contra as 17.000 de “O Alienista”, o conto mais longo de Machado). Os leitores de Machado sabem que existem três textos de sua autoria bastante conhecidos onde o diabo é o protagonista: A Igreja do Diabo (1874), Adão e Eva (1896) e O Sermão do Diabo (1893), além do mais já analisados e objetos de interessantes estudos e artigos. O anjo Rafael fala também do diabo, em uma história cujo título contem a sua antítese, um anjo. Trata-se da história, dividida em XIV capítulos, do dr. Antero que, desiludido com a vida, e especialmente cheio de dívidas, decide de se suicidar. Mas enquanto está com a pistola na mão, alguém bate à porta da sua casa, e dali uma série de acontecimentos o levarão a percorrer um caminho, ao final do qual ele terá se transformado em um outro homem, como ele mesmo admite conversando com uma das personagens. Ele de fato, após alguns dias morando em uma casa à qual chega após um pedido de um desconhecido entregado-lhe pelo criado, consegue uma jovem mulher em casamento e uma fortuna. Não consegue porque o pede, mas porque lhe é imposto pelo esquisito dono da obscura moradia, longe da cidade, à qual é trazido pelo próprio mensageiro/criado. O major Tomás, apesar de ter uma aparência quase diabólica, conforta o dr. Antero ao contar para ele que era amigo do seu pai, falecido já há muitos anos, e acrescentando que o tinha procurado para que se casasse com a sua filha Celestina e para que ficasse com a sua fortuna. Após ter recebido a estranha notícia, e ter ficado meio contrário ao ter que se casar com uma desconhecida, o dr. Antero aceita a proposta antes pela fortuna, e depois porque quando conhece a sua noiva, se apaixona dela à primeira vista. Mas quando tudo na vida do protagonista parece estar a seu favor, ele percebe que o major Tomás sofre de uma “monomania celestial”, já que insiste em dizer que ele é um anjo, o anjo Rafael, vindo na terra para salvar algumas boas almas, mas após ser considerado um impostor teve que se retirar naquela casa. A preocupação do jovem doutor aumenta quando descobre que também Celestina, que cresceu, segundo a sua criada Antônia, sem nunca ter saído daquela moradia, acha que é filha de um anjo e que ela não tem mãe. Se não fosse por Antônia, que em um encontro às escondidas com Antero o convence a salvar Celestina casando com ela e levando-a fora dali, o “nosso herói” teria ido embora desistindo até da fortuna do major. A vinda de outro amigo do maior, o coronel Bernardo, que conta a ele a verdadeira história da mãe de Celestina, será mais uma informação que deixa Antero mais tranqüilo em relação à saúde mental da sua noiva, e que o persuade a ficar. Contemporaneamente à vinda de Bernardo e ao esclarecimento do estranho comportamento daquela família, o major Tomás / anjo Rafael adoece e morre, após que Antero ter prometido de casar com sua filha e ter recebido dele a sua fortuna. O conto termina com o casamento e a volta de Antero à sua vida, sendo que ele era considerado morto por seus amigos, devido à carta achada no quarto de Antero, com a qual ele se despedia do mundo, e após que a polícia ter encontrado um corpo afogado, cuja identidade foi logo atribuída como aquela do jovem doutor desaparecido. 1.2 O diabo em O anjo Rafael Nesse conto pouco conhecido de Machado de Assis, O Anjo Rafael, uma frase chama particularmente a atenção do leitor: “morreu o Diabo” (cap. IX). Quando se pensa que quem pronunciou esta frase é a personagem major Tomás, que se define anjo Rafael, então a curiosidade do leitor aumenta ainda mais e o leva a querer descobrir quem é o diabo de quem se fala. Antes da pronunciação dessa frase, se tem a impressão que o major Tomás seja o diabo, e não são poucas as descrições do narrador que induzem a essa conclusão. Começando pela aparência física do homem, descrito como um ser um pouco repugnante, seja fisicamente que em certos modos, diabo mais que anjo, como mais tarde ele se apresentará ao seu hóspede: Os cabelos do major Tomás eram completamente brancos; a tez pálida e macilenta. Os olhos vivos, mas encovados [...] Os beiços do velho eram finos e brancos; e o nariz, curvo como um bico de águia, assentado sobre um par de bigodes da cor dos cabelos [...] O aspecto do major poderia causar menos desagradável impressão, se não fossem as bastas e cerradas sobrancelhas, cujas pontas internas vinham ligar-se na parte superior do nariz; além disso o velho contraía constantemente a testa, o que lhe produzia uma enorme ruga que, vista de longe, dava ares de ser uma continuação do nariz. [...] a figura do homem inspirava um sentimento de medo. [...] As mãos do velho pareciam garras; o dr. Antero já as estava sentindo cravadas em si. (cap. IV) Conto que, já nos capítulos anteriores àquele acima citado, mostra o seu caráter de mistério, como sublinhado pelo próprio narrador: “O que ele queria era pôr termo àquela aventura que tinha ares de um conto de Hoffmann” (cap. II). Misteriosos os acontecimentos e as personagens e, em um diálogo na metade do texto, é citado o próprio diabo. — Ora, guarde-o Deus, disse ele ao entrar; é a primeira vez que o visito no seu quarto. — É verdade, respondeu o doutor. Queira sentar-se. — Mas também o motivo que me traz aqui é importante, disse o velho assentandose. — Ah! — Sabe quem morreu? — Não. — O diabo. Dizendo isto deu uma gargalhada nervosa que fez estremecer o doutor; o velho continuou: — Sim, senhor, morreu o diabo; o que é grande fortuna para mim, porque me dá a maior alegria da minha vida. Que lhe parece? (cap. IX). Quem dá a notícia da morte do Diabo ao dr. Antero é o major Tomás, a personagem que inspirara em Antero, e no leitor, “um sentimento de medo”, quase fosse ele o diabo. Mas após ele ter declarado que “morreu o diabo”, surge a dúvida sobre quem é na verdade o major Tomás, e quem é o diabo que morreu. Segundo Cousté “Por um processo antinômico típico das grandes religiões (e ainda se poderia dizer de todo o chamado ‘pensamento primitivo’) todas as coisas devem ter o seu oposto e toda força provoca uma reação que se lhe oponha” (Cousté, 1991, p.18). Mas não são somente as personagens e suas estranhas palavras a deixar o protagonista Antero e o leitor do conto em um estado de ânsia, este é fruto também da estrutura narrativa, as vezes lenta e cansativa, assim como de descrições de espaços claustrofóbicos. Estes são delimitados por portões, portas e outras entradas, no começo trancados, depois somente fechados e, enfim, é deixada ao dr. Antero a faculdade de abrilos e fechá-los. Ele percebe a limitação da sua liberdade bem antes do leitor. No capítulo III diz ao criado que o trouxe naquela casa: “Mas, enfim, estou ansioso por falar a esse major que não conheço, e que me tem preso sem que eu saiba por que motivo”. A resposta dada pelo criado, exposta com um tom ofendido, é que o seu patrão “deu-lhe quarto, cama, dá-lhe um almoço; creio que isto não é tê-lo preso”, revela-se com todo o sarcasmo machadiano, a descrição de um cárcere como falta de liberdade de movimento, e não como maltratos e/ou tortura. É importante evidenciar que aqui estão sendo descritas ainda as primeiras impressões que brotam quase que intuitivamente, originadas pela leitura rápida à procura de “fatos” e de seus desenvolvimentos, aquela leitura com a qual Machado diverte os leitores e, ao mesmo tempo, diverte-se com eles. O mesmo conto depois revelará outras leituras muito surpreendentes, disponíveis a quem queira aceitar o desafio de procurar textos e/ou documentos apontados por aquelas palavras que podem ser chamadas de “palavraschaves”, fazendo deste conto de Machado de Assis um hipertexto todas as vezes que os leitores decidam de ir à procura das “portas” cujas chaves irão abrir, e que permitirão a entrada em outras histórias e outros discursos. Voltamos aos elementos que, no conto objeto deste trabalho, inspiraram a interpretação pela qual aquele que se diz anjo Rafael seja talvez um anjo, mas das trevas, como as seguintes afirmações: — Conheci muito seu pai; fomos companheiros no tempo da independência. Era ele mais velho do que eu dois anos. Pobre coronel! ainda hoje sinto a sua morte. O moço respirou; a conversa levava um bom caminho; o major confessava-se amigo de seu pai, e lhe falava nele. Animou-se um pouco, e disse: — Também eu, Sr. major. — Bom velho! continuou o major; sincero, alegre, valente... — É verdade. O major levantou-se um pouco, apoiando as mãos nos braços da poltrona, e disse com voz surda: — E mais que tudo, era obediente àqueles que têm uma origem no céu! (cap. IV). Ele, o major Tomás, ainda não tinha confessado de ser um anjo, como ele acreditava ser. A filha dele, Celestina, parece mesmo um anjo por como é descrita: Era, com efeito, um rosto angélico; transluzia-lhe no semblante a virgindade do coração. Os olhos serenos e doces pareciam feitos para a contemplação; os cabelos louros e caídos em cachos naturais assemelhavam-se a uma auréola. A tez era alva e finíssima; todas as feições eram de uma harmonia e correção admiráveis. Rafael podia copiar dali uma das suas virgens. (Cap. V) A beleza e candura de Celestina contrapõem-se à horripilante descrição feita antes do major e, se esta aparece ser mesmo um anjo, o outro, pai dela, não pode que ser a sua versão oposta, ou seja, o diabo. No capítulo VII o major Tomás faz outra afirmação muito estranha respeito à sua pessoa: — Meu caro doutor, já deve ter percebido que eu não sou um homem vulgar; nem sou mesmo um homem. Gosto do senhor porque tem respeitado a minha origem celeste; se eu fugi ao mundo é porque ninguém me queria respeitar (cap. VII). E ainda: — Eu sou, continuou o velho, eu sou o anjo Rafael, mandado pelo Senhor a este vale de lágrimas a ver se colho algumas boas almas para o céu. Não pude cumprir a minha missão, porque apenas disse quem era fui tido em conta de impostor. Não quis afrontar a ira e o sarcasmo dos homens; retirei-me a esta morada, onde espero morrer (cap. VII). Antero das dúvidas chega à certeza, e convence-se, provavelmente porque era médico, que Tomás é afeto por uma doença mental: O major dizia tudo com uma convicção e serenidade que, dado o caso de falar a um homem menos mundano, vê-lo-ia logo ali a seus pés. Mas o dr. Antero não viu na origem celeste do major mais do que uma monomania pacífica. Compreendeu que era inútil e perigoso contestá-lo (cap. VII). A este ponto da leitura/análise, para entender algo a mais daquilo que Machado “quer dizer” precisa começar uma série de pesquisas, e a primeira é saber quem é o anjo Rafael e quais são as característica desta personagem que dá o título ao conto em questão. 2. O Anjo Rafael e o Livro de Tobias O Anjo Rafael, conhecido também como arcanjo, é o terceiro em ordem de importância da tríade que compõe com os outros dois arcanjos, Gabriel e Miguel. Provavelmente um dos motivos desta menor importância seja que Rafael está presente na Bíblia só em um dos livros chamados deuterocanônicos. Deuterocanônicos são chamados alguns livros e partes de livros bíblicos do Antigo Testamento que são considerados canônicos pelos cristãos católicos e ortodoxos, mas tidos como apócrifos pelos judeus e pelos cristãos evangélicos. A palavra é composta pela raiz grega deutero- (segundo) e por canônico. Ou seja, só foram reconhecidos em um segundo momento e fazem parte da Bíblia chegada à cultura ocidental em grego, mas não fazem parte da Bíblia em hebraico 2 . O Anjo Rafael é conhecido como protetor dos viajantes, prófugos, médicos, da juventude e dos noivos, e isso devido à história do Livro de Tobias, do qual ele é umas das personagens. 2.1 Resumo do Livro de Tobias O Livro de Tobias (Velho Testamento) 3 , é composto por 14 capítulos, o mesmo número do conto de Machado de Assis O anjo Rafael, coincidência esta que leva a crer que Machado esteja referendo-se indiretamente a esta narrativa bíblica, hipótese confirmada após a leitura deste texto bíblico e a descoberta de suas inúmeras semelhanças com o conto neste trabalho analisado. 2 WIKIPÉDIA “Livros deuterocanônicos”. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Livros_deuterocan%C3%B4nicos. Acesso mar. 2007 3 “Libro di Tobia”. Disponível em italiano em http://www.labibbia.org/pls/bibbiaol/GestBibbia.Ricerca?Libro=Tobia&Capitolo=1; em português em http://virtualbooks.terra.com.br/biblia/PDFvelho/livrodetobias.pdf. Acesso mar. 2007. No resumo deste trabalho, foi utilizada a versão encontrada em italiano, adaptada em português pela autora É narrada a história de Tobit, a sua descendência, as suas peregrinações no exílio, as persecuções de seu povo (hebreu), suas esmolas, etc. Importante pela história é dizer dos saquinhos cheios de dinheiro, deixados por Tobiat, quando trabalhara na Média, escondidos na casa de um seu parente de nome Gabael, em Ragés de Média. Aquela noite Tobit enterrara mais um homem hebreu achado morto e jogado na praça. Enquanto repousava no jardim, uns pássaros voando sobre ele sujam seus olhos de excrementos, provocando a formação de manchas brancas que o condenarão à cegueira. Então Tobit reza ao Senhor pedindo de morrer, considerando a cegueira uma punição por ter agido contra a vontade do seu Deus. Em outra cidade Sara, filha de Raguel, parente de Tobit, à qual o demônio Asmodeu matara bem sete maridos, também reza pedindo de morrer, porque era ela acusada dos homicídios pelas pessoas. As orações dos dois são acolhidas na hora e o Senhor decide de enviar Rafael para ajudá-los. Naquele dia Tobit se lembra do dinheiro escondido na Média e, achando que estava prestes a morrer, chama o filho Tobias e lhe diz de ir até Ráges para recuperar a quantia. Tobit diz ao filho para procurar um homem de confiança que conheça aquelas terras para ser seu guia. Tobias na rua encontra Rafael, que se apresenta como Azarias, filho de Ananias o grande, um de seus irmãos (filho de Israel). A este Tobias pede de acompanhá-lo. Tobit promete a Rafael uma grande quantia de dinheiro se acompanhar seu filho na viagem. Os dois partem acompanhados por um cão. A primeira noite, para dormir param perto do rio Tigre. Enquanto Tobias se lava os pés no rio, um peixe chega e por pouco não o devora. Mas Rafael lhe diz de capturar aquele peixe, de abri-lo e tirar o fel, o coração e o fígado dele porque são remédios eficazes. Entrando na Média Rafael diz a Tobias para ir na casa de seu parente Raguel, apresentar-se a ele e casar com Sara. Conta também como fazer para livrá-la do demônio.Raguel acolhe Tobias comovido e concede que sua filha Sara case com ele. Com a fumaça do peixe Tobias espanta o demônio que foge para o Alto Egito, onde Rafael vá imediatamente para acorrentá-lo e prendê-lo aos cepos. Sara faz uma oração para louvar o Senhor. Os pais de Sara felicíssimos organizam um banquete que dura quatorze dias. Tobias envia Rafael a pegar o dinheiro na casa de Gabael, e o manda a convidá-lo para as núpcias. Gabael dá os saquinhos ainda intactos para Rafael e sae com ele de manhã cedo para ir às núpcias. Chegam na casa de Raguel e encontram Tobias na mesa. Enquanto isso os pais de Tobias estão preocupados, porque passam os dias e ele não volta para casa. Tobias depois os 14 dias de festa pede a Raguel de deixá-lo partir, ele sabe que seus pais o pensam morto. Eles chegam de frente a Nínive, Rafael diz a Tobias de ir com ele à frente do grupo para arrumar a casa antes da chegada da sua esposa. Depois diz a Tobias que seu pai podia voltar a ver, e lhe dá as instruções de como passar o fel sobre os olhos de Tobit e tirar as escamas brancas. Ana, que estava sentada olhando o horizonte vê o filho chegar com o seu acompanhante. Tobias abraça sua mãe e vá encontro a seu pai seguindo as palavras de Rafael. Tobit consegue enxergar novamente e abençoa o Senhor e os anjos por tê-lo ajudado. Tobias então conta da sua viagem e do casamento com Sara, filha de Raguel, que estava chegando. Então Tobit sae e se dirige às portas de Nínive ao encontro de Sara. Começam os festins das núpcias e continuam por sete dias. Chegou a hora de pagar o salário de Rafael, e Tobit o chama para lhe dar a metade de quanto trouxera, mas Rafael se manifesta, diz que era um dos sete anjos que estão sempre prontos a estar na presença do Senhor. Diz a eles de louvar Deus, que o mandara, de praticar esmolas sempre e de espalhar a palavra de Deus, e outras recomendações. Depois sobe ao céu e eles não podem mais vê-lo. Depois ter recuperado a vista, Tobit vive feliz, praticando esmolas, abençoando e celebrando Deus, até os cento e doze anos. Antes de morrer, chama o filho Tobias e o recomenda de ir com seus filhos para a Mídia, porque ele acreditava em todas as palavras dos profetas de Israel, sobre a destruição da Assíria e da Babilônia. Além disso, profetiza o futuro de Jerusalém e da glória de Deus e do povo de Israel. 3. Comparando as narrativas de O Anjo Rafael e do Livro de Tobias As duas narrativas, O Anjo Rafael de Machado de Assis, e o texto bíblico O livro de Tobias, apresentam elementos em comum que podem ser evidenciados. • a viagem, no conto de Machado aquela do dr. Antero da sua casa até o interior de Rio de Janeiro, no Livro de Tobias, aquele de Tobias de Nínive até a Mídia; • a existência de um mensagero/acompanhante da viagem, no primeiro texto, o criado que depois se descobrirá de nome José, e no segundo Azarias, que mais tarde se revelará o anjo Rafael; • a presença de um cão, nas duas histórias nomeados só uma vez e sem uma função evidente na diegese; • a presença de um anjo e de um diabo, no primeiro conto, o major Tomás que diz de ser o anjo Rafael, e o diabo nomeado quando se anuncia a sua morte, acontecimento que segundo o major é a melhor festa para o casamento da filha, no texto bíblico Rafael, que se revela anjo e Asmodeu, o demônio que matara sete maridos de Sara; • desesperação e procura da morte das personagens, no conto de Machado por parte do dr. Antero, que decide de se suicidar, por causa principalmente dos seus problemas econômicos e da falta de forças para enfrentá-los, no Livro de Tobias, Tobit e Sara pedem ao Senhor de lhe enviar a morte porque Tobit sente vergonha por terem ofendido Deus, e Sara não que envergonhar seus pais com a acusa sobre ela de matar sete maridos; • a “morte” do diabo, quando Asmodeu é afugentado pela fumaça que Tobias prepara segundo as indicações de Rafael, o qual depois corre no deserto atrás do demônio para acorrentá-lo e amarrá-lo aos cepos, eliminando-o para sempre e, em O anjo Rafael, a notícia que o major dá ao dr. Antero da morte do diabo; • a presença de uma importante quantia de dinheiro, na primeira narrativa, cem contos de reis contidos em caixinhas de ferro escondidas na casa do major, e prometidos ao dr Antero como dote no caso se case com Celestina, na segunda narrativa, uma quantia importante dentro saquinhos lacrados na casa de Gabael; • o tema do casamento, o casamento combinado pelo major Tomás/ anjo Rafael entre sua filha Celestina e o dr. Antero no conto de Machado, e o casamento sugerido por Rafael entre Tobias e sua prima Sara no livro bíblico; • ascensão ao céu do anjo Rafael na conclusão dos acontecimentos, no Livro de Tobias, quando Rafael é chamado para receber a devida recompensa por ter ajudado Tobias, e revela de ser um anjo mandado pelo Senhor; no conto de Machado, o major/anjo morre mas o seu corpo e o seu enterro não são mostrados para Celestina, a qual referem que o major foi no céu; • as curas, do dr. Antero, que confessa ao coronel que a entrada naquela casa o tornara um bom homem, enquanto antes não era senão um homem inútil e mau, do Tobit, sarado da cegueira pelo filho Tobias, com o remédio que Rafael lhe ensinara a fazer. 3.1 Os temas tratados nas narrativas Quanto concluído no capítulo anterior, mostra que recapitular os temas enfrentados no Livro de Tobias pode ajudar a entender porque Machado o tenha tomado como referência para o seu conto O Anjo Rafael, e o tenha feito em modo que somente quem fosse um conhecedor da Bíblia pudesse vê-lo. De fato só quem sabia que o Arcanjo Rafael estava presente uma única vez no texto bíblico, e precisamente como protagonista do Livro de Tobias, poderia entender a quais temas o autor-narrador estivesse apontando chamando o seu conto de O Anjo Rafael. Isso enquanto o narrador diegético assinala ao leitor que aquela aventura “tinha ares de um conto de Hoffmann” (Cap. II). As duas indicações são corretas uma vez que, se as personagens e a trama podem ter sido inspirados pelo livro bíblico em questão, o conto está notavelmente marcado por elementos psicológicos que lhe dão a aparência de mistério própria dos sonhos, mas cuja realidade dos fatos é reforçada por elementos como os jornais, que o dr. Antero recebe no seu quarto, marcando o tempo “externo” a casa, e introduzindo os acontecimentos que estão além daqueles muros. Com isso o leitor desiste de acreditar de estar lendo sobre um sonho. Os temas em comum entre as duas diegeses são: • existência do bem e do mal, representados pelo anjo e pelo diabo; • a vitória do bem sobre o mal, uma vez que o diabo “morre”; • a salvação da morte graças à intervenção do Anjo Rafael (morte pedida nas orações de Sara e Tobit no Livro de Tobias, e morte por suicídio no caso do dr. Antero); • a riqueza como incentivo à tomada de duas decisões que mudam totalmente a vida de dois homens (é atrás da riqueza que vão Tobias e o dr. Antero, e terminam com casar-se e curando outros ou si mesmos). Mas ainda há um grande enigma: quem é o diabo em O Anjo Rafael, já que não se conhece o seu nome? Para chegar a entendê-lo serão feitas duas pesquisas que freqüentemente dão indicações importantíssimas para a compreensão mais profunda (o para outras interpretações), das obras de Machado de Assis. E elas são: o estudo dos nomes dados às personagens da diegese; o estudo das datas. 3.2 Personagens (e seus nomes) no conto O Anjo Rafael e eventuais analogias com aquelas do Livro de Tobias A importância dos nomes próprios na narrativa de Machado, e a escolha acurada com a qual o autor os coloca às personagens, são características conhecidas do autor fluminense do séc. XIX. É por isso que a pesquisa de suas genealogias e de seus significados é sempre uma etapa importante na análise dos romances e contos machadianos. A seguir é apresentada a análise dos nomes que resultaram mais interessantes pelo seu significado, comparados com alguns do livro bíblico. O anjo Rafael, presente nos dois contos, chave aliás para a “descoberta” da existência de paralelismos entre as duas narrativas, se revelará como ser angélico só em um segundo momento em ambas as diegeses, apresentando-se inicialmente com nome diferentes. Tomás é o nome do major no conto de Machado, e Azarias filho de Ananias é o nome do acompanhante de Tobias no conto bíblico. Segundo Scottini (1999), “Tomás [...] de origem aramaica, significa gêmeos, por ser variante de Tomé” enquanto Rafael é o anjo do amor esponsal e da saúde, é patrono dos andarilhos, dos prófugos, dos médicos, da juventude e dos noivos 4 . De fato, no conto O Anjo Rafael há um médico, o dr. Antero que, apesar de não estar doente, queria se suicidar. Como será revelado ainda neste trabalho, o suicídio, na época em que Machado escreve, era considerado por alguns médicos produto de uma doença mental. Além disso o dr. Antero se casa segundo os desejos do major Tomás / Anjo Rafael. Azarias é “de origem hebraica, significa Deus ajudou” (Scottini, 1999), enquanto Ananias, sempre de origem hebraica, “significa graça de Deus” (ibidem) ou, segundo outras fontes “Deus teve misericórdia” 5 . É o enviado por Deus para salvar Tobias, nome hebraico que quer dizer “Deus é bom” (ibidem). Rafael, do hebraico Rapha ou Rapha-El, “Deus tem curado” (Obata, 1994) contrapõe-se ao significado do nome do demônio Asmodeu: aquele que faz perecer 6 , e que superintende à luxuria. Segundo outras fontes Asmodeu descenderia do Aramaico: As'medi ou seja Destruidor 7 , e Aeshma-daeva significa demônio chefe, que pode ser traduzido como príncipe dos demônios, além de ser o príncipe da destruição, seria também o demônio da cobiça, da ira e da vingança. No Egito é ainda venerado pelo povo como protetor das biscas clandestinas e do jogo de azar. Além disso parece que Asmodeu seja o 4 WIKIPÉDIA “Tomás”. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Tom%C3%A1s. Acesso em 27 mar. 2007 5 JACK “Significato nome”. Disponível em jack.logicalsystems.it/homepage/nomi.asp?l=l. Acesso em 4 maio 2007 6 WIKIPÉDIA “Arcangelo Raffaele”. Disponível em it.wikipedia.org/- wiki/Arcangelo_Raffaele. Acesso em 26 mar. 2007 7 “Il demone Asmodeo”. Disponível em http://www.vampiri.net/personaggi_022.html. Acesso em 5 maio 2007 demônio ao qual Lílith se juntou depois ter sido mandada embora do Paraíso Terrestre, por não ter aceitado a autoridade de Adão, do qual foi a primeira esposa 8 . No conto de Machado o diabo não tem nome próprio, quase a significar que está bem aqui o coração da leitura, o segredo a desvelar, ou seja, descobrir a que diabo o major Tomás/Anjo Rafael se refere na sua frase “morreu o diabo”. Antero, o nome que Machado dá ao doutor que quer se suicidar, mas que é salvo por uma intervenção independente dele, quase divina, tem origens gregas. Segundo Obata (1994) vem do grego Anthêrós, “florescente, florido, viçoso” ou “alegre”. Mas “Antero é [também] um nome citado nas Metamorfoses de Ovídio como o gênio vingador do amor rejeitado (do grego 'Αντέρως, "anti-" e "amor")” 9 . Irmão de Eros, Antero inspirava a troca do amor inspirado por Eros, mas sob a forma de sentimento fugaz. Teria alguma ligação com Asmodeu, o demônio da sensualidade e da luxuria e que, como já visto neste trabalho, foi afugentado por Tobias com a fumaça aconselhada por Azarias/Anjo Rafael? Mas seria mais natural comparar o dr. Antero com Tobias, uma vez que são eles que acharão uma noiva e receberão um tesouro. Mais uma personagem chave aparece no conto O anjo Rafael, o coronel Bernardo que, segundo quanto narra o major Tomás, ele, Bernardo e o pai do dr. Antero, cujo nome é desconhecido, pela amizade que os unia eram chamados os Horácios. Bernardo, nome germânico, quer dizer “urso forte” ou “forte como um urso” ou, de forma figurada “guerreiro forte” (Obata, 1994), enquanto os irmãos Horácios são conhecidos por uma história/lenda da Roma antiga, mas se tornaram também os símbolos da luta pela República com o quadro pintado por Jacques-Louis David em 1984, chamado “O Juramento dos Horácios” (óleo sobre tela, 330 x 425 cm, Louvre, Paris). Bernardo será aquele dos três que viverá mais, mas qual é a batalha que combateram essas personagens do conto de Machado, para merecer este apelido? Talvez seja aquela contra o diabo, uma vez que a notícia que o diabo morreu tinha sido enviada ao major Tomás do amigo que morava ao Norte, o coronel Bernardo: “Soube por carta que recebi hoje do meu amigo Bernardo, também amigo de seu pai. Não vejo o Bernardo há doze anos: chegou agora do Norte, e apressou-se a escrever-me para dar esta agradável notícia” (capítulo IX). Descobrir quem é o diabo e como morreu é uma pesquisa à qual sutilmente o 8 Ibidem 9 WIKIPÉDIA “Antero”. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Antero. Acesso em 27 mar. 2007 autor Machado convida o leitor a fazer, e cujas bases para começar poderiam estar nestas frases mesmo. Mais à frente se verá o porque. Um nome do conto O Anjo Rafael é bem curioso. Foi já apontada neste trabalho a presença de um cão, em ambas as narrativas aqui comparadas, aquela de Machado e aquela bíblica, um cão do qual não se entende a utilidade narrativa, que acompanha a viagem de Tobias e Azarias/Anjo Rafael em uma delas, e que se acha encerrado na frente da entrada da casa, na noite em que chega o dr. Antero com o seu acompanhante, criado da casa, na outra. Enquanto o cão Tobias não tem um nome próprio, aquele de O Anjo Rafael tem: “O cão entrou a rosnar quando pressentiu gente; mas o criado fê-lo calar, dizendo: - Silêncio, Dolabela!” (Cap. II). Dolabela, segundo o dicionário português disponível on-line: “do Lat. dolabella, pequena enxó - s. f., Zool. espécie de molusco” 10 , enquanto enxó, sempre segundo a mesma fonte, “do Lat. asciola, dim. de ascia - s. f., instrumento de carpinteiro ou tanoeiro para desbastar madeira” 11 . Ou seja, um machado. Por quê este nome? Machado é também o nome do autor, Machado de Assis. Haverá aqui o desejo do escritor de se colocar fisicamente na narrativa, distanciando-se do narrador diegético, que é o dr. Antero? Como querendo dizer que ele autor também está aí, mas não é o narrador? Finalmente não pode ser esquecido o fiel criado do dr. Antero, Pedro, que, além de lembrar a monarquia de Dom Pedro II, própria daqueles anos do tempo diegético (1869), possui ele também seu significado, de “pedra, rocha” (Obata, 1994). Após concluir a observação dos nomes próprios presentes no conto O Anjo Rafael de Machado de Assis, chega o momento de mais um estúdio, aquele das datas e dos acontecimentos históricos-políticos a que estão ligadas. 3.3 Datas em O anjo Rafael O Anjo Rafael, segundo a versão disponível on-line 12 a que se refere este trabalho, é introduzido pela seguinte informação “Publicado originalmente em Jornal das famílias 10 DICIONÁRIO ON-LINE PRIBERAM. “Dolabela”. Disponível em http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx. Acesso em 5 maio 2007 11 Ibidem 12 “Joaquim Maria machado de Assis”. Disponível em alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/- Consulta/Autor.php?autor=8333. Acesso em 26 mar. 2007 1869”. Esta é uma data externa à narrativa, mas que deve ser considerada como pertencente à diegese. Nas primeiras linhas do capítulo I se descobre que “O dr. Antero contava trinta anos”, ou seja, se deduz que nasceu em 1839. Enquanto no capítulo VI Celestina diz sua idade ao doutor “[...] a moça disse ao doutor que tinha dezessete anos, e perguntou a idade dele”, portanto a moça nasceu em 1852. Na descrição do coronel Bernardo, narra-se que o homem “Representava quarenta anos e tinha cinqüenta e dois” (capítulo IX), portanto nascera em 1817, mas aparentava ter nascido em 1829. Segundo Antônia, o major Tomás “[...] está perdido” visto que “[...] há doze anos que perdeu a razão” (cap. X), ou seja, perdeu-a em 1857. Não sabe porque isso aconteceu, uma vez que ela chegara “para esta casa há cinco anos; a menina tinha dez” (cap. X), ou seja, Antônia entrara naquela casa em 1864 e, pelo seu testemunho, Celestina teria nascido em 1854 e não em 1852. Ou seja, a moça teria quinze anos e não dezessete como ela mesmo falou para o dr. Antero. Voltando ao fulcro do nosso trabalho, que é descobrir a identidade do diabo cuja morte é anunciada na diegese do conto pelo major Tomás, precisa ter em conta que “o diabo morreu” em 1869, uma vez que o conto é narrado como acontecido no ano de sua publicação. São, portanto, as seguintes datas sobre as quais precisa refletir, expostas na seguinte tab. 1 ao lado dos acontecimentos diegéticos em análise: Tab. 1 Ano Acontecimento diegético 1817 ano do nascimento do coronel Bernardo 1829 ano em que teria nascido Bernardo se tivesse 40 anos como aparenta ter 1839 ano do nascimento do dr. Antero 1852 ano do nascimento de Celestina 1854 ano do nascimento de Celestina segundo Antonia 1857 ano em que o major Tomás perdeu a razão 1864 ano em que Antônia chegou naquela casa 1869 ano em que o diabo morreu e em que acontecem os fatos narrados Para descobrir quais acontecimentos históricos-políticos aconteceram nas datas citadas na tab. 1, o único instrumento utilizado neste trabalho é o motor de pesquisa em rede Google, graças ao que, e graças aos documentos disponíveis em Internet, foram levantadas interessantes descobertas impossíveis em outras maneiras de serem efetuadas. 1817 é o ano em que surge a Revolução Pernambucana na então chamada Província de Pernambuco, causada especialmente pela insatisfação das províncias do nordeste do Brasil com a coroa portuguesa, cujo governo era considerado o motivo da crise sócioeconômica naquelas terras 13 . O coronel Bernardo, nascido neste ano e morador do norte do Brasil, poderia ser o símbolo da Revolução Pernambucana. Em 1829 uma crise monetária determina a falência do Banco do Brasil, que teria sido causada por D. João VI que, ao voltar para Lisboa (1921) teria saqueado o Banco, o Tesouro e também o Museu 14 . 1839 é, além do ano do nascimento do dr. Antero, também o ano do nascimento do autor do conto objeto deste trabalho, Machado de Assis. Mas talvez seja importante este outro acontecimento relativamente à personagem doutor, “Em 4 de abril de 1839, criou-se por meio do decreto estadual de Minas Gerais, a Escola de Farmácia de Ouro Preto, a primeira faculdade independente do curso de medicina no Brasil”. 15 Segundo Holanda & Campos (1969, p.484) a farmácia foi um centro social de grande importância e nela reuniam-se, á tarde, homens das mais variadas profissões. 1852 é uma data riquíssima de indicações para o presente trabalho. O ano de nascimento de Celestina (se tem mesmo 17 anos como conta à Antero) é “quando da inauguração do Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro em 1852” (Jaco-Vilela & Espirito Santo & Pereira, 2005), o ano em que “Manoel Antonio Dias de Castro Monteiro, em tese denominada Alienação mental considerada debaixo do ponto de vista médico-legal” 16 , explícita as diferentes classificações daquela que já era chamada doença mental, afirmando que “as formas de loucura que mais interessam à justiça criminal são a monomania homicida, a piromania e a monomania de roubo” 17 e, na avaliação da responsabilidade do criminoso, afirma que “o louco não tem consciência do bem e do mal, a consciência moral 13 WIKIPEDIA “Revolução Pernambucana”. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_de_1817. Acesso em 7 maio 2007 14 PROJETO BRASIL URGENTE PAINEL 25 “As Aventuras de Dom Pedro I”. disponível em http://www.expo500anos.com.br/painel_25.html. Acesso em 7 maio 2007 15 WIKIPÉDIA “Farmacêutico”. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Farmac%C3%AAutico. Acesso em 7 maio 2007 16 Ibidem 17 Ibidem abandona o doente” 18 . Em outra tese de Azevedo Junior, sempre de 1852, o autor “aponta a gravidez como tendo influência imediata no moral da mulher, podendo levar até à alienação mental” 19 . Os dados acima citados relativos ao ano em que se supõe que nasceu Celestina, fazem vir a suspeita que esta personagem “vinda do céu” esteja representando a instituição dos hospitais psiquiátricos e dos estudos de doenças mentais no Brasil. Além da coincidência da data, na narrativa estão presentes algumas frases que fornecem a quase certeza sobre o argumento enfrentado por Machado no conto O Anjo Rafael, “Mas o dr. Antero não viu na origem celeste do major mais do que uma monomania pacífica. Compreendeu que era inútil e perigoso contestá-lo” (Cap. VII, p. 9), ou seja, os estudos de medicina legal nascidos naquele período, os estudos dos tipos de loucura que levam a determinados crimes e pelos quais os criminosos não podem ser responsabilizados, mas que justificam o nascimento dos hospitais psiquiátricos. Quiçá as reflexões que inspiraram Machado de Assis a escrever este conto não tenham mais tarde influenciado também outro seu conto, famosíssimo, O Alienista, publicado pela primeira vez em 1882. O fato de que a citação da “monomania” seja feita no sétimo dos quatorze capítulos da narrativa, pode também ser um fator que indique a importância central do argumento. Mas aquilo a que precisa fazer mais atenção, é o tipo de monomania a que o dr. Antero se refere, ou seja, a “monomania pacifica” da qual acredita que o major Tomás esteja sofrendo, visto que esta personagem afirma que, poucas linhas antes da conclusão do doutor: “[...] eu sou o anjo Rafael” (Cap. VII, p. 9). Mas a “monomania pacifica” não existe, e a frase seguinte o adjetivo pacífica o revela, no estilo típico de Machado, “[O dr. Antero] Compreendeu que era inútil e perigoso contestá-lo” (grifos meus). Ou seja, se era perigoso contestá-lo quer dizer que a sua monomania não tinha nada de pacífico, ou que a monomania pacífica não existe e que o autor Machado esteja se referindo a outra monomania. A monomania que logicamente se acerca ao conteúdo da diegese e também à personagem narrador diegético, não pode que ser a monomania suicida, termo introduzido por Esquirol, J. E. D., no seu Des maladies mentales, publicado em Paris em 1838. Segundo Ana Maria Galdini Raimundo e Saulo Veiga Oliveira, Esquirol constrói o conceito de “monomania” a partir daquela de melancolia de Pinel. Para Esquinol monomanias são 18 Ibidem 19 Ibidem “loucuras de um só tema, incidindo parcialmente sobre a inteligência, o afeto ou a vontade; entre elas a monomania suicida e ainda a lipomania (monomania triste)” (Esquinol apud Galdini & Veiga, 2007, pp. 3-4, nota de rodapé 12). Após esta reflexão sobre o ano 1852, e sobre sua importância para uma leitura mais profunda do conto O Anjo Rafael de Machado de Assis, continua a análise do resto dos anos citados direta e indiretamente no conto machadiano. Sobre o 1854, sempre sobre hospitais psiquiátricos e alienados no Brasil, o presidente da Província de Pernambuco, José Bento da Cunha e Figueredo, transfere alguns alienados que se acham em péssimas condições, para o “Hospital de Pedro II na Corte”, onde foram acolhidos muito bem “pelo incansável e magnânimo Provedor daquele grande Hospício” (Oda & Dalgarrondo, 2005, p. 998). Fato que poderia ter feito cair a escolha no nome de José que Machado deu ao “criado”, José é aquele que acompanha o dr. Antero da sua casa para sua nova casa na Tijuca. Em 1857, o ano em que o major Tomás perde a razão, “o Ministro Bernardo de Sousa Franco estabeleceu a pluralidade bancária, permitindo a vários Bancos o direito de emitir, contrariamente ao monopólio estabelecido antes” (Holanda & Campos, 1969, p 65), procedimento este que “não encontrava pleno apoio do ministério nem do Imperador” (Ibidem, p. 66). Em dezembro 1864 começa a guerra do Paraguai que se estende até 1870, ou seja, está ainda acontecendo no ano da publicação do conto, considerado o ano do tempo da diegese (1869), chamada também a Guerra da Tríplice Aliança, entre o Brasil, a Argentina e o Paraguai 20 . Mas em 1864 teve também o segundo governo de Zacarias de Góis e Vasconcelos, cujo ministério foi considerado progressista, mas não era bem visto pelos liberais, substituído em agosto do mesmo ano pelo gabinete de Francisco José Furtado, com uma composição bem mais liberal da anterior (Holanda & Campos, 1969, pp.94-95). Em setembro de 1864 teve também a falência de J. Alves Souto & Cia., a casa bancária mais popular do Rio, que pôs em jogo quase 10 mil credores, arrastando em sua crise também outros bancos, motivada mais pelo sistema financeiro, com o aumento de bancos e as emissões de papel-moeda (Ibidem, pp. 96-97). Finalmente, na tentativa de compreender quem seja o diabo que “morreu”, foi-se à procura de personagens famosas falecidas no Brasil, em 1869. Um deles é o General Abreu 20 “Guerra do Paraguai”. Disponível em http://www.brasileirosnoexterior.com/?q=Guerra_do_Paraguai. Acesso em 7 maio 2007 e Lima, que nasceu em Recife em 6 de abril de 1794 e morreu na mesma cidade em 8 de março de 1869. Revolucionário filho de Padre Roma, o General Abreu e Lima combateu pela independência da dominação espanhola junto a Simon Bolívar. Além de militar, ele era político e escritor. Publicou, entre outros livros, Compêndio de história do Brasil (1843) e O Socialismo (1855). A causa de suas idéias socialistas, não foi permitido que seu corpo fosse sepultado no Cemitério de Recife, então foi sepultado no Cemitério dos Ingleses 21 . Em 1869 morreu também outra personagem, mas não brasileiro, e na França, Alan Kardec, pai do espiritismo, religião que terá depois muitos seguidores no Brasil. É importarnte aqui lembrar que Allan Kardec morreu em 1869 aos 64 anos de idade, e que também Brás Cubas, defunto narrador da sua vida no romance Memórias Póstumas de Bras Cubas (Machado de Assis, 1881), morre aos 64 anos no mesmo ano 1869. Coincidência incrível, será que Machado estava referendo-se indiretamente ao francês pedagogo? Mas não é este o momento para responder a este ulterior interrogativa, é preciso voltar a descobrir quem é “o diabo [que] morreu”. Na seguinte tab. 2 a síntese de quanto descoberto sobre as datas histórico-políticas do Brasil coincidentes com as datas da diegese de O Anjo Rafael, enquanto na tab. 3 temos algumas das mesmas datas com os eventos mais marcantes na biografia de Machado de Assis (fonte: Massa,1971). Tab. 2 Ano Acontecimento diegético 1817 ano do nascimento acontecimento histórico/político do coronel começa a Revolução Pernambucana Bernardo 1829 ano em que teria nascido Bernardo se falência do Banco do Brasil tivesse 40 anos como aparece ter 1839 ano de nascimento do dr. Antero - fundada em Ouro Preto a primeira Escola de Farmácia no Brasil; 1852 ano de nascimento de Celestina - inauguração do “Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro”, o primeiro do país; - publicadas duas teses sobre doenças mentais 1854 ano de nascimento de Celestina segundo Antônia José Bento da Cunha e Figueredo, Presidente da Província de Pernambuco, transfere alguns alienados que se achavam em péssimas condições para o “Hospital de Pedro II na Corte” 1857 ano em que o major Tomás perdeu a estabelecida a pluralidade bancária no direito de emitir moedas razão 21 WIKIPÉDIA “José Inácio Abreu e Lima”. Disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_In%C3%A1cio_de_Abreu_e_Lima Acesso em 7 maio 2007 1864 1869 ano em que Antônia chegou naquela começa a Guerra del Paraguay; governo liberal; crise econômica no Rio devido a casa falência de um importante banco ano em que o diabo morreu e em que - morre em Recife o General Abreu e Lima; se desenvolve a diegese - morre na Francia Allan Kardec Tab. 3 Ano Acontecimento diegético acontecimento biográfico de Machado de Assis 1839 ano de nascimento do dr. - ano de nascimento de Machado de Assis Antero 1857 1864 ano em que o major Tomás costituiu-se o grupo dos cinco - virada do escritor Machado: da poesia à prosa - fundação do perdeu a razão jornal “O Paraíba” - publica o texto: A Odisséia Econômica do Sr. Ministro da Fazenda ano em que Antônia chegou publicação das Crisálidas - Machado comentava fatos políticos do interioir e do exterior - naquela casa virou correspondente da Imprensa Acadêmica - começou a escrever as crônicas da série Ao acaso - começou a escrever os contos do Jornal das Famílias 1869 ano em que o diabo morreu e termina sua colaboração no Jornal das Famílias - publica os Contos fluminenses - casamento em de Machado com Carolina - morte de Faustino de Novais, irmão de Carolina - cinco contratos que se desenvolve diegese a fechados com a Garnier 4. Considerações finais: Antero, “o nosso herói” Como com os contos A Igreja do Diabo, Adão e Eva e em O Sermão do Diabo, também com O Anjo Rafael Machado de Assis escreve um texto inspirado a outro religioso, neste caso ao Livro de Tobias. A escolha de um livro Deuterocanônico, ou seja, reconhecido só em um segundo momento e não presente em todas as versões da Bíblia, tem feito com que, provavelmente, o conto de Machado aqui analisado não tenha levantado um mínimo interesse entre os estudiosos deste autor. A escolha por parte do autor de uma história bíblica por muitas religiões (hebraica e luterana, por exemplo), não reconhecida e, portanto, não divulgada aos fiéis, não demonstra obviamente a intenção de Machado de querer “imitar” uma trama sem ser acusado de “plágio”. Freqüentemente aparece, durante o trabalho de comparação exposto acima, que os elementos de semelhança com o texto bíblico tenham sido incluídos como que forçadamente por Machado, como para não deixar qualquer dúvida, para quem viesse a descobrir certas semelhanças, de que estava no caminho certo. E o título talvez constitua o primeiro rastro. Se na construção da trama, das personagens, dos temas tratados na superfície, O Anjo Rafael se espelha em o Livro de Tobias, o aspecto religioso no conto de Machado, homem do séc. XIX, está praticamente ausente. A presença de um homem que se diz anjo Rafael, que conta que “morreu o diabo”, não quer dizer que se está na frente de um texto religioso, e tampouco que inspire a fé em um Deus. Pelo contrário. É de fato o caráter psicológico que permeia a narrativa, não por nada o mesmo narrador diegético indica ao leitor, já no segundo capítulo, que aquela aventura “tinha ares de um conto de Hoffman” (cap. II). O narrador diegético se identifica com o protagonista dr. Antero, mas só a aprtir do capítulo II. No capítulo I, o narrador está presente na narrativa com todo o seu deboche para aquele que chama “[...] o nosso herói” (cap. I), dando os seus juízos sobre ele com uma certa ironia, ora abertamente ora mais sutilmente. Além disso, fornece indícios aos leitores do fato que o dr. Antero não seja religioso. Na verdade ele está por se suicidar, visto que não se achava bem com o resto “da sociedade”; antes de executar o plano da sua morte se deita no divã para ler o “Dicionário filosófico”, e depois de ter carregado a arma, “para rematar a vida com um traço de impiedade” usa como “bucha que meteu no cano da pistola [...] uma folha do Evangelho de S. João” (cap. I). Se de um lado o narrador do capítulo I mostra um “herói” moderno, que lê filosofia e não a Bíblia, do outro canto dá os indícios de que sua religiosidade ainda enraizada nele. É o homem moderno que esconde no seu interior, ou inconsciente, o ser religioso dos seus pais, antepassados, mas também da sociedade na qual vive, da qual não é capaz de se libertar. A sua casa “era à rua da Misericórdia”, e a folha do Evangelho que usa como bucha da pistola é “de S. João” 22 (cap. I). São estes indícios de caráter supersticioso, presentes nas pessoas que são marcadas, apesar de suas vontades, pelo elemento religioso, neste caso cristão. Mais um destes indícios está presente na reação tida por Antero quando o Tomás declara que “morreu o diabo” (cap. IX). De fato, depois que o major lhe pergunta se não acha que “esta notícia é a melhor festa que posso ter por ocasião de casar minha filha?” (cap. IX), o dr. Antero reponde: “- Com efeito, assim é [...]; mas, visto que o inimigo da luz morreu, não falemos mais nele” (cap. XII). Demonstrando, portanto, certo nervosismo na frente do argumento diabo, não apropriado em um homem racional, livre das crenças populares e religiosas. Livrar-se da sua formação cristã não é fácil para Antero (aquele que é contrário ao amor [divino?]), símbolo do homem ocidental, racional, que consegue muito bem viver nas circunstâncias a ele favoráveis, na tranqüilidade do conforto material ao qual está 22 È bom lembrar aqui que o Evangelho segundo João é considerado o mais “distante” dos outro três Evangelhos, portanto é como se o dano feito aos textos sagrados seja menor privando-o de uma folha do Evangelho de João acostumado, mas de quem não tardam a aparecer medos e incertezas todas as vezes que perde o domínio das situações. E a ironia do narrador machadiano o explica muito bem: “No fundo do seu espírito havia uma extrema dose de fraqueza. Podia disfarçá-la quando dominava os acontecimentos; mas agora que os acontecimentos dominavam a ele, facilmente desaparecia o simulacro da coragem” (cap. II). Mario Fleig, no artigo Da possessão demoníaca à hipocondria 23 , a propósito das crenças religiosas cristãs e, portanto, daquelas de Deus e do diabo segundo Freud, diz que “Freud nos aponta com precisão é a função de suplência do Nome-do-Pai desempenhada por ambos, Deus e o diabo” (Fleig, 2003, p. 14). O dr. Antero, o “herói” do conto machadiano aqui analisado, perdeu há muitos anos o pai, e aparentemente parece não acreditar em Deus. Se para o seu consciente Antero despreza a religião, os seus sonhos revelam a sua formação “teopoética”. É o inconsciente que lhe fala das bases da sua formação como ser humano do final de 1800, pertencente à cultura ocidental. “Ora, o nosso herói teve um sonho durante o curto espaço de tempo que dormiu, fora levado para a cidade das dores eternas, onde Belzebu o destinava a ser perpetuamente queimado numa imensa fogueira” (cap. III). Não é possível se livrar de algo inculcado em nossas consciências só com o uso da razão. A religião, Deus e o Diabo, fazem parte da cultura do homem ocidental, e é difícil se livrar deles completamente. O preço que se paga é a absoluta solidão do homem moderno, espécie em frente das dificuldades. Segundo Freud, citado por Fleig, “[...] Para o cristão piedoso de séculos anteriores, a crença no Diabo era um dever não menor que a crença em Deus. Na realidade, ele precisava do Demônio, a fim de defender Deus. O posterior declínio em sua fé por diversas razões afetou primeiramente e acima de tudo a pessoa do Demônio” (Fleig, 2003, p. 14). Se quem tenta o suicídio é para os cristãos um pecador destinado às penas do inferno, para o homem moderno representado por Antero o suicida é uma pessoa afetada por doença mental, e especificamente por uma monomania suicida, de que se falou no capítulo anterior. A medicina forense prova que os doentes mentais não são responsáveis pelos seus atos, que são pessoas que perdem a consciência, não distinguem entre o bem e o mal. Em O anjo Rafael Celestina, nascida com os primeiros hospitais psiquiátricos do Brasil, e 23 Artigo publicado na revista da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre), disponível em http://www.appoa.com.br/download/correio116.pdf. Aacesso em 8 maio 2007 aquela que possui “essa confiança da inocência e do pudor, essa confiança de quem não suspeita o mal e só conhece o bem” (cap. VIII). A inocência dos seres não contaminados pela civilização, como Celestina que foi distanciada pelo pai, major Tomás/Anjo Rafael da vida além daquela casa, da qual não conhece as leis. Ela sabe que o pai é um anjo, sabe do céu, mas não suspeita do diabo. “Monomaníaco pacifico” é a definição médica que o dr. Antero faz da fixação do major em crer-se o anjo Rafael, mas na realidade é ele o doente monomaníaco suicida que percorre a sua viagem-pesadelo, no estilo de Hoffman, dentro de um hospital psiquiátrico, ao qual ele mesmo se destinou na tentativa de tirar sua vida: “Ao mesmo tempo que fazia estas reflexões, lançava mão da pistola, e olhava para ela com um certo orgulho. - Aqui está a chave que me vai abrir a porta deste cárcere, disse ele” (grifos meus) (cap. I). O hospital psiquiátrico nascia como uma grande esperança da medicina, na cura dos criminosos cujos atos eram considerados irresponsáveis, gerados por doenças mentais, mas era também o lugar onde eram trancados os portadores das assim chamadas neuroses, entre as quais, na época do conto e por muitos anos ainda, a epilepsia. Mas a epilepsia era a doença que afetava Machado de Assis. Em qualquer bibliografia de Machado de Assis, e há muitas, são sempre desatacados, além da importância do escritor brasileiro, considerado um dos maiores da língua portuguesa, duas suas características físicas, quase como duas “doenças”: ser mulato e sofrer de epilepsia. Não é este o momento de fazer uma crítica sobre a importância que os biógrafos de Machado dão a estas suas “características” peculiares, não sendo pertinente a este trabalho, mas sim de entender um pouco mais de como era considerada a epilepsia pelos médicos no Brasil da época de Machado. Na segunda metade de 1800, a epilepsia era vista como uma doença mental e era classificada, assim como a histeria, entre as neuroses. Margarida de Souza Neves 24 (2006) mostra como na primeira tese apresentada na universidade de medicina de Rio de Janeiro, o autor, o Dr. Francisco Pinheiro Guimarães, define a epilepsia como uma “neurose de acessos intermitentes” (Guimarães apud Neves, 2006, p. 9). Na mesma página a autora diz 24 Doutora em História e professora do Departamento de História da PUC-Rio, atualmente coordena um projeto de pesquisa cujo objeto é a história social do pensamento médico brasileiro sobre a epilepsia no Brasil entre 1859 e 1906 ( http://www.historiaecultura.pro.br/cienciaepreconceito/apresentacao.htm, acesso em 7 maio 2007) que, portanto, a epilepsia era tratada como uma outra doença mental durante o período 1859 (data da primeira tese no Brasil sobre o tema) - 1906 (ano em que a descoberta dos neurônios mudam as perspectivas da medicina sobre esta doença), achando na reclusão o tratamento mais recomendado. Voltando ao conto aqui analisado O anjo Rafael, depois as reflexões acima expostas, pode ser visto como vira fácil deduzir, agora, que o dr. Antero não é por acaso que tem a mesma idade do autor Machado de Assis, e que este possa ter escolhido o tema do suicídio, para denunciar, em maneira nada explícita, quase uma denúncia só para ele mesmo, o absurdo a que a medicina chegava catalogando também o suicídio, e a epilepsia escondida de baixo dele, como doenças mentais. Ou talvez não havia por parte de Machado nem uma denúncia de tal absurdo, mas sim do tratamento de tipo carcerário a que os “doentes” sofriam 25 . Relendo o conto sob este ponto de vista, ficam delineados nitidamente, como por magia nascendo do texto, a descrição da reclusão de um homem, o dr. Antero, em um hospital psiquiátrico, com todo seu aspecto lúgubre e todas as suas características carcerárias (especialmente as numerosas chaves com as quais o “criado” abria e fechava as portas antes de permitir o acesso do novo “hóspede”, Antero). O modo como as restrições das liberdades eram camufladas por uma demonstração de cordialidade, até que o “doente” Antero não se acostuma com sua nova condição de “prisioneiro” a ponto de confessar que “a entrada naquela casa fizeram do doutor um bom homem, quando não passava de um homem inútil e mau” (cap. XI). O tema da loucura e de como os “alienados” são identificados e, portanto, levados em manicômio, lembra um dos contos mais famosos de Machado de Assis, O Alienista, o que faz do conto objeto deste trabalho uma leitura importante também desse ponto de vista, como precursor talvez de obras posteriores de Machado. Não podemos esquecer que aspectos autobiográficos podem estar escondidos atrás dos eventos diegéticos deste conto: em 1969 Machado de Assis se casa com Carolina, após a morte do irmão desta que estava doente, Faustino de Novaes, e para Machado começa outra fase da sua vida (ver tab. 4 acima). 25 Só posteriormente, em 1887, Lombroso publicará seu livro O homem criminoso, em que sustenta a hipótese de que todos os epiléticos são potencialmente criminosos (Neves, 2006, p. 15) Enfim, quem sabe o conto não esconda alguma pista sobre o famoso “mistério [que] pairava sobre a razão que levara Carolina a atravessar o Atlântico” (Massa, 1971, p. 580)? CONCLUSÃO Este trabalho de análise e pesquisa, com o propósito de “descobrir” outras possíveis leituras do conto de Machado de Assis O Anjo Rafael, não termina aqui, mas abre a possibilidade a eventuais estudos futuros e a futuras interpretações não somente do conto em questão, mas de outras obras do mesmo autor. Se há uma conclusão certa a se fazer para o presente trabalho, é que ler e reler Machado de Assis, o homem e suas obras, visto que em suas obras há também o homem-autor, e não só o homem narrador, pode ser um trabalho entre os mais estimulantes intelectualmente falando, porque levam o leitor a um desafio consigo mesmo, com sua capacidade de incentivar a sua curiosidade e utilizar a imaginação para acercar-se aos fatos reais. Partindo da curiosidade que este conto tem inspirado para ser utilizado em um estudo sobre o diabo, O Anjo Rafael levou à redescoberta de um livro bíblico praticamente desconhecido para muitos cristãos, o Livro de Tobias. À procura do que seja uma monomania e portanto, a entender que está se falando de um hospital psiquiátrico, a descobrir também que o suicídio era considerado, na época em que vive Machado de Assis, fruto de uma doença mental, mas que muitas outras coisas eram consideradas desta maneira, e entre elas a epilepsia, a doença conhecida a Machado. As análises dos nomes e das datas revelaram que, em 1869, morreu em Recife, Norte do Brasil, um homem chamado General Abreu e Lima, brasileiro de quem os livros escolares falam muito pouco ou não falam, mas que nos países da América Central, como o Venezuela, é considerado como um Giuseppe Garibaldi no sul do Brasil. Até aqui este trabalho não conseguiu confirmar que “morreu o diabo” seja ligado à morte deste homem, apesar de que, por causa de suas idéias socialista, ao General Abreu e Lima não foi permitido que fosse sepultado no cemitério católico da sua cidade. Mas isso tudo pode ser fruto da fantasia, e o fato que “morreu o diabo” não é outra coisa que um elemento da diegese que o autor tinha que colocar, com a finalidade única que essa se parecesse em mais detalhes com a diegese do Livro de Tobias. Enfim, pode ser feita uma interpretação alegórica da figura do protagonista do conto de Machado O Anjo Rafael, o dr. Antero que, apesar de simbolizar o homem racional do final do séc. XIX, positivista e livre das crenças religiosas, está ainda permeado por elementos supersticiosos, resquícios de uma cultura, a ocidental, ainda longe de se ver livre de presenças como Deus e o Diabo, em todos seus aspetos literários ou menos. Referências Bibliográficas DE ASSIS, Joaquim Maria Machado. O Anjo Rafael. Disponível em http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0037-01441.html. Acesso em 2 dez. 2006. COUSTÉ, Alberto. Biografia do Diabo. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1996. FLEIF. Mario. “Da possessão demoníaca à hipocondria”. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 116, ago. 2003. Disponível em www.appoa.com.br/download/correio116.pdf. Acesso em 8 maio 2007. GALDINI Raimundo Oda, A. M. & VEIGA Oliveira, S., “Registros de suicídios entre escravos em São Paulo e na Bahia (1847-1888): notas de pesquisa”. Disponível em http://www.labhstc.ufsc.br/pdf2007/6.6.pdf. Acesso em 7 maio 2007. GLEDSON, John (org.). Contos, uma antologia. São Paulo: Companhia das Letras: 1998. 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O escritor carioca viveu num determinado período e ambiente que bem poderiam ter marcado sua presença − nascido em 1839, filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira açoriana −, sobretudo a de um intelectual considerado de méritos e respeito. Seguindo uma estrutura de questionamento de um contexto psicossocial, Missa do galo serve de amostra para que sejam lidos padrões comportamentais e não apenas de uma fase do Segundo Império brasileiro. Um exemplo dessa recepção crítica privilegiada é Missa do galo: variações sobre o mesmo tema, com depoimentos de Antonio Callado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Osman Lins. Palavras-chave Relações psicossociais, comportamento, ambivalências, conto machadiano. Literatura e história Partimos do pressuposto de que a literatura é um acontecimento eminente histórico, portanto carente de mutações espácio-temporais, como aliás relembra José Luis Jobim em História da Literatura O que a própria História da Literatura nos mostra é que houve sucessivas e diferentes representações daquilo a que chamamos “literatura”. Ou seja, a nossa civilização ocidental concebeu de modos diferentes o que denominou “literatura”: dependendo do momento, do ponto de vista, do lugar a partir do qual se fale, ela pode não ser a mesma coisa. Assim, uma parte do problema da história literária constituiria em investigar quais foram as representações que se constituíram para este termo. Jobim (1992, p. 127). Prosseguindo, o estudioso, em seu ensaio, acrescenta que a tarefa do investigador em Literatura não está nunca segura, pelo contrário é uma atividade de perquirição e busca continuadas: Se, ao produzirmos uma História da Literatura, partimos do pressuposto de que um determinado universo de autores e obras, consagrados como clássicos pelo cânon que herdamos, constitui necessária e suficientemente nosso objeto, teremos um resultado diferente do que se partirmos do pressuposto de que a primeira tarefa do historiador é de determinar seu objeto. Neste caso, a própria definição, bem como os critérios que a fundamentam, seria parte daquela tarefa. Jobim (1992, p. 127). Diferentemente dos formalistas, não mais acreditamos que a chamada “literariedade” seja uma “[...] propriedade, característicamente ‘universal’ do literário, que se manifestaria no ‘particular’, em cada obra literária” (Jobim, 1992, p. 128), e sim, “[...] o termo ‘literariedade’ não teria um conteúdo permanente, mas variável”: “porque ‘aquilo’ variaria de acordo com o momento. Poderia ser algo diferente, caso adotássemos o ponto de vista do Renascimento ou do Modernismo, por exemplo”. Jobim (1992, p. 128). Não podemos esquecer que Cada época tem seu quadro de referências para identificar a literatura, tem suas normas estéticas, a partir das quais efetua julgamentos. Em outras palavras, cada época tem suas convenções, valores, visões do mundo, formando um certo universo, cujos elementos interdependentes mantém entre si relações associativas e funcionais, em constante processo. Jobim (1992 p. 129). Não estaria sendo questionada toda possibilidade de pensarmos uma obra de literatura sem qualquer questionamento de tempo e lugar? Jobim, em certo sentido, procura dar um sentido para tais perplexidades existentes, chamando, em auxílio, um desdobrar-se contínuo de perguntas e aceitações: O autor produz e o receptor lê uma obra considerada “literária” dentro de um quadro de referências em que outras obras “literárias” já foram e estão sendo produzidas. É neste horizonte que se manifesta a nova obra: a partir de uma concepção determinada pelas normas vigentes, tanto o autor pode reivindicar produzir quanto o leitor pode reivindicar ler uma obra enquadrada como literária. Jobim (1992, p. 130). Roberto Reis, em Cânon, adverte-nos, inicialmente, para o caráter de aprisionamento do leitor pela literatura e da luta de perde/ganha de ambos os lados: [...] toda escrita ficcionaliza o seu leitor. E todo leitor acumula um repertório de pré-noções e é munido deste aparato que se cerca de um texto, com o qual seu conjunto de expectativas passará a atritar. Toda cultura nos inculca um conjunto de saberes − e estes saberes, via de regra, de uma forma ou de outra, são saberes textualizados. Sempre lemos/interpretamos (pode-se escrever que toda leitura é uma interpretação e toda interpretação é uma leitura) aparelhados com este elenco de conhecimentos; ou seja, de textos, na medida em que estes ou nos são passados por meio de textos propriamente ditos ou por outras formações discursivas que se comportam como textos. Reis (1992, p 65-66). A imposição canônica mostra-se, por vezes, como se fora um único caminho, embora relativizada pelo conhecimento de que “[...] todo este intercâmbio de saberes − e saber é uma forma de domesticar, pelo conhecimento, a realidade − está mediado pela linguagem. [...] A realidade passa a ser conhecida e o mundo, uma vez inserido na ordem simbólica, assume um caráter humano e social”. Reis (1992, p. 66) A obra produzida por Machado de Assis, como literatura que é, deixa de ser tomada como realização exemplar; ela está condicionada a um determinado tempo e lugar e, para que permaneça, tem que ser lida e discutida constantemente. Literatura e recepção crítica Os estudos da recepção crítica preocuparam-se, inicialmente, dentro das diretrizes defendidas por Hans Robert Jauss, em suprir determinados problemas da tradicional historicidade literária, como indica o próprio autor, em seu texto inaugural de 13 de abril de 1937, História da literatura como provocação à teoria literária: Os patriarcas da história da literatura tinham como meta suprema apresentar, por intermédio da história das obras literárias, a idéia da individualidade nacional a caminho de si mesma. Hoje, essa aspiração suprema constitui já uma lembrança distante. Em nossa vida intelectual contemporânea, a história da literatura, em sua forma tradicional, vive tãosomente uma existência nada mais que miserável, tendo se preservado apenas na qualidade de uma exigência caduca do regulamento dos exames oficiais. Jauss (1994, p. 5) A aula proferida pelo docente da Universidade de Constança, na Alemanha, inserida no atendimento às reivindicações discentes de 1958, sobretudo, abre espaço para a discussão da presença do leitor/receptor como elemento atuante na preservação e permanência das literaturas na contemporaneidade. Regina Zilberman, uma estudiosa da recepção crítica, em seu ensaio “O Uraguai: moderno e americano”, corrobora as insuficiências levantadas por Jauss: [...] não diagnostica o impacto representado pelo aparecimento de dada obra e certo contexto. Ela não é examinada em relação ao horizonte dentro do qual foi concebida e criada; por causa disso, perde-se de vista o diálogo que propôs estabelecer com a época, os demais textos, os autores contemporâneos e, sobretudo, com o público a que se dirigiu. Também não examina o efeito desencadeado pela obra, a não ser quando analisa influências. Zilberman (1995, p. 131) Prosseguindo, lembra também a professora e pesquisadora gaúcha que, para Jauss, [...] uma obra não deixa de agir depois de editada e começar a circular entre o público; pelo contrário, sua vida depende da capacidade de continuar atuando sobre os leitores. Eis por que a história da literatura não pode lidar com épocas fechadas, dentro das quais encerra as obras escritas e publicadas; pelo contrário, cabe-lhe acompanhar a trajetória diferenciada que elas experimentam entre situações e grupos distintos. Zilberman (1995, p. 132) Dentro, pois, dos critérios indicados e considerados necessários pela ensaísta para o desvendamento da obra divulgada, em nossa rápida proposta de um refletir sobre Missa do galo de Machado de Assis, tomamos como pontos a serem questionados e encaminhados: A) Examinar o horizonte histórico, dentro do qual a obra foi “concebida e criada”; B) Determinar o diálogo estabelecido pela obra com sua época, com textos e autores contemporâneos e com seu público; C) Verificar as diversas apreensões acontecidas com a obra, em “situações e grupos distintos”. Missa do galo e seu contexto O conto Missa do galo é dado em livro de Páginas recolhidas, em 1899, segundo “Breve cronologia da vida e da obra” de Machado de Assis, numa “condensação da que foi organizada por J. Galante de Sousa, publicada na Revista do Livro, RJ, Instituto Nacional do Livro, set. 1958, ano III, n° 11”, e apresentada no volume I, página 93, da Obra Completa do autor da edição Nova Aguilar, de 1997. Sousa, apud Assis (1997a, p. 93). Trata-se da apresentação de um tempo desdobrado em dois momentos: o da ação narrada, entre 1861 ou 1862, (“Era pelos anos de 1861 ou 1862”), Assis (1977a, p. 14), e o de sua divulgação em livro, em 1899. O primeiro deles, no Segundo Reinado (1840-1888), e o seguinte, nos começos da Primeira República (1889-1930), períodos bastante diferenciados da história político-econômica brasileira. No Reinado, O Imperador e a burocracia imperial atendiam à essência dos interesses dominantes ao promover a ordem em geral, ao dar tratamento gradativo ao problema da escravidão etc. Mas assim agiam contrariando, às vezes, os pontos de vista de sua base de apoio. A Lei do Ventre Livre, proposta pelo Imperador apesar da oposição generalizada dos fazendeiros, é um exemplo disso. O núcleo de uma visão estatista do Brasil se concentrava nos membros vitalícios do Conselho de Estado. Fausto (2001, p. 104). Na Primeira República: Como episódio, a passagem do Império para a República foi quase um passeio. Em compensação, os anos posteriores ao 15 de novembro se caracterizaram por uma grande incerteza. Os vários grupos que disputavam o poder tinham interesses diversos e divergiam em suas concepções de como organizar a República. Os representantes políticos da classe dominante das principais províncias − São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul − defendiam a idéia da República federativa, que asseguraria um grau considerável de autonomia às unidades regionais. Fausto (2001, p. 139). De acordo com a enumeração elaborada sob a direção de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa para a Enciclopédia de Literatura Brasileira, a obra Páginas recolhidas é quase coetânea da publicação de Dom Casmurro, 1899 e 1900, respectivamente. Coutinho e Sousa (2001, p. 282). No âmbito literário, próximos da publicação de Páginas recolhidas, vamos encontrar: O Ateneu de Raul Pompéia, em 1888; A carne de Júlio Ribeiro, em 1888; O cortiço de Aluísio Azevedo, em 1890; Aleluias de Raimundo Correia, em 1891; Cartas de Inglaterra de Rui Barbosa, em 1896; Um estadista do Império de Joaquim Nabuco, em 1897-1899; Ensaios de sociologia e literatura de Sílvio Romero, em 1900; Poesias (edição definitiva) de Alberto de Oliveira, em 1900; Estudos de literatura, 6 séries, de José Veríssimo, em 1901-1907; Os sertões de Euclides da Cunha, em 1902; O caçador de esmeraldas de Olavo Bilac, em 1902; Rosa, rosa de amor de Vicente de Carvalho, em 1902; Páginas de estética de João Ribeiro, em 1905. Coutinho e Coutinho (1999, p. 4312). Havia, portanto, inúmeros caminhos literários que se mostravam. Machado de Assis já se havia pronunciado, em 1873, pelo escrito em “Instinto de nacionalidade”: Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Assis (1997b, p. 804). O escritor carioca viveu num determinado período e ambiente que bem poderiam ter marcado diversamente sua presença na sociedade e nas artes. Nascido em 1839, filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira açoriana, é Machado de Assis fruto de uma vida de constante e continuada dedicação: Inimigo do diletantismo e da improvisação, tendo por máxima “aprender investigando”, estudou com perseverança, meditou os clássicos e os modelos da língua e dos gêneros, dos quais recebeu as leis da arte literária e com os quais aprimorou o instrumento expressional e a poética do idioma; disciplinou o temperamento, a inspiração e a imaginação; não teve pressa nem cedeu à sedução da facilidade; compreendeu desde cedo que “com os anos, adquire-se a firmeza, domina-se a arte, multiplicam-se os recursos, busca-se a perfeição que é a ambição e o dever de todos os que tomam da pena para traduzir no papel as suas idéias e sensações”, sentiu que o segredo da arte está num justo meio clássico, “nem descuido, nem artifício, arte”, pelo qual sempre se norteou; e aprendeu que a originalidade e a invenção não necessitam de lançar-se contra a tradição, daí não ter sido levado à atitude de negação e iconoclastismo que caracteriza o antropofagismo geracional. Coutinho e Sousa (2001, p.274). O conto machadiano O conto machadiano caracteriza-se pela procura de seguir certo rigor tradicional. Como escreve Masaud Moysés em A criação literária, ao tratar do conceito e estrutura do conto, Trata-se, pois, de uma narrativa unívoca, univalente. Constitui uma unidade dramática, uma célula dramática. Portanto, contém um só conflito, um só drama, uma só ação: unidade de ação. Para entender nitidamente essa unidade dramática, temos de considerar ainda outro aspecto da questão: todos os ingredientes do conto levam a um mesmo objetivo, convergem para o mesmo ponto. Assim, a existência de um único conflito, duma única “história”, está intimamente relacionada com essa concentração de efeitos e de pormenores: o conto aborrece as digressões, as divagações, os excessos. Ao contrário, exige que todos os seus componentes estejam galvanizados numa única direção e ao redor de um só drama. Moysés (1965, p. 100). Missa do galo, por exemplo, constitui uma unidade de ação dramática; o passado ou o futuro representa um campo nulo ou vazio de significados. (“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho de irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que iria acorda-lo à meia-noite”.). Assis (1977, p. 13). Seguindo, ajunta Massaud Moysés: A unidade de ação condiciona as demais características do conto. Assim, a noção de espaço é a primeira que cabe examinar. O lugar geográfico, por onde as personagens circulam, é sempre de âmbito restrito. No geral, uma rua, uma casa, e, mesmo, um quarto de dormir ou uma sala de estar basta para que o enredo se organize. Raramente as pessoas se deslocam para outros sítios. [...] Conclusão: à unidade de ação corresponde a unidade de espaço. Moysés (1965, p. 101). Em Missa do galo, todos os acontecimentos de significativos acontecem na casa onde Nogueira está hospedado. (“A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia”.). Assis (1977, p. 13). Em seguida, arremata Moysés: À noção de espaço segue imediatamente a de tempo. E aqui também se observa igual unidade. Com efeito, os acontecimentos narrados no conto podem dar-se em curto lapso de tempo: já que não interessam o passado e o futuro, as coisas se passam em horas ou dias. Se levam anos, de duas uma: 1) ou trata-se dum embrião de romance ou novela, 2) ou o longo tempo referido aparece na forma de síntese dramática, pois esta envolve, habitualmente, o passado da personagem. Moysés (1965, p. 101). Podemos constatar em Missa do galo o pouco tempo da duração do enredo: (“Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera”.). Assis (1977, p. 21). Observamos, pois, em Missa do galo, a presença de três unidades: de ação, lugar e tempo. Recepção crítica privilegiada No decorrer da leitura do conto machadiano, podemos sentir toda uma perplexidade frente ao contexto psicossocial das relações humanas, sobretudo do casamento, permitindo analisar o ser humano além do contexto do Segundo Império brasileiro. Uma amostra da recepção crítica de Missa do galo − talvez privilegiada − seja o livro Missa do galo (de) Machado de Assis: variações sobre o mesmo tema, com estórias curtas de seis autores da literatura brasileira: Antonio Callado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Osman Lins. É uma concretização de uma idéia de Osman Lins que juntamente com Julieta de Godoy Ladeira, pelos idos de 1964, combinaram escrever novas versões de Missa do galo. Decorridos treze anos, o autor pernambucano resolveu convocar os outros quatro colegas para homenagearem o mestre carioca, daí resultando a publicação de 1977. É um exemplar multifacetado, no qual cada um procura seguir outros caminhos. De inúmeras modalidades poderiamos abordar a obra: uma delas, partindo de uma divisão de gêneros, vez que temos três mulheres e três homens empenhados na tarefa. Julieta de Godoy Ladeira transfere a narrativa para Conceição que assume certa malícia: Não vem à tona com freqüência. Seria mau. Surge entre minhas tarefas quando há calma e silêncio, trazendo seu perfume e sua culpa, seu mistério, a inocência que me faz sorrir imaginando se hoje, afinal, ele compreende, e se nessa compreensão há benevolência. Suponho que não. Julgo mais fácil o esquecimento ou a dúvida ainda, o sentimento de perda. Ladeira (1977, p. 55). Lygia Fagundes Telles, com audácia, faz os fatos serem presenciados por uma mariposa: [...] Um jovem nítido, próximo. E distante, sei que não vou alcança-lo embora esteja ali, exposto, sem mistério como o tapete. Ou como a ânfora de porcelana onde anjinhos pintados vão em diáfana fuga de mãos dadas. Também ele me foge, inatingível, ele e os outros. Sem alterar as superfícies tão inocentes como essa noite diante do que vai acontecer. E do que não vai − precisamente o que não acontece é que me inquieta. E excita, o céu tão claro de estrelas. Telles (1977, p. 100). Nélida Piñon centra em Menezes todo o contar da história: Não a fui logo introduzindo aos meus hábitos noturnos. Não queria a sogra em lamentos pela vizinhança, sempre nestes casos querendo a tudo arrancar de uma alma sofredora. Um escrivão, como eu, não podia expor-se sem cuidados. Na Corte, sabemos como os rumores logo espalham-se em prejuízo para o ofendido. Depressa os negócios se ressentem e menos moeda pingam na algibeira. Piñon (1977, p. 29). Antonio Callado entrega a Dona Inácia os cuidados de tecer os fios do enredo: Agora tinha estalado outra porta, precisamente a do quarto de Conceição, ou, ainda mais precisamente, era o ruído daquela maçaneta de vidro vermelho onde boiavam margaridinhas brancas, presa à sua placa com pregos frouxos e cujo conserto, por mais que recomendado às escravas, não se providenciava nunca. Bastava... Mas que queria Conceição na sala, a desoras, enquanto o garnisé do Nogueira aguardava, todo paramentado, que o viessem buscar para a missa do galo na casa em que todas as mulheres já deviam estar dormindo, ou, mãos postas, rezando diante do chocho presépio usado há anos, e onde, sem qualquer blasfêmia, o próprio Menino Jesus já tinha o ar envelhecido? Ah, ainda bem, estão falando de livros. A Corte inteira na missa do galo e Conceição na missa do frango? Callado (1977, p. 69). Autran Dourado altera a ordem dos fatos dando ao “escrevente juramentado do marido” o comando do narrar: Pode-se dizer que o escrevente juramentado Joaquim Fontainha Távora, como usaria por inteiro em caprichadas letras e bordados riscos de firma e sinal, foi o grande beneficiário da morte do escrivão Menezes. De uma certa maneira, mais do que a viúva, Fontainha se tornou por vias da obstinação, da humildade e do amor, no seu herdeiro universal. Com a morte do Menezes, além das casas da Rua do Senado e do Engenho Novo, das apólices e dinheiro de contato oriundos do casamento com Conceição, passou de interino a escrivão vitalício da Vara de Órfãos, Ausentes, Resíduos e Capelas, de que Francisco Baltazar de Menezes era o titular. Dourado (1977, p. 79). Osman Lins revê a seqüência do conto, mantendo em Nogueira o foco da narração: Enquanto batem à janela com mais força − e agora vibra a campainha −, olho a parde vazia, acima dos degraus. Ouço fechar a porta do seu quarto. Inexperiente embora, pressinto que a perdi. Na manhã seguinte, à hora do almoço, falarei ainda dos fogos de artifício, dos candelabros, doa cânticos, do povo, e só conseguirei enfastiá-la. Não voltarei jamais a ver essa mulher, vinda, no silêncio da noite, de turvas profundezas, outra vez submersa, agora para sempre. Lins (1977, p. 52). O importante é que Missa do galo de Machado de Assis continua uma obra de interesse e de estudos, nossos contemporâneos. 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