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Como regular a presença dos religiosos nos movimentos - Jose Manuel Jimenez Aleixandre (2009)

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Lumen
Veritatis
Ano II - Nº 7 - Abril a Junho - 2009
r eViSta de iNSPiraÇÃo toMiSta
Revista trimestral editada pela
Faculdade Arautos do Evangelho (FAEV),
em colaboração com o
Instituto Filosófico Aristotélico Tomista (IFAT)
e o Instituto Teológico São Tomás de Aquino (ITTA)
Como regular a presença
dos religiosos nos movimentos
José Manuel Jiménez Aleixandre 1
1. INTRODUÇÃO
A natureza dos chamados “movimentos eclesiais” tem algumas características comuns a todos eles 2 , consideradas por muitos autores como sendo, em
parte semelhantes, em parte diferentes, a tantas outras formas carismáticas
suscitadas pelo Espírito Santo na Igreja, ao longo dos séculos, pois, quanto à
origem carismática dos mesmos, há acordo entre os autores.
Podemos dividir as características dos atuais “movimentos eclesiais” em:
comuns aos movimentos de outras épocas, às quais podemos chamar características históricas; novas, adequadas ao novo milênio no qual a Igreja entra,
que denominaremos características atuais.
A análise das respostas dadas ao longo da História, pelo mesmo Espírito
Santo, para dar forma jurídica eclesiológica aos carismas, pode servir de moldura para ajudar a compreender como considerar as características históricas.
Mas a novidade trazida pelos novos movimentos e por seus fundadores
(que se manifesta nas características atuais, muitas delas nunca vistas na
Igreja) causa muitas vezes perplexidade. Aliás, compreensível, uma vez que,
como temos analisado 3, um carisma só é bem compreendido por quem o recebe: seja este recebido diretamente, no caso do fundador; seja através de terceiros, como é o caso dos discípulos.
1) O autor, membro dos Arautos do Evangelho e da Sociedade de Vida Apostólica Virgo Flos Carmeli, é
mestre em Direito Canônico e professor no Seminário dos Arautos no Brasil.
2) Este artigo é um capítulo da tese de Mestrado apresentada pelo autor no “Studium Generale Marcianum” do Patriarcado de Veneza, sob o título “Le recenti proposte di configurazione canonica dei nuovi
movimenti ecclesiali”, Venezia 2009 pro manuscripto.
3) Em outros capítulos da tese de mestrado, da qual se publica aqui um excerto.
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A presença de religiosos 4 nos movimentos eclesiais 5 enquadra-se nessa
questão e merece algumas considerações.
1.1. Conflito de carismas
A questão torna-se particularmente incisiva quando se considera que uma
Igreja Particular (uma diocese, uma prelatura em território de missão, etc.)
não tem sua origem numa graça carismática fundante, mas na própria estrutura da Igreja, Povo de Deus em caminho. De modo diferente, os Institutos
Religiosos 6 sempre nascem de um carisma fundacional, concedido pelo Espírito Santo em geral a uma só pessoa, que o encarna; e o transmite aos seguidores sob forma não jurídica, mas por uma paternidade espiritual que se comunica de pessoa a pessoa. Por isso, um religioso tem a obrigação de conformar sua vida à do fundador. 7
4) Para efeitos deste artículo, empregamos o termo religioso no seu sentido jurídico canónico, definido pelos câns. c. 573 § 2 e 607: membro de um Instituto Religioso. No seu sentido comum entre o povo de Deus, a palavra designa, na realidade, qualquer pessoa que dedica sua vida à Igreja pela prática
dos Conselhos Evangélicos levando vida comunitária, seja numa forma “canonicamente religiosa”, seja adotando outra forma canônica “não religiosa”: Instituto Secular, Sociedade de Vida Apostólica, uma
“Nova Forma” segundo o c. 605; e até algumas formas canonicamente “laicas” como as atuais associações de fiéis com vida comunitária e celibato, por exemplo, os “Memores Domini” ou os “focolares”.
Poderiam ser fazer analogias entre os dois conceitos escondidos no mesmo termo, mas seria objeto de
outro estudo particular.
5) A distinção feita por ZADRA, em I movimenti ecclesiali e i loro statuti, vem a propósito desse assunto.
Ele considera como movimentos laicais aqueles que são constituídos apenas por leigos e que, em geral,
colaboram nas paróquias (como a Ação Católica). Denomina movimentos espirituais aqueles que não
têm uma forma particular de vida ou de ação apostólica, mas possuem específicas práticas devocionais,
particulares ou realizadas em torno de um grupo. Por outro lado, considera como movimentos eclesiais
aqueles nos quais convergem pessoas de todas as categorias existentes na Igreja: celibatários ou casados, clérigos e leigos, religiosos e seculares.
6) A expressão è empregado aqui no seu sentido canônico, se bem que, como è notório, o mesmo se pode dizer de tantos outros “institutos de perfeição”, ou como denominar-se queira, e seja qual for a forma jurídica adotada: instituto secular ou sociedade de vida apostólica, assumindo os conselhos evangélicos. Ver as observações da nota anterior.
7) Mesmo sendo um aspecto colateral ao estudo, fazemos referência aqui ao estudo de CANALS. Para
os discípulos, diz ele, “é um dever de consciência dos mais importantes harmonizar-se constantemente
com o espírito do Fundador” (p. 17), o qual, segundo São Jerônimo é “um homem no qual habita o espírito de Deus” (nota 8). Além do mais, na nota 9, CANALS acrescenta uma citação de FURET (Cronicas maristas - I el fundador, Zaragoza, Luis Vives, 1979, 18-19): “Os religiosos que não têm o espírito do fundador, ou o perderam, devem ser considerados e considerar-se a si próprios como membros
mortos: [...] Para um religioso, o espírito de seu estado, o espírito do fundador não é algo assim como uma prática somente útil, é uma necessidade, é uma coisa indispensável: não há graça, nem virtude, nem paz, nem dita neste mundo, nem salvação e dita eterna após a morte, para quem não possua esse espírito” (grifo meu).
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Os movimentos eclesiais, seguindo a opinião geral dos autores e do Magistério pontifício recente 8, são, eles próprios, nascidos de um carisma fundacional; parece assim ter alguma coisa a ver com os Institutos de Consagrados,
já que ambos não se originam da estrutura hierárquica, e possuem uma forma
vitae dada pelo fundador.
O religioso estaria, então, sujeito a dois carismas fundacionais: o do instituto, e o do movimento.
1.2. Conflitos de autoridades
Existe também o problema da jurisdição. O religioso está sujeito aos próprios superiores, que no caso do Instituto Clerical de Direito Pontifício serão Ordinários próprios. Já os superiores do movimento não têm esta potestas, porque a sua configuração jurídica é muitas vezes — como forma principal — a de uma simples associação de fiéis.
Os autores estão de acordo, em geral, quanto à problemática da pertença
dos religiosos aos movimentos. Contudo, isso não impede que haja consagrados nesta situação. 9
Mais do que considerar os aspetos jurídicos, devemos analisar previamente se é possível que um carisma confira um rejuvenescimento a um outro carisma. Em seguida, na fidelidade às inspirações do Espírito Santo, poderemos
chegar a um resultado prático.
2. OS PROBLEMAS CRIADOS NA IGREJA
PELOS NOVOS CARISMAS
Todo novo carisma é passível de conflitos, já que vem ao encontro, ou de
verdades do Evangelho esquecidas, 10 ou de manifestações da vida cristã nun-
8) São tão numerosos os pronunciamentos de João Paulo II e Bento XVI neste sentido, que resulta sem
sentido citar apenas um ou outro deles.
9) Por exemplo os professores de Universidades romanas P. Fabio CIARDI, OMI (a quem, segundo suas palavras, o carisma de Chiara Lubich marcou a vida) e P. Jesús CASTELLANOS CERVERA, OCD.
E tantos outros.
10) Numa conferência em 1998, no Congresso dos Movimentos, RATZINGER referiu-se algumas vezes à
“vontade de viver radicalmente o Evangelho no seu todo”, característica dos movimentos. Desde Antão
a Francisco, Bento a Inácio, todos os “novos” procuram combater “uma idéia angustiada e empobrecida da Igreja, pela qual se absolutiza a estrutura da igreja local, que não pode tolerar o novo conceito de
anunciadores”, que reclama pelo Evangelho esquecido.
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ca vistas. 11 Isso é motivo de possíveis desarmonias com a autoridade hierárquica, posta pelo mesmo Cristo Jesus, seu fundador, para reger o Povo de
Deus.
O documento Mutuae relationes, de 1978, relembrava esta verdade, tantas
vezes esquecida:
Todo carisma autêntico traz consigo certa dose de genuína novidade na vida espiritual da Igreja, bem como de particular operosidade que poderá talvez mostrar-se incômoda no ambiente e também criar dificuldades, pois
não é fácil reconhecer sempre e logo sua proveniência do Espírito (n. 12).
É da competência da autoridade hierárquica “discernir os carismas”, 12 e
para isso lhe são concedidos os meios intelectuais, técnicos, pessoais e, acima
de tudo, a graça própria ao seu oficio pastoral, ao qual o próprio Cristo confiou a tarefa do juízo. 13 Reconhecer ou discernir, todavia, não quer dizer estar
na origem. Há outro, que não o hierarca, que viu primeiro.
Dois exemplos ajudar-nos-ão a focalizar a questão.
2.1. Paulo e os outros Apóstolos: clareza de visão
Já São Paulo, no seu tempo, sentindo a necessidade de uma oficialização
de seu apostolado, foi a Jerusalém, “para não correr o risco de correr ou de
11) O P. Jesús CASTELLANO, em Carismi per il terzo millenio, mostra, com base em Santa Teresa de
Ávila, e na filosofia da linguagem, como o “sinal de uma nova experiência espiritual e social é a criação de uma nova linguagem” (grifo meu), e entre outros, cita as palavras de Santa Teresa na sua Vita sobre a dificuldade em exprimir adequadamente aquilo que ela via de novidade na fé: “Ó Deus meu, que
pudesse ter a compreensão (entendimento) e a cultura (letras) e novas palavras para colocar à luz (encarecer) a vossa obra como a entende a minha alma” (Vita, 25, 17). A novidade que a mística percebia
sobre a Igreja e sobre as almas exigia uma palavra nova, porque aquela em uso na Igreja do tempo era
incapaz de exprimir a sua experiência (op. cit., 82. grifo meu).
12) De singular relevo a LG: “Estes carismas, quer sejam os mais elevados, quer também os mais simples e comuns, devem ser recebidos com ação de graças e consolação, por serem muito acomodados e
úteis às necessidades da Igreja. […] e o juízo acerca de sua autenticidade e reto uso, pertence àqueles
que presidem na Igreja e aos quais compete de modo especial não extinguir o Espírito mas julgar tudo e
conservar o que é bom (n. 12). […] Os sagrados pastores […] seu cargo sublime consiste em pastorear
de tal modo os fiéis e de tal modo reconhecer os seus serviços e carismas, que todos, cada um segundo
o seu modo próprio, cooperem na obra comum” (n. 30) (grifo meu).
13) S. Paulo exorta aos tessalonicenses a respeitar a autoridade hierárquica e a “não apagar o espírito nem
desprezar a profecia” (1Ts 5, 19-21). O Concílio, por meio da AA 3, retoma este ensinamento: “A recepção destes carismas, mesmo dos mais simples, […] e, simultaneamente, em comunhão com os outros irmãos em Cristo, sobretudo com os próprios pastores; a estes compete julgar da sua autenticidade e exercício ordenado, não de modo a apagarem o Espírito, mas para que tudo apreciem e retenham o
que é bom” (cf. 1 Ts 5, 12; 19; 21. Grifo meu).
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ter corrido em vão”; 14 apesar de declarar que foi “a seguir a uma revelação”, 15
e não pela incerteza em relação ao carisma recebido de anunciar a boa nova
aos pagãos.
Chegando à Cidade Santa, e encontrando os Apóstolos, São Paulo narranos que:
expus-lhes o Evangelho que prego entre os gentios, mas expus em privado
aos mais considerados” (grifo meu). 16 […] e tendo reconhecido a graça que
me havia sido dada, Tiago, Cefas e João, que eram considerados as colunas, deram-nos a mão direita, a mim e a Barnabé, em sinal de comunhão. 17
Porém, nem todos aceitaram de modo muito suave. Deu-se uma “grande
discussão”. 18 Essa “grande discussão” manifesta a incerteza, em Jerusalém,
sobre a oportunidade de pregar aos incircuncisos, e sobre a necessidade, ao
menos, de impor a lei judaica. A palavra de Pedro, que “se levantou e faloulhes”, acaba com a “grande discussão”. Daí o “decreto” no qual se manifesta como “decidimos, o Espírito Santo e nós” o que se deve fazer em relação à
controvérsia.
Aquilo que interessa a nós, para o desenvolvimento da analise, è como fica claro que em Jerusalém não tinham visto com clareza o que Paulo conheceu “pela graça” 19 (pelo carisma) de entender e colocar em prática, com magníficos resultados para o desenvolvimento da Igreja, como a quis o próprio
Cristo.
Podemos dizer que nos encontramos diante de uma hierarquia insuspeita,
como eram os próprios Apóstolos, os quais viveram três anos com Jesus em
carne mortal, e foram confirmados em graça em Pentecostes. Porém “outro”
– que chega depois! – vê com clareza o que deve ser feito.
14) Gl 2, 2.
15) Ibidem.
16) A prudência Paulina é um exemplo para todos aqueles que sentem uma especial vocação para qualquer
nova ação apostólica.
17) Gl 2, 2; 9.
18) At 15, 7 – Segundo alguns exegetas os textos referem-se a uma só ida a Jerusalém, segundo outros, a
duas viagens. Para o objeto deste estudo não interessa tanto este detalhe, pois mesmo tendo se dado em
momentos diferentes o problema è sempre o mesmo.
19) Gl 2, 9.
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2.2. Francisco de Assis: verdade esquecida
Temos um claríssimo exemplo de verdade esquecida em São Francisco. A
pobreza foi recomendada na Igreja desde os tempos dos Padres Apostólicos.
Podemos inclusive lembrar a primeira comunidade de Jerusalém. 20 Mas num
começo de fim da época medieval, na qual a estabilidade de vida e a paz crescente criavam um considerável aumento da riqueza, o perigo de uma atitude
não conforme o Evangelho era forte.
São Francisco será chamado por Deus a “restaurar a Minha Igreja, que está em ruínas”, por uma prática evangélica esquecida: em primeiro lugar pela
prática da pobreza.
Junto ao pobre de Assis, podemos desenrolar a série de grandes fundadores que trouxeram à Igreja — de modo ciente ou subconsciente, e isso é algo
realmente notável — novas formae vitae, seja por meio de uma novidade, seja recordando verdades esquecidas.
São Bento, por exemplo, cria uma nova forma vitae, de singular importância pela influência que terá na construção da sociedade européia cristã. 21
Podemos referir-nos a São Domingos de Gusmão, pela sua concepção de
um grupo de padres itinerantes ao serviço da Igreja Universal, com algo de vida comunitária, porém muito diferente da stabilitas loci beneditina.
Ainda mais acentuada é a novidade de Inácio de Loyola com seus Clérigos
Regulares, e seu governo totalmente centralizado, a fim de favorecer a disponibilidade nos lugares mais necessários. Para fazer uma comparação não
muito eclesial, mas certamente de acordo com a psicologia inaciana, uma task
force diante dos desafios enfrentados pela Igreja do século XVI.
Examinada a realidade na Igreja dos carismas concedidos pelo Espírito
Santo, seja para fazer ver algo de novo, seja para viver de forma clara algo esquecido, consideremos como se coloca o problema da sobreposição dos carismas, operando na mesma pessoa: um religioso.
20) At 2, 44-45.
21) Podemos dizer que muito mais importante é o fato da sua vida, tornada modelo vivo, do que se a sua
herança fosse uma bela enciclopédia, como a que deixou o quase contemporâneo Sto. Isidoro de Sevilha.
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2.3. Teresa de Jesus: carisma de rejuvenescimento
O Anuário Pontifício nas suas Notas Históricas apresenta “as diversas formas que a vida religiosa teve no curso da história”, 22 assinalando as novidades
que toda nova conformação jurídica (não prevista no ordenamento anterior,
note-se bem) trouxe. Em alguns casos a novidade não permaneceu circunscrita ao novo instituto, mas foi “transmitida a formas religiosas posteriores”. 23
Em outros casos é a traditio dos que os antecedem que é acomodada às
“diversas necessidades dos tempos, porém, não a tornando menos severa”; e
aqui chegamos a um ponto que nos interessa.
A figura de Santa Teresa d’Ávila — a grande reformadora e rejuvenescedora — aparece no século XVI como uma novidade que, na realidade, é apenas uma vida em profundidade do que já existe em concreto. A não aceitação, por todos os religiosos carmelitas, do seu modo de entender a Regra, faz
nascer um novo Instituto (masculino e feminino) propagando-se por toda a
Igreja. Notemos, porém, que esta não aceitação dos observantes é, entretanto, uma fidelidade ao carisma fundacional, no modo até agora conhecido e vivido, e que como forma vitae tinha resultado em grande número de santos.
São Bernardo seria outro exemplo, tendo tomado a mesma regra de São
Bento (a qual até hoje fez surgir tantas formas diversas), mas adaptando-la a
necessidades novas.
Podemos dizer que um carisma novo pode nascer em relação com outro
carisma, o qual, ou ficou esquecido, ou pode ser visto em maior profundidade. Desse encontro pode surgir: seja uma adaptação das formas jurídicas antigas, sem mudança substancial; seja novas formas jurídicas.
Em certo sentido a variedade de formas jurídicas nascidas do carisma de
São Francisco de Assis parece indicar esta segunda via: o carisma vivido numa fidelidade que compreende modos diversos; 24 sem se dever (nem poder)
dizer que uma forma seja superior à outra.
22) Cf. Annuario Pontificio 2009, p. 1951-53.
23) Ibidem.
24) Um grande historiador franciscano, Lazaro IRIARTE OFM Cap., na Historia Franciscana desenvolve
as dificuldades dos homens, e da ação do Espírito Santo, ao longo dos séculos, nos seguidores de São
Francisco. Já na vida do fundador, surge o “partido dos letrados” — que poderemos chamar “dos intelectuais” — os quais aproveitando uma viagem do poverello a Jerusalém, “ditaram vários estatutos adicionais, dirigidos a comunicar à ordem um prestigio ascético” (p. 62) diferente daquele do carisma fundacional. Retornando a Assis “o desgosto de Francisco foi enorme... sentiu-se impotente para enfrentarse com o sagaz partido […] era inevitável a cisão da ordem em duas tendências opostas (p. 63). Essa dificuldade continuará ao longo dos séculos, dando origem a novos institutos, alguns com casos tão sur-
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Uma das razões é que um carisma fundacional não é compreendido a não
ser pelos próprios seguidores, 25 e em conseqüência, os estudos feitos “do exterior”, de modo mais ou menos “teórico”, poderiam facilmente levar a conclusões equivocadas.
Podemos, desse modo, falar de carismas fundacionais e carismas de rejuvenescimento. E eles poderão dar origem a formas jurídicas variadas até... o
infinito? Sim, uma vez que infinito é o Espírito que inspira e dirige. Ao menos teoricamente; porque tudo aquilo que é humano é sempre limitado, e a
história humana tem um início e terá um término.
3. OS CARISMAS DOS NOVOS MOVIMENTOS:
PODEM SER DE REJUVENESCIMENTO PARA OUTRAS
FORMAS JURÍDICO-CANÔNICAS EXISTENTES?
Esse tema é, de certa maneira, algo difícil de abordar de modo teórico. Na
verdade são tantos os casos de conflito entre religiosos e superiores — porque os primeiros crêem ter encontrado num novo movimento o modo de rejuvenescer o seu Instituto, enquanto os segundos vêm nesse ato apenas um modo de despedaçar a coesão do Instituto — que se pode dizer: “não é possível!
A experiência o prova!”
Há, porém, também tantos outros casos de religiosos que encontraram num
novo movimento o modo de reconhecer o carisma do próprio fundador ou
preendentes como os capuchinhos, com Bernardino Ochino, primeiro Vigário Geral, que depois se tornou pastor luterano; Matteo da Bascio e Ludovico di Fossombrone, ambos superiores da ordem, e depois expulsos por causa da sua indocilidade. Isto não impediu que até nossos dias vejamos grandes santos capuchinhos, como São Leopoldo Mandic ou São Pio da Pietrelcina.
25) O assim chamado “carisma do discípulo” está pouco aprofundado, mas é muito real. Por que de três irmãs, numa pequena cidadezinha sem muita comunicação com o exterior: uma contrai matrimonio, outra se torna Clarissa, e outra ainda missionária no Japão? Evidentemente recebem vocações diferentes.
Uma compreendeu que “não è bom que o homem [nem a mulher!] esteja só”, e procurou seguir o mandato primigênio de Deus a sua criatura: ““frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra” (Gen 1, 28). Outra sentiu-se chamada seguir o último ensinamento de Cristo aos seus discípulos: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16, 15). A terceira entendeu que, para ela, Clara de Assis
será o seu modelo, a fundadora à qual conformará a sua vida a fim de conformá-la a Cristo. “É preciso
ter sido chamado a viver o mesmo carisma para compreendê-lo. O discípulo, por obra do Espírito Santo, alcança um grau de afinidade com o espírito do Fundador por onde vibra em contato com qualquer
manifestação dele. É o carisma dos discípulos”, diz CANALS, e cita, entre outros, a ROMANO (162163), o qual descreve o carisma de discípulo como: “o dom que o Espírito confere aos que são chamados por ele a formar parte de uma comunidade religiosa. Dessa maneira, os discípulos alcançam uma
particular afinidade com o espírito do fundador, que os faz vibrar de entusiasmo ao entrar em contato
com a manifestação autêntica de seu espírito, e os leva a viver em sintonia com a forma evangélica encarnada pelo fundador”.
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fundadora. Em alguns casos deram até origem a novos Institutos, que reconhecem o fundador original, e também o carisma do rejuvenescimento; provavelmente sendo, como Santa Teresa d’Ávila, fiéis ao mesmo tempo ao
carisma original e ao novo impulso. 26
Mais que considerar as dificuldades concretas tomadas em tantos lugares,
ou referir os bons resultados em tantos outros, parece que devemos sair da fenomenologia e fazermo-nos “ao largo”, propondo-se aqui uma análise das palavras do então Cardeal Ratzinger em 1998:
As duas partes devem deixar-se educar pelo Espírito Santo e também pela
autoridade eclesiástica, devem aprender a esquecer-se de si mesmas, sem o
que não é possível o consenso interior com a multiplicidade das formas que
a fé vivida pode assumir. As duas partes devem aprender uma com a outra a
deixar-se purificar, a suportar-se e a encontrar o caminho que leva aos comportamentos de que Paulo fala no hino à caridade (1Cor 13, 4-7). Por isso,
é necessário advertir os movimentos: embora tenham encontrado outros no
seu caminho e lhes tenham comunicado a totalidade da fé, são um dom feito à totalidade da Igreja, devendo submeter-se às exigências dessa totalidade para permanecerem fiéis ao que lhes é essencial. Mas também é preciso
dizer claramente às igrejas locais, e até aos bispos, que não lhes é permitido
ceder a nenhuma pretensão de uniformidade absoluta nas organizações e
programações pastorais. Não podem elevar os seus projetos pastorais à condição de medida daquilo que o Espírito Santo pode ou não realizar: diante
de meros projetos humanos, pode acontecer que as igrejas se tornem impenetráveis ao Espírito de Deus, em virtude do Qual vivem. Não é licito pretender que tudo deva inserir-se numa determinada organização da unidade; é melhor menos organização e mais Espírito Santo! Sobretudo, não se
pode sustentar um conceito de comunhão em que o valor pastoral supremo
consista em evitar conflitos. A fé é também e sempre uma espada que pode
26) As Suore della Carità dell’Assunzione podem ser consideradas o caso mais característico e documentado; e certamente, não o único. O instituto originário, as Piccole Suore dell’Assunzione, fundado em
1865, em Paris, pelo P. Pernet, estava presente na Itália, com o carisma de evangelizar “os pobres, os
operários e a suas famílias”. Nos anos 1960, algumas jovens que tinham feito uma experiência na Gioventù Studentesca, de D. Giussani, entraram na congregação. Surgiram algumas diferenças, acentuadas pela crise pós-conciliar. Em 1993 a Santa Sé erigiu um novo instituto de direito pontifício, as Suore della Carità dell’Assunzione (hoje com noventa irmãs) que toma como ponto de referência tanto o
P. Pernet como D. Giussani. Neste caso, o carisma de D. Giussani rejuvenesceu — segundo a fundadora do novo instituto, a irmã Gelsomina Angrisano — o carisma do P. Pernet. É preciso acrescentar que,
segundo os estatutos de Comunhão e Libertação, uma irmã da Assunzione faz parte da diaconia. A irmã
Gelsomina declara estar pessoalmente envolvida na estruturação de uma das formas mais ativas de CL,
os Memores Domini (Tracce 8 (2004); Favale Comunità nuove nella Chiesa 212-213).
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exigir justamente i conflito por amor da verdade e da caridade (cf. Mt 10,
34, grifo meu). 27
E este foi o conselho do Papa Bento XVI aos bispos alemães, em 2006:
Depois do Concílio o Espírito Santo deu-nos os “movimentos”. Por vezes
eles podem parecer um pouco estranhos ao pároco ou ao bispo, mas são lugares de fé em que os jovens e os adultos experimentam um modelo de vida na fé como oportunidades para a vida de hoje. Por isso peço-vos para irdes ao encontro dos movimentos com muito amor. Em certos aspectos devem ser corrigidos, inseridos no conjunto da paróquia ou da diocese. Mas
devemos respeitar o caráter específico dos seus carismas e ser felizes por
nascerem formas comunitárias de fé em que a Palavra de Deus se torna vida (grifo meu). 28
Se as palavras consideradas foram pronunciadas para evitar, ou resolver,
conflitos nos movimentos com a hierarquia, podem ser aplicados aos religiosos, já que a sua “hierarquia” direta é constituída pelos superiores do
Instituto. Sobretudo nas duas partes deve haver “muito amor”, devem mutuamente “aprender […] a deixar-se purificar”, e a “deixar-se educar pelo Espírito Santo e também pela autoridade eclesiástica”. Digna de nota é
a chamada do Cardeal Ratzinger aos bispos, em 1998, a deixar-se educar
“pela autoridade”.
Lendo a história de Teresa d’Ávila, podemos vê-la caminhar na penumbra,
antes do amanhecer, pelas ruelas de uma aldeiazinha da Castela pós-medieval, acompanhada por três ou quatro irmãs e um ou dois frades, portando todos, pêle-mêle, 29 ornamentos sagrados, um crucifixo, velas, colchões, cobertas, um tecido não muito precioso, uma toalha de altar, e ainda alguns outros
pobres objetos; ela quer chegar, sem o bispo diocesano o saber, a uma casa
nova, alugada em modo discreto por interposta pessoa, a fim de celebrar uma
missa ao primeiro raiar do sol (a liturgia não permitia outro modo), de modo a “impor” a fundação (para a qual tinha licença da Santa Sede) sem muitos conflitos com a autoridade local. Tudo isto nos faz pensar em situações
contemporâneas. Lá, como aqui, percebemos o mesmo: é a caridade (o “mui27) In: Os Movimentos na Igreja: Presença do Espírito e Esperança para os Homens. Estoril: Lucerna, 2007.
p. 58.
28) Discurso do Papa Bento XVI ao segundo grupo de bispos da República Federal da Alemanha, em visita
“Ad Limina Apostolorum”. 18 nov. 2006.
29) Não muito organizadamente.
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to amor”) que obtém a resolução para os problemas jurídicos dos novos carismas.
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